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Uma sociologia das obras de arte é necessária e possível?

Is it necessary and possible a sociology of art works?

Resumos

Examinando a questão da sociologia das obras de arte à luz da teoria do valor de Durkheim, o artigo procura mostrar que a obra de arte, longe de ser somente determinada pelo social, exerce, ao contrário, um papel fundamental na sua transformação. Enquanto algo que pode interessar ao sociólogo, a obra de arte nunca simboliza o social, mas o ressimboliza, e, neste sentido, ela tem um caráter metassocial.

teoria do valor; sociologia das obras de arte; função metassocial; energética social


When we analise the problem of the sociology of arts, according to Durkhein theory of valour, we try to show that more than being only determined by social aspects it strongly is an important fact to its transformation. Not only is arts a social simbol to a sociologist, but is also a resimbolization, wich makes have a metasocial aspect.

theory of valour; sociology of arts; arts; metasocial function; social energy


ARTIGO

Uma sociologia das obras de arte é necessária e possível?

Is it necessary and possible a sociology of art works?

Jacques Leenhardt

Diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris

RESUMO

Examinando a questão da sociologia das obras de arte à luz da teoria do valor de Durkheim, o artigo procura mostrar que a obra de arte, longe de ser somente determinada pelo social, exerce, ao contrário, um papel fundamental na sua transformação. Enquanto algo que pode interessar ao sociólogo, a obra de arte nunca simboliza o social, mas o ressimboliza, e, neste sentido, ela tem um caráter metassocial.

Palavras-chave: teoria do valor, sociologia das obras de arte, função metassocial, energética social.

ABSTRACT

When we analise the problem of the sociology of arts, according to Durkhein theory of valour, we try to show that more than being only determined by social aspects it strongly is an important fact to its transformation. Not only is arts a social simbol to a sociologist, but is also a resimbolization, wich makes have a metasocial aspect.

Keywords: theory of valour, sociology of arts, arts, metasocial function, social energy.

Durkheim e a energética social do valor artístico

Em sua conferência "Juízos de valor e juízos de realidade", Durkheim dedica-se a uma reflexão cujo objetivo é o de ultrapassar a definição sociológica tradicional da sociedade, que geralmente se limita aos paradigmas organicista ou funcionalista. Ele é conduzido a isto pela própria questão que se coloca na ocasião, a da análise do valor. Uma teoria sociológica do valor certamente apresenta, em relação a qualquer outra, a vantagem de propor um fundamento objetivo para a análise do valor, libertando-a da contingência dos juízos individuais. Entretanto, ao estabelecer que valor é aquilo que é bom para a sociedade e contribui para o seu fortalecimento, a sociologia impede a si mesma de compreender que possa ser considerado como valor aquilo que, enquanto tal, não tem nenhuma utilidade, pois, como diz Durkheim:

As maiores virtudes não consistem no cumprimento regular e estrito dos atos mais imediatamente necessários à boa ordem social (Durkheim, 1951a, p. 125).

Portanto, para compreender o valor de um ponto de vista sociológico, não basta procurar objetos valorizados a partir do critério da utilidade social.

Tomando uma outra via, a sociologia procurou demonstrar a função sociológica do valor descrevendo o processo de sua produção como elemento do sistema global da reprodução social. O valor, resultado de um processo de valorização, seria útil como reprodutor da estrutura de posições no sistema social. Esta explicação privilegia contudo a idéia de uma sociedade

apresentada como um sistema de órgãos e de funções, que tende a manter-se contra as causas que a ameaçam do exterior, assim como um corpo vivo, cuja vida inteira consiste em responder de uma maneira adequada às excitações vindas do meio externo. Ora, de fato - conclui Durkheim - ela, a sociedade, é, além disto, o foco de uma vida moral interna cujo poder e originalidade nem sempre foram reconhecidos (Durkheim, 1951a, p. 132, grifo nosso).

Durkheim usa aqui uma outra linguagem, diferente daquela do equilíbrio do sistema social, e procura, a partir da problemática do valor, tirar a sociologia de uma postura estática que ele julga inadequada ao estudo das sociedades modernas. De fato, ele vai propor complementar a análise da reprodução da sociedade, que está ligada aos mecanismos de preservação da perenidade das estruturas, com uma análise da energética social, associada, em particular nas nossas sociedades "quentes" e prometéicas, à produção intelectual e artística.

