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Heranças de 68: cinema e sexualidade

Heritage from 68: cinema and sexuality

Resumos

Maio de 68 deixou marcas e referências nos mais insuspeitos campos de atividade e de conhecimento humano. Neste texto, buscamos explorar as relações que podem ser estabelecidas entre algumas de suas formulações - em especial as ligadas a um ideário de liberação e libertação de práticas sexuais - e os temas correlatos, bem como a forma de tratá-los, que invadiram o cinema dito "comercial" na década seguinte. Sob este prisma são analisados filmes como Blow Up, Laranja Mecânica, Morte em Veneza, Último Tango em Paris, Império dos Sentidos e Saló.

maio de 68; cinema; sexo; desejo; poder; moral


May 1968 left remarks and references in many insuspicious areas of human knoledge. In this text we try to explore the relationships wich can be established within its statements, especially those conected to a sexual free set of ideas, and how those themes are dealt by the cinema. Films such as Blow Up, Clockwork Orange, Death in Venice, Last tango in Paris, In the Realm of the Senses and Salo are also analised.

May 1968; cinema; sexuality; desire; power; moral


DOSSIÊ MAIO DE 68

Heranças de 68: cinema e sexualidade

Heritage from 68: cinema and sexuality

Paulo Menezes

Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP

RESUMO

Maio de 68 deixou marcas e referências nos mais insuspeitos campos de atividade e de conhecimento humano. Neste texto, buscamos explorar as relações que podem ser estabelecidas entre algumas de suas formulações — em especial as ligadas a um ideário de liberação e libertação de práticas sexuais — e os temas correlatos, bem como a forma de tratá-los, que invadiram o cinema dito "comercial" na década seguinte. Sob este prisma são analisados filmes como Blow Up, Laranja Mecânica, Morte em Veneza, Último Tango em Paris, Império dos Sentidos e Saló.

Palavras-chave: maio de 68, cinema, sexo, desejo, poder, moral.

ABSTRACT

May 1968 left remarks and references in many insuspicious areas of human knoledge. In this text we try to explore the relationships wich can be established within its statements, especially those conected to a sexual free set of ideas, and how those themes are dealt by the cinema. Films such as Blow Up, Clockwork Orange, Death in Venice, Last tango in Paris, In the Realm of the Senses and Salo are also analised.

Keywords: May 1968, cinema, sexuality, desire, power, moral.

Este trabalho pretende investigar as relações que existem entre determinadas formulações teóricas do fim da década de 60, em especial com referências a maio de 68 e seus desdobramentos, e um certo tipo de proposição visual que invadiu o cinema "dito comercial" até mais ou menos a metade da década seguinte.

Temos como estímulo para nossas interpretações alguns filmes que marcaram o período, tais como Blow Up, Laranja Mecânica, Morte em Veneza, Último Tango em Paris, Império dos Sentidos e Saló - 120 dias de Sodoma.

Estes filmes são por demais conhecidos para que necessitemos lembrá-los ao leitor. O que queremos colocar em destaque é que eles travam um acentuado diálogo entre si ao proporem situações cada vez mais radicais, tanto em relação às abordagens temáticas que constroem como em relação ao tipo de imagens que exploram.

Como sociólogo, por um desvio profissional, parto do pressuposto de que as imagens ocupam, no mundo contemporâneo, um lugar social que não pode mais ser subestimado nem desprezado. Assim, nos parece singelo deixar de lado as imagens como se fossem apenas parte de uma superestrutura qualquer ou ainda um mero reflexo mais ou menos distorcido de algum processo que ocorreria em alguma outra dimensão do social.

Neste sentido, pressupomos que existe uma realidade visual que não se reduz e nem se confunde com outras dimensões da realidade social, apesar de ser uma delas. Foucault, falando da pintura, nos dá pistas ao dizer que "... a relação da linguagem com a pintura [e com as imagens, diria eu] é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja em face do visível num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma à outra: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem" (Foucault, 1981, p. 25)1 1 Grifo meu. .

Isto parece nos dizer que existe para as imagens, e sua relação com os homens, um lugar que não é recoberto por nenhuma outra forma de linguagem. Remete-nos, além disso, a algo que, ao ser visão, apenas os olhos podem descortinar e perceber enquanto dimensão portadora e criadora de significados.

