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Reforma agrária: o impossível diálogo sobre a História possível

Agrarian Reform: the impossible dialogue about the possible History

Resumos

Os desencontros entre o governo, de um lado, e o MST, a Igreja e as oposições, de outro, quanto à política de reforma agrária, só podem ser compreendidos se tivermos em conta o que vem a ser a questão agrária no Brasil. Num país em que o grande capital se tornou proprietário de terras, a concepção clássica da questão agrária, e das reformas que ela pede, fica substancialmente alterada. São essas alterações que propõem as condições e os limites da reforma agrária no país. São elas, também que apontam o desenrolar possível da história brasileira a partir dessa referência estrutural. A reforma agrária se tornou uma reforma cíclica em virtude da, de certo modo, contínua entrada e reentrada em cena de clientes potenciais dessa medida. O fato de que o MST e os sem-terra tenham assumido a iniciativa das ocupações, atuando o governo como suplente para fazer a reforma, não indica a debilidade do Estado democrático para realizá-la. Apenas indica que a sociedade civil, através de organizações e movimentos populares, passou a ter um papel na nova estrutura do Estado brasileiro.

reforma agrária; questão agrária; movimentos sociais; governabilidade; Fernando Henrique Cardoso


The misunderstandings between the government, on one side, and the MST, the Church and the opposition parties on the other side, when the topic is the agrarian reform, can only be understood if we keep in mind what this agrarian matter is in Brazil. In a country which the big capital turned to be the owner of the lands, the classical conception of the agrarian matter, and of the reforms required by it, is substantially altered. These reforms are what really propose the new conditions and limits to the reform in the country. Moreover, they also point to a possible development of the History of Brazil based in this structural reference. The agrarian reform turned to be a cyclical reform due to the continuous entry and reentry of potential clients in this scene. The fact that the MST and the landless have assumed the initiative of the occupations, being the government only a proxy for the reform, does not indicate the debility of the democratic State in doing the reform. It only indicates that the civil society, through some organization and popular movement, started to have a new role in the structure of the Brazilian State.

agrarian reform; agrarian matter; social movements; governability; Fernando Henrique Cardoso


DOSSIÊ FHC 1º GOVERNO

Reforma agrária - o impossível diálogo sobre a História possível

Agrarian Reform - the impossible dialogue about the possible History

José de Souza Martins

Professor do Departamento de Sociologia - USP

RESUMO

Os desencontros entre o governo, de um lado, e o MST, a Igreja e as oposições, de outro, quanto à política de reforma agrária, só podem ser compreendidos se tivermos em conta o que vem a ser a questão agrária no Brasil. Num país em que o grande capital se tornou proprietário de terras, a concepção clássica da questão agrária, e das reformas que ela pede, fica substancialmente alterada. São essas alterações que propõem as condições e os limites da reforma agrária no país. São elas, também que apontam o desenrolar possível da história brasileira a partir dessa referência estrutural. A reforma agrária se tornou uma reforma cíclica em virtude da, de certo modo, contínua entrada e reentrada em cena de clientes potenciais dessa medida. O fato de que o MST e os sem-terra tenham assumido a iniciativa das ocupações, atuando o governo como suplente para fazer a reforma, não indica a debilidade do Estado democrático para realizá-la. Apenas indica que a sociedade civil, através de organizações e movimentos populares, passou a ter um papel na nova estrutura do Estado brasileiro.

Palavras-chave: reforma agrária, questão agrária, movimentos sociais, governabilidade, Fernando Henrique Cardoso.

ABSTRACT

The misunderstandings between the government, on one side, and the MST, the Church and the opposition parties on the other side, when the topic is the agrarian reform, can only be understood if we keep in mind what this agrarian matter is in Brazil. In a country which the big capital turned to be the owner of the lands, the classical conception of the agrarian matter, and of the reforms required by it, is substantially altered. These reforms are what really propose the new conditions and limits to the reform in the country. Moreover, they also point to a possible development of the History of Brazil based in this structural reference. The agrarian reform turned to be a cyclical reform due to the continuous entry and reentry of potential clients in this scene. The fact that the MST and the landless have assumed the initiative of the occupations, being the government only a proxy for the reform, does not indicate the debility of the democratic State in doing the reform. It only indicates that the civil society, through some organization and popular movement, started to have a new role in the structure of the Brazilian State.

Keywords: agrarian reform, agrarian matter, social movements, governability, Fernando Henrique Cardoso.