Tal projeto, de natureza epistemológica, apóia-se no exame de certos momentos da evolução histórica de uma sociedade, nos quais se constata empiricamente o aparecimento de uma "vida psíquica de um gênero novo" (Durkheim, 1951a, p. 133).

Durkheim não é explícito a respeito deste fenômeno, descrito por ele como uma aceleração da comunicação, e que é consecutiva a um crescimento da densidade das relações intersubjetivas:

Quando as consciências individuais, em vez de permanecer separadas umas das outras, entram em relações estreitas, agem ativamente umas sobre as outras, de sua síntese resulta uma vida psíquica de um gênero novo (Durkheim, 1951a, p. 133).

Nestes momentos, em que a sociedade parece entrar em fusão, modifica-se a relação habitual (ou normal) entre os valores de realidade e os valores de ideal. Tudo se passa como se o conjunto das pressões que se acumulavam na sociedade aquecessem o seu meio a ponto de se produzirem explosões energéticas que "desenvolvem no seio dos grupos uma energia que os sentimentos puramente individuais não atingem" (Durkheim, 1951a, p. 133).

Durkheim insiste sobre o caráter fulgurante desta modificação que faz com que "o ideal e o real tendam a se tornar uma coisa só" (Durkheim, 1951a, p. 134). E prossegue:

Uma vez passado o momento crítico, a trama social se distende, o comércio intelectual e sentimental se torna mais lento, os indivíduos recaem ao seu nível ordinário. Então, tudo o que foi dito, pensado, sentido durante o período de tormenta fecunda não sobrevive mais a não ser sob a forma de lembrança, lembrança prestigiosa, sem dúvida, do mesmo modo que a realidade que ela relembra, mas com a qual ela deixou de se confundir (Durkheim, 1951a, p. 134-135).

Assim, a sociedade reviverá na idealidade artística em geral o momento privilegiado que ela conheceu por um instante. A arte, como memória ativa deste instante fugitivo, no qual a sociedade se viu, experimentou, sentiu-se a si mesma como uma outra, exerce o papel de motor na permanência do ideal e das forças transformadoras da qual ela é um sintoma.

Reteremos dois aspectos desta argumentação. O primeiro diz respeito ao registro metafórico que Durkheim é levado a utilizar; o segundo, à própria função de memória atribuída às obras de arte.

Contrariamente à tradição dominante, que ordenava, segundo as palavras de Lilienfeld, que sociologus nemo nisi biologus, Durkheim não fez um uso sistemático das analogias vitalistas ou biológicas1 1 A respeito do emprego de metáforas organicistas por parte de Durkheim, cf. Schlanger (1971, p. 172 ss.). . Em particular, no texto que tomamos como ponto de partida, para falar da arte, ele buscará registros diferentes do vitalismo. Nada de primavera do pensamento nem de floração da arte! Em seu lugar intervém as noções de foco, energia, densidade e intensidade. A produção artística e intelectual, quando atinge sua energia máxima, nos diz Durkheim, manifesta-se nos momentos em que a densidade das relações sociais aumentou violentamente. Ocorre então uma explosão artística que põe a sociedade a caminho de um novo período, e a energia intelectual diminui gradativamente em seguida. Vê-se que Durkheim fala do momento de produção máxima de valor como de uma fase ativa do ciclo de um motor à explosão. As pressões que se exercem sobre o meio aumentaram sua densidade a ponto de ocorrer uma explosão (Reforma, Renascimento, Revolução etc), produção de energia social por meio da fusão do ideal e do empírico (momento em que o gás se transforma em energia mecânica) e, enfim, parada e resfriamento, "recaindo o conjunto do sistema a seu nível ordinário".