Nesta acepção, as imagens não expressariam um outro qualquer que existiria em lugar diverso, mas, ao contrário, seriam a expressão de algo que é visual e que portanto só pode se expressar enquanto dimensão significativa visualmente através delas. Concebida como realidade autônoma, o que não quer dizer separada de suas raízes sociais, as imagens são expressão das formas pelas quais uma sociedade se concebe visualmente.

Esta realidade não existe em outro lugar, não é mero reflexo das condições de existência, não é "jamais o substituto" (Francastel, 1982, p. 5), nem o equivalente de outra coisa qualquer, pois existem informações que só lá estão, que só nela podem ser encontradas. Exprimiria, portanto, valores, relações, concepções que só existem e se expressam nela e através dela. "Eu tive pessoalmente a ocasião de formular as mais expressas reservas sobre métodos que colocam em paralelo um certo esquema de história (...) e um outro esquema de história da arte que não se referencia diretamente ao estudo direto das obras. (...) É, por conseqüência, somente ao nível de uma análise aprofundada das obras que pode se constituir uma sociologia da arte. Nada sério pode ser feito se pegamos como objeto de estudo os fundamentos da criação em lugar de considerar as obras de arte como o produto de uma atividade problemática cujas possibilidades técnicas, bem como a capacidade de integração de valores abstratos, variam segundo os meios considerados e em relação com o desenvolvimento desigual das faculdades intelectuais dos diferentes meios nas diferentes etapas da história" (Francastel, 1970, p. 7, 15).

Assim, existe um lugar especial que o ver descortina, e que não se reduz aos lugares em que as palavras e as letras se colocam. Este lugar parece ser o mesmo para o qual Virílio nos chama a atenção ao dizer que: "a guerra não pode jamais ser separada deste espetáculo mágico porque a sua finalidade é justamente a produção deste espetáculo: abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o pânico da morte" (Virílio, 1993, p. 12).

Isto nos diz que existe um lugar no social que só as imagens têm o poder de atingir, pois elas parecem resguardar uma dimensão com estatuto próprio, um lugar que só pode ser atingido instantaneamente pelo que vemos e que não se recobre pelo lugar do que pensamos sobre o que vemos, ou do pensamos sem ver. Assim, o que pode causar uma certa apreensão e choque nas imagens está ligado exatamente ao fato de termos que vê-las. Não parecia ser para isto que nos alertava Marcuse quando nos disse que "muito antes de as forças especiais e não-assim-tão-especiais estarem fisicamente treinadas para matar, queimar e interrogar, os seus espíritos e corpos já estão treinados para ver, ouvir e cheirar no outro não um ser humano mas um animal (animal contudo, sujeito a castigo total"? (Marcuse, 1977, p. 102).

Neste contexto, esses filmes parecem problematizar estas questões não só ao nível das indagações que levantam mas também ao nível das imagens que propõem. São dois lugares e duas perspectivas diferentes, por mais que em alguns momentos possam ser confundidas. Além disso, a percepção deste lugar diferencial que as imagens ocupam e no qual nos atingem deixa, como vemos em Blow Up, uma questão importante em aberto.

Neste filme, podemos perceber uma inversão fundamental entre o ato de olhar, e o seu registro, e o que seria um real autônomo e indiferente a este olhar. Aqui são as imagens que chegam antes, são elas que nos mostram o que os olhos não percebem e são elas que restam como a referência final (e inicial, devemos dizer) na qual realmente acreditamos. Thomas, o fotógrafo, acredita mais nas imagens que vê no que naquilo que ele consegue ver com os próprios olhos. Como a nos mostrar um desdobramento das perguntas que Walter Benjamin se fazia muito tempo atrás: "Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse sequer a questão prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte'" (Benjamin, 1986b, p. 176). Podemos recolocar esta questão em termos mais atuais e perguntar se a disseminação das imagens não alterou a maneira como o homem vê o mundo e a maneira pela qual ele mesmo se vê no mundo. Da mesma forma que estas imagens alteram profundamente as nossas noções de espaço e de tempo, pois, ao nos familiarizar com as imagens das coisas faz com que elas comecem a fazer parte de nosso círculo imediato de referências. É por isso que, em alguns momentos, Paris pode parecer estar muito mais "perto" do que Carapicuíba, pois a primeira com certeza nós já vimos pela televisão e portanto com ela temos uma certa "familiaridade". Assim, Blow Up questiona exatamente este lugar "consagrado" das imagens e portanto o seu valor referencial. Nesta direção, parece construir-se uma indiferenciação entre coisa e imagem da coisa, em um sentido semelhante ao que Irving Goffman nos alertava como sendo um dos problemas da arte de manipular as impressões nas relações interpessoais. Ele se perguntava se ao manipularmos de maneira eficaz a atuação na qual estamos e, portanto, a imagem que mostramos de nós mesmos não haveria um momento em que o limite entre essas duas coisas se tornaria por demais fluído e passaríamos a ser a nossa própria encenação? (cf. 1975, 218-233). Não estaria ele, desde então, transportando para o mundo das relações cotidianas e interpessoais o que mais tarde se tornaria um atributo das imagens de uma maneira geral, colocar-se no lugar daquilo do qual deveriam ser apenas uma expressão ou manifestação?

