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SACRIFÍCIO E LIQUIDAÇÃO DO SUJEITO: Notas sobre a sociologia da música de Adorno

Sacrifice and annihilation of subject: notes on Adorno's sociology of music

Resumos

Este artigo busca retrabalhar alguns aspectos da crítica músico-sociológica de Theodor W. Adorno. Tem por base alguns parágrafos da Filosofia da nova música, em que Adorno analisa A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky. Aceita a premissa de que a Filosofia da nova música é um excurso da Dialética do Esclarecimento, e vai aos textos na procura de suas relações internas; daí o papel central da análise e da crítica do tema do sacrifício na Sagração. Trata-se, então, de averiguar na música de Stravinsky o sacrifício e suas múltiplas manifestações. Ao mesmo tempo, quer mostrar como esse sacrifício alinha-se à idéia de liquidacão do sujeito, recorrente na obra de Adorno. Por fim, aponta algumas premissas fundamentais da crítica de Adorno, procurando relacioná-la à obra músico-sociológica de Max Weber.

Adorno; sociologia da música; Stravinsky; A Sagracão da Primavera


This article aims to rebuild some aspects of Th. W. Adorno's musical-sociological critique. The author starts from some paragraphs of Philosophy of Modern Music, where Adorno analyses Igor Stravinsky's The Rite of Spring. He takes for sure the premise that says Philosophy of Modern Music is quite a divagation through Dialectic of Enlightenment, and seeks for reaching their inner relations. The analysis and criticism of the theme of sacrifice in The Rite of Spring spots this point. The article goes on trying to find out whether that so-called sacrifice fits the idea of annihilation of subject repeated regularly in Adorno's work. At last, it is pointed up to some fundamental premises of Adorno's critique, by chasing after any relationship between Adorno's work and Weber's on Sociology of Music.

Adorno; Sociology of Music; Stravinsky; The Rite of Spring


Texto completo disponível em PDF.