Não se trata aqui simplesmente do uso de um registro metafórico, da faculdade de empregar imagens extraídas de uma outra disciplina do saber constituído. Assim como Spencer constrói seus Princípios de sociologia sobre a metáfora organicista, Durkheim parece tentar conceber a sociedade, em ligação com o objeto específico do qual se ocupa ao tratar do valor, apoiando-se sobre o modelo da termodinâmica. Este modelo, com efeito, oferece uma articulação específica das duas dimensões da constância e da degradação dos sistemas, colocando-as sob o ângulo da energética. Com a condição de que não se defina a sociedade como máquina energética, a termodinâmica ensina que a quantidade de energia aí é constante, e que a qualidade desta energia é decrescente (entropia). Se pois definirmos a energia específica da sociedade como valor qualitativo, veremos como esta energia, nas condições determinadas de densidade social, aparece como a resultante positiva cujo destino é ao mesmo tempo o de transformar a sociedade e degradar-se enquanto realiza esta transformação.

A produção de obras tem, portanto, um papel fundamental. Ela é produção energética num momento privilegiado da evolução social, energia que vai perdurar sob a dupla forma de seus efeitos diretos sobre os comportamentos e as estruturas e de seus efeitos diferidos na seqüência das obras de menor qualidade que se escalonam no tempo aberto pela expansão vivida por um instante pela sociedade.

Esta dupla temporalidade da energia intelectual remete à dupla dimensão da produção cultural, inovadora e conservadora. Nós reeencontramos aqui o que Durkheim dizia a respeito da função de memória das obras de arte e da necessidade de articular entre si uma sociologia das obras e uma sociologia da valorização.

Do valor artístico à obra

Decorre do que precede que a análise sociológica da arte - ou seja, de tudo o que diz respeito ao real ideal, como oposto e complementar ao real empírico - precisa articular o estudo do funcionamento do ritual de celebração do valor simbólico ao estudo da realidade social que recebe provisoriamente uma forma na arte, a qual se encontra investida de valor simbólico pelas razões assinaladas por Durkheim. Poder-se-ia designar este primeiro aspecto deste fenômeno com o nome de cultura, e dizer que a sociologia da cultura tem como objeto o conhecimento das modalidades pelas quais as sociedades atribuem um certo valor às obras simbólicas. Chamaríamos então de sociologia das artes o estudo das formas objetais que a realidade, concebida sob o ângulo do valor ou ideal, assume, em determinadas circunstâncias históricas. Este objeto, comumente chamado obra, é uma constituição objetal de um estado ideal da sociedade, um momento da sociedade visto na perspectiva daquilo que Durkheim denominava "uma vida psíquica de um novo gênero".

O trabalho artístico exerce, neste quadro, uma função que não é simplesmente de espelho, nem, estaticamente, de reprodução social. A produção social de valores simbólicos, no quadro da constituição da cultura, não impede a obra - nem mesmo, o que é freqüente, quando ela não é (ainda) reconhecida como valor simbólico - de introduzir uma realidade social nova no circuito do pensamento, quaisquer que sejam suas modalidades. Deve-se, pois, distinguir teórica e metodologicamente o que pertence ao domínio da valorização social dos objetos no quadro daquilo que chamamos cultura, e o que se coloca na fronteira do empírico e do ideal social, e que chamaremos valor. Levando, portanto, em conta a heteronomia do objeto "obra, não seguiremos aqueles que, considerando que uma sociologia das obras não é suficiente para as ambições legítimas da sociologia, concluem:

É porque o estudo das obras não pode bastar que ele deve ser substituído pelo das condutas dos diferentes agentes diante destas obras (Peretz, s. d.).

A sociologia deverá, pois, cessar de abandonar aos historiadores da arte ou da literatura o estudo das obras, assim como deverá ultrapassar a oposição metodológica entre intuicionismo subjetivista e objetivismo quantitativo. Fazendo isto, e sem cair num idealismo que lhe é estranho, ela deixará de tratar a obra de arte seja à maneira de uma simples resultante de um concurso de significações e sem eficácia própria, seja à maneira de um objeto neutro mais ou menos arbitrariamente investido de valor simbólico pelo jogo das estratégias sociais.

Estatuto sociológico da obra de arte

O modelo da termodinâmica utilizado por Durkheim apresenta, como havíamos dito, o interesse de articular dois aspectos conjuntos do valor, considerado como energia: constância e degradação. O primeiro princípio da termodinâmica indica, com efeito, que a energia permanece quantitativamente constante num sistema fechado, o segundo, o princípio de Carnot, estabelece que a qualidade da energia vai diminuindo e que se desorganiza com o tempo. Isto quer dizer que todas as formas que o valor assume não são idênticas do ponto de vista da energia social. Quanto mais as obras forem marcadas pela entropia do valor, mais difícil será a leitura sociológica.