Ao lado desta, uma outra linha de problematizações se construiu por meio das imagens que esses filmes nos propuseram. Ela diz respeito ao lugar ocupado pela sexualidade e pelo sexo, não só no tocante ao social no qual se expressa mas, também, em relação ao tipo de visões que nos propõem.

Laranja Mecânica, que é costumeiramente interpretado como um libelo contra, ou a favor, da violência2 2 Cf. Powell (1989, p. 262-263), Kael, Ebert e Peary (Peary, 1989, p. 46-49). Outros dizem que o filme é ideologicamente "fascista" ou "reacionário" (cf. Hechinger apud Peary, 1989, p. 46; Jamenson, 1995, p. 88). Para uma discussão mais detalhada deste filme consulte Menezes (1997). , colocou uma outra questão no ar que parece ter passado despercebida aos nossos críticos. São evidentes, em todo o decorrer do filme, as alusões diretas ou indiretas ao sexo e à sexualidade. Desde as roupas da gangue de Alex - brancas mas com aquelas "saqueiras" externas ressaltando os órgãos sexuais -, às mesas da leiteria onde se drogam - mulheres nuas deitadas com as pernas dobradas e abertas a nos mostrar seus sexos e seus pêlos coloridos pintados na mesma cor de seus cabelos -, à poltrona-óvulo onde descansa a mulher do escritor, à sua máquina de escrever vermelha, que se torna cinza quando Alex para ali retorna, ao sair da prisão - como a marcar sua impotência e como tributo à morte da esposa -, até o lugar "final", "a fazenda dos gatos", totalmente decorada com imagens de mulheres e partes do corpo feminino nus, tendo apenas uma única mas bastante significativa exceção: a imensa escultura fálica branca que leva a proprietária à morte, em um bizarro ritual de sexo oral. Estas imagens nos colocam a questão de ser de fato da violência que fala o filme ou se é o lugar e a potencialidade crítica e questionadora que o sexo assumiu naquela década seu foco principal de indagações.

A forma distante e seca de Alex fazer tudo o que faz, sua violência não visualmente violenta - devemos lembrar que as músicas clássicas e as coreografias transformam as cenas das brigas, como aquela do estupro da gangue de Billy Boy, em um atraente, estranho e ambíguo balé para o qual fomos convidados -, sua sexualidade sem sensualidade e sem erotismo e, por fim, sua adesão amoral a qualquer moralidade que se apresente, tudo vem ressaltar para nós os critérios e parâmetros com que construímos a nossa própria moralidade, com quais valores nos percebemos e orientamos a nossa própria inserção no mundo que nos cerca. Ao nos mostrar alguém aparentemente sem valores, Kubrick acaba nos forçando a reavaliar os valores que orientam a nossa própria conduta e a sua homogeneização. Nos mostra até mesmo aqueles valores que nem percebíamos que tínhamos, e que ele coloca em questão com as imagens que nos propôs - e para as quais não havíamos encontrado nenhuma ligação e importância coerente com o próprio desenrolar da história, mas que, só por existirem, invadem lugares escondidos de nossa própria visualidade e, conseqüentemente, de nossa própria moralidade. Ao associar constantemente sexo à violência, ele parece nos mostrar o potencial de violência questionadora que o próprio sexo parecia ter então.

