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Mudança social no Brasil: a construção de um ideário conservador

Social changes in Brazil: the constitution of a conservative set of ideas

Resumos

As obras de Perdigão Malheiros, Tavares Bastos e Joaquim Nabuco construírem um ideário sobre mudança social, no final do século XIX, significativamente expressivo e revelador de um modo singularizado de conceber o país e suas condições sociais, econômicas, políticas e culturais vigentes naquele momento. As reflexões destes pensadores conduziam, inexoravelmente, aos temas que tinham como norte fundamental a modernização do país, a abolição da escravatura, a proclamação da República e a constituição da nação. De modo inerente a todas essas questões estava posta de maneira explícita e/ou implícita a problemática da transição e da mudança.

Brasil; mudança social; ideário conservador; abolição; república


The works by Perdigão Malheiros, Tavares Bastos and Joaquim Nabuco built up a set of ideas about social changes, at the end of the XIX th century, which were significantly meaningful and revealing of a particular way of conceiving the country and its social, economical, political and cultural conditions valid for that moment. These scholars's reflections led, inexorably, to the themes which had as a fundamental guide the modernization of the country, the abolition of slavery, the proclamation of the Republic and the constitution of the nation. The problem of the transition and the changing was explicitly and/or implicitly set intrinsic to all these questions.

Brazil; social and political change; conservative set of ideas; abolition; republic


ARTIGO

Mudança social no Brasil: a construção de um ideário conservador

Social changes in Brazil: the constitution of a conservative set of ideas

Maria José de Rezende

Professora de sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UEL-PR

RESUMO

As obras de Perdigão Malheiros, Tavares Bastos e Joaquim Nabuco construírem um ideário sobre mudança social, no final do século XIX, significativamente expressivo e revelador de um modo singularizado de conceber o país e suas condições sociais, econômicas, políticas e culturais vigentes naquele momento. As reflexões destes pensadores conduziam, inexoravelmente, aos temas que tinham como norte fundamental a modernização do país, a abolição da escravatura, a proclamação da República e a constituição da nação. De modo inerente a todas essas questões estava posta de maneira explícita e/ou implícita a problemática da transição e da mudança.

Palavras-chave: Brasil, mudança social, ideário conservador, abolição, república.

ABSTRACT

The works by Perdigão Malheiros, Tavares Bastos and Joaquim Nabuco built up a set of ideas about social changes, at the end of the XIX th century, which were significantly meaningful and revealing of a particular way of conceiving the country and its social, economical, political and cultural conditions valid for that moment. These scholars's reflections led, inexorably, to the themes which had as a fundamental guide the modernization of the country, the abolition of slavery, the proclamation of the Republic and the constitution of the nation. The problem of the transition and the changing was explicitly and/or implicitly set intrinsic to all these questions.

Keywords: Brazil, social and political change, conservative set of ideas, abolition, republic.

Introdução

Percorrendo as obras de três pensadores da primeira grande fase do desenvolvimento da reflexão sociológica brasileira mapeou-se, neste artigo, os elementos centrais e definidores da formação de um ideário conservador sobre as (im)possibilidades de mudança social. Florestan Fernandes, no artigo "Desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil", publicado pela primeira vez em 1956, divide em três etapas o processo de formação e sedimentação das ciências sociais no país (Fernandes, 1976, p. 25-49). Sua preocupação era demonstrar de que modo cada período se caracterizava, tendo em vista os elementos atinentes à realidade nacional.

Diversos pensadores, tais como Tavares Bastos, Perdigão Malheiros, Joaquim Nabuco, Sylvio Romero, Aníbal Falcão, Paulo Egydio de Carvalho etc., teriam construído, como afirma Lúcia Lippi Oliveira, "não uma disciplina, mas um campo intelectual" (Oliveira, 1995, p. 61), no qual os temas básicos podem ser agrupados como: "uma crítica econômica e político-administrativa, (e/ou) uma crítica jurídico-social da ordem patrimonialista. Mas, logo assume o caráter definido de um recurso de interpretação que permitia compreender as origens sociais e as vinculações estruturais de segmentos da sociedade brasileira com o seu contexto, ou oferecia uma perspectiva para a discussão normativa do problema do progresso humano, visto em termos de evolução da sociedade brasileira ou nas suas relações com os fatores da vida em sociedade" (Fernandes, 1976, p. 33).

Serão analisadas, principalmente, as seguintes obras: A província (1870) de A. C. Tavares Bastos, A escravidão no Brasil (1866) de A. M. Perdigão Malheiros e O abolicionismo (1883) de Joaquim Nabuco (cf. Bastos, 1937; Malheiros, 1944; Nabuco, 1988). Elas foram selecionadas porque oferecem os elementos necessários para se compreender como a problemática da mudança se colocava, para aqueles pensadores. "De modo que por volta do terceiro quartel do século XIX, já existia no Brasil uma inteligência cujos componentes individuais não reagiam de modo uniforme às pressões conservadoras das camadas dominantes" (Fernandes, 1976, p. 33).

As reflexões, naquele momento, sobre as (im)possibilidades de mudança social e política, no Brasil, têm que ser analisadas tendo em vista aquilo que observa Raymundo Faoro em A questão nacional: a modernização. Ou seja, "entre a sociedade civil frágil e vigiada, e o estamento aristocrático, deu-se uma transação, alterada em torno dos meados do século XIX. A conciliação política, desarmando os antagonismos, regularia e controlaria a mudança. Mantida a pirâmide - mantida a 'ordem', como se dizia - o Império escravocrata1 1 Este artigo não tem como fazer uma análise das inúmeras questões acerca da escravidão, de seu processo de abolição e de seus efeitos na sociedade brasileira. Dentre vários, vide principalmente Ianni (1962), Cardoso (1962), Fernandes (1965; 1979). adia sua mais urgente reforma social, a do cativeiro, logo adiante, para se modernizar" (Faoro, 1992, p. 10).

Agostinho Marques Perdigão Malheiros e a questão da mudança social

Florestan Fernandes afirma que Perdigão Malheiros deve ser considerado um dos primeiros "aplicadores de técnicas de pensamento racional", portanto, sua obra A escravidão no Brasil é "um ponto de referência explícito para a compreensão das ligações da transformação da sociedade brasileira com o processo de desenvolvimento da sociologia" (Fernandes, 1976, p. 33).

É importante esclarecer que esta obra de Perdigão Malheiros interessa para esta análise na medida em que trazia às claras uma perspectiva em torno da mudança social que, sem nenhuma dúvida, refletia uma recusa em torno de qualquer possibilidade de mudanças sociais e políticas substanciais. Ficavajá delineada a tentativa de amarrar as modificações da sociedade brasileira a uma suposta natureza conciliadora de nossas elites2 2 Sobre a força do poder conciliatório no Brasil, nos momentos decisivos de nossa história, cf. Faoro (1994). .

Antes de analisarmos a obra de Perdigão Malheiros citada anteriormente, considera-se fundamental demonstrar, somente a título de esclarecimento, qual era a sua vinculação política, bem como os interesses por ele defendidos. De antemão, é preciso assinalar que os "conflitos de interesses entre o norte-açucareiro e o sul cafeeiro" (Melo, 1984, p. 22) marcaram sua atuação na Câmara dos Deputados, na penúltima década do império. Como mostra Evaldo Cabral de Melo, a questão da proibição do tráfico interprovincial3 3 "O tráfico interprovincial de escravos proporciona o mais antigo dos motivos de disputa entre a grande lavoura do norte e do sul do Império". Havia no parlamento entre 1871 a 1880 um amplo debate sobre o processo de transferência de mão-de-obra escrava do norte para o sul do país. "A verdade é que as fontes parlamentares do período de 1871 a 1880 dão como coisa sabida que o comércio se fazia principalmente para atender as necessidades de mão-se-obra cafeeira. (...) Com a expansão dos cafezais, o tráfico interprovincial terá passado a suprir principalmente a lavoura cafeeira" (Melo, 1984, p. 28-29). de escravos e a imigração européia se constituíam na base deste conflito que ganhava corpo entre 1871 e 1889.

Os problemas ligados à "transição do trabalho escravo para o trabalho livre na grande lavoura do Império" (Melo, 1984, p. 21) ganhavam proeminência. Este processo de substituição instalado "nas áreas dominantes da economia brasileira, nos últimos vinte anos de regime monárquico" (Melo, 1984, p. 21), gerou um verdadeiro embate entre as forças políticas principais dentro do Império. Perdigão Malheiros, deputado pertencente a uma dissidência conservadora por Minas Gerais, travava na Câmara um verdadeiro embate com os representantes do norte que, segundo ele, "haviam traído os interesses de classe da grande lavoura brasileira" (Melo, 1984, p. 34).

Evaldo Cabral de Melo, em sua pesquisa sobre os conflitos de interesses no Parlamento brasileiro, entre 1871 a 1889, demonstrou com bastante clareza que havia um amplo embate a respeito da conveniência ou não, para os representantes de interesses agrários do norte/nordeste e do sul, na manutenção do tráfico inter-regional. Foram vários os projetos apresentados no parlamento a respeito da proibição deste tipo de tráfico. Observe-se que havia este debate e existia, também, um outro que se situava no âmbito da questão da abolição da escravidão.

Desde 1854 eram apresentados projetos no parlamento visando proibir o tráfico interprovincial4 4 Em 1854 o deputado João Maurício Wanderley, que se tornou mais tarde o barão de Cotegipe, apresentou um projeto na Câmara sobre o fim do tráfico inter-regional de escravos (cf. Pinho, 1937). . Segundo Evaldo Cabral de Melo "apesar do apoio das bancadas nortistas, em especial das províncias açucareiras, o projeto foi rejeitado, devido ao desinteresse do ministério conservador e à oposição das províncias dos cafeicultores. (...) Desde então a grande lavoura nortista desinteressou-se da proibição do comércio inter-regional de escravos" (Melo, 1984, p. 30).

O debate acerca da eliminação do tráfico interprovincial5 5 Em 4 de Setembro de 1850, foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós, o que "estancou por completo, em menos de dois anos, o tráfico africano. Efetuaram-se depois de 1852 apenas dois desembarques, sendo contudo apreendidos os negros contrabandeados" (Prado Júnior, 1987, p. 92-93). foi retomado na década de 1870 quando deputados do sul passaram a discutir no parlamento esta questão (cf. Melo, 1984, p. 30). De antemão é preciso destacar que Perdigão Malheiros não era abolicionista. Suas posições no Parlamento refletiam claramente a sua preocupação com a forma que deveria ter a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, de modo que o sul cafeeiro não fosse prejudicado, e a propriedade não sofresse abalos irremediáveis.

Nos Anais da Câmara dos Deputados, de 1871, encontra-se o seguinte apelo aos parlamentares do nordeste: "Eu disse desde o princípio: nós do sul, pedimos que não nos abandoneis. E é isto que ainda hoje peço; os do norte podem ser mais fáceis em concessões, têm menos escravos, menos interesses; os do sul não podem fazer concessões tão avantajadas; portanto, tenham contemplação para com o sul, não queiram entregá-lo de pés e mãos amarrados a uma solução que há de causar profundo abalo não só na propriedade, mas contra a nossa segurança" (Malheiros, 1871, p. 101).

No âmbito da sociologia, Mannheim foi o que melhor clarificou as diversas nuanças do pensamento conservador. Suas considerações são de grande valor para esta análise. Ao definir os diversos estilos de pensamento, ele afirma que "os indivíduos não criam os padrões de pensamento segundo os quais concebem o mundo, mas os absorvem de seus grupos" (Mannheim, 1981, p. 105).

O conservadorismo, assinala ele, é exatamente uma configuração estrutural objetiva, dinâmica e historicamente desenvolvida. As pessoas agem de modo conservador à medida que se incorporam a uma dessas fases de desenvolvimento dessa estrutura e se comportam em termos de tal estrutura, simplesmente reproduzindo-a no total ou em parte, principalmente por adaptação (cf. Mannheim, 1981, p. 105).

Os termos da defesa da propriedade da terra feitos por Perdigão Malheiros, no Parlamento, eram claramente conservadores à medida que ele procurava destilar das condições sociais vigentes os elementos que justificassem, como nos ensina Mannheim, um certo fatalismo6 6 Para Mannheim este fatalismo pode ser teológico, científico e histórico (cf. Mannheim, 1986, p. 121). que se resumia no seguinte: se os representantes do norte agrário não apoiassem o sul, a segurança do próprio país estaria ameaçada. "A peculiaridade do modo conservador de enquadrar as coisas em um contexto mais amplo é que ele se aproxima delas por trás, a partir de seu passado. Para o pensamento progressista, o significado das coisas deriva em última análise de algo acima ou além delas mesmas, de uma utopia futura ou de sua relação com uma forma transcendente. Os conservadores, no entanto, vêem todo o significado de uma coisa no que está por trás dela, ou seu passado temporal ou sua origem evolutiva. Enquanto o progressista utiliza o futuro para interpretar as coisas, o conservador utiliza o passado; o progressista pensa em termos de modelos, o conservador pensa em termos de origens" (Mannheim, 1981, p. 121).

A coexistência do passado com o presente fornece o norte do ideário conservador sobre mudança social. No caso específico de Perdigão Malheiros, que buscava justificar as formas de encaminhamento das medidas sobre a eliminação do tráfico interprovincial, a partir de um compromisso com a manutenção dos interesses dos proprietários de terra, isso era muito visível. A apresentação daquela última como a razão principal de todo zelo dos parlamentares tinha como pressuposto que "a história está enraizada no solo; os indivíduos não são mais que transitórios 'modi' spinozistas dessa substância eterna. A terra é a base real sobre a qual o Estado se ergue e se desenvolve, e somente a terra pode realmente fazer a história. O indivíduo transitório é substituído pelo fato mais durável, a terra, como base dos acontecimentos. (...) Todo indivíduo e acontecimento isolado é visto como puramente acidental e fortuito em contraste com essa subestrutura territorial compacta" (Mannheim, 1981, p. 123).