A conjuntura histórica e o tempo da questão agrária

O tema da reforma agrária é, seguramente, um dos mais equivocados nos embates políticos e partidários deste momento no Brasil. Equivocado pelo modo como é comumente proposto em diferentes meios; equivocado pela enorme carga de subinformação que o acompanha, pelas descabidas paixões que desperta, pela real ignorância do tema que se manifesta em muitas das opiniões a respeito: todos parecem ter um palpite a dar sobre o assunto, da apresentadora de televisão ao dirigente estudantil, e acham que sua ocupação já os qualifica para opinar e opinar de maneira contundente e definitiva. Todos parecem ter respostas, o que inclui não poucos especialistas. São raros, porém, os que tem o fundamental na produção do conhecimento e das propostas necessárias à solução dos problemas sociais: as perguntas, base da indagação séria e conseqüente e ponto de partida da reflexão objetiva.

Mesmo nos meios acadêmicos, intérpretes tardios, desinformados e estranhos ao tema e à área, com a afoita sede de quem chegou fora de hora, lançam-se no que chamam de "sociologia militante" na esperança de participar de um confronto que poderá "fazer história". Misturam ciência e ideologia, marxismo panfletário, senso comum e descabidas raivas pessoais. Prestam um grave desserviço aos próprios trabalhadores rurais que, não raro arriscando a vida, optam pelo enfrentamento e pelas ocupações como última alternativa para sair da pobreza e viver com dignidade. Minha análise, neste texto, vai deixar de lado essas intervenções e interpretações oportunistas e deformantes.

Um balanço do estado atual do problema esbarra desde o início nesse muro pichado de intervenções gratuitas e passionais, derivadas de motivações inteiramente estranhas ao problema em si e à realidade de seus protagonistas mais autênticos. Em meio a um grande número de estudos qualificados, alguns de grande qualidade, baseados em pesquisas sérias e objetivas, há uma maçaroca de textos panfletários que nada acrescentam no conhecimento e na solução do problema.

Essa espécie de baderna interpretativa tem prejudicado seriamente a ação dos protagonistas do drama agrário no país, tanto aqueles que, na sociedade civil, com razão histórica pedem profunda e ampla intervenção na questão agrária, quanto aqueles que, no governo, agem no sentido de concretizar tal intervenção. O panfletarismo se junta ao clima de comício que reduz o problema a simplificações que o desfiguram, que lhe retiram a complexidade e a gravidade e que, portanto, vão progressivamente tornando-o um tema banal.

Uma reflexão sociológica sobre o estado atual do problema pede inicialmente, portanto, uma demarcação do território da reflexão a ser feita. O tema proposto do artigo é o da questão agrária, o modo como ela se propõe na conjuntura atual, que seria a conjuntura do governo de Fernando Henrique Cardoso. Seria um erro óbvio imaginar que a questão agrária se confunde com as supostamente diferentes propostas de reforma agrária que estão presentes no cenário do embate partidário atual e que tudo se resume a optar por uma delas. Como seria um erro imaginar que a questão agrária foi criada pelo atual presidente da República ou pelo atual ministro de Política Fundiária e que se resume ao discutível da ação administrativa no âmbito do problema fundiário. Como seria um erro, ainda, supor que a questão agrária não tem uma história, gênese e desdobramentos históricos, sociais e políticos, que marcam e demarcam seu lugar na história do presente.

O ponto essencial e problemático raramente considerado, mesmo por quem é sério e competente, é o de que a questão agrária tem a sua própria temporalidade, que não é o "tempo" de um governo. Ela não é uma questão monolítica e invariante: em diferentes sociedades, e na nossa também, surge em circunstâncias históricas determinadas e passa a integrar o elenco de contradições, dilemas e tensões que mediatizam a dinâmica social e, nela, a dinâmica política. É por isso mesmo alcançada continuamente pelas condições cambiantes do fazer história. O próprio ato de intervir na questão, de um modo ou de outro, numa perspectiva ideológica ou noutra, já altera a questão agrária. Não só a atenua ou a agrava, como também muda-a qualitativamente, define as possibilidades de nela se continuar intervindo, as condições em que tal intervenção pode ser feita. A questão é, portanto, essencialmente uma questão histórica.

Embora ela possa se tornar uma questão partidária e política, há circunstâncias em que nem mesmo se expressa partidariamente, perdida nas miudezas de pequenos confrontos muito mediatizados por outras questões ou então no caráter difuso que grandes confrontos históricos podem às vezes ter. No Brasil, não raro, durante quase um século, a questão agrária se expressou por meio de tensões religiosas, de confrontos sangrentos entre o catolicismo popular e o catolicismo institucional ancorado no aparelho de estado, mesmo com a separação entre a Igreja e o Estado da era republicana. Portanto, uma questão agrária que se torna questão religiosa, que se torna questão política, que se torna questão policial, que se torna questão militar, como aconteceu em Canudos, no Contestado e em vários outros episódios das lutas sociais no campo, incluindo episódios relativamente recentes, do