Acessibilidade / Reportar erro

MERCADO E DEMOCRACIA: A RELAÇÃO PERVERSA* * Trabalho apresentado no Simpósio sobre “La crisi di civiltà e la ricerca delle vie verso il rinnovamento del mondo”, organizado conjuntamente pela Fondazione Internazionale Lelio Basso e pela Academia de Ciências Sociais do CC do PCUS. Moscou, 16-18 de outubro de 1989. O tema deste texto foi sugerido pelos organizadores do Simpósio.

Resumos

Um reexame crítico das supostas relações causais entre mercado e democracia deveria ter em conta a teoria do fetiche da mercadoria. A forma de que a mercadoria se reveste para circular acoberta conteúdos, consubstanciados no valor, que resultam de relações sociais historicamente diversas de sua manifestação formal no mercado. Acoberta, portanto, tempos históricos distintos do tempo do mercado. É nesse movimento que, nas sociedades pobres, o capital extrai excedentes que são, na verdade, tributos, estabelecendo aí uma violência que é oposta ao igualitarismo proclamado pelo fetiche da mercadoria. Produzida desse modo, a mercadoria e o mercado não cumprem sua suposta missão civilizadora, pois de fato empobrecem a possibilidade da cidadania. Basicamente, na relação entre mercado e democracia é necessário considerar as relações sociais reais que definem o conteúdo do processo político, pois há situações (e sociedades) em que as possibilidades proclamadas pela forma exterior igualitária da mercadoria estão em contradição com a realidade opressiva das desigualdades sociais e políticas.

mercadoria; fetiche da mercadoria; igualitarismo; tributo; violência; desigualdade; cidadania


A critical reexamination of the supposedly causal relations between market and democracy should take into account the theory of fetichism of commodities. The form taken by commodities in order to circulate conceals contents, consubstantiated in value, resulting from relations which are historically diverse from their formal manifestation in the market. Thus, it conceals historical times that are different from the market time. In poor societies, it is in this movement that capital extracts surplus which are, in fact, tribute, thus establishing a kind of violence opposed to the equalitarianism proclaimed by the commodity’s fetichism. The commodity thus produced and the market do not accomplish their supposed civilizatory mission, as they actually impoverish the possibility of citizenship. Basically, in the relation between market and democracy, it is essential to consider the real social relations which define the contents of the political process because there are situations (and societies) in which the possibilities professed by the commodities equalitarian exterior form are in contradiction with the oppressive reality of political and social inequalities.

commodity; fetichism of commodities; equalitarianism; tribute; violence; inequality; citizenship


Texto completo disponível em PDF.

  • *
    Trabalho apresentado no Simpósio sobre “La crisi di civiltà e la ricerca delle vie verso il rinnovamento del mondo”, organizado conjuntamente pela Fondazione Internazionale Lelio Basso e pela Academia de Ciências Sociais do CC do PCUS. Moscou, 16-18 de outubro de 1989. O tema deste texto foi sugerido pelos organizadores do Simpósio.
  • 1
    As múltiplas determinações sociais, políticas e culturais que mediatizam a desburocratização da produção e a reanimação da função do mercado no socialismo estão claramente consideradas na proposta da Perestróika. Cf. Gorbachov, 1986GORBACHOV, Mijaíl. Informe político del Comité Central del PCUS al XXVII Congreso del Partido. Moscou, Editorial de la Agencia de Prensa Nóvosti, 1986., esp. p. 53-56.
  • 2
    Tratei extensamente desse tema, no caso brasileiro, num estudo sobre “A produção capitalista de relações não-capitalistas de produção: o regime de colonato nas fazendas de café”, in Martins, 1986MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 3ª ed. São Paulo, Hucitec, 1986., p. 7-93, 1ª parte.
  • 3
    Uma ampla controvérsia envolveu o tema da escravidão na América e o tráfico negreiro da África para as grandes plantações do Novo Mundo. Tal controvérsia pôs em confronto interpretações que afirmam as determinações capitalistas do escravismo moderno e interpretações que lhe negam esse caráter ou lhe imputam atributos de um modo de produção particular, o modo de produção escravista. Alguns dos autores fundamentais no trato do tema são: Williams, 1966WILLIAMS, Eric. Capitalism and Slavery. New York, Capricorn Books, 1966.; Ianni, 1962IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962. e 1978______.Escravidão e racismo. São Paulo, Editora Hucitec, 1978.; Cardoso, 1962CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962., 1979CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis, Vozes, 1979., 1987CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo, Brasiliense, 1987.; Cardoso e Brignoli, 1983CARDOSO, Ciro Flamarion & BRIGNOLI, Héctor Pérez. História econômica da América Latina. Rio de Janeiro, Graal, 1983.; Gorender, 1978GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 2ª ed. São Paulo, Ática, 1978..
  • 4
    Essa idéia apoia-se nas concepções, desenvolvidas por Marx, de que, na mercadoria, além de trabalho vivo, há trabalho pretérito e de que o capital se mescla com relações sociais historicamente anteriores. O peso teórico de tais concepções tem sido ignorado por aqueles que orientam sua leitura de Marx pelo pressuposto evolucionista da sucessão dos tempos históricos na produção da mercadoria. Com isso, perdem de vista o desencontro e a coexistência dos tempos históricos nas relações sociais reais (Marx, 1959, t. I, p. 430; t. III, p. 119 e 180-183).
  • 5
    Como assinala Le Goff, o tempo do mercado constituiu uma diferenciação qualitativa do tempo, produzida pelo mercado, por oposição ao tempo da Igreja. Distingue, pois, o tempo que pode ser objeto de lucro do tempo que “pertence a Deus”. (Le Goff, 1977LE GOFF, Jacques. Tempo della Chiesa e tempo del mercante. Trad. Mariolina Romano. Turim, Einaudi Editore, 1977., p. 4-5). Porém, pode-se considerar que o desenvolvlmento do mercado e o do capital permitiram, através das determinações formais do mercado e do acobertamento que encerram, converter o “tempo de Deus” em objeto de lucro, como se observaria na disseminação da ética protestante.
  • 6
    “O preço da terra não é senão renda capializada e, portanto, antecipada. (...) Não faz sarte do capital fixo nem do capital circulante que nela funciona; confere ao comprador um título que o autoriza a receber a renda anual, mas não tem absolutamente nada a ver com a produção desta renda” E, mais adiante: “O preço que se paga pelo escravo não é senão mais-valia ou lucro antecipado ou capitalizado que se pensa arrancar dele. Mas, o capital que se paga para comprar o escravo não faz parte do capital mediante o qual se extraem dele, do escravo, o lucro, o trabalho sobrante. Pelo contrário, é um capital de que se desfez o possuidor do escravo, uma dedução do capital de que se pode dispor para a produção real e efetiva. Este capital deixou de existir para ele, do mesmo modo que o capital invertido na compra da terra deixou de existir para a agricultura” (Marx, 1959MARX, Carlos. El capital. Crítica de la economía política. Trad. Wenceslao Roces. México, Fondo de Cultura Económica, 1959., t. III, p.748-749).
  • 7
    Beozzo (1983, p. 57-59)BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das Missões. Política indigenista no Brasil. São Paulo, Edições Loyola, 1983. indica uma lei anterior, de 1609, que tratou do mesmo assunto, revogada, porém, em 1611. Mesmo os direitos reconhecidos em 1755 foram posteriormente limitados e, em certas circunstâncias, até revogados.
  • 8
    Num caso extremo, como ocorreu em 1951 num movimento messiânico entre os índios Krahô, de Goiás, ver Melatti, 1972MELATTI, Julio Cesar. O messianismo Krahô. São Paulo, Herder/EDUSP, 1972., e também Taussig, 1977TAUSSIG, Michael. The genesis of capitalism amongst a South American peasantry: Devil’s labor and the baptism of money. Comparative Studies in Society and History, 19(2), Cambridge University Press, apr. 1977..