Assinale-se que não é objetivo deste artigo fazer um rastreamento das diversas posições dos parlamentares, nos últimos anos do Império, a respeito do tráfico interprovincial, da abolição da escravatura etc. Os elementos levantados fornecem meios de compreensão das posições de Perdigão Malheiros e de Tavares Bastos no que concerne basicamente ao tema aqui estudado, ou seja, o da construção de um ideário conservador sobre mudança social.

Analisando as posições tomadas por Perdigão Malheiros, na Câmara dos Deputados, verifica-se que não havia de sua parte um compromisso com a questão da eliminação da instituição servil. Em 1877, ele apresentou um projeto de extinção do tráfico inter e intraprovincial, mas justificava a necessidade de sua aprovação como um modo de se evitar uma divisão profunda entre o norte e o sul do país7 7 Evaldo Cabral de Melo afirma que as posições de alguns deputados contra o tráfico (dentre eles estava Perdigão Malheiros, que apresentou um projeto neste sentido em 1877) era uma manobra que objetivava "prolongar a vida da escravidão" (cf. Melo, 1984, p. 42). Faz-se necessário não desconsiderar, porém, que Joaquim Nabuco, o mais importante político-abolicionista daquele momento, passou a apoiar o projeto de proibição do tráfico inter-regional do deputado paulista Moreira de Barros, no final da década de 1870. "Joaquim Nabuco (... ) defendeu a interdição do comércio inter-regional, utilizando curiosamente argumento afim ao dos escravocratas, o do que 'a escravidão está se tornando uma questão social somente para duas províncias, o Rio de Janeiro e São Paulo (...) e para uma parte da província de Minas'" (Melo, 1984, p. 44-45). . Ou seja, fazia-se necessário, naquele momento, evitar que ocorresse uma exacerbação das posições políticas a favor e/ou contra a escravidão.

Iam definindo-se os elementos elucidadores das posições de Perdigão Malheiros a respeito do modo como deveriam ser encaminhadas as mudanças. Um dado central de suas posições, verificáveis através dos Anais da Câmara dos Deputados, era o de que as modificações deveriam ser realizadas como maneira de se evitar as dissensões políticas, visíveis entre os representantes dos interesses da grande lavoura do norte e do sul, as quais eram tidas como um perigo político e social8 8 Evaldo Cabral de Melo afirma que Perdigão Malheiros fazia parte de um grupo de deputados que não "animava sentimentos abolicionistas" (cf. Melo, 1984, p. 41). .

"Perdigão Malheiros, que, nos anos sessenta, escrevera A escravidão no Brasil, fizera uma pronunciada inflexão conservadora quando do debate do Projeto Rio Branco, ao qual se opôs tão intransigentemente que ele mesmo confessava ser tido na conta de 'escravagista'9 9 O gabinete Rio Branco formulou a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871. . Em 1877, ele continuava a sustentar (e este é um argumento típico da reação antiemancipacionista e de outras reações) que uma reforma deste escopo "não se faz a capricho de um homem, nem a arbítrio de quem quer que seja; é preciso contar com os elementos naturais, e só com estes elementos (...) se pode chegar a um satisfatório resultado sem inconveniente sensível" (Melo, 1984, p. 41).

A obra A escravidão no Brasil foi um marco tanto para se compreender como a partir do terceiro quartel do século XIX "a inteligência brasileira passa a se interessar por conexões entre o direito e a sociedade, a literatura e o contexto social, o Estado e a organização social" (Fernandes, 1976, p. 27), quanto por expressar, através de elementos sociais, uma concepção conservadora, de um determinado grupo, sobre as possibilidades de mudança social no país.

As obras tomadas como fundamentais, neste artigo, na formulação de um determinado ideário são expressões, como Mannheim denominou em sua análise sobre o pensamento conservador, de intenções básicas de um certo grupo social. "O sociólogo não pode admitir que as intenções básicas presentes nos diferentes estilos (de pensamento) tenham vindo do nada. Nós devemos assumir como axiomático que elas mesmas fazem parte do processo de pensamento, por assim dizer, e que sua história e seu destino estão de várias formas ligados ao destino dos grupos que devem ser considerados como seus portadores sociais. (.) Nós precisamos compreender que, mesmo no processo de conhecimento, certos princípios determinados, provenientes do grupo, estão atuando no indivíduo que molda, de acordo com eles, suas experiências e conhecimentos potenciais. Esses princípios determinantes podem ser abordados se nos perguntarmos quais são as causas socais que os produziram" (Mannheim, 1981, p. 83).

Perdigão Malheiros, por exemplo, tecia uma enorme defesa da índole do povo, que significava uma defesa ardorosa da elite, apelando continuamente para o seu espírito cristão e humanitário. Circunscrevia uma necessária mudança a um suposto compromisso benévolo dos setores preponderantes, os quais, segundo ele, eram plenos de sentimentos favoráveis às possíveis modificações que se colocavam no cenário brasileiro.

Antes de demonstrar quais eram os argumentos de Perdigão Malheiros sobre as formas de encaminhamento das mudanças sociais, é preciso assinalar que era detectável uma antinomia entre as diversas posições assumidas por ele enquanto político e membro do Parlamento e algumas de suas pressuposições gerais feitas no livro A escravidão no Brasil.

Ao teorizar sobre a questão da escravidão, ele levantava inúmeros argumentos contrários a ela, tendo em vista que esta era responsável por todos os horrores da sociedade brasileira. No entanto, examinando os Anais do Congresso da década de 1870, verifica-se um amplo processo de aliança a respeito da inconveniência de, naquele momento, extinguir completamente a instituição servil.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que as diferenças entre as suas pressuposições teóricas no livro analisado, neste artigo, e as suas ações políticas na Câmara, com relação ao trabalho escravo, esclarecem muito mais do que confundem, tendo em vista que o objetivo desta análise é trazer às claras também estes desencontros, pois eles esclarecem o sentido assumido pela problemática da mudança social no âmbito teórico e no da ação política.

No capítulo III do livro A escravidão no Brasil, Perdigão Malheiros buscava fazer amplas conexões entre o contexto sociocultural e o trabalho servil e, a partir desta reflexão, ele se empenhava em explicar a sociedade brasileira e apontar quais eram as nossas possibilidades de mudanças.

Antes de mais nada, é preciso assinalar que a concepção de mudança de Perdigão Malheiros ficava esclarecida em sua análise sobre a índole e os costumes brasileiros a respeito dos escravos. Estava havendo, depois de 1850, modificações nas relações quotidianas entre o senhor e o escravo e isto, para ele, alterava significativamente toda a vida social. Neste caso, era indicativo de mudança o processo de amenização dos castigos e dos sofrimentos dos trabalhadores servis; isso representava, segundo Malheiros, um processo de aproximação, a nível da pessoalidade, entre o senhor e o escravo.

"É certo que os costumes brasileiros atuais já não são os de outrora em todas as relações da vida social, e particularmente quanto aos escravos. Eles se acham profundamente modificados em favor desta infeliz classe. Para isto hão concorrido não só a índole brasileira, proverbialmente bondosa, mas e poderosamente a influência do exame da questão da escravidão (...). Todo poderoso é o elemento moral, que basta despontar como a aurora no horizonte, para iluminar, aquecer e fazer frutificar" (Malheiros, 1944, p. 114).

As mudanças eram, assim, produzidas pela índole da elite brasileira que estaria conseguindo amenizar a brutalidade da escravidão. A tentativa de enfatizar os elementos constituintes da organização social estava permeada pela questão da cultura, dos costumes, da índole e da moral. Abria-se, assim, uma forma de interpretação do Brasil, por onde fluiriam diversas análises.

As alterações a que se assistia no trato do escravo eram fruto, para Malheiros, do "interesse da conservação desses braços, (...) por ser impossível a importação de escravos. (Isto) serviu à causa da caridade e humanidade" (Malheiros, 1944, p. 115). Estaria estabelecida, assim, uma relação de benevolência do senhor com relação aos seus trabalhadores servis e isto tinha levado a uma aproximação entre as duas classes principais da nossa sociedade.

Perdigão Malheiros considerava que os senhores e os escravos formavam duas classes sociais que não estavam, ao menos naquele momento, em conflito desestruturador da ordem vigente. Sua obra indicava que estavam sendo colocadas as condições para a conciliação entre os dois grupos que constituíam as duas extremidades de nossa organização social.

As mudanças nas leis (conforme capítulo I) e nos costumes (conforme capítulo III) estariam produzindo um nivelamento vagaroso, no âmbito público, entre os seus membros. A idéia de que o escravo sentia-se quase livre, a questão da tolerância que, segundo ele, se estabelecia, eram dados indicadores de que estava ocorrendo no país, naquele momento (1866), um determinado tipo de mudança.

Os senhores eram, então, mostrados como promotores das modificações que estariam em curso à medida que eles estariam possibilitando aos seus escravos algumas regalias e até mesmo as alforrias. Para Malheiros, estava ocorrendo um processo de reforma, na sociedade brasileira, pautado na humanização de nossas elites.

A sociedade como um todo, segundo ele, apresentava uma grande simpatia pública pela liberdade, principalmente do escravo de cor clara. "Se não fôra a cor escura, os nossos costumes não tolerariam mais a escravidão" (Malheiros, 1944, p. 118). As alforrias eram exemplificadas como prova de abnegação e de espírito cristão dos possuidores de escravos.

A Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, ao cessar o tráfico de escravos, quase que integralmente em alguns anos, era, para Perdigão Malheiros, a responsável direta pelas mudanças que estavam ocorrendo no país em termos de amenização dos conflitos entre os senhores e os escravos, tendo em vista que aqueles primeiros passaram a preservá-los com maior zelo e até alforriá-los com maior freqüência.

Ficava muito claro, em A escravidão no Brasil, que a questão da mudança girava em torno de elementos de continuidade e/ou de não-rompimento; o que servirá como alimento para um enorme leque que constituiria a reflexão sociológica brasileira nos anos posteriores. A tentativa de Perdigão Malheiros em realizar um ensaio histórico-jurídico-social da escravidão a partir da amenização dos conflitos, da conciliação das diferenças no âmbito público e como modo de resolver estas últimas já apontava para alguns traços constituintes da singularidade brasileira, tais como: a eterna busca de saídas conciliatórias, o ethos autoritário que as justifica em nome da pessoalidade e da cordialidade etc10 10 A idéia de cordialidade aqui empregada é a mesma desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda. Ou seja, a de que "a formação em ambientes patriarcais leva à dificuldade de entender a distinção entre o domínio público e o domínio privado. As relações que engendram o homem cordial situam-se na esfera do íntimo, do familiar, do privado" (Rezende, 1996, p. 35). .

Neste sentido, Perdigão Malheiros afirmava que "tudo prova (...) a salutar reforma no espírito público, e nas consciências em favor do escravo; reforma que se revela ainda melhor nos atos de última vontade, que são a derradeira e sincera expressão daquele que desaparece para sempre dentre os seus semelhantes, que são o grito da consciência, a manifestação solene dos mais íntimos pensamentos e sentimentos do homem, que aí refletem como um espelho" (Malheiros, 1944, p. 122).

Ele atestava que estaria havendo uma reforma do espírito público, tendo em vista que uma parte significativa dos senhores de escravo reconheciam "que a escravidão era contra a lei natural e a religião", e existiam, inclusive, afirmava ele, aqueles que se denominavam publicamente amigos dos escravos (Malheiros, 1944, p. 122). Era reveladora a indicação de singularidades na forma de justificar publicamente a postura dos senhores de escravo.

Perdigão Malheiros preocupava-se em demonstrar que aquele era um período de transição, calcado na reforma do espírito público, vinculada à melhoria dos costumes no trato do escravo; o que somente era possível tendo em vista que, afirmava ele, no Brasil não havia problemas de raça, mas só de escravidão. Desta maneira, havia uma mudança que estaria reorganizando desde o âmbito doméstico e/ou privado até a esfera pública brasileira.

E em que sentido isto tinha relação com a questão das raças? Ele justificava que esta reestruturação da sociedade brasileira no Império era possível tendo em vista que ser negro não era "razão para não ser alguém, no nosso país, admitido nas sociedades, nas famílias, nos veículos públicos. (...) O homem de cor goza no Império de tanta consideração como qualquer outro que a possa ter igual; alguns têm até ocupado e ocupam os mais altos cargos do Estado, na governança, no conselho de Estado, no Senado, na Câmara dos Deputados, no Corpo Diplomático, enfim em todos os empregos" (Malheiros, 1944, p. 124).

Em A escravidão no Brasil, ele fundava uma tentativa de sistematização de um ideário sobre mudança social que se pautava na insistência de que a transição que se estabelecia na sociedade brasileira era o único modo possível de preservar o bem da ordem pública. Enquanto representante dos interesses do sul cafeeiro, Perdigão Malheiros justificava a não-possibilidade, ainda, de supressão da escravidão. Ele afirmava, no entanto que a abominava como uma injustiça, mas não se podia extingui-la.

"É de esperar, porém, que os nossos costumes vão melhorando e se aperfeiçoando em relação" ao trato dos escravos, "principalmente se os poderes do Estado tomarem as providências que o mesmo Estado reclama acerca de tão grave objeto. Se os costumes fazem lei, também as leis fazem costumes" (Malheiros, 1944, p. 128). Era enaltecido que o país aspirava por modificações, mas se fazia necessário construir através de nossos costumes as condições para que tais modificações, em nossa estrutura política, social e cultural, ocorressem.

