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RONDAS À CIDADE: uma coreografia do poder* * Texto apresentado no Congresso da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP), em agosto de 1986.

Resumos

Este artigo procura interpretar algumas dimensões das práticas policiais de esquadrinhamento e vigilância do espaço urbano paulistano da década de 70: as rondas. Analisa a reorganização do aparelho policial pela ideologia da segurança nacional que, centrada na tese do “inimigo interno”, transforma o cidadão em “suspeito”, discriminando especialmente o trabalhador ao qual cabe o ônus de provar que não é “bandido” ou “marginal”. Discute como a imprensa do período tende a criticar as rondas apenas pelos seus “excessos”. Aponta alguns paradoxos do “discurso da suspeita” e, entre eles, o mais escandaloso: em nome do “cidadão de bem” dissolve a cidadania.

Violência policial; violência urbana; ronda policial; vigilância policial; cidadania


This article attempts to interpret some dimensions of a common police practice in São Paulo during the 1970’s that consisted in keeping under permanent and minute watch the urban space, through the “rondas”, or mobile patrols constantly going around the city. It analyses the reorganization of the police apparatus under the influence of “national security” ideology which, centered on the idea of an “internal enemy”, puts under suspicion every citizen, especially the working man, who is thus discriminated against and bears the burden of proving that he is neither part of “marginalized” gangs nor a “bandit”. It also discusses how, during this period, the press tends to criticize such practices only for the “excess” of their zeal, going sometimes “too far”. Finaily, it emphasizes some paradoxical aspects in the “discourse of suspicion”, amongst which the most outrageous one: in the name of “good citizens”, citizenship itself is destroyed.