Em Morte em Veneza está em jogo o amor, concebido de uma forma platônica e quase assexuada, entre um compositor de meia idade e um adolescente. É evidente que a questão homossexual está aqui colocada mas não podemos deixar que isto transforme o filme de Visconti em um filme "engajado". Como não lembrar aqui do trajeto de Aschenback, que ao se entregar cada vez mais à paixão que o domina - e que ele sabe poder levar à morte - faz um paralelo magistral entre sua ascensão ao mundo dos sentidos, e portanto contrário a todos os rígidos princípios com os quais havia estruturado sua vida e sua arte, e a destruição infecta de Veneza, que passa a se deteriorar às nossas vistas, com suas ruas e vielas sendo gradativamente tomadas pelos desinfetantes leitosos e pelas fogueiras de detritos. Como não poderia deixar de ser, culmina com a dissolução de sua própria imagem após o "rejuvenescimento" outorgado pelo barbeiro, que o transforma na imagem do velho que ele olhava com escárnio no começo do filme e do qual ele acaba se tornando um pálido duplo imperfeito. Tornando-se um simulacro de si mesmo, uma imagem de seus fantasmas, dissolve-se como Veneza, tomados ambos pelas suas próprias pragas e chagas que lhes destroem a dignidade, a segurança e, em seu caso, também a vida, quando "cai" no amor. Nada mais contundente do que sua própria dissolução, junto com sua imagem, na cena final do filme. Sentado na cadeira de praia onde chegou já cambaleante, o calor do amor que o sufocou aparece também como aquele que dissolve a tinta de seus cabelos, que escorre pelo seu rosto enquanto ele olha pela última vez o ser amado e desejado.

Último Tango em Paris aprofunda estes questionamentos, em direção às possibilidades e dificuldades de se construir o novo no meio do velho. Sua cena mais famosa, que marcou a década e o imaginário de toda uma geração, "a cena da manteiga", merece ser reavaliada aos olhos já um pouco distantes de hoje. Cena que retrata como nenhuma as possibilidades ambíguas que podem assumir as imagens do cinema, é lida das mais variadas maneiras.

Aos nossos olhos, as imagens em si mesmas não parecem criar mais muitas estranhezas. Afinal, Marlon Brando está todo vestido e Maria Schneider tem suas calças um pouco abaixadas, até mais ou menos o meio das nádegas, o que faz esta cena começar de uma maneira muito menos ousada que a maioria das novelas que acostumaram o nosso olhar nestes últimos anos. Talvez o toque de estranheza seja realmente a manteiga, não exatamente um lubrificante costumeiro para este tipo de situação. Mas não podemos nos esquecer que, apesar de a maioria das pessoas se lembrarem apenas da "manteiga", as palavras que ele profere durante aquele ato são sujeitos de violação muito maior que o ato físico em si. Num certo momento ficamos em dúvida sobre o que realmente faz Jeanne chorar em um dado momento, se é realmente a penetração anal física a que é submetida ou se é a penetração auditiva moral que a invadiu, esta sim, de maneira insuspeita e sem mediações. E devemos lembrar que as feministas nunca perdoaram Bertolucci pela cena que se segue, onde ela aparece com o rosto todo alegrinho e sorridente chamando Marlon Brando, que descansava, para lhe dar um choque na tomada da vitrola. O fato de ela ter ficado com ele e continuado com aquele relacionamento legitima de maneira contundente a aparente "violação" a que tinha supostamente sido "submetida", seja ela física ou moral. Da mesma forma que nos obriga a olhar para os nossos próprios valores e preconceitos, para a nossa própria moralidade insuspeita.

Não podemos nos esquecer, também, que no fim do filme, quando Paul tenta reconstruir aquele relacionamento como um relacionamento "normal", em seu pequeno e pulguento hotel, Jeanne não só recusa a proposta como, após o último tango que dançam, acaba matando Paul em seu apartamento, não por acaso no momento em que ele coloca o quepe militar de seu pai, o coronel, passando a encarnar exatamente aquilo do qual ela queria fugir com ele: a família, a moral, o casamento; e não também por acaso com a própria arma do pai, símbolo de sua potência, domínio e autoridade.

Império dos Sentidos leva tudo isso às últimas conseqüências ao propor uma entrega sexual, afetiva e amorosa que só poderia terminar pela aniquilação física dos dois amantes, um pela morte, o outro pela abstinência. Aqui chegamos ao limite do possível, pois, depois dessas cenas, muito pouco a mais poderia ser mostrado e questionado. Vemos de tudo: de lentas relações sexuais e orais em close - que culminam com aquela onde o esperma de Kichi escorre pelos lábios de Sada em seu sorriso de vitória - à famosa cena do ovo - onde o detalhamento, o ângulo e o brilho dos lábios, que se fecham após os dedos de Kichi o empurrarem para dentro, não deixam dúvidas sobre a sua efetividade física.