A escravidão era, segundo ele, de extrema inconveniência para a sociedade11 11 "Mas não é só uma injustiça clamorosa e notória a escravidão; ela é também da maior inconveniência para a sociedade, para o escravo, para o senhor" (Malheiros, 1944, p. 133). . "A escravidão é elemento corrosivo das sociedades em que ela existe, impede o desenvolvimento moral do escravo, o seu aperfeiçoamento, embrutece o homem e obsta a que ele preste toda a utilidade e proveito, que, sendo livre, poderia dar; prejudica o senhor, quer na ordem moral, quer na ordem econômica; representa valores perecíveis e deterioráveis, quando tais valores poderiam ser mais produtivos empregados de outro modo; prejudica a sociedade, já pelos males que lhe acarreta na moral pública e privada, já pelas graves perturbações na ordem social que exigem e demandam medidas e leis excepcionais" (Malheiros, 1944, p. 133).

É interessante notar que havia uma tentativa de amenizar o papel das elites no que concerne ao problema da escravidão. Perdigão Malheiros insistia que esta também sofria os efeitos perversos da instituição servil. "A escravidão prejudica a sociedade e os senhores, mesmo em relação à produção e riqueza; o trabalho livre é de muito superior ao trabalho escravo. Os escravos são parasitas da sociedade e dos senhores, assim como os senhores o são dos escravos" (Malheiros, 1944, p. 134).

O autor de A escravidão no Brasil se empenhava em mostrar, em 1866, que as mudanças que se faziam necessárias, naquele momento, se consolidariam a partir da eliminação definitiva daqueles elementos responsáveis pela produção de uma sociedade antagônica. O fim da escravidão levaria, por exemplo, a um processo de industrialização e de produção de riqueza pública e privada. Desse modo, nasceria uma forma de organização social pautada na conciliação entre os seus diversos agentes.

A correlação entre trabalho e liberdade é que fornecia, segundo Perdigão Malheiros, todas as condições para se criar uma sociedade fundada na associação conciliatória entre os proprietários e os trabalhadores. A instituição servil é que estaria maculando a possibilidade de emergência de uma relação de complementaridade àqueles agentes mencionados.

A emergência da atividade industrial a partir da abolição da escravidão transparecia como uma preocupação de Perdigão Malheiros, tanto que o governo era convocado para coibir os abusos que poderiam surgir neste setor econômico que, certamente, floresceriam com a expansão do trabalho livre (cf. Malheiros, 1944, p. 135). Era evidente o embate que se estabelecia entre os interesses ligados às atividades agrárias (dos quais este autor foi árduo defensor, na Câmara dos Deputados, durante a década de 1870) e os defensores da necessidade de desenvolvimento da indústria no país.

Buscava-se, assim, a todo custo, a partir das condições em vigor, uma forma de adaptação das mudanças que ele considerava necessárias à estrutura social vigente. A obra A escravidão no Brasil era constituída de apelos no sentido de que as alterações que se faziam necessárias no país não extrapolassem alguns marcos que Perdigão Malheiros insistia em traçar. Havia um empenho em atestar uma proximidade entre o senhor e o escravo, por exemplo, de modo que as coisas parecessem sempre norteadas pelo âmbito da pessoalidade.

As modificações que ele sugeria permaneciam, então, como um modo de não-ataque à realidade social como um todo. As mudanças eram propostas como modo de acertos de alguns detalhes particulares que não eram mais condizentes com a sociedade que se modificava. De acordo com Mannheim, este é um traço fundante do pensamento conservador, o qual se apega ao imediato, ao real, ao concreto. Um dos dados do reformismo conservador consiste na substituição de fatores individuais por outros fatores individuais. O elemento central desta perspectiva é sua ênfase em torno de melhoramentos. Daí a constante menção do pensamento conservador aos detalhes particulares (cf. Mannheim, 1981, p. 111).

Através de uma comparação entre a perspectiva progressista e a conservadora, Mannheim esclarece que aquela primeira "não encara apenas o real em termos de suas potencialidades, mas também em termos de um modelo." A segunda, "por outro lado, tenta encarar o real como produto de fatores reais; também tenta compreender o modelo em termos do real (...). A primeira atitude significa que sempre se conhece e se julga as instituições como um todo, a segunda sempre significa perder-se numa massa de detalhes" (Mannheim, 1981, p. 120).

A exposição dos problemas e das soluções eram feitas por Perdigão Malheiros sempre através de ataques a esta massa de detalhes da realidade social. Tinha-se, assim, a construção de uma perspectiva de análise da sociedade brasileira, em A escravidão no Brasil, que expressava um modo de refletir, de compreender e de propor modificações ao processo sociopolítico em curso.

Dentre as fórmulas propostas por Perdigão Malheiros para amenizar os conflitos, ante as mudanças que se faziam necessárias, estava a de que o Estado, no plano objetivo, deveria indenizar os senhores proprietários que libertassem os seus escravos e, no subjetivo, deveria propagar novos valores morais para que a sociedade (diga-se, a grande lavoura) não fosse prejudicada com a extinção da instituição servil. Desenvolver o amor ao trabalho entre os libertos era parte deste processo (cf. Malheiros, 1944, p. 151-153). Tem-se aqui alguns dados extremamente importantes que já marcavam um modo singular de pensar a realidade sociopolítica brasileira. Além da questão da conciliação que se vem destacando, é interessante marcar, também, o apelo para que o Estado indenizasse os senhores, pois estes estariam fazendo um favor à sociedade em alforriar os escravos.

O Estado, que já tinha oferecido todas as condições para que os proprietários obtivessem braços escravos através da manutenção da instituição servil, deveria, ainda, indenizá-los pelas alforrias. O Estado era apresentado como aquele que deveria resolver os problemas de um determinado grupo que precisava, segundo Perdigão Malheiros, de incentivo para se empenhar na causa da extinção da escravidão.

A escravidão era apresentada como algo que maculava moralmente a sociedade; no entanto, ao requerer indenização do Estado para os proprietários que libertassem os seus escravos, assistia-se ao delineamento de uma proposta de mudança social que escondia em suas entrelinhas quem tinha se beneficiado durante os séculos de escravidão. Retirava-se, deste modo, dos setores preponderantes, quaisquer responsabilidade pela existência da escravidão.

A escravidão tinha que ser abolida, também, porque ela estava isolando o país do mundo civilizado, segundo Perdigão Malheiros. Mesmo com alguma dor, era preciso extirpá-la, pois não era mais possível "resistir à corrente de opinião, das idéias, sobretudo hoje que estamos isolados no mundo civilizado em relação a semelhante questão. A oposição, a resistência é impossível, e até seria do maior perigo" (Malheiros, 1944, p. 156).

A discussão de Perdigão Malheiros sobre a forma de mudança que deveria ser posta em andamento, tendo em vista as circunstâncias vigentes, revelava a constituição das raízes de um modo ímpar de pensar as mudanças sociais e políticas no Brasil, que se singularizou pelo século XX afora. Ou seja, em geral, as modificações sempre foram justificadas a partir de uma suposta impossibilidade de que elas ocorressem de outra maneira. Todos passam a ser convocados para apoiar as mudanças ou a continuidade, tendo em vista as condições vigentes.

Foi exatamente desta maneira que Perdigão Malheiros construiu a sua obra A Escravidão no Brasil. Na sua concepção de mudança como algo circunstancial, encontra-se o ponto de conexidade entre este livro, que era considerado um avanço para a época, e a inflexão conservadora que ele teve no Congresso do decorrer da década de 1870, como deputado e defensor da manutenção da instituição servil, até que as condições fossem mais favoráveis para a sua eliminação.

"O melhoramento da sorte dos escravos, assim como (...) a abolição da escravidão, não são atos somente de humanidade e caridade, sem outros efeitos. Ao contrário, eles refletem direta ou indiretamente na própria sociedade; são um bem público. (...) É certo que o escravo é aí o primeiro e o mais interessado; ele ganha em ser melhor tratado, em não sofrer certos castigos ou excessos deles, em se lhe concederem certos direitos quando mesmo escravo, em poder aspirar a libertar-se, em receber alguma educação ao menos moral e religiosa, em se lhe respeitar a família e até certo ponto a propriedade etc. Por isso mesmo ele se aperfeiçoa, se faz melhor, para vir um dia a ser útil a si e à sociedade quando livre seja" (Malheiros, 1944, p. 157).

Verifica-se que sua grande preocupação era destacar que a mudança social anunciada deveria ser antecedida pelo enquadramento do escravo aos valores morais e religiosos da classe preponderante. A sociedade é que lucraria com isso na medida em que se estabeleceria, assim, uma verdadeira ordem pública, tendo em vista a criação de efeitos morais que levariam a uma "maior brandura dos costumes, progresso e civilização" (Malheiros, 1944, p. 158).

O aperfeiçoamento moral nos padrões do homem branco, livre e dominante é que dava a tônica ao ideário sobre mudança social que Perdigão Malheiros ajudou a sedimentar com a sua obra A escravidão no Brasil. A civilização a ser construída no país, a partir deste desenvolvimento de um espírito de enquadramento ao que os setores preponderantes consideravam como modos de operar o progresso, fundar-se-ia na associação e na convergência de interesses a favor da sociedade brasileira.

O espírito de associação era tido por ele como elemento básico de progresso e civilidade. Em seus escritos ficavam delineados os traços de um ideário sobre mudança social pautados na eliminação das possibilidades de embates que cresceriam com a abolição e com a implantação de uma sociedade livre. Se o ideário progressista se nutre, como afirmou Mannheim, de sua consciência da possibilidade, o sistema de idéias e valores conservador se nutre da busca de elementos que levem ao controle de toda e qualquer possibilidade (cf. Mannnheim, 1981, p. 112).

Isto deve ser compreendido tendo em vista que o conservadorismo se desenvolveu tendo como base as diferenças sociais (cf. Mannheim, 1981, p. 110). O controle da possibilidade só tem sentido a partir do momento que se concebe a existência de grupos com "diferentes funções em relação ao processo social" (Mannheim, 1981, p. 109). No caso do Brasil, esta percepção levava, no final do século XIX, a uma insistência de que nossas diferenciações eram conciliáveis nos planos social, cultural e político.

Tem-se claro, portanto, que "as diferenças sociais se refletem não somente em diferentes correntes de pensamento, mas, também, na diferenciação, num plano mais geral, do clima mental de uma época. Não apenas o pensamento, mas mesmo a maneira de experimentar emocionalmente as coisas, varia com a posição das pessoas na sociedade" (Mannheim, 1981, p. 90).

Aureliano Cândido Tavares Bastos e a problemática da mudança social

A obra A província, de Tavares Bastos, que será analisada neste artigo, foi editada pela primeira vez em 1870. Trata-se de um estudo sobre a necessária descentralização política no Brasil, daí sua ênfase na relação centralização e federação e na forma de organização das instituições provinciais, tais como a assembléia, a eleição do presidente da República, a municipalidade, a polícia e ajustiça.

Nesta obra, Tavares Bastos fez um estudo detalhado da necessidade de descentralização do Brasil. Suas discussões sobre as reformas políticas do século XIX, por exemplo, não propunham uma sublevação das condições vigentes, mas sim a aplicação de alguns corretivos que resolvessem, por exemplo, a relação entre centralização e federação12 12 Raymundo Faoro afirma que Tavares Bastos, filiado ao Partido Liberal, "elevava a doutrina liberal à categoria de dogma." Em Cartas do Solitário, este último diz: "pedi que o governo seja só governo, que distribua a justiça, mantenha a ordem, puna o crime, arrecade o imposto, represente o país; mas que não transponha a meta natural, mas que não se substitua à sociedade. (... ) Para nós, só há uma política possível, um dever, um culto: melhorar a sorte do povo. Mas como? Observando a lei da natureza, isto é, fecundando as fontes vivas do trabalho, instrumento divino do progresso humano; isto é, restituindo à indústria a sua liberdade, a liberdade sim! porque ela quer a concorrência universal, a multiplicidade das transações, a barateza dos serviços, a facilidade dos transportes, a comodidade da vida" (Bastos, A. C. T. Cartas do solitário apud Faoro, 1989, p. 501-502). . Deste modo, o empenho para situar as possíveis mudanças sociais no âmbito da ordem reafirmava, também, a não-substancialidade das mesmas.

A análise da obra de Tavares Bastos, assim como a dos demais pensadores aqui analisados, desvendam, por um lado, os caminhos que o Brasil percorria em termos de mudanças sociais e políticas. Por outro, aponta para a necessidade de tomar as suas reflexões de modo não desvinculado dos grupos sociais aos quais eles pertenciam não somente a partir de seus compromissos políticos, mas, principalmente, em termos de concepção de mundo. A sua idéia de descentralização como forma de se operar modificações de ordem política e social expressava as nuances básicas do liberalismo brasileiro daquele momento13 13 Mannheim discute em seu artigo sobre o pensamento conservador o processo de interpene-tração de elementos conservadores no liberalismo europeu e vice-versa. "Vê-se claramente que o conservadorismo havia aprendido alguma coisa do liberalismo, do qual ele absorveu tanto o conceito de 'separação das esferas' como a existência de uma 'mão oculta' que realiza a harmonia universal" (Mannheim, 1981, p. 117). Tais informações são importantes para aqueles que desejem estudar o liberalismo no Brasil. .