  • 1
    A data do encontro é duvidosa, mas sem dúvida anterior à première da Sagração. Laloy assinala a primavera de 1913 (Laloy, 1928LALOY, André. La musique retrouvée. Paris, 1928.), Stravinsky afinna estar Laloy equivocado, mas não fornece outra data (Stravinsky e Craft, 1984STRAVINSKY, Igor e CRAFT, Robert. Conversas com Igor Stravinski. São Paulo, Perspectiva, 1984.). Boucourechliev (1982)BOUCOURECHLIEV, André. Stravinsky. Paris, Fayard/CNRS, 1982. data o encontro em 9 de junho de 1912.
  • 2
    Carta de Debussy a André Caplet, 29-5- 1913, apud White, 1979WHITE, Eric Walter. Stravinsky. The composer and his works. 2nd ed., Berkeley-Los Angeles, University of California Press, 1979..
  • 3
    Citado por Ansermet em seu livro L'Experiénce musicale et le Monde d'aujourd'hui. Cito via White, 1979WHITE, Eric Walter. Stravinsky. The composer and his works. 2nd ed., Berkeley-Los Angeles, University of California Press, 1979..
  • 4
    Chroniques de ma vie, citado por Boucourechliev, 1982BOUCOURECHLIEV, André. Stravinsky. Paris, Fayard/CNRS, 1982., p. 77.
  • 5
    Traduzido do original russo por Boucourechliev e citado em sua obra, p. 78.
  • 6
    O que não passou desapercebido por Adorno. Ver Adorno, 1978ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt, Suhrkamp, 1978., p. 145.
  • 7
    É claro que isto nos leva diretamente à discussão do próprio conceito de modernidade (ou modernismo), já presente no século XIX ("Il faut être absolument moderne"). Não é aqui o lugar dessa discussão, que é muito mais ampla do que o objetivo desse texto. Cabe somente notar que o caráter auto-reflexivo da obra de arte frente ao seu material e ao seu procedimento tem um momento marcante na Philosophy of Composition de Poe e sua tradução e divulgação no continente por Baudelaire.
  • 8
    E qualquer ouvinte da Sagração pode perceber claramente como se trata de uma obra em que predomina o arbitrário e o acidental, em que a composição não obedece restrições específicas do material e do procedimento composicional e, enfim, que se trata de uma obra em que não há qualquer reflexão sobre os meios e procedimentos. Seu traço "romântico", expresso no seu caráter "burguês-tardio", é explícito. Voltarei a tudo isso mais a frente.
  • 9
    Esse é um dos pontos centrais do primeiro excurso da Dialética do Esclarecimento, a astúcia do herói que se perde para se salvar. Mas isso extrapola um pouco o âmbito restrito deste texto.
  • 10
    Um autor totalmente oposto a Adorno afirma que A Sagração busca expressar "a regeneração da vida humana através do sacrifício do individual". (White, 1979WHITE, Eric Walter. Stravinsky. The composer and his works. 2nd ed., Berkeley-Los Angeles, University of California Press, 1979., p. 210).
  • 11
    Adorno, 1978ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt, Suhrkamp, 1978., p. 128. Isso nos dá o que pensar em relação à prolífica obra de Stravinsky, ainda mais se confrontada com aquelas da Segunda Escola de Viena.
  • 12
    Paz, 1976PAZ, Juan Carlos. Introdução à música de nosso tempo. São Paulo, Duas Cidades, 1976., p. 249. A última frase da citação vem em nota de rodapé, imediatamente ao fim do texto; juntei o texto por inteiro na citação para facilitar e porque a continuidade é flagrante.
  • 13
    É interessante confrontar essas composições de Stravinsky com as orquestrações de Schoenberg ao Prelúdio e fuga em Mib maior (BWV 552) de Bach e de Webern à "Ricercata" da Oferenda Musical. Nestes dois casos, vê-se como os "arranjadores" foram capazes de, a partir de uma compreensão histórica do material musical e do procedimento composicional, realçar as características dessas obras, em uma verdadeira recriação. A obra assim retrabalhada aparece como uma nova obra, assume uma identidade própria e subsiste independente até da versão original.
  • 14
    P. Souvtchinsky, Das Wunder des "Sacre du Printemps" (Koln, WDR, 1963), apud Boucourechliev, 1982BOUCOURECHLIEV, André. Stravinsky. Paris, Fayard/CNRS, 1982., p. 16.
  • 15
    Conforme mostra a citação mais atrás (Adorno, 1978ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt, Suhrkamp, 1978., p. 129), em Stravinsky há uma inversão na compreensão do significado da linguagem musical, sem dúvida alguma devido à ausência de sentido histórico do compositor. O que poderia lhe fornecer "autenticidade", o material musical e a técnica da composição carregados de significado histórico, isso tudo Stravinsky vê como algo a ser evitado.
  • 16
    "Le Sacre du Printemps já tem resistido a quase meio século, como símbolo musical da nossa época, caracterizada pelo intelectualismo a serviço da barbárie." Carpeaux, s.d., p. 290. Ver também Adorno, 1978ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt, Suhrkamp, 1978., p. 136.
  • 17
    A discussão desses dois conceitos, importantes para a análise musical de Adorno, fica para um outro texto.
  • 18
    Veja-se Benjamin, 1939-40BENJAMIN, Walter. Über einige Motive bei Baudelaire. Zeitschrift für Sozialforschung , Jg. 8, p. 50 ss., 1939-40.. O próprio Adorno cita este texto em nota de rodapé na passagem citada.
  • 19
    Isto é, autônomo entre aspas. Adorno não se cansou de assinalar a dificuldade da autonomia do indivíduo na sociedade administrada. Ao lado disso, a obra de arte ainda é o locus privilegiado da autonomia do sujeito. Uma filosofia da nova música encontra aqui uma de suas justificativas.