Contudo, poderíamos nos interrogar sobre as razões que levaram Durkheim a atribuir ao valor, tal como ele se cristaliza nas obras de arte, uma importância tão grande. Devem intervir aqui duas ordens de considerações.

A primeira diz respeito ao estudo das sociedades modernas. Durkheim havia elaborado amplamente seus conceitos sobre a base de uma documentação etnográfica. Disto decorria uma tendência a privilegiar, no estudo da sociedade, os fatores de manutenção da estrutura. É no momento em que se debruça sobre o problema do valor que ele descobre uma dupla dimensão. Como resultado de um processo social de valorização, o valor é um "produto da opinião" (Durkheim, 1951b, p. 82), e, conseqüentemente, ele participa da reprodução da entidade que lhe dá origem. Mas a sociedade não é apenas uma máquina em equilíbrio estático. "Sem dúvida, se não vemos na sociedade a não ser o grupo de indivíduos que a compõem, o habitat que ocupam", podemos crer na eficácia de uma definição tão limitativa. Mas isto não pode ser assim. Por esta razão, Durkheim acrescenta:

Mas a sociedade é outra coisa; é, antes de tudo, um conjunto de idéias, de crenças, de sentimentos de toda espécie, que se realizam pelos indivíduos; (...) Desejá-la (a sociedade), é desejar este ideal, tão bem que nós podemos às vezes preferir vê-la desaparecer como entidade material, do que renegar o ideal que ela encarna (Durkheim, 1951b, p. 85).

Ao hipostasiar o ideal, Durkheim não chega a dar uma articulação satisfatória das duas dimensões do valor. Ele as afirma simplesmente de modo alternado, uma vez como princípio de perenização, outra como motor de transformação.

Aliás, podemos nos perguntar sobre a escolha do modelo termodinâmico, que hoje em dia nos parece fortemente ligado ao imaginário do século XIX, como Michel Serres mostrou muito bem em Feux et signaux de brume (cf. Serres, 1975). Outrossim, não se trata para nós de retomar tal e qual o que em Durkheim não passa de uma tentativa. Apenas o aspecto sintomático de seus procedimentos, no momento em que uma sociologia da estrutura e da função se vê confrontada com a realidade do valor, justifica a referência que desenvolvemos aqui. Um século depois de Durkheim, a sociologia, com efeito, ainda não superou esta dificuldade com a qual o grande ancestral havia se confrontado.

A formulação teórica da dinâmica social permanece, efetivamente, no pensamento sociológico, um dos domínios em que a analogia conceitual e o empréstimo de paradigmas explicativos de outras disciplinas são mais freqüentes. Esta prática atesta que a fronteira com o campo teórico da ação histórica constitui hoje ainda um dos problemas mais árduos da teoria sociológica. Nesta perspectiva, o modelo da termodinâmica se apresenta como um auxílio provisório para pensar a dinâmica social, uma maneira de reorganizar a representação das forças em presença. A tentativa durkheimiana é, em todo caso, um sinal de que a sociologia das obras deve apresentar uma contribuição específica sobre este ponto.

Se agora voltamos ao impasse em que se encontra Durkheim diante da dupla dimensão do valor, compreendemos que, para sair desta ambivalência, convém efetuar uma diferenciação entre os valores segundo o grau de institucionalização do qual eles se beneficiam em sociedade. Todos os valores não são, em cada momento histórico determinado, igualmente sujeitos a uma sustentação institucional. Além disso, alguns são mais freqüentemente protegidos por instituições encarregadas de defendê-los, tais como os valores religiosos, e outros, menos, tais como os valores artísticos. A posição destas instituições no conjunto da estrutura social deve igualmente ser levada em conta segundo signifique um verdadeiro poder ou, ao contrário, ateste uma relativa marginalidade, malgrado seu caráter institucional. Tal é o caso, em nossas sociedades modernas, de uma larga parcela da criação artística. Seus valores são alternadamente cooptados pelo poder religioso, político ou econômico, mas esta mesma diversidade indica a sua relativa marginalidade. Isto se deve em particular à sua ambivalência significativa, ou seja, ao fato de que estas obras não transmitem mensagem socialmente unívoca.