Assim como a obra de Perdigão Malheiros assumia "o caráter definido de um recurso de interpretação" (Fernandes, 1976, p. 33) da sociedade brasileira, também o fazia a obra de Tavares Bastos. A opção de análise do livro A província e não Cartas do solitário (Bastos, 1938) deve-se ao fato de que aquele primeiro tem como problema central a formulação de uma proposta de reforma política para o país dentro da perspectiva do liberalismo brasileiro. O segundo será mencionado na medida em que se fizer necessário e oportuno.

Antes de entrar nas pressuposições de Tavares Bastos sobre a necessidade de operar mudanças políticas no país é preciso, em primeiro lugar, apresentar rapidamente a sua participação no debate que vigorava nas décadas de 1860 e 1870, a respeito de nossa organização econômica e político-administrativa.

Todos os trabalhos que buscaram compreender o Brasil durante o Segundo Reinado trataram das idéias de Tavares Bastos14 14 Uma importante análise das idéias de Tavares Bastos foi feita em Vianna (1997). . Raymundo Faoro, em Os donos do poder, nos capítulos sobre "O renascimento liberal e a República" e "As tendências internas da República Velha", faz várias menções às posições que aquele ocupava no debate político da época (cf. Faoro, 1989). As obras Evolução política no Brasil, de Caio Prado Júnior (1987), História geral da civilização brasileira, O Brasil monárquico, de Sérgio Buarque de Holanda (1972), dentre outras, trazem contribuições importantes para se compreender a concepção de mudança social em Tavares Bastos.

Não é possível, no âmbito deste artigo, fazer uma análise completa da obra deste e/ou dos demais pensadores aqui estudados, mas somente levantar aqueles traços capazes de conduzir a uma compreensão do processo de construção de um dado sistema de idéias e valores acerca da mudança social. Para extrair de seus escritos dados que venham elucidar o aspecto específico que se está propondo estudar, faz-se necessário apreender o contexto social e o embate político a respeito das alterações que ocorriam na sociedade brasileira15 15 "Desse ano de 1868 se projetará a ruína do Império, não como se afirma sempre, pelo golpe de Estado que arrebatou o posto a um gabinete com maioria na Câmara dos Deputados - fato com muitos precedentes - mas pela ruptura imprudente do quebra-mar construído pela mais fina arte monárquica, sem que a Coroa, insensível à violência da tempestade, nada ceda para conjurar o desastre. (... ) Daqui por diante, (... ) o Partido Conservador não terá mais nenhuma missão: será apenas o resfriador das reivindicações liberais, realizando-as para amortecê-las" (Faoro, 1987, v. 2, p. 444-445). .

Tavares Bastos era um dos mais importantes membros do Partido Liberal na época do Império. Seus escritos a respeito dos impostos provinciais, do sistema fiscal, da descentralização e da federação, do tráfico interprovincial de escravos16 16 "Já em 1861, Tavares Bastos havia defendido o tráfico interprovincial com o argumento de que, 'se as províncias do norte perdem momentaneamente com isso, ganharão mais tarde, já porque possuirão menor número de escravos, já porque isso atrairá para elas os imigrantes" (Melo, 1984). , da imigração, do trabalho livre17 17 "o tráfico constituía, como assinalara Tavares Bastos, um bem definitivo, ao permitir às províncias setentrionais apressar, sem prejuízos, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre" (Melo, 1984). , da instituição servil, dentre outros, são representativos das principais discussões que floresciam no Senado e na Câmara dos Deputados, no final da década de 1860 e no decorrer da seguinte18 18 Somente a título de esclarecimento, deve-se destacar que em 1862 formava-se a liga progressista, "gerada no Governo do gabinete Caxias, sob o fundamento de que os partidos estavam extintos (...). Com essa ponte passam do campo conservador para o liberal, chefes da expressão de Zacarias de Góes e Vasconcelos, Nabuco, Sinimbu, Saraiva e Paranaguá, dentre outros" (Faoro, 198, p. 444). O campo liberal era dividido em duas facções: os liberais históricos e os progressistas. Somente em 1868, houve a fusão destas duas alas tendo em vista a queda do Gabinete de Zacarias de Góes e Vasconcelos e a ascensão de um gabinete conservador. Os liberais unem-se, pois sentiram-se traídos de modo abrupto pelos conservadores e pelo imperador. A união, no entanto, não amalgamou todos os setores. Ou seja, aquele que se congregava em torno do jornal Opinião Liberal "não se submet(ia) ao apaziguamento reformista" que passava a dominar o partido. Rangel Pestana, Luiz Monteiro de Souza e Limpo de Abreu faziam parte da chamada ala radical que identificava liberalismo com democracia, sem, em alguns casos, sequer refutar a monarquia. "À ilharga do movimento, além do ex-ministro Liberato Barroso e do senador Silveira da Mota, duas vigorosas personalidades alimentam o entusiasmo e insuflam idéias novas: Silveira Martins e Tavares Bastos" (Faoro, 1989, p. 448-449). .

Os escritos de Tavares Bastos a respeito destes elementos levantados no parágrafo anterior devem ser analisados à luz de um modo de reflexão que florescia no país. Suas idéias somente são compreendidas tendo em vista os primeiros passos decisivos no sentido de uma mudança política que estava em andamento: a proclamação da República.

A província

O prefácio anônimo da obra em epígrafe traz em seu primeiro parágrafo a afirmação de que a inspiração que tinha animado a sua realização não era de modo algum conservadora, mas sim, completamente oposta a este sentimento. "Os que desejam a eternidade para as constituições e o progresso lento para os povos, os que são indulgentes, moderados, conciliadores, escusam folhear este livro" (Bastos, 1937, p. 11).

O pensamento conservador era tido como a expressão da indulgência, da moderação e da conciliação. Nas condições vigentes nas últimas quatro décadas do século XIX, era reveladora a tentativa do pensamento liberal de se mostrar anticonciliador, tendo em vista que suas ações no Congresso, por exemplo, iam também no sentido de "vestir um país ainda preso à economia escravocrata, com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa" (Holanda, 1987, p. 46).

O livro A província foi apresentado ao público-leitor, em 1870, como uma reação contra os homens sem fé nos destinos da democracia, estes eram denominados de ornamentos do Parlamento brasileiro que não lutavam a contento a favor da liberdade "contra a força, do indivíduo contra o Estado" (Bastos, 1937, p. 13).

A crítica à ação dos líderes do partido conservador acabava por fortalecer um ideário pautado na recusa de que o indivíduo pudesse ser o condutor de qualquer mudança social, o que conduzia Tavares Bastos de encontro com um princípio do próprio conservadorismo político que é "uma estrutura mental objetiva, em oposição à 'subjetividade' do indivíduo isolado. Não é objetiva no sentido de ser eterna e universalmente válida. Nenhuma dedução a priori pode ser feita dos 'princípios' do conservadorismo. Nem ele existe independente dos indivíduos que o realizam na prática e que o incorporam em suas ações. Não é um princípio imanente com leis de desenvolvimento determinadas que os indivíduos membros do movimento apenas desenvolvem - provavelmente de forma inconsciente - sem adicionar nada de si próprios. Resumindo, o conservadorismo não é uma entidade objetiva no sentido platônico correto ou incorreto da preexistência das idéias. Mas, comparado com a experiência (...) do indivíduo particular, ele tem uma certa objetividade bastante definida" (Mannheim, 1981, p. 103).

A reforma política defendida pela obra de Tavares Bastos, aqui analisada, fundava-se em uma suposta necessidade de limitar o poder do governo federal. A descentralização era apontada, então, como o passo definidor deste processo. "É o sistema federal a base sólida de instituições democráticas. Limitar o poder, corrigi-lo, desarmando-o das faculdades hostis à liberdade" (Bastos, 1937, p. 13) era enfatizado como algo, absolutamente, urgente.

Para ele, a obra da centralização havia sido funesta em todas as sociedades. Tavares Bastos afirmava que era "absurdo esperar (...) a prosperidade de um regime" (Bastos, 1937, p. 18) que não estivesse pautado em princípios liberais. Argumentava, ainda, que os efeitos morais e políticos da descentralização seriam de tamanha monta que resolveriam grande parte de nossas dificuldades econômicas, sociais e políticas.

"Do mérito das instituições humanas se julga pelos seus resultados: ora, um resultado moral, outro político, ambos estreitamente ligados" (Bastos, 1937, p. 18). O desenvolvimento daquele primeiro era tido como algo essencial para a sociedade brasileira, tendo em vista que expressava a criação de um forte sentimento de responsabilidade no povo. Isto somente poderia ser feito por alguns homens considerados capazes de conduzir a sociedade brasileira no sentido das alterações que se faziam necessárias.

A ênfase de Tavares Bastos na estreita ligação entre mudança e responsabilidade moral é elucidativa, tendo em vista que, para ele, aquela primeira só seria possível a partir de um processo que instaurasse uma busca constante da segunda. É detectável que suas posições tinham elementos conservadores e liberais. Ele insistia ao mesmo tempo em que o problema político brasileiro era um fenômeno moral19 19 Sobre o pensamento conservador e a sua compreensão da desorganização social como um fenômeno moral, cf. Nisbet (1986, p. 69). , mas não considerava possível pensar este último em termos de "primazia da sociedade sobre o indivíduo" (Nisbet, 1986, p. 66).

O pressuposto liberal de que o indivíduo deve se empenhar na busca da felicidade era enfatizado por ele da seguinte maneira: "A história do progresso humano não é mais, com efeito, que a das fases do desenvolvimento ou compreensão desse divino atributo da criatura, a que se dá geralmente o nome de liberdade. A grande massa do bem, isto é, do progresso realizado em um século, 'é a soma acumulada de produtos da atividade dos indivíduos, das nações e dos núcleos que compõem as nações, neste século'" (Bastos, 1937, p. 19).

Mesmo não desconsiderando os aspectos políticos, Tavares Bastos enfatizava as conseqüências morais do sistema político vigente no Brasil durante o Império, as quais não possibilitavam o desenvolvimento do "exercício constante da liberdade, o sentimento do poder individual (e) da responsabilidade pessoal" (Bastos, 1937, p. 20). A liberdade aparecia, assim, como o objetivo básico de sua proposta de mudança social, no sentido da descentralização, a qual era tomada quase que exclusivamente como sinônimo da possibilidade de vencer a inércia, o desalento e o ceticismo que vigiam na sociedade brasileira.

"Nesses dias nefastos em que o poder, fortemente concentrado, move mecanicamente uma nação inteira, caracterizam o estado social a inércia, o desalento, o ceticismo, e, quem sabe, a baixa idolatria do despotismo, o amor às próprias cadeias. Daí a profunda corrupção das almas, abdicando diante da força ou do vil interesse. E não é nas classes inferiores somente que lavra a peste: os mais infeccionados pelo vício infame da degradação, são o que se chama as classes elevadas" (Bastos, 1937, p. 20).

Tavares Bastos não acreditava na possibilidade de as massas intervirem no sentido de reforma política e moral da sociedade em geral, e da brasileira, em particular. As ações destas eram, além de difíceis, também inúteis, para produzir as modificações necessárias. Aparecia como fato normal e, até natural, que a república que se prenunciava como uma mudança significativa ocorresse, assim, numa dimensão não-alcançável para a grande maioria da população.

A descentralização política que tinha como um dos objetivos a distribuição dos poderes entre as províncias e municípios era pensada, por Tavares Bastos, como um modo de evitar, inclusive, a insurreição do povo, ou das massas. As reformas políticas e morais eram, nitidamente, um meio de controle das possibilidades existentes nos regimes centralizados de emergência de "tempestades revolucionárias" (Bastos, 1937, p. 23). A centralização poderia, deste modo, provocar uma verdadeira revolução social pela perversidade de suas tendências políticas. A república federativa era apontada, assim, como a maneira de se evitar que isto ocorresse, na medida em que ela não repeliria a iniciativa particular e o progresso (cf. Bastos, 1937, p. 21).

A proposta de Tavares Bastos era clara: deveria se operar uma reforma política, através de um pacto social, no interior do sistema de poder vigente. O regime federativo e a república seriam, assim, soluções que se processariam no âmbito da ordem social existente, a qual seria renovada na medida em que fossem multiplicados os focos de vitalidade já existentes nas províncias.

A centralização político-administrativa, durante o Império, era tida, por Tavares Bastos, como a base da impossibilidade de funcionamento do processo eleitoral brasileiro. O sufrágio não se manifestava livremente, segundo ele e, portanto, não possuía eficácia. Não haveria, deste modo, possibilidade de mudança caso continuasse "concentrada a polícia, o juiz dependente do governo, a guarda nacional militarizada, toda a administração civil hierarquicamente montada, o governo das províncias preso por mil liames ao governo supremo, as dependências da centralização, os interesses formados à sua sombra" (Bastos, 1937, p. 37-38).

A mudança política dar-se-ia a partir da reestruturação destes elementos apontados como os responsáveis pelo entorpecimento que corrompia o nosso espírito público. Tavares Bastos considerava que haveria uma modificação na essência da sociedade brasileira se os mecanismos que sustentavam a centralização fossem alterados. Verifica-se que, em nenhum momento, ele fazia qualquer menção à questão da exclusão política que sedimentava a ordem social em vigor.

Havia uma crítica ao sistema representativo e ao governo. No entanto, a sua insistência ia sempre no sentido de que os vícios da política brasileira estavam atrelados, incontestavelmente, à centralização imposta pelo Império. Ou seja, vinham de cima para baixo e só encontravam ressonância entre os mantenedores do sistema representativo pela impossibilidade de reação destes últimos. Estabelecia-se, assim, uma maneira de justificar a atuação dos parlamentares. Todas as suas práticas eram apontadas como a única forma possível de inserção no jogo político ditado pelo poder centralizado.