  • 20
    O próprio Adorno indica a "Dança sagrada - A eleita" como uma passagem privilegiada para a análise do shock na Sagração (Adorno, 1978ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt, Suhrkamp, 1978., p. 143). Na partitura: na seção 142 há o shock inicial, com o ataque nas cordas, que vem em seguida a uma frase descendente do clarinete baixo (n. 141) que termina, em pp, repousando já no n. 142, que a partir do ataque das cordas desencadeia a onda de shocks do movimento. O procedimento de Stravinsky é o seguinte: ataques nas cordas, uns poucos ataques nos oboés e trompas, para a seguir estabelecer a defasagem rítmica, através da síncopa, nas madeiras, trompas e trombones. Em seguida à defasagem, as cordas atacam em uma linha levemente descendente (compasso em 2/8, imediatamente antes do n. 143). A seção 143 repete aproximadamente a anterior. Tal esquema se repete, na idéia e nas linhas gerais, nos ns. 167-8 e no n. 180, quando temos, já no ataque inicial, o tutti da orquestra. Os ataques nos sopros no último tempo do n. 147 e os ataques de toda a orquestra - ora madeiras e metais, ora madeiras, metais e cordas - fazem da seção 148 uma sucessão de shocks, que assumem grande contraste com as seções seguintes, ns. 149-50, bastante calmas e planas. No n. 154 o shock assume nova forma, com o aumento de intensidade das cordas, que passam a um sf marcante. Sobre um plano constituído pelas cordas, Stravinsky joga arbitrariamente "partículas melódicas" (Cf. Adorno, 1978ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt, Suhrkamp, 1978., p. 139), tomadas da escala cromática, em um "motivo" (não se pode falar, a rigor, que seja um motivo) de 6 notas (3 sons diferentes repetidos): no n. 155 nos piccolos e trombone; no n. 156 nos piccolos, clarinete e trombone; no n. 157 no clarinete, trombone e trompa; no n. 158 no clarinete e parte do "motivo" nas trompas. Tais "partículas" têm o aspecto de uma rajada de balas, rápidas e efêmeras, antecipando, na sua idéia, o "bate-estacas" do final da obra (ns. 197 a 200, mais os dois compassos iniciais do n. 201), que simbolizam o ápice do sacrifício: repetição rítmica furiosa, em transe, alucinada, em total crescendo. O final da Sagração, demonstrando a fragilidade e arbítrio da composição, é cristalinamente circense: a subida vertiginosa das flautas e violinos, a caída nos tambores e nos graves das trompas, trombones e tuba, violoncelos e contrabaixos.
  • 21
    Boucourechliev assinala o caráter arcaico da Sagração, falando mesmo em "arquétipos arcaizantes" cue estariam na base da composição. Boucourechliev, 1982BOUCOURECHLIEV, André. Stravinsky. Paris, Fayard/CNRS, 1982., p. 14.
  • 22
    É o caso do tema do "Khorovode", central na Sagração: seção 28, seção 48 e seguintes.
  • 23
    Um caso, entre outros, é o tema dado na seção 48, clarinetes.
  • 24
    O tema inicial da Sagração, no fagote, é um motivo claramente diatônico. Outro exemplo é a "melopéia selvagem" - conforme descrita nos Sketches - da seção19, nos fagotes e contra-fagotes.
  • 25
    Para se ter uma idéia da situação da música à época da composição da Sagração da Primavera, basta dizer que o próprio Stravinsky já havia ouvido o Pierrot Lunaire (Op. 21, 1912) de Schoenberg, que já tinha por esse tempo composto (para nos limitarmos a 3 casos) Drei Klavierstücke (Op. 11, 1909), Sechs kleine Klavierstücke (Op. 19, 1911) e Erwartung (Op. 17, 1909).
  • 26
    Na partitura, pela primeira vez na seção 13.
  • 27
    Cf. também White, 1979WHITE, Eric Walter. Stravinsky. The composer and his works. 2nd ed., Berkeley-Los Angeles, University of California Press, 1979., p. 37. Stravinsky iniciou a composição da Sagração pelos "Augúrios", que é uma das passagens centrais da composição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ADORNO, Theodor W. Philosophie der neuen Musik Frankfurt, Suhrkamp, 1978.
  • _______. Gesammelte Schriften Bd. 10.2 Frankfurt, Suhrkamp, 1977.
  • _______. Negative Dialektik 3. Aufl., Frankfurt, Suhrkamp, 1983.
  • ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialetik der Aufklärung Frankfurt, S. Fischer, 1988.
  • BENJAMIN, Walter. Über einige Motive bei Baudelaire. Zeitschrift für Sozialforschung , Jg. 8, p. 50 ss., 1939-40.
  • BOUCOURECHLIEV, André. Stravinsky Paris, Fayard/CNRS, 1982.
  • CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música Rio de Janeiro, Tecnoprint, s.d.
  • GREENBERG, Clement. Arte y cultura. Ensaios críticos Barcelona, G. Gili, 1979.
  • LALOY, André. La musique retrouvée Paris, 1928.
  • PAZ, Juan Carlos. Introdução à música de nosso tempo São Paulo, Duas Cidades, 1976.
  • STRAVINSKY, Igor e CRAFT, Robert. Conversas com Igor Stravinski São Paulo, Perspectiva, 1984.
  • STRAVINSKY, Igor. Selected correspondence (Ed. R. Craft). London, Faber & Faber, 1982.
  • WHITE, Eric Walter. Stravinsky. The composer and his works 2nd ed., Berkeley-Los Angeles, University of California Press, 1979.
  • ______ The Rite of Spring. New York, IMC , s.d.
  • ______ The Rite of Spring/Le Sacre du Printemps: Sketches 1911-1913 New York, Boosey & Hawkes, 1969.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 1990

Histórico

  • Recebido
    Jun 1990
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