Estas contradições nos obrigam a lançar um olhar específico sobre este objeto sociológico que é a obra de arte.

Com efeito, esta representa, em relação aos comportamentos sociais em geral, a particularidade de ser um metacomportamento ou, se se quiser, uma ação metassocial. Todos os nossos comportamentos contêm, como ponto de partida, uma reflexão sobre da ação social e são, portanto, nesta medida, metassociais. Contudo, raramente eles têm o aspecto de uma reflexão articulada sobre estas condições. A obra de arte sim.

A obra de arte, pois, se apresenta ao sociólogo sob o aspecto de um processo cognitivo que tem por objeto, que designaremos aí em sua maior generalidade, esclarecer a relação social fundamental, a saber, a relação entre o indivíduo, o coletivo e o social, e isto na tripla dimensão do passado, presente e futuro.

Se é essencial (no quadro das querelas teóricas tradicionais) considerar que a obra de arte, bem longe de ser somente determinada pelo social, exerce um papel capital na transformação deste social, insistiremos aqui sobretudo sobre os aspectos metassociais da obra de arte.

Freqüentemente, quando a sociologia aceita considerar a obra de arte - e não somente os produtores de valor, as estratégias de valorização, as instituições legitimadoras etc. -, ela o faz como se estivesse diante de comportamentos que simbolizam a realidade social, ou seja, que traduzem o social numa linguagem. Quaisquer que sejam as variantes utilizadas, a modalidade significante que serve de referência em nossa hipótese se reduz sempre à idéia de que a obra exprime uma dada realidade numa linguagem heterogênea à dita realidade. Acrescenta-se em geral que esta expressão determinada pelo "social" exerce, em suma, um papel funcional na coesão ou reprodução deste "social". Ora, tal relação não existe. Do mesmo modo que uma luta social retrabalha ao mesmo tempo as relações sociais e as representações, uma obra de arte nunca simboliza o social ex nihilo, ela ressimboliza. Isto quer dizer que ela não está num hipotético face a face com a realidade que no melhor (?) dos casos ela refletiria, mas numa relação sempre mediatizada por seus próprios instrumentos (as linguagens musicais, plásticas, literárias etc.), pelas formas que tomaram na história da humanidade (as quais têm uma certa perenidade) e pela realidade empírica vivida. Em seguida, definir uma obra como uma ressimbolização é compreender que o escritor ou o artista reflete sobre ela, quer dizer, trabalha, em condições sociais dadas, a relação que para ele é a mais fundamental das relações sociais: sua relação com a língua, com a história lingüística ou literária. Esta relação é para ele uma verdadeira relação social, ou seja, o lugar onde se defrontam um indivíduo, definido pela singularidade de sua prática - singularidade exaltada e valorizada em nossa cultura -, e uma população de obras que já está lá, fixada nas instituições e na história, ou ainda vivendo a luta efêmera pelo reconhecimento, pela vida e pela celebridade.

A dificuldade aqui vem do fato de que nunca se pode saber a priori em que medida uma obra é capaz de elevar-se a este nível metassocial, em função das diferentes situações institucionais evocadas acima. Bem freqüentemente, e a sociologia de tendência determinista ou funcionalista se satisfaz com isto, a obra fracassa na sua possibilidade metassocial, esgota-se no reflexo ou na estratégia, contenta-se em participar da reprodução da sociedade tal como ela é, afunda na entropia da energia cultural. É preciso então aplicar a ela métodos de análise correspondentes. Mas, se muitas obras fracassam, e, como obras, despedaçam-se, outras mantêm com o social uma relação propriamente metassocial.

Enquanto objeto suscetível de interessar ao sociólogo, a obra não é, pois, o lugar onde se realiza a mítica identidade do artista, muito menos o "reflexo" do real ou das condições de sua reprodução. Ela é elaboração, feita por um artista confrontado com a caráter social das linguagens, das formas e das idéias, de uma verdadeira relação social. A obra representa, no real empírico e ao mesmo tempo no imaginário da figuração, a possibilidade de formular de novo, ou de outro modo, as relações sociais, na extrema diversidade de suas manifestações.