"Descentralizai o governo; aproximai a forma provincial da forma federativa; a si próprias entregai as províncias; confiai à nação o que é seu; reanimai o enfermo que a centralização fizera cadáver; distribuí vida por toda a parte: só então a liberdade será salva. A liberdade pela descentralização, tal é o objeto do estudo que empreendemos sobre a província no sistema político do Brasil, qual existe, e qual tentara organizá-lo a revolução de 1831" (Bastos, 1937, p. 40).

Tavares Bastos procurava, em sua proposta de reforma política, criticar os membros do Partido Conservador que se pautavam na idéia de que faltava ao povo "capacidade para o governo livre." Para ele, estes últimos "atira(vam) para o mundo das utopias as idéias democráticas" ao afirmar que se o povo é mal, o governo não pode ser bom. Há neste ponto algo que desnuda o empenho de Tavares Bastos no sentido de se distinguir das máximas daquele partido. No entanto, era visível uma enorme dificuldade na medida em que, segundo ele, tinha havido uma verdadeira corrupção dos sentimentos, da moral e das virtudes da população no decorrer de nossa história.

Ele insistia que o povo não estava preparado para a liberdade e, portanto, as instituições corriam sempre um eminente perigo. E ao tomar a idéia de liberdade de modo abstrato, sua perspectiva se inscrevia no âmbito do pensamento conservador.

"O liberal revolucionário pensa abstratamente em termos do possível e não do real, se apega com um 'otimismo abstrato' ao princípio da igualdade universal, ou pelo menos de igual oportunidade entre os homens e não concebe nenhum limite para a liberdade do indivíduo a não ser aquele determinado pela existência de outros homens. Mas, o pensador romântico (conservador) vê a liberdade limitada pelo que Simmel chamou de 'a lei individual' de desenvolvimento, dentro da qual cada um deve encontrar definidas tanto suas potencialidades como suas limitações" (Mannheim, 1981, p. 116).

Em que sentido a idéia de Tavares Bastos enquadra-se dentro da perspectiva conservadora acerca da liberdade? Os teóricos do pensamento conservador, diz Mannheim, empenharam-se, no século XIX, em criar uma "idéia qualitativa de liberdade para a distinguir do conceito igualitário revolucionário". Partindo do pressuposto de que os homens são desiguais sob todos os seus aspectos, a "liberdade, só pode consistir na habilidade de cada homem de se desenvolver sem impedimentos ou obstáculos" (Mannheim, 1981, p. 115-116).

A centralização política impedia, por exemplo, que cada homem desenvolvesse suas virtudes, o sentimento de responsabilidade, o patriotismo e a paixão do progresso20 20 Tavares Bastos ressaltava na segunda parte do livro A província que tinham havido diversas tentativas de descentralizar o país no século XIX (cf. Bastos, 1937). . A sua idéia de liberdade encontrava-se assentada na perspectiva de que cada indivíduo encontraria, sem dúvida, com a autonomia das províncias, ou seja, com a descentralização, os meios de combate dos vícios políticos que condenavam o país à tutela do governo21 21 A proposta de mudança social de Tavares Bastos partia do pressuposto de que o país não tinha um povo, mas sim um império (cf. Bastos, 1937, p. 87). .

Ao tomar a descentralização política como uma mudança decisiva na modificação dos indivíduos no sentido de que a eles seriam dadas as condições para romper com todos os seus vícios, vimos que Tavares Bastos acabou por pegar a trilha construída pelo pensamento conservador que transformou "a liberdade em um assunto referente apenas ao lado privado e subjetivo da vida, enquanto todas as relações sociais externas estavam subordinadas ao princípio da ordem e da disciplina" (Mannheim, 1981, p. 117).

Criticando os membros do Partido Conservador, Tavares Bastos afirmava que, nas suas propostas de mudanças e reformas, aqueles se limitavam "a retoques e a concessões" que só atingiam a superfície do sistema de poder vigente. Ele considerava sua própria proposta distinta e argumentava que, "quanto a nós, não bastaria despojar o poder executivo central de certas atribuições parasitas; fora preciso fundar em cada província instituições que eficazmente promovam os interesses locais" (Bastos, 1937, p. 44).

Tavares Bastos denominava mudança decisiva o desenvolvimento de assembléias legislativas22 22 Para Tavares Bastos, o governo centralizado teria atuado entre as décadas de 1830 a 1870 no sentido de amesquinhar o poder legislativo provincial. Ele propunha que este último deveria ser dividido em duas câmaras. Seriam criado, assim, os senadores provinciais, isto é, uma segunda câmara legislativa na província. "É a divisão do poder legislativo em dois ramos indispensável à sua dignidade, não raras vezes comprometida pelos inevitáveis excessos e atos irrefletidos de uma assembléia única. (... ) Os senados provinciais não representariam, pois, o interesse da liberdade somente; seriam, antes de tudo, um elemento conservador. Seu mérito principal consiste, porém, na eficácia, prestígio e dignidade que dariam ao poder legislativo provincial" (cf. Bastos, 1937, p. 117-118). e eleições provinciais23 23 "os membros da primeira câmara provincial, a dos representantes, seriam eleitos pelos municípios, votando os eleitores em paróquias. Cada município nomearia três representantes, cabendo a cada eleitor dois votos somente. Os membros do senado provincial, porém, haviam ser nomeados pelos eleitores da província inteira, votando igualmente em paróquias e em dois terços dos nomes. Duraria seu mandato quatro anos, renovando-se pela metade em cada eleição da outra câmara. Exigir-se-ia a condição de uma idade mínima, trinta anos por exemplo. O número de senadores, certamente limitado, nunca deverá ser menor de doze" (cf. Bastos, 1937, p. 120-121). Deste modo, seriam criadas verdadeiras legislaturas democráticas, observava Tavares Bastos. , a autonomia municipal, organização policial de caráter local, sistema de justiça para resolver assuntos da competência provincial, estruturação do ensino (público e privado) nas províncias, tributação e despesas locais e definição de até onde se estenderia a competência da província nos diversos assuntos.

Uma reforma estabelecida nestes termos promoveria, segundo ele, os interesses locais e tiraria a população do limbo do não-interesse pelas questões políticas do país. Obviamente que era, também, bastante vaga a noção de população que ele utilizava, bem como a idéia de que era necessário desenvolver, no interior desta, um sentimento de responsabilidade e um apego ao progresso.

Um dos elementos que se pode apreender nas entrelinhas de sua análise é a simpatia por uma espécie de conciliação que levaria a ajustes entre as condições políticas já existentes e as novas que adviriam da implantação e sedimentação das instituições provinciais. Sua crítica aos membros do Partido Conservador ia sempre no sentido de que estes reagiam de modo contrário a este processo de descentralização, ou seja, "limitando a autoridade das assembléias provinciais" (Bastos, 1937, p. 95).

No interior da forma política centralizada que vigia no Brasil, naquele período, Tavares Bastos propunha um processo de criação da autonomia provincial de modo gradativo e crescente. Isto traria mudanças para o país como um todo tendo em vista que, para ele, havia uma índole da província diferente da índole do governo geral, cabendo àquela estruturar a nossa organização política.

Mesmo criticando a centralização em vigor, ficava claro em seus escritos que as mudanças deveriam absorver alguns elementos que norteavam a política brasileira. Ele não questionava, portanto, como as supostas mudanças poderiam acabar sendo dissolvidas no interior daquelas condições sociais. Mantido intacto, por exemplo, o problema da exclusão social e política, todas as mudanças, como dizia Sérgio Buarque de Holanda, "teriam de ser superficiais e artificiosas" (Holanda, 1987, p. 46).

Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo e a questão da mudança social

Joaquim Nabuco expressava através de suas obras uma contundente preocupação com as possibilidades, caminhos e descaminhos da mudança social no Brasil. A sua atuação como intelectual e político, nas três últimas décadas do século XIX e na primeira do século seguinte, foi marcada por reflexões e indagações acerca das modificações pelas quais passava o país24 24 "Entre 1879 e 1888 (Joaquim Nabuco) é o abolicionista de vanguarda, entre 1889 e 1898 o monarquista errante e recluso, entre 1899 e 1910 o diplomata monroísta. (... ) Em 1879 ele ingressa na Câmara e tem início a fase terminal da campanha abolicionista que culminaria em 1888; em 1889 a república encerra sua carreira parlamentar e o mergulha numa década de recolhimento e meditação; em 1899 retorna à ativa com a aceitação do convite para dirigir a defesa brasileira na disputa territorial com a Guiana Inglesa" (Nogueira, 1984, p. 17). .

Como assinala Marco Aurélio Nogueira, Joaquim Nabuco "sentiu e refletiu a transição. Participou dela, colaborou e resistiu. Em boa parte, foi um de seus construtores, até mesmo naquilo que teve de indesejável: detonadas as forças da mudança, nem sempre é possível controlar todos os desdobramentos" (Nogueira, 1984, p. 16).

Somente a título de contextualização histórica é interessante mencionar que "no espaço de sessenta anos - exatamente o vivido por (...) (Joaquim Nabuco) -, um novo país projetou-se para o futuro, começou a deixar-se contagiar pelo moderno. Um lento, irregular e doloroso terremoto sacudiu as estruturas daquela sociedade rarefeita que pulsava quase em silêncio e fracamente, como se seus centros nervosos fossem frágeis demais para imprimir ritmo e dar o tom ao conjunto todo. A autocracia imperial, até então toda-poderosa, decompôs-se, abriu espaços, perdeu bases de sustentação. Um golpe militar calmamente selou sua sorte e, por alguns anos, o país viveu a expectativa de uma grande transformação em seu modo de ser e de fazer política.

"É verdade que as mudanças em curso deitavam raízes fundas na sociedade. Não implicavam porém na inteira subversão da velha estrutura. Sacudiam-na, mas não a destruíam; revolucionavam-na, mas preservavam muito do existente. Como que em conseqüência, um liberalismo conservador, quase nada democrático, retomou o comando da sociedade e à base de uma engenhosa mas perversa articulação entre os localismos edificou novo sistema excludente, nominalmente federativo, democrático e representativo. Embora modernizan-do-se, a sociedade continuou sem classes nacionalmente organizadas e com um Estado autoritário hipertrofiado" (Nogueira, 1984, p. 16).

Nestas condições urgia buscar meios de reformar o Império25 25 Raymundo Faoro afirma: "Os monarquistas e federalistas, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, só por meio da mudança radical viam a salvação do Império" (Faoro, 1989, p. 462). . Joaquim Nabuco, um dos mais importantes políticos daquele período, atuava insistentemente no Parlamento, enquanto membro do Partido Liberal, para que algumas modificações viessem dar nova vida ao regime monárquico. No entanto, cabe observar que este último instrumentava um Estado patrimonial e não um Estado liberal. Isto apontava para os arranjos espúrios que faziam do liberalismo brasileiro uma presa da ordem social vigente (cf. Nogueira, 1984).

Não é possível, no âmbito deste trabalho, expor as inúmeras singularidades e ambigüidades do liberalismo brasileiro na segunda metade do século XIX. Marco Aurélio Nogueira, ao analisar a obra de Joaquim Nabuco, faz uma discussão significativa sobre "a vitória de uma visão conservadora do liberalismo" na época do Império no país.

"Sob as frustrações e desventuras do democratismo liberal, ergueu-se e consolidou-se um sistema monárquico de tipo parlamentarista que - amoldando-se às características do país e reforçando-as - cimentou um mecanismo institucional alimentado por um jogo político de poucos parceiros. Com ele, o país conheceu uma longa época (cerca de três décadas) de aparente estabilidade, modernização e progresso material, com os conflitos controlados de 'cima', reformas postergadas ad nauseum e importantes traços coloniais reproduzidos" (Nogueira, 1984, p. 20).

A compreensão do modo como Joaquim Nabuco se inseria no interior do liberalismo brasileiro passa pela análise pormenorizada de sua atuação parlamentar. Ou seja, seria preciso recuperar seus posicionamentos, enquanto membro do partido, não somente no que se refere ao abolicionismo, mas também com relação ao tráfico interprovincial, à política de imigração, reformas financeiras, transferências de capitais de uma província para outra, sistema de créditos para grandes lavouras, impostos provinciais, dentre outras questões. No entanto, não é possível dar conta de tamanha empreitada no âmbito deste artigo.

Dentre as diversas questões apontadas no último parágrafo, esta análise versará quase que exclusivamente sobre a abordagem de Joaquim Nabuco em O abolicionismo. Acredita-se que esta obra deve ser tomada como exemplo de como a mudança social era enfocada no período em que este político e pensador atinge o ápice de suas reflexões acerca da necessidade de que houvesse modificações na sociedade brasileira.

Nesta obra, há uma enorme tensão, pois ele tinha que lidar com duas problemáticas de grande porte e conseqüências, ou seja, a abolição e as dificuldades da monarquia. "Muito da singularidade de Nabuco, aliás, deriva do fato de ter associado a defesa da forma monárquica de governo à causa da abolição, o que era pouco comum na época e não deixava de ser um eloqüente exemplo de moderação" (Nogueira, 1988, p. 11).

Não há como analisar todo o processo vivenciado e refletido por Joaquim Nabuco. Não será possível, no entanto, examinar a sua obra como um todo; optou-se, então, pela análise do livro O abolicionismo (1988) na sua totalidade. Um estadista no império (1975), Minha formação (1976), Campanha abolicionista no Recife (1885) e Discursos parlamentares (1949a) serão utilizados parcialmente, ou seja, somente naqueles aspectos que ofereçam maiores subsídios para se compreender a sua concepção de mudança social.