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ANDRADE, Manuel Correia de.A terra e o homem no nordeste 2ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1962.
  • ______. Escravidão e trabalho “livre” no nordeste açucareiro Recife, Editora Asa Pernambuco, 1985.
  • BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil 1º vol. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1967.
  • BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das Missões. Política indigenista no Brasil São Paulo, Edições Loyola, 1983.
  • CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura, escravidão e capitalismo Petrópolis, Vozes, 1979.
  • CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas São Paulo, Brasiliense, 1987.
  • CARDOSO, Ciro Flamarion & BRIGNOLI, Héctor Pérez. História econômica da América Latina Rio de Janeiro, Graal, 1983.
  • CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962.
  • CASANOVA, Pablo Gonzalez. Sociología de la explotación 3ª ed. México, Sigloveinteuno Editores, 1971.
  • CUNHA, Euclides da. À margem da história 6ª ed. Porto, Livraria Lello & Irmão, 1946.
  • FERNANDES, Florestan. Sociedades de classes e subdesenvolvimento Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968.
  • FERRAZ, Iara. Os Parkatejê das matas do Tocantins. A epopéia de um líder timbira Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1983.
  • FRANK, André Gunder. Latin America. Underdevelopment or Revolution New York, Monthly Review Press, 1970.
  • FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1959.
  • GORBACHOV, Mijaíl. Informe político del Comité Central del PCUS al XXVII Congreso del Partido Moscou, Editorial de la Agencia de Prensa Nóvosti, 1986.
  • GORENDER, Jacob. O escravismo colonial 2ª ed. São Paulo, Ática, 1978.
  • IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962.
  • ______.Escravidão e racismo São Paulo, Editora Hucitec, 1978.
  • LEFEBVRE, Henri. La pensée de Lénine Paris, Bordas, 1957.
  • LE GOFF, Jacques. Tempo della Chiesa e tempo del mercante Trad. Mariolina Romano. Turim, Einaudi Editore, 1977.
  • LENIN, V. I. El desarrollo del capitalismo en Rusia Trad. José Lain Entralgo. Barcelona, Editorial Ariel, 1974.
  • MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra 3ª ed. São Paulo, Hucitec, 1986.
  • MARX, Carlos. El capital. Crítica de la economía política Trad. Wenceslao Roces. México, Fondo de Cultura Económica, 1959.
  • MARX, Karl. Contributión à la critique de l’economie politique Trad. Maurice Husson e Gilbert Badia. Paris, Éditions Sociales, 1957.
  • MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. L’lrlanda e la questione irlandese Moscou, Edizioni Progress, 1975.
  • ______. Sobre el colonialismo México, Ediciones Pasado y Presente, 1979.
  • MELATTI, Julio Cesar. O messianismo Krahô São Paulo, Herder/EDUSP, 1972.
  • SANTOS, Roberto. O equilíbrio da firma aviadora e a significação institucional do aviamento. Pará Desenvolvimento, nº 3, Belém, jun. 1968.
  • TAUSSIG, Michael. The genesis of capitalism amongst a South American peasantry: Devil’s labor and the baptism of money. Comparative Studies in Society and History, 19(2), Cambridge University Press, apr. 1977.
  • WEBER, Max. General Economic History Trad. Frank H. Knight. New York, Collier Books, 1961.
  • WILLIAMS, Eric. Capitalism and Slavery New York, Capricorn Books, 1966.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 1990
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br