É esta a razão pela qual ela é sempre uma aposta. Com efeito, não é simplesmente como objeto valorizado por um setor da opinião, circunstância que não permitiria como tal tirar a conseqüência para a sociedade inteira, que a obra provoca uma cristalização do interesse social. É porque nela se produz uma reorganização ideal do conjunto das relações sociais. É porque a obra em si mesma é uma totalidade e que, no quadro desta totalidade, o conjunto das relações entre o indivíduo e o social está figurado - na medida em que o ato de escrever ou de pintar é uma figuração da relação de um indivíduo ao social da língua e das formas -, é por esta razão que a obra é ao mesmo tempo social e metassocial, e portanto um objeto social altamente sensível.

Metodologia de uma sociologia das obras

Se nós seguimos Durkheim em sua insistência em ver o lugar das obras na sociedade sob o ângulo da energia, após ter assinalado que esta energia preenche sua função social, porque é por definição metassocial, reflexão da sociedade sobre si mesma por intermédio daqueles que manipulam o imaginário para lhe dar uma forma, atividade portanto representativa e operató-ria, podemos concluir, com P. Francastel:

levando em conta a sua dupla função, de manter a coerência ou desestruturar o corpo social, a arte aparece, necessariamente, realizando ao mesmo tempo, seja, no concreto, objetos representativos das crenças mais sólidas de um grupo, seja, ao contrário, no abstrato, esquemas imaginários de representação. Segundo o caso, a arte é, para um grupo, memória ou projeto. Ela possui o duplo aspecto de uma atividade técnica e de um tipo específico de operações intelectuais. Com efeito, estes dois aspectos da arte não são contraditórios. Eles exprimem simplesmente um caráter de autonomia entre as atividades comuns da sociedade (Francastel, 1960, p. 288).

Não seria o caso aqui de desenvolver os diferentes aspectos que a sociologia das obras deverá assumir no contato com os objetos muito diversos que legitimamente são os seus. Cada um destes objetos hierarquiza em sua organização uma multiplicidade de critérios, e isto em relação com suas exigências internas e externas. Estas são modalidades de relação com o conjunto das obras, da mesma espécie, já existentes e com forças institucionais que pesam sobre tal prática artística numa dada sociedade. Nós nos contentaremos, pois, em tomar, a título ilustrativo, um exemplo de abordagem de uma obra singular, um romance, La jalousie, de Alain Robbe-Grillet, tal como a havíamos analisado em Lecture polítique du roman (cf. Leenhardt, 1973).

Tendo definido o trabalho da obra como re-simbolização do dado simbólico, o primeiro procedimento sociológico diante da obra - aqui, literária - consistirá em construir, a partir de materiais culturais, a configuração do campo simbólico. La jalousie será, pois, situada em relação a um feixe de modos de representação instituídos pela literatura, mas também por outras formas, menos legítimas, de organização do espaço mental. Confrontando o texto de Robbe-Grillet com os folhetos publicitários, obras etnológicas e obras literárias, aprendemos a captar a maneira pela qual esta obra retrabalha as formas instituídas pela percepção2 2 Cf. desenvolvimentos sobre o espaço, a voz, o tempo, a natureza etc., em Leenhardt, 1973, cap. I. .

A reorganização das modalidades de representação se desdobra, no nosso caso assim como freqüentemente, numa consideração da obra na perspectiva do pano de fundo da história das formas literárias. La jalousie define em sua escrita seu lugar na história das formas romanescas, mas também na história dos saberes sobre a África, já que se trata de um romance cuja ação se dá neste continente.

A obra enfrenta então o problema específico da existência de um discurso literário legítimo, chamado romance colonial, codificado por seus mestres e públicos leitores. Nós mostramos que este aspecto da inscrição numa cadeia de obras feitas deveria ser tratado com a diferenciação histórica correspondente às etapas da colonização e de sua tematização literária. A África de Robbe-Grillet se define necessariamente em relação aos modelos perceptuais estabelecidos por J. d'Esme, M. Leiris e L. F. Céline, para falar apenas de algumas referências literárias.