Dentre as várias obras, por que a opção pela análise de O abolicionismo? Acredita-se que é neste livro que Joaquim Nabuco elevou a sua concepção de mudança a um patamar mais avançado. Antônio Cândido afirma que "é notável a história desse aristocrata que conseguiu sair por algum tempo do círculo de interesses de sua classe, e a quem o movimento abolicionista deu uma clarividência assombrosa, que durou cerca de dez anos. Durante esse lapso ele enxergou além do seu tempo e teve uma noção correta da sociedade brasileira real" (Mello e Souza, 1990, p. 7).

É fundamental assinalar que mesmo assim não houve rompimento de Nabuco em O abolicionismo, ou em qualquer outra obra, com o ideário conservador. É inegável a sua lucidez com relação aos problemas sociais e políticos brasileiros. Pode-se dizer que ele reinventou de modo singular o modo conservador de pensar a sociedade brasileira daquele momento.

Raymundo Faoro pergunta: "Surpreende o contraste entre o Joaquim Nabuco nostálgico e o Joaquim Nabuco abolicionista? Como abolicionista, ele foi tachado de anarquista, comunista, (...) mas, no fundo, o renovador era um aristocrata, também ele um liberal utilitário" (Faoro, 1976, p. 6).

De que modo é possível fazer uma leitura dos radicalismos (cf. Mello e Souza, 1990) de Joaquim Nabuco no âmbito desta afirmação de Faoro? Acredita-se que a análise deve ser encaminhada em termos de reflexão sobre aquilo que Mannheim denominou de ação conservadora, a qual "depende sempre de um conjunto concreto de circunstâncias". Deste modo, fica evidenciado que "a ação ao longo de linhas conservadoras (em qualquer caso da esfera política) envolve mais do que respostas automáticas de um certo tipo; significa que o indivíduo é guiado consciente ou inconscientemente por uma forma de pensamento e ação que tem sua própria história atrás de si, anterior ao contato com o indivíduo. Esse contato com o indivíduo pode, em determinadas circunstâncias, mudar em certa medida o desenvolvimento deste modo de pensamento e de ação, mas, mesmo quando o indivíduo particular não estiver mais participado dele, terá sua própria história e desenvolvimento à parte do indivíduo" (Mannheim, 1991, p. 103).

A ação conservadora está fundada em uma "estrutura mental objetiva" que incorpora e é, ao mesmo tempo, incorporada pelo indivíduo. Portanto, as posições de Joaquim Nabuco não podem ser tomadas simplesmente como reações momentâneas de radicalidades (no caso do abolicionismo, por exemplo) que o lançavam para fora do conservadorismo. Uma das essências deste último é, exatamente, a sua dinâmica no processo de defesa de coexistências e não de sucessão, o que é feito tendo em vista as "circunstâncias que mudam de época para época" (Mannheim, 1981, p. 106).

A tentativa de conciliar o passado e o presente foi um dos elementos centrais da perspectiva de mudança social e política de Joaquim Nabuco. Não lhe parecia existir qualquer problema em defender a monarquia, a democracia, a abolição e o liberalismo ao mesmo tempo. Tanto que em Minha formação ele afirmava que "a grande questão para a democracia brasileira não (era) a monarquia, (era) a escravidão" (Nabuco, 1976, p. 115).

O passado monárquico não era tido como desabonador de nossas possibilidades de reformas sociais. As condições do presente, nos seus aspectos sociais e econômicos, tornavam urgentes uma modificação no regime de produção escravocrata que estaria, naquele momento, mergulhando a sociedade brasileira em um verdadeiro imobilismo que era não somente econômico, mas também político26 26 Para uma análise detalhada e interessante do debate parlamentar, entre 1871 e 1888, do qual participava Joaquim Nabuco, sobre a questão da escravidão no Brasil, cf. Melo (1984). .

O imobilismo econômico advinha do "regime de escravidão (que) atrofiava a produção e concentrava anormalmente a riqueza, comprometendo a ética do trabalho em favor das tendências parasitárias" (Mello e Souza, 1990, p. 8). Imbuído de idéias liberais, ele considerava que o imobilismo político estava fundado no processo de "restrição da iniciativa econômica e política a pequenos grupos" (Mello e Souza, 1990, p. 8).

De que modo, para Joaquim Nabuco, tais condições imobilizadoras seriam vencidas? Ele concentra seus esforços políticos e intelectuais para demonstrar que a eliminação da escravidão era o grande passo naquele sentido. "Para ele a abolição seria apenas o começo de uma grande reforma social, porque deveria criar as condições para o escravo se tornar cidadão pleno, a fim de que a sociedade mestiça e pluri-racial assumisse a sua realidade. (...) No entanto, (...) Joaquim Nabuco via todo esse processo de libertação como algo regido pela harmonização, a reconciliação e o entendimento de opressores e oprimidos, no quadro de uma sociedade finalmente integrada" (Mello e Souza, 1990, p. 8).

A concepção de mudança de Joaquim Nabuco torna-se compreensível em O abolicionismo, a partir do tratamento dado a questões como a nacionalidade, a população, o trabalho, a economia, a política, o Estado, as elites, dentre outras. "A escravidão desvalorizava o trabalho e deformava a instituição, bloqueava o progresso e impedia a indústria, limitava dramaticamente as margens de liberdade política e democracia, proibindo qualquer avanço na cidadania. Desta forma, ao armar o conjunto da sociedade, ao degradá-la e despojá-la de classes bem constituídas, o regime escravo de trabalho produzia a 'superstição do Estado-providência', que se tornava 'o pai de todos nós, com seus empregos, suas benesses e prebendas, sua capacidade de tudo poder. Com isso, o sistema político em seu conjunto - partidos, parlamento, eleições - ficava desequilibrado em suas funções e em sua atuação" (Nogueira, 1988, p. 18-19).

A partir desta ótica singular é que se torna possível compreender a sua concepção de mudança social. Ao destacar que a escravidão deformava a instrução, impedia o progresso e o desenvolvimento da indústria, transparecia claramente que a sua preocupação em torno da mudança era norteada pela implantação de condições indicadoras de uma modernização do país.

No entanto, ao se referir às condições políticas vigentes, ficava claro todo seu tato para não desqualificá-las na sua totalidade. Ao considerar que a escravidão havia limitado as margens da liberdade política e da democracia, ele assinalava que mesmo com todas as dificuldades reinantes elas existiam ainda que circunscritas. E isto era devido à monarquia. Sua separação entre as esferas econômica e política permitia dar maior peso para a primeira. Assim procedendo, buscava elementos que conciliassem a conservação e a mudança.

"O progressista considera o presente como o começo do futuro, enquanto o conservador o vê simplesmente como o último ponto alcançado pelo passado. A diferença é tanto mais fundamental e radical na medida em que o conceito linear da história - que está implícito aqui - é algo secundário para os conservadores. Primeiramente, os conservadores conhecem o passado como sendo algo que existe com o presente; conseqüentemente, sua concepção de história tende a ser mais espacial do que temporal; ela enfatiza mais a coexistência do que a sucessão" (Mannheim, 1981, p. 123).

Não era a monarquia que havia deixado marcas prejudiciais na sociedade e no Estado brasileiro, mas sim a escravidão. Joaquim Nabuco pode ser tomado como um dos mais genuínos representantes do reformismo conservador por buscar formas de melhoramentos dentro da mesma estrutura de poder vigente. Ou seja, as modificações que ele defendia não tinham como base a redefinição do sistema de poder, mas sim o estabelecimentos de inúmeras reformas econômicas e políticas que culminariam na implementação de melhorias na sociedade como um todo.

Indiscutivelmente, Joaquim Nabuco procurava estabelecer uma adaptação da monarquia em vigor à sociedade não-escravocrata que emergiria com a abolição. Em "Campanhas de imprensa" ficava evidente que esse processo de conciliação não iria impedir, segundo ele, que emergisse uma organização social diferente sob todos os aspectos daquela que vigia até então (Nabuco, 1949b, p. 3-7). "O abolicionismo de Nabuco verá como absolutamente legítimo o caminho da reforma 'por cima'. Encontrará em Pedro I seu personagem principal, e nas casas legislativas sua grande tribuna" (Nogueira, 1988, p. 20).

O abolicionismo como modo de alcançar a verdadeira mudança social

Joaquim Nabuco deu início a esta obra destacando que as suas referências à necessidade de mudança social no país estavam fundadas no processo de formação de uma consciência nacional preocupada em introduzir na legislação elementos que preservavam a dignidade humana. "Essa consciência, que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la, resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de senhores e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de escravos" (Nabuco, 1988, p. 23).

Atente-se para o modo como Joaquim Nabuco inicia seu livro justificando o seu empenho e ardor pela causa da abolição. A sua pressuposição em torno da mudança era balizada pela idéia de que estaria havendo uma redefinição da consciência entre, principalmente, os membros de sua classe, ou seja, entre os descendentes de senhores e a causa da liberdade. Buscava, assim, respaldar as suas propostas de reformas em um sistema de idéias e valores então emergentes.

Havia uma insistência de sua parte em ressaltar elementos gerais de conduta de alguns membros da elite política brasileira, que respaldavam a sua preocupação com a formação de uma consciência nacional favorável à abolição. Ao se apegar a estes aspectos, Joaquim Nabuco buscava expor os benefícios de uma mudança social que deveria ser estabelecida no Parlamento, ou seja, era lá e não em qualquer outro lugar que a causa da liberdade deveria ser ganha.

A abolição que era, neste caso específico, a expressão máxima da causa da liberdade, tinha que ser obra, não da senzala, mas do Parlamento que deveria se incumbir de fortalecer uma consciência nacional sobre a importância de se eliminar o sistema escravocrata do país. É interessante assinalar que todos os vícios e problemas da política brasileira estavam, para ele, subordinados àquele sistema e seriam resolvidos com o fim do mesmo. Atestando as possibilidades de modificações do país, ele assinalava que "a liquidação deste regime daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo" (Nabuco, 1988, p. 27).

O abolicionismo, por sua vez, seria capaz de atuar no sentido da verdadeira mudança pois ele expressava uma concepção totalmente nova na política brasileira, tanto que a sua sedimentação poderia levar à implosão dos partidos existentes na medida em que se suplantasse a visão prevalecente e equivocada dos homens de Estado de que a escravidão se esvairia naturalmente. "O abolicionismo é um protesto contra essa triste perspectiva, contra o expediente de entregar à morte a solução de um problema, que não é só de justiça e consciência moral, mas também de previdência política" (Nabuco, 1988, p. 28).

Joaquim Nabuco advogava que o movimento abolicionista teria grande atuação no desenvolvimento de uma nova consciência moral que pavimentaria a longa estrada que deveria ser seguida para anular as influências maléficas da escravidão. Por isso a sua insistência na sedimentação de um corpo de valores que fosse capaz de tecer, durante anos, as alterações na vida social e política brasileira.

As modificações seriam, então, geradas tanto através das ações políticas no Parlamento como pela cristalização de valores norteados por um ideal de pátria fincado na concepção humanista e compreensiva, a qual deveria basear-se num espírito conciliador e cordato. Nessas condições, Nabuco criticava a postura daqueles homens que endureciam suas posições em torno dos dois partidos existentes e não levavam em conta o ideário abolicionista que ganhava corpo.

Para ele, as mudanças necessárias situavam-se para além do que buscavam os partidos liberal e conservador. O abolicionismo, que não era um partido, mas poderia vir a ser, deveria exercer mudanças significativas sobre os dois. No entanto, Joaquim Nabuco lidava de modo bastante confuso com relação ao que era o país no plano político, por exemplo, e o que este país viria a ser a partir da eliminação do sistema escravagista.

No capítulo intitulado "O partido abolicionista", ora ele afirmava que havia no Brasil uma democracia escravagista, ora procurava evidenciar que a elevação dos escravos a "homens procedia a toda arquitetura democrática". A república não podia ser pensada como algo mais importante que a abolição, esta sim deveria preceder qualquer tentativa de alteração do quadro político brasileiro.

O personalismo e o servilismo presentes na estrutura política brasileira eram frutos, para Joaquim Nabuco, da escravidão. Tais traços esvair-se-iam aos poucos através do movimento abolicionista que tinha como objetivo subverter o exercício do patronato que só existia graças a ela. Deste modo, a população empobrecida e necessitada se submetia à estrutura de mando e poder por uma situação de dependência que os dois partidos vigentes não levavam em consideração.

"Isso mesmo caracteriza a diferença entre o Abolicionismo e os dois partidos constitucionais: o poder destes é, praticamente, o poder da escravidão toda, como instituição privada e como instituição política; o daquele é o poder tão somente das forças que começam a rebelar-se contra semelhante monopólio - da terra, do capital e do trabalho - que faz da escravidão um estado no Estado, cem vezes mais forte do que a própria nação" (Nabuco, 1988, p. 34).

A eliminação dos contrários ou dos extremos, tais como o senhor e o escravo, era para Joaquim Nabuco o elemento por excelência que justificava o processo de extirpação do sistema escravagista. Este é um dado essencial de seus pressupostos fincados na idéia de que a criação de uma sociedade conciliadora era possível tendo em vista que a raça negra não era inferior, mas sim "um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro" (Nabuco, 1988, p. 36).

O entrelaçamento entre cultura e política é um dado essencial de sua perspectiva de mudança social. Tanto no plano da primeira, quanto no da segunda prevalecia seu intento de resgatar os aspectos que atestassem as nossas possibilidades contínuas de evitar o acirramento entre o senhor e o escravo. "A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor - falando coletivamente - nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos. Por este motivo, o contato entre elas foi sempre isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas abertas diante de si" (Nabuco, 1988, p. 38).