police violence; urban violence; police vigilance; citizenship


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    Texto apresentado no Congresso da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP), em agosto de 1986.
  • 1
    Neste trabalho, a interpretação das rondas policiais abstrai o processo histórico que as instituiu. Para uma cuidadosa análise deste processo, veja-se Pinheiro, 1982PINHEIRO, Paulo Sérgio. Polícia e crise política: o caso das polícias militares. In: PAOLI, Maria Celia et alii. A violência brasileira. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1982. p. 57-92..
  • 2
    MACEDO, F. e BRANCO, A. Operação Alfa: a Polícia estuda o crime nos bairros ricos, favelas, vilas e esconderijos da Zona Sul. Jornal da Tarde, São Paulo, 3 mai. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566: Polfcia-Brasil-São Paulo).
  • 3
    Idem ib.
  • 4
    Idem ib.
  • 5
    Idem ib.
  • 6
    A ‘Garra’ rondando as rondas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 out. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 7
    Devo à reportagem indicada na nota anterior a listagem tanto das Operações quanto das rondas. As duas aguardam pesquisa historiográfica mais sistemática; o que é uma lástima, pois o esquecimento é uma das armas dos poderosos.
  • 8
    Atrás do volks, os homens da Rota. E eles vão atirar. Jornal da Tarde, São Paulo, 8 set. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 9
    Idem ib.
  • 10
    Idem ib.
  • 11
    Idem ib.
  • 12
    O caso da ROTA 120. Violencia desnecessária, excesso policial. Jornal da Tarde, São Paulo, 13 set. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 13
    Souza, Percival. Queixas do comandante sobre a pobre imagem da PM. Jornal da Tarde, São Paulo, 17 set. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 14
    Dias, Cel. Erasmo. Nós protegemos você. Última Hora, São Paulo, 29 jul. 1976; carta do Secretário da Segurança Pública em resposta à crônica de Ignácio Loyola Brandão, “Quem me protege”. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 15
    Uma sociedade atemorizada. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2 out. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 16
    No fim da sindicância, o promotor culpa Rota 120. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 22 set. 1976; grifos meus (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566). Note-se que a alusão às humilhações passadas faz ecoar o reconhecimento constrangido de que na sociedade brasileira, os “homens de educação inferior” estão submetidos a condições excepcionais de violência soclal.
  • 17
    “O crime está aumentando”, entrevista com o Secretário da Segurança de São Paulo, Revista Veja, 11 de maio de 1977, p. 6. Na linguagem policial, PM é usado para designar o soldado.
  • 18
    “Nós protegemos vocé”, op. cit.
  • 19
    Essa lógica da produtividade pode ser inferida do depoimento que obtive de um oficial que avalia negativamente suas conseqüências: “A questão passou a ser a de como mensurar o trabalho de um batalhão. Não se podia medir em litro, nem em quilo, nem em metro. Foi aqui que entrou a produtividade. Ela tornava possível a mensuração. Por exemplo, dez bandidos mortos ou presos já dava uma mensuração. E também dava para avaliar o nível do produto que se conseguia obter. Por exemplo, dez viciados em maconha presos não tinham o mesmo valor, o mesmo peso que dez bandidos desarmados presos. Mas dez bandidos desarmados presos não tinham o mesmo valor que dez bandidos armados presos”. Verdadeira lógica do valor de troca segundo a qual “mostrar serviço” tornou-se critério de avaliação e de promoção do pessoal da instituição, especialmente os da tropa.
  • 20
    Nitrini, D. e Valle, P. PMs dizem que baixos salários e punições levam à violência. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 jan. 1983, p. 10. Nesta reportagem, são transcritas as declarações de um soldado da PMSP segundo as quais grande número de praças “mora em barracos, em favelas mesmo, na periferia, e têm de sair de casa sem farda para os malandros da vizinhança não descobrirem que são policiais”.
  • 21
    Extensão e intermitência da jornada de trabalho que dificultam a manutenção de relações estáveis com a família.
  • 22
    A extensão é agravada pela “intensidade” da jornada. Os soldados participam diariamente de situações tensas e dramáticas e, ao mesmo tempo, estão obrigados a se preservar de qualquer envolvimento emocional. Segundo o Chefe da Clínica Psiquiátrica da PMSP, o alcoolismo é um dos problemas mais comuns entre os soldados, mas também são elevados os índices de distúrbios mentais (em 1985, haveria 600 esquizofrênicos na instituição). Dados da reportagem de Alencar, G. Por que os PMs ficam loucos. O Estado de S. Paulo, São Paulo,16 mai. 1985, p. 60.
  • 23
    Em 1983 a imprensa denuncia que soldado que faltasse um dia ao trabalho pegava cinco dias de xadrez e que, no Regimento de Cavalaria 9 de julho, os soldados presos são acordados às 5 horas da manhã e impedidos de sentar ou encostar nas paredes da cela: “retiram o colchonete da cadeia e mantém a cela molhada recolocando-a só às 22 horas”. Nitrini, D. e Valle, P. PMs dizem que baixo salário e punições levam à violência. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 jan. 1983, p. 10.
  • 24
    Segundo o Centro Social de Cabos e Soldados, 40 soldados teriam se suicidado em 1984. Com um efetivo de 60 mil homens, a proporção seria de 66 suicídios para cada 100 mil pessoas, índice superior ao triplo daquele registrado na Suécia que detém o maior índice de suicídios do mundo. “Suicídio de soldado PM inquieta corporação”. Folha de S. Paulo, São Paulo,10 abr. 1985, p. 19. Veja-se também “Cresce o número de suicídios na PM”, Folha de S. Paulo, São Paulo, 7 abr. 1985, p.20.
  • 25
    Não é casual que, em outubro de 1983, as praças tenham tentado expressar suas reivindicações através da criação de uma Associação Beneficiente de Esposas de Policiais Militares do Estado de São Paulo. Em maio de 1984, essa Associação divulgou um documento entregue à imprensa, às Secretarias da Segurança e da Justiça, OAB, Cúria Metropolitana e outros órgãos do governo estadual que denuncia perseguições, ameaças, transferências e prisões de praças.
  • 26
    Freud fala da Schaulust - ver, ser visto - como pulsão parcial. M. D. Magno, na sua cuidadosa versão dos textos de Lacan para o português, utilizou “pulsão escópica” para traduzi-la, e é deste modo que foi incorporada ao campo psicanalítico no Brasil. Sobre a pulsão escópica e sua manifestação na perversão (como, por exemplo, no voyeurismo), veja-se Lacan, 1979LACAN, Jacques.Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979., p. 172-4 e Metz, 1980, p. 71 -82.
  • 27
    Este trabalho não se deteve na tecnologia crescentemente sofisticada dessas práticas policiais. Em julho de 1977, por exemplo, a PMSP expôs à imprensa suas novas aquisições que, com exceção das botas e macacões, são importadas. "Os novos instrumentos incluem carros blindados lança-granadas de gases, spray para longa e curta distância com gases lacrimogêneos, ‘fumaçapimenta’, agentes químicos para produção de distúrbios estomacais, vomitivos, intestinais e bastões geradores de choque elétrico, máscaras com megafones, explosivos, bem como lanternas com a luminosidade do farol de um avião ‘Boeing’, destinados a cegar por cinco ou dez minutos a pessoa atingida", "As novas armas para a polícia", O Estado de S. Paulo , São Paulo, 30 juh 1977 (Arquivo de O Estado de S. Paulo , Pasta 5566). Uma descrição minuciosa e detalhada desses novos equipamentos pode ser encontrada no artigo de Fausto Macedo, "As novas armas da Polícia". Jornal da Tarde , São Paulo, 25 jul. 1977, idem ib. Há, inclusive, o desenho do que seria um soldado revestido com esse instrumental; imagem escancarada do desaparecimento do homem transformado em mera extensão da própria arma.
  • 28
    O Secretário determina o fim das metralhadoras. E explica. Jornal da Tarde. São Paulo, 30 nov. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 29
    Idem ib.
  • 30
    Erasmo contesta as críticas à Polícia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 nov. 1976. (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566).
  • 31
    “As novas armas para a polícia”, op. cit.
  • 32
    Idem ib.
  • 33
    Raufer, 1985, p. 29.
  • 34
    >Idem ib., p. 74.
  • 35
    Idem ib., p. 144-9.
  • 36
    ldem ib., p. 130.
  • 37
    Para a discussão dos territórios e microculturas violentas, inclusive com a descrição do “predador violento” como tipo social, cf. Raufer, 1985, p. 133-144.
  • 38
    Idem ib., p. 116, nota 1, fonte: U.S. Bureau of Justice.
  • 39
    “O crime está aumentando”, Revista Veja, 11 de maio de 1977, p. 3 (entrevista com o Cel. Erasmo Dias).
  • 40
    Tema do coronel: violência. Jornal da Tarde, 27 dez. 1977, (Arquivo de O Estado de S. Paulo, Pasta 5566). Trata-se de uma carta à imprensa assinada pelo Secretário da Segurança Pública. O quadro de ocorrências foi anexado à carta pelo próprio Secretário. Modifiquei a ordem de apresentação das ocorrências de modo a facilitar sua leitura segundo os critérios do próprio Secretário.
  • 41
    Discordo, portanto, daqueles que, seguindo uma interpretação inaugurada por Michel Foucault, especialmente em Vigiar e Punir — "Nossa soeiedade não é de espetáeulos mas de vigilância (...)", (Foucault, 1983, p. 190) — têm ressaltado o "panoptismo" como dispositivo do poder associado a uma prática puramente " voyeurista ". Como se sabe, o " voyeur " mantém um espaço vazio, uma separação entre o objeto e o olho: seu olhar fixa o objeto à boa distância e coloca "em cena no espaço a fenda que o separa para sempre do objeto" (Metz, 1980METZ, Christian. O significante imaginário. In: METZ, Christian et alii. Psicanálise e Cinema. São Paulo, Global, 1980. p. 71-82., p. 73). Preserva-se, portanto, do "acting out", ao eontrário do que pode ocorrer nestas rondas policiais.
  • 42
    Na reportagem "Policiais violentos? A PM quer acabar com isso", Shopping News , São Paulo, 4 mai. 1986, p. 5, é divulgado o número oficialmente reconhecido de pessoas mortas em confrontos com os policiais:
        Mortos em confrontos ANO PM Civis 1982 26 286 1983 45 328 1984 47 481 1985 33 584 1986 7 89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

  • FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir Petrópolis, Vozes, 1983.
  • LACAN, Jacques.Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979.
  • METZ, Christian. O significante imaginário. In: METZ, Christian et alii. Psicanálise e Cinema. São Paulo, Global, 1980. p. 71-82.
  • PINHEIRO, Paulo Sérgio. Polícia e crise política: o caso das polícias militares. In: PAOLI, Maria Celia et alii. A violência brasileira. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1982. p. 57-92.
  • RAUFER, Xavier.Le cimitière des utopies. Violence sociale: des solutions existent Paris, Éd. Sugar, 1985.
  • FOLHA DE S. PAULO, São Paulo: 26 jan. 1983, 7 abr. 1985, 9 abr. 1985.
  • JORNAL DA TARDE, São Paulo: 3 mai. 1976, 8 set. 1976, 13 set. 1976, 17 set. 1976, 25 ju 1977, 30 nov. 1976, 27 dez. 1977.
  • O ESTADO DE S. PAULO, São Paulo: 4 nov. 1976, 5 nov. 1976, 2 nov. 1976, 22 nov. 1976, 3 jul. 1977, 16 mai. 1985.
  • ÚLTIMA HORA, São Paulo: 29 jul. 1976.
  • SHOPPING NEWS, São Paulo: 4 mai. 1986.
  • Revista VEJA, São Paulo, 4 mai. 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 1989
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