Entretanto, a simbólica colonial, nesta obra, não está sozinha no jogo. Em ligação com o meio particular, é trabalhado um dos grandes modelos do romance burguês: a relação triangular do par conjugal desfeito.

Estes temas, na verdade, só raramente intervêm de forma explícita. Apenas a análise do tratamento da língua permite às vezes ter acesso a eles. É que, para o romancista, a linguagem é a própria forma do social. A exploração das relações intersubjetivas e sociais se faz, pois, largamente, numa obra literária, pela mediação do tratamento da própria linguagem, sem que o escritor recorra sempre a uma temática explícita. Mostramos assim de que modo, em características sintáticas, léxicas ou sintagmáticas, a forma das relações sociais coloniais era uma perspectivação e um questionamento (cf. Leenhardt, 1973, cap. IV).

A obra de Robbe-Grillet, ao colocar em conflito cadeias categoriais e sistemas perceptuais, dos quais nós pudemos explicar a que grupos sociais estavam associados no imaginário dos anos 1950, apresenta-se, pois, ao final de nosso estudo, como uma pedra de toque essencial para a sociologia desta época. Ela indica as perspectivas nas quais era possível, e mesmo previsível, naquela época, uma organização das representações. Instalada na série que é constituída pelas obras históricas, políticas, etnológicas e sociológicas, ela representa uma modalidade cognitiva e operatória não enfeudada nas instituições que produzem saber sobre este objeto, e, conseqüentemente, é revestida de um poder de sugestão maior.

Quisemos aqui apenas lembrar algumas das linhas seguidas num estudo de caso o qual julgamos que pode esclarecer as posições teóricas desenvolvidas acima. Remetemos portanto o leitor a este estudo.

Como conclusão, precisamos entretanto completar ainda este esquema sublinhando a importância, para a sociologia, do estudo da recepção das obras. Na medida em que pensamos que a obra não é um corpo morto no social, mas uma energia dotada de poder operatório, fica evidente que o estudo do impacto das obras sobre cada um dos grupos sociais que constituem uma sociedade é da mais alta importância. Como havíamos mostrado em Lire la lecture - Essai de sociologie de la lecture (cf. Leenhardt & Józsa, 1982), tal análise abre perspectivas sobre a sociologia das representações e das categorias mentais próprias de cada grupo, ao mesmo tempo em que esclarece, em contrapartida, o sistema de complexidade que é uma obra de arte, manifestando concretamente, pela comparação entre as recepções diferenciais que são constatadas em cada grupo de leitores, a maneira pela qual a multiplicidade das estratégias literárias e cognitivas próprias à obra é suscetível de ser hierarquizada.

Tradução de Maria das Graças de Souza do Nascimento

Recebido para publicação em agosto/1998

  • Durkheim, Émile. (1951a) Jugements de valeur et jugements de réalité. In: ______. Sociologie et philosophie. Paris, PUF.
  • ______. (1951b) Determination du fait moral. In: ______. Sociologie et philosophie. Paris, PUF.
  • Francastel, Pierre. (1960) Problčmes de la sociologie de l'art. In: Gurvich, G. (ed.). Traité de sociologie. Paris, PUF.
  • Leenhardt, Jacques. (1973) Lecture politique du roman. Paris, Éditions de Minuit.
  • ______ & Józsa, P., com o auxílio de Burgos, M. (1982) Lire la lecture. Essai de sociologie de la lecture. Paris, Le Sycomore (publicada com o concurso do CNRS).
  • Peretz, H. (s. d.) verbete "Culture" (Sociologie de la). Paris, Encyclopaedia Universalis, vol. 5, p. 228.
  • Schlanger, Judith. (1971) Les métaphores de l'organisme. Paris, Vrin.
  • Serres, Michel. (1975) Feux et signaux de brumes. Paris, Grasset.
  • 1
    A respeito do emprego de metáforas organicistas por parte de Durkheim, cf. Schlanger (1971, p. 172 ss.).
  • 2
    Cf. desenvolvimentos sobre o espaço, a voz, o tempo, a natureza etc., em Leenhardt, 1973, cap. I.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Out 1998

    Histórico

    • Recebido
      Ago 1998
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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