A docilidade dos negros garantia, assim, a possibilidade de construir um país altivo e sem rancores entre as diversas classes sociais. "Por isso também os abolicionistas, que querem conciliar todas as classes, e não indispor umas contra as outras; que não pedem a emancipação no interesse tão somente do escravo, mas do próprio senhor, e da sociedade toda; não podem querer instilar no coração do oprimido um ódio que ele não sente, e muito menos fazer apelo a paixões que não servem para fermento de uma causa, que não se resume na reabilitação da raça negra, mas que é equivalente, como vimos à reconstituição completa do país" (Nabuco, 1988, p. 39).

O movimento abolicionista tinha, então, o objetivo de construir uma forma de mudança social e política que desarmasse completamente os espíritos que incitavam à insurreição. Tanto que o movimento abolicionista, afirmava ele, não se dirigia ao escravo de modo algum, dirigia-se àquela fatia da classe dominante que tinha desenvolvido uma consciência moral suficiente para entender que a escravidão manchava como uma nódoa a nossa organização política e social.

O abolicionismo permitiria o desenvolvimento de mudanças no âmbito da própria ordem vigente, pois a escravidão, assinalava ele, "não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos por insurreições ou atentados locais. (...) A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar ou perder, a causa da liberdade" (Nabuco, 1988, p. 40).

Evitar as explosões sociais era um dos fundamentos da perspectiva de mudança social de Joaquim Nabuco. O Parlamento tinha, no seu entendimento, a incumbência de estabelecer leis que garantissem as alterações necessárias na sociedade brasileira. Era uma forma de circunscrevê-las a determinados interesses tendo em vista a composição social daquela instituição.

A perspectiva de mudança social de Joaquim Nabuco obscurecia as relações de interesses que advinham da composição do Parlamento brasileiro naquele momento "não com relação às colorações políticas oficiais, mas com relação aos pertencimentos" de classe (Sartori, 1962, p. 126). Ou seja, a direção das mudanças, dada por um determinado grupo social, enalteceria interesses específicos e não gerais como ele queria fazer parecer.

O ideário de liberdade ganhava prevalência nesta perspectiva de mudança social gerida pelo Parlamento, tanto que era no âmbito dos valores que ele procurava caminhos para justificar o fato de somente alguns estarem incumbidos de construir uma sociedade pautada em uma consciência moral voltada para a comunhão e para a justiça.

A eliminação da escravidão adviria da imposição de uma lei, afirmava Nabuco. As mudanças sociais que decorreriam deste ato seriam uma espécie de combinação da força da lei com a força moral. Destaque-se que esta última tinha os pés fincados na idéia de que o fim da escravidão constituir-se-ia no elemento-chave para se acabar com a corrupção do caráter de senhores e escravos, uma vez que ambos estavam envolvidos naquele sistema social.

Segundo Joaquim Nabuco, a abolição daria ao negro condições de adquirir os valores condizentes com a sociedade na qual ele adentraria como cidadão. Do ponto de vista político, seria possível romper com o servilismo e com o personalismo; no âmbito da economia, o progresso material, o aparecimento da indústria e o desenvolvimento do trabalho livre garantiriam que o Brasil se tornasse uma "pátria comum, forte e respeitada" e, assim, todos os seus membros viveriam em "comunhão", sem ódios e/ou conflitos (cf. Nabuco, 1988, p. 92).

Não se está supondo que Joaquim Nabuco desconsiderava as dificuldades que deveriam ser enfrentadas para se realizar as mudanças sociais, econômicas e políticas. No capítulo "Influências sociais e políticas da escravidão", de O abolicionismo, ele procurava pontuar alguns dos efeitos sociais e políticos da escravidão e, com base neles, apontar para os maiores problemas que teriam de ser enfrentados pelo país.

A referência à existência de algo que nos impulsionava no sentido da construção de uma sociedade conciliadora não significa que Joaquim Nabuco lidava com um ente imaginário, mas sim que, para ele, a formação cultural do povo brasileiro era permeada por relações centradas em um padrão de domínio e de proteção social que não permitia "castas sociais perpétuas" e/ou "divisão fixa de classes". Esse modo de organização social nos daria, apesar das dificuldades, a garantia de que tínhamos potencialidades de superação de todos os nossos problemas.

"Isso prova a confusão de classes e indivíduos, e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado. A escravidão, entre nós, manteve-se aberta e estendeu os seus privilégios a todos indistintamente (...) e, deste forma, adquiriu, ao mesmo tempo, uma força de absorção dobrada" (Nabuco, 1988, p. 126).

Todos os indivíduos, inclusive o escravo, estavam, segundo ele, domesticados dentro de uma ordem social culturalmente não-antagônica. A realização de toda e qualquer modificação contava com esta singularidade brasileira. Havia uma tentativa de garantir às classes dominantes que o negro não se rebelaria neste processo de mudança que tinha na abolição seu ponto de partida, porque havia, no país, um alto grau de coesão social.

A dissolução poderia, sim, ocorrer caso não fosse eliminada a escravidão. "A minha firme convicção é que, se não fizermos todos os dias novos e maiores esforços para tornar o nosso solo perfeitamente livre, se não tivermos sempre presente a idéia de que a escravidão é causa principal de todos os nossos vícios, defeitos, perigos e fraquezas nacionais, o prazo que ainda ela tem de duração legal (...) será assinalado por sintomas crescentes de dissolução social" (Nabuco, 1988, p. 166).

Quais seriam as mudanças sociais que a abolição traria, segundo Joaquim Nabuco?

Desenvolvimento da indústria, do comércio e da lavoura eram, no âmbito econômico, as mudanças básicas que ocorreriam com a abolição. Destas originariam outras que completariam o ciclo de reestruturação da sociedade brasileira, cujos efeitos venceriam a estagnação pela qual passava o país. Escravidão e indústria se excluíam automaticamente, assinalava Nabuco. Sua preocupação com as possibilidades de se estabelecer as condições para o desenvolvimento do capital levava-o a uma reflexão sobre a necessária formação da mão-de-obra fabril, o que somente ocorreria com o findar do regime servil, pois somente assim seria possível formar um operariado forte, inteligente e respeitado, ou seja, que exercesse entre nós alguma influência política (cf. Nabuco, 1988, p. 128-129).

O fato de que o operário não exercia qualquer influência política era absolutamente visível, segundo Joaquim Nabuco, observando-se a distribuição profissional dos eleitores. A representação operária entre eles era praticamente nula, o que devia ser atribuído ao sistema escravocrata, que barrava o desenvolvimento de mecanismos de ampliação das possibilidades de constituição de cidadãos, segundo o autor.

Uma outra mudança proporcionada pela abolição seria o redimensionamento do funcionalismo público. "Das classes que esse sistema fez crescer artificialmente, a mais numerosa é a dos empregados públicos. A estreita relação entre a escravidão e a epidemia do funcionalismo não pode ser mais contestada que a relação entre ela e a superstição do Estado-providência. Assim como, nesse regime, tudo se espera do Estado, que, sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre seus clientes, pelo emprego público (...). Tomem-se, ao acaso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se reúna a nossa sociedade mais culta: todos eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos; se não eles, seus filhos" (Nabuco, 1988, p. 130-131).

Não ficava suficientemente claro na obra aqui analisada de que modo o fim da escravidão ressoaria tão decisivamente no âmbito do Estado, que deixaria de ser, definitivamente, o asilo dos descendentes de antigas famílias ricas e fidalgas. Parecia haver, para ele, uma relação de automaticidade, ou seja, findando a escravidão, as demais dificuldades econômicas, sociais, políticas e culturais deixariam de existir.

Desta forma, a classe que vivia com os olhos pregados nos benefícios que o governo poderia oferecer era extremamente numerosa e filha direta da escravidão. As elites não eram, portanto, responsáveis por estes desvios, elas teriam sido empurradas para uma situação ditada pelo sistema servil. Assim como uma parte dos detentores de verdadeiras fortunas se arruinaram por causa da escravidão, as posições e atuações políticas das elites que dificultavam a nação eram justificadas, por Nabuco, nos mesmos termos.

Havia em seus escritos, no que tangia às possibilidades de mudanças sociais, uma ausência quase que total de crítica à atuação das classes dominantes no país. Ou seja, estas teriam sido arrastadas àquelas circunstâncias, tendo em vista que, enquanto força social, a escravidão tinha se apropriado de todos os seus interesses. Nabuco esvaziava, através de diversos argumentos, a possibilidade de que as elites fossem identificadas com a escravidão. Desta maneira, os interesses sociais sustentadores da ordem escravocrata pareciam não-identificáveis. A monarquia e os demais segmentos dominantes eram isentos, por ele, de responsabilidades na manutenção do sistema. A escravidão era, então, uma força avassaladora que havia dominado tudo e, que, naquele momento, não atendia a nenhum interesse específico.

A sua concepção de mudança social estava permeada por estes elementos de indefinição dos interesses das forças sociais condutoras das modificações econômicas e políticas em curso na segunda metade do século XIX. No que se refere às dificuldades de mudanças, suas críticas eram dirigidas muito mais aos políticos e às suas atuações do que aos setores economicamente preponderantes. Os deputados e senadores eram, na sua maioria, oriundos destes últimos; no entanto, o modo de Joaquim Nabuco encaminhar os problemas acabava por operar uma separação entre as esferas dos interesses econômicos e políticos.

A escravidão era, então, a causa de toda corrupção social e política, tanto que "o sistema representativo é, assim, um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal, e senadores e deputados só tomam ao sério o papel que lhes cabe nessa paródia da democracia pelas vantagens que auferem. Suprima-se o subsídio e forcem-nos a não se servirem da sua posição para fins pessoais e de família, e nenhum homem que tenha o que fazer se prestará a perder o seu tempo" (Nabuco, 1988, p. 138).

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, adverte que as nossas possibilidades de criação de um sistema representativo digno deste nome foram maculadas pelo crescente processo de "elitização e oligarquização do poder impregnadas como uma nódoa" na sociedade brasileira (cf. Holanda, 1987). Nestes termos, seguindo as pistas de S. B. de Holanda, a questão era abolir a escravatura e, também, conseguir derrotar o predomínio das oligarquias, pois, de outro modo, "os fundamentos personalistas e aristocráticos sobre os quais assenta (vam) a nossa vida social se mante (riam) e se reproduz (iriam) através de valores e costumes que impregna (vam) gerações sucessivas" (Rezende, 1996, p. 43).

Em sua perspectiva de mudança social, Joaquim Nabuco não se referia à questão da oligarquização do poder, por exemplo, como um dado essencial para se compreender os problemas políticos do país. Este modelo político aristocratizante não era, evidentemente, um detalhe a ser superado juntamente com a abolição, mas sim um dado essencial que solapava todas as nossas possibilidades de modificações políticas substanciais.

A proposta de mudança social de Joaquim Nabuco, sem desconsiderar o papel importante que ela desempenhava naquele momento, não desatava os nós do sistema de dominação vigente. Ou seja, ao afirmar que a escravidão era responsável de forma absoluta por todos os males políticos e sociais, ele escamoteia, por exemplo, as bases de sustentação política da oligarquia, o processo de preservação dos interesses privados e locais, bem como o modo de manutenção da autoridade tutelar e da exclusão.

"A verdade é que esse governo é o resultado imediato, da prática da escravidão pelo país. Um povo que se habitua a ela não dá valor à liberdade, nem aprende a governar-se a si mesmo. Daí, a abdicação geral das funções cívicas, o indiferentismo político, o desamor pelo exercício obscuro e anônimo da responsabilidade pessoal, sem a qual nenhum povo é livre" (Nabuco, 1988, p. 140). A análise destes elementos levantados remetem não apenas a um padrão cultural herdado do sistema escravagista, mas também a um padrão de domínio não suficientemente descortinado por Nabuco.

Não há, no âmbito desta discussão, qualquer possibilidade de apanhar todos os aspectos da obra de Joaquim Nabuco. Foram apreendidos alguns elementos elucidativos de sua concepção em torno da mudança social a partir da obra O abolicionismo. Tem-se consciência de que outros traços poderiam ser selecionados com base em outros livros. Seria, também, muito frutífera a análise de O dever dos monarquistas (1895), Um estadista no Império (1975), dentre outros, para refletir sobre a sua insistência na necessidade de se operar mudanças políticas mantendo intocada a monarquia.

Campanhas de imprensa (1949b) e Discursos Parlamentares (1949a) podem também ser tomados como obras-chave para se compreender como, para Joaquim Nabuco, o Partido Liberal deveria desenvolver sua atuação para efetivar as mudanças necessárias ao país. De modo geral, pode-se dizer que, quase na totalidade, os seus escritos estavam lidando de modo explícito e/ou implícito com as nossas possiblidades e necessidades de reformas e/ou mudanças. O conjunto de sua obra oferece, indubitavelmente, inúmeros elementos para se compreender a singularidade de suas pressuposições acerca do Brasil e de seus caminhos no final do século XIX.