Somos convidados portanto a olhar para uma sucessão infindável de imagens antes restritas à visualidade dos filmes pornográficos, mas agora em um cinema franqueado a todo mundo. Só que vemos além disso imagens exasperadas pela sempre presente relação entre amor e morte, entre Eros e Thanatos, que o filme nos propõe o tempo todo através das constantes associações entre sexo e objetos cortantes, entre amor e faca. Ao nos mostrar diretamente, sem preconceitos e sem mediações, as mais diversas imagens dos atos sexuais e de suas variações, individuais e grupais, não estaria Oshima nos fazendo perceber os fundamentos de constituição de nossa própria moral, seja ela intelectual ou visual? Ao mostrar na grande tela atos que sem dúvida conhecemos, sobre os quais pensamos e até mesmo conversamos, mas para os quais reservamos as possibilidades de efetivação para a recôndita obscuridade sem testemunhas de nossas quatro paredes, não estaria Oshima atingindo pela visualidade o âmago de nossa tão impensada moralidade, aquela que nos esforçamos em tentar o tempo todo esconder até mesmo de nós próprios? Não estaria Oshima, em termos de Nietzsche, propondo-nos uma reavaliação de nossos próprios valores e portanto de seus lugares diferenciais?

Para não nos alongarmos mais, devemos lembrar aqui também de Saló, 120 dias de Sodoma, de Pasolini, onde a relação entre sexo, dominação e poder é esmiuçada em suas mais profundas possibilidades. Recolhidos pelos fascistas em um castelo durante a IIa Grande Guerra, um grupo de adolescentes é submetido a satisfazer todos os desejos de seus "anfitriões", acabando por se submeter a atos sexuais e atrocidades os mais variados. Pasolini nos brindou com imagens das mais diversas, de submissão e de constrangimento, culminando com a cena de tortura final onde os que desobedeceram as regras são torturados por seus próprios colegas, com requintes de crueldade que ressuscitam os aparelhos de tortura medievais, como aquele pênis de ferro no qual é introduzido o de carne para ser queimado lentamente por uma vela que lhe é colocada do lado de fora. Cena aterradora por si só, tem sua crueldade realçada pelo fato de serem os próprios colegas os sujeitos dessa atrocidade, numa adesão à proposição de seus "senhores" tão indigna como os atos que cometem. Pasolini não só nos faz presenciar até onde pode descer o espírito humano em sua degradação como também nos aponta ao mesmo tempo a fragilidade e os limites tênues das possibilidades que existem entre a resistência e a submissão, a partir do momento em que o prazer parece invadir até aqueles que sofriam eles próprios os mesmos atos submissão sexual e de degradação.

É inegável que sob um determinado prisma estas imagens referenciam-se a uma herança herdada de 68, independente das avaliações e das múltiplas perspectivas que aquele movimento instigou e propagou. Mas, de uma coisa parecem não haver dúvidas. Pensar as transformações sociais não pode, a partir de então, restringir-se apenas às clássicas transformações das relações de produção e à tomada do poder. Um outro campo insuspeito de questionamentos parece ter assumido uma força que nunca antes havia conquistado.

Não que seja recente a problematização do lugar do sexual nas possibilidades de se construir um mundo novo, ou de se modificar o velho. Neste sentido, os escritos de Reich acabaram por se tornar referência dos questionamentos que se faziam em relação ao sexo e à constituição da família, com um grande e decisivo revigoramento a partir de 68. Textos como A função do orgasmo e A revolução sexual levavam a fundo a problematização da moral sexual e do casamento como formas de controle social. "Para o exame da questão, é preciso considerar isoladamente as duas partes mencionadas do problema do casamento; nisso temos que distinguir meticulosamente entre aquela forma de relação sexual, que se origina da necessidade sexual e tende a ser duradoura, e a outra, que corresponde aos interesses econômicos e à posição da mulher e das crianças. A primeira chamamos de relações sexuais permanentes, a segunda, casamento" (Reich, 1980, p. 151).