Recebido para publicação em maio/1998

  • Bastos, A. C. T. (1937) A província. Săo Paulo, Companhia Editora Nacional.
  • ______. (1938) Cartas do solitário. Săo Paulo, Companhia Editora Nacional.
  • Bosi, A. (1995) Formaçőes ideológicas na cultura brasileira. Estudos Avançados. Săo Paulo,
  • Cardoso, F. H. (1962) Capitalismo e escravidăo no Brasil Meridional. Săo Paulo, Difel.
  • FAORO, R. (1976) A ponte suspensa. Documentaçăo e atualidade política. Brasília, UNB,
  • ______. (1989) Os donos do poder. Săo Paulo, Globo.
  • ______. (1992) A questăo nacional: a modernizaçăo. Estudos Avançados, Săo Paulo,
  • ______. (1994) Existe um pensamento político brasileiro? Săo Paulo, Ática.
  • Fernandes, F. (1965) A integraçăo do negro na sociedade de classes. Săo Paulo, Dominus/Edusp.
  • ______. (1976) A sociologia no Brasil. Petrópolis, Vozes.
  • ______. (1979) A sociedade escravagista no Brasil. In: . Circuito fechado. Săo Paulo, Hucitec.
  • Holanda, S. B. de. (1968) Prefácio. In: Luz, N. V. A Amazônia para os negros americanos. Rio de Janeiro, Saga, p. 9-16.
  • ______. (1972) História geral da civilização brasileira. O Brasil monárquico - do Império à República. São Paulo, Difel
  • ______.(1987) Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, J. Olympio.
  • IANNI, O. (1962) As metamorfoses do escravo. Săo Paulo, Difel.
  • Malheiros, A. M. P. (1871) Anais da Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Câmara dos Deputados.
  • ______.(1944) A escravidão no Brasil. São Paulo, Edições Cultura.
  • Mannheim, K. (1981) O pensamento conservador. In: Martins, J. S. (org.). Introduçăo crítica ŕ sociologia rural. Săo Paulo, Hucitec, p. 77-131.
  • Melo, Evaldo, C. de. (1984) O norte agrário e o Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
  • Mello E Souza, A. C. (1990) Radicalismos. Estudos Avançados, Săo Paulo,
  • Nabuco, J. A. B. de Araújo. (1885) Campanha abolicionista no Recife. Rio de Janeiro, Typ. Leuzinger.
  • ______. (1895) O dever dos monarquistas. Rio de Janeiro, Typ. Leuzinger.
  • ______. (1949a) Discursos parlamentares. In: ______. Obras Completas. Săo Paulo, Instituto Progresso Editorial.
  • ______. (1949b) Campanhas de Imprensa. In: ______. Obras completas. Săo Paulo, Instituto Progresso Editorial.
  • ______. (1975) Um estadista do Império. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
  • ______. (1976) Minha formação. Rio de Janeiro, José Olympio.
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  • Nogueira, M. A (1984) As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a República. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • ______. (1988) Introduçăo. In: Nabuco, J. O abolicionismo. Petrópolis, Vozes, p. 7-22.
  • Pinho, J. W. (1937) Cotegipe e seu tempo. Săo Paulo, Nacional.
  • Prado Júnior, C. (1987) Evoluçăo política do Brasil. Săo Paulo, Brasiliense.
  • Oliveira, Lúcia L. de. (1995) A sociologia do guerreiro. Rio de Janeiro, UFRJ.
  • Rezende, M. J. de. (1996) A democracia em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Plural, Săo Paulo,
  • SARTORI, G. (1962) A teoria da representaçăo no Estado representativo moderno. Belo Horizonte, Revista Brasileira de Estudos Políticos,
  • VIANNA, L. W. (1997) A revoluçăo passiva: liberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, IUPERJ/Revan.
  • 1
    Este artigo não tem como fazer uma análise das inúmeras questões acerca da escravidão, de seu processo de abolição e de seus efeitos na sociedade brasileira. Dentre vários, vide principalmente Ianni (1962), Cardoso (1962), Fernandes (1965; 1979).
  • 2
    Sobre a força do poder conciliatório no Brasil, nos momentos decisivos de nossa história, cf. Faoro (1994).
  • 3
    "O tráfico interprovincial de escravos proporciona o mais antigo dos motivos de disputa entre a grande lavoura do norte e do sul do Império". Havia no parlamento entre 1871 a 1880 um amplo debate sobre o processo de transferência de mão-de-obra escrava do norte para o sul do país. "A verdade é que as fontes parlamentares do período de 1871 a 1880 dão como coisa sabida que o comércio se fazia principalmente para atender as necessidades de mão-se-obra cafeeira. (...) Com a expansão dos cafezais, o tráfico interprovincial terá passado a suprir principalmente a lavoura cafeeira" (Melo, 1984, p. 28-29).
  • 4
    Em 1854 o deputado João Maurício Wanderley, que se tornou mais tarde o barão de Cotegipe, apresentou um projeto na Câmara sobre o fim do tráfico inter-regional de escravos (cf. Pinho, 1937).
  • 5
    Em 4 de Setembro de 1850, foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós, o que "estancou por completo, em menos de dois anos, o tráfico africano. Efetuaram-se depois de 1852 apenas dois desembarques, sendo contudo apreendidos os negros contrabandeados" (Prado Júnior, 1987, p. 92-93).
  • 6
    Para Mannheim este fatalismo pode ser teológico, científico e histórico (cf. Mannheim, 1986, p. 121).
  • 7
    Evaldo Cabral de Melo afirma que as posições de alguns deputados contra o tráfico (dentre eles estava Perdigão Malheiros, que apresentou um projeto neste sentido em 1877) era uma manobra que objetivava "prolongar a vida da escravidão" (cf. Melo, 1984, p. 42). Faz-se necessário não desconsiderar, porém, que Joaquim Nabuco, o mais importante político-abolicionista daquele momento, passou a apoiar o projeto de proibição do tráfico inter-regional do deputado paulista Moreira de Barros, no final da década de 1870. "Joaquim Nabuco (... ) defendeu a interdição do comércio inter-regional, utilizando curiosamente argumento afim ao dos escravocratas, o do que 'a escravidão está se tornando uma questão social somente para duas províncias, o Rio de Janeiro e São Paulo (...) e para uma parte da província de Minas'" (Melo, 1984, p. 44-45).
  • 8
    Evaldo Cabral de Melo afirma que Perdigão Malheiros fazia parte de um grupo de deputados que não "animava sentimentos abolicionistas" (cf. Melo, 1984, p. 41).
  • 9
    O gabinete Rio Branco formulou a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871.
  • 10
    A idéia de cordialidade aqui empregada é a mesma desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda. Ou seja, a de que "a formação em ambientes patriarcais leva à dificuldade de entender a distinção entre o domínio público e o domínio privado. As relações que engendram o homem cordial situam-se na esfera do íntimo, do familiar, do privado" (Rezende, 1996, p. 35).
  • 11
    "Mas não é só uma injustiça clamorosa e notória a escravidão; ela é também da maior inconveniência para a sociedade, para o escravo, para o senhor" (Malheiros, 1944, p. 133).
  • 12
    Raymundo Faoro afirma que Tavares Bastos, filiado ao Partido Liberal, "elevava a doutrina liberal à categoria de dogma." Em
    Cartas do Solitário, este último diz: "pedi que o governo seja só governo, que distribua a justiça, mantenha a ordem, puna o crime, arrecade o imposto, represente o país; mas que não transponha a meta natural, mas que não se substitua à sociedade. (... ) Para nós, só há uma política possível, um dever, um culto: melhorar a sorte do povo. Mas como? Observando a lei da natureza, isto é, fecundando as fontes vivas do trabalho, instrumento divino do progresso humano; isto é, restituindo à indústria a sua liberdade, a liberdade sim! porque ela quer a concorrência universal, a multiplicidade das transações, a barateza dos serviços, a facilidade dos transportes, a comodidade da vida" (Bastos, A. C. T. Cartas do solitário
    apud Faoro, 1989, p. 501-502).
  • 13
    Mannheim discute em seu artigo sobre o pensamento conservador o processo de interpene-tração de elementos conservadores no liberalismo europeu e vice-versa. "Vê-se claramente que o conservadorismo havia aprendido alguma coisa do liberalismo, do qual ele absorveu tanto o conceito de 'separação das esferas' como a existência de uma 'mão oculta' que realiza a harmonia universal" (Mannheim, 1981, p. 117). Tais informações são importantes para aqueles que desejem estudar o liberalismo no Brasil.
  • 14
    Uma importante análise das idéias de Tavares Bastos foi feita em Vianna (1997).
  • 15
    "Desse ano de 1868 se projetará a ruína do Império, não como se afirma sempre, pelo golpe de Estado que arrebatou o posto a um gabinete com maioria na Câmara dos Deputados - fato com muitos precedentes - mas pela ruptura imprudente do quebra-mar construído pela mais fina arte monárquica, sem que a Coroa, insensível à violência da tempestade, nada ceda para conjurar o desastre. (... ) Daqui por diante, (... ) o Partido Conservador não terá mais nenhuma missão: será apenas o resfriador das reivindicações liberais, realizando-as para amortecê-las" (Faoro, 1987, v. 2, p. 444-445).
  • 16
    "Já em 1861, Tavares Bastos havia defendido o tráfico interprovincial com o argumento de que, 'se as províncias do norte perdem momentaneamente com isso, ganharão mais tarde, já porque possuirão menor número de escravos, já porque isso atrairá para elas os imigrantes" (Melo, 1984).
  • 17
    "o tráfico constituía, como assinalara Tavares Bastos, um bem definitivo, ao permitir às províncias setentrionais apressar, sem prejuízos, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre" (Melo, 1984).
  • 18
    Somente a título de esclarecimento, deve-se destacar que em 1862 formava-se a liga progressista, "gerada no Governo do gabinete Caxias, sob o fundamento de que os partidos estavam extintos (...). Com essa ponte passam do campo conservador para o liberal, chefes da expressão de Zacarias de Góes e Vasconcelos, Nabuco, Sinimbu, Saraiva e Paranaguá, dentre outros" (Faoro, 198, p. 444). O campo liberal era dividido em duas facções: os liberais históricos e os progressistas. Somente em 1868, houve a fusão destas duas alas tendo em vista a queda do Gabinete de Zacarias de Góes e Vasconcelos e a ascensão de um gabinete conservador. Os liberais unem-se, pois sentiram-se traídos de modo abrupto pelos conservadores e pelo imperador. A união, no entanto, não amalgamou todos os setores. Ou seja, aquele que se congregava em torno do jornal
    Opinião Liberal "não se submet(ia) ao apaziguamento reformista" que passava a dominar o partido. Rangel Pestana, Luiz Monteiro de Souza e Limpo de Abreu faziam parte da chamada ala radical que identificava liberalismo com democracia, sem, em alguns casos, sequer refutar a monarquia. "À ilharga do movimento, além do ex-ministro Liberato Barroso e do senador Silveira da Mota, duas vigorosas personalidades alimentam o entusiasmo e insuflam idéias novas: Silveira Martins e Tavares Bastos" (Faoro, 1989, p. 448-449).
  • 19
    Sobre o pensamento conservador e a sua compreensão da desorganização social como um fenômeno moral, cf. Nisbet (1986, p. 69).
  • 20
    Tavares Bastos ressaltava na segunda parte do livro
    A província que tinham havido diversas tentativas de descentralizar o país no século XIX (cf. Bastos, 1937).
  • 21
    A proposta de mudança social de Tavares Bastos partia do pressuposto de que o país não tinha um povo, mas sim um império (cf. Bastos, 1937, p. 87).
  • 22
    Para Tavares Bastos, o governo centralizado teria atuado entre as décadas de 1830 a 1870 no sentido de amesquinhar o poder legislativo provincial. Ele propunha que este último deveria ser dividido em duas câmaras. Seriam criado, assim, os senadores provinciais, isto é, uma segunda câmara legislativa na província. "É a divisão do poder legislativo em dois ramos indispensável à sua dignidade, não raras vezes comprometida pelos inevitáveis excessos e atos irrefletidos de uma assembléia única. (... ) Os senados provinciais não representariam, pois, o interesse da liberdade somente; seriam, antes de tudo, um elemento conservador. Seu mérito principal consiste, porém, na eficácia, prestígio e dignidade que dariam ao poder legislativo provincial" (cf. Bastos, 1937, p. 117-118).
  • 23
    "os membros da primeira câmara provincial, a dos representantes, seriam eleitos pelos municípios, votando os eleitores em paróquias. Cada município nomearia três representantes, cabendo a cada eleitor dois votos somente. Os membros do senado provincial, porém, haviam ser nomeados pelos eleitores da província inteira, votando igualmente em paróquias e em dois terços dos nomes. Duraria seu mandato quatro anos, renovando-se pela metade em cada eleição da outra câmara. Exigir-se-ia a condição de uma idade mínima, trinta anos por exemplo. O número de senadores, certamente limitado, nunca deverá ser menor de doze" (cf. Bastos, 1937, p. 120-121). Deste modo, seriam criadas verdadeiras legislaturas democráticas, observava Tavares Bastos.
  • 24
    "Entre 1879 e 1888 (Joaquim Nabuco) é o abolicionista de vanguarda, entre 1889 e 1898 o monarquista errante e recluso, entre 1899 e 1910 o diplomata monroísta. (... ) Em 1879 ele ingressa na Câmara e tem início a fase terminal da campanha abolicionista que culminaria em 1888; em 1889 a república encerra sua carreira parlamentar e o mergulha numa década de recolhimento e meditação; em 1899 retorna à ativa com a aceitação do convite para dirigir a defesa brasileira na disputa territorial com a Guiana Inglesa" (Nogueira, 1984, p. 17).
  • 25
    Raymundo Faoro afirma: "Os monarquistas e federalistas, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, só por meio da mudança radical viam a salvação do Império" (Faoro, 1989, p. 462).
  • 26
    Para uma análise detalhada e interessante do debate parlamentar, entre 1871 e 1888, do qual participava Joaquim Nabuco, sobre a questão da escravidão no Brasil, cf. Melo (1984).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Out 1998

    Histórico

    • Recebido
      Maio 1998
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