Mas, o que é realmente inovador, pois esses textos são dos anos 30 e início dos 40, é o fato de essas idéias terem se tornado bandeiras de luta ao lado daquelas que pregavam as mudanças revolucionárias nos sistemas econômicos e políticos. Desta maneira, as relações interpessoais passaram a ser vistas não mais como algo cuja mudança deveria esperar por um novo sistema, ou que seriam automaticamente alteradas por ele, mas como algo que deveria acompanhar e fazer parte das mudanças ao mesmo tempo, para que pudessem assim finalmente surgir como efetivas possibilidades de serem realmente transformadoras. Portanto, a rebelião social deveria ser acompanhada também de uma rebelião sexual, de um questionamento da própria moral que estabelece os lugares e os valores que regulam as práticas sexuais. Talvez por isso tenha sido possível se pensar aquele maio como sendo um mês onde o "desejo revolucionário [foi] muito mais marcante do que a situação revolucionária" (Matos, 1981, p. 9), como sendo um movimento que conseguia contestar muito mais do realizar as transformações às quais se propunha.

Não importa se os anarquistas são os únicos militantes políticos a divulgarem Reich e a pregarem a liberdade sexual total, como diz Olgária Matos (cf, Matos, 1981, p. 38). O que importa é o desconcerto que estas posturas provocavam, ao lado do flower power e do make love, not war, dos hippies americanos, que começaram a colocar a felicidade e o prazer como uma dimensão importante e até mesmo decisiva da luta pela libertação.

A questão da mudança social passa agora também por uma mudança individual e por uma mudança das relações interpessoais, mostrando que apenas olhar a luta de classes parece ter se tornado pouco para tentar se compreender a história e seus descaminhos. Ao lado da miséria econômica colocam-se também a "miséria" moral e a "miséria" sexual. O homem para aspirar à liberdade deve também libertar-se ele mesmo do que foi feito de sua vida, reintroduzindo como dimensão histórica o cotidiano e suas transformações. "A liberdade (recusa) individual deve incorporar o universal no protesto particular e as imagens e valores de uma futura sociedade livre devem aparecer nas relações pessoais dentro de uma sociedade não livre" (Marcuse, 1981a, p. 55). Mas, só isto ainda parece pouco. A própria forma de se estar no mundo e de percebê-lo deve obrigatoriamente se alterar. "O nosso mundo emerge não só nas puras formas de tempo e espaço mas também (e simultaneamente (como uma totalidade de qualidades sensórias, objetos não só da visão (...) mas de todos os sentidos humanos ([audição], olfato, tato, paladar)" (Marcuse, 1981a, p. 67). O que é relevante é que, independente da quantidade de partidos ou pessoas que aderiram a estas perspectivas, estas questões não puderam mais ser simplesmente ignoradas ou deixadas de lado. Mesmo que, em alguns momentos e para algumas pessoas, pudesse ter parecido que o fato de apenas se dar conta desta dimensão expressaria que os problemas que ali se colocavam já estariam por si só resolvidos e superados. "No sonho tudo parece fácil, 'a angustiante questão da possibilidade não se coloca mais'" (Matos, 1981, p. 64).

É justamente na problematização desta facilidade que aqueles filmes vão investir, e aqui o fato de apenas os anarquistas terem colocado a questão da liberdade sexual total adquire um significado peculiar, o que se mostra pela recepção ambígua que estes filmes tiveram no seio da esquerda na época.

Todos esses filmes nos mostram uma complexa situação que não parece se resolver de uma maneira fácil ou tranqüila. Ao contrário, parece que a cada passo que damos em direção a um novo modo de se relacionar, mais um também é dado em direção aos impasses que se colocam em nosso caminho e sobre os quais devemos refletir se quisermos superá-los. E, em um outro nível, também em relação ao que estávamos acostumados a ver e a perceber sobre essas mesmas relações. Isto parece nos mostrar um duplo aspecto dos valores que estão ali sendo problematizados, que não são somente relativos a determinadas formas de conduta sexual mas também relativos à visão destas mesmas condutas. Se concordamos com o que nos disse Foucault, os lugares são diferentes e, portanto, os valores que os informam também serão diferentes.

Neste sentido, esses filmes se dirigem a um aprofundamento das relações e imagens ali expostas, de uma leve orgia inconseqüente em Blow Up à morte pela castração e pela tortura, passando pelo sexo como instrumento, o desabrochar do amor entre um senhor e um pré-adolescente, e, por último, pelas paredes silenciosas de um velho apartamento que presenciam atos insuspeitos. Não devemos esquecer que o seu caráter contestador também se reforça pelo fato de quatro destes filmes terem sido censurados no Brasil na década de 703 3 Laranja Mecânica, Último Tango em Paris, Império dos Sentidos e Saló. , e justamente por apresentarem cenas de sexo. E sempre neste duplo registro, contestadores por meio das propostas que levantam e das cenas que nos mostram. O sexo e as relações entre as pessoas são colocados em questão, como uma dimensão essencial das possibilidades de qualquer transformação social. Por mais complexos que possam parecer estes caminhos. Ao mesmo tempo que nos mostram que existe uma diferença que não é desprezível entre o que falamos, o que fazemos, e o que temos capacidade de ver.

Esta reflexão é ainda mais significativa em um país aonde o afã da "modernização" implica em um renovar constante de uma fé no futuro que estranhamente parece sempre basear-se no esquecimento, e, portanto, em um mero desenrolar do presente que acaba por negar as possibilidades de que se reflita sobre o passado como um redimensionamento não só do próprio presente, mas também de nossa própria esperança em algo futuro. E parece que refletir sobre estes temas, neste novo contexto de fins de milênio - onde vemos o místico tomar conta de tudo ao lado do "revival" dos anos 70 e do próprio maio de 68, com a volta dos homens de cabelo comprido e rabo de cavalo, ao lado das calças de cintura baixa que na época era chamada de calça "Saint-Tropez" - é uma tarefa que readquire todos os sentidos.

Porém, nesta trajetória que parece olhar para dentro de nós antes de olhar para o futuro, um intenso repensar o passado como dimensão do presente se coloca como uma dimensão também essencial de percebermos o que somos e o que fomos para podermos imaginar as possibilidades do que seremos. A memória que introduz o passado no presente pode se tornar um elemento indispensável não só para se compreender melhor o presente como também para modificá-lo. "Nesse movimento, a problematização da nossa atualidade configura-se como uma abertura do pensamento, que é simultaneamente reserva e espera - o re-colher do já pensado e a possibilidade que nos convoca a pensar sobre o não pensado ainda, no interior do já pensado" (Cardoso, 1995, p. 64).

Ao nos mostrar uma visão não idealizada destas relações estes filmes parecem querer nos fazer dar conta de que, para qualquer transformação, é preciso dizer sim ao problemático. Se "é a vida que nos força a colocarmos valores", se "é a vida que 'valora' por meio de nós todas as vezes que exprimimos valores" (Nietzsche, 1974, p. 35-36), cabe também a nós colocarmos estes mesmos valores em questão através de sua ininterrupta reavaliação.

Pois, afinal, "existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuarmos a olhar ou a refletir" (Foucault, 1985, p. 13).

Recebido para publicação em agosto/1998

Este texto tem por base a comunicação apresentada na mesa redonda sobre Cinema Internacional do I Encontro Nacional da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (SOCINE), em 8/11/1997.

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  • Reich, Wilhelm. (1973) Psicologia de massas do fascismo. Lisboa, Publicações Escorpião.
  • _______. (1977) A função do orgasmo. São Paulo, Brasiliense.
  • _______. (1980) A revolução sexual. Rio de Janeiro, Zahar Editores.
  • Sorlin, P. (1977) Sociologie du cinéma. Paris, Aubier.
  • Tarkovski, Andrei. (1990) Esculpir o tempo. São Paulo, Martins Fontes.
  • Virílio, P. (1993) Guerra e cinema. São Paulo, Página Aberta.
  • Vogel, Amos. (1974) Film as a subversive Art. New York, Randon House.
  • Xavier, Ismail. (1984) O discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência. São Paulo, Paz e Terra.
  • 1
    Grifo meu.
  • 2
    Cf. Powell (1989, p. 262-263), Kael, Ebert e Peary (Peary, 1989, p. 46-49). Outros dizem que o filme é ideologicamente "fascista" ou "reacionário" (cf. Hechinger
    apud Peary, 1989, p. 46; Jamenson, 1995, p. 88). Para uma discussão mais detalhada deste filme consulte Menezes (1997).
  • 3
    Laranja Mecânica, Último Tango em Paris, Império dos Sentidos e
    Saló.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Out 1998

    Histórico

    • Recebido
      Ago 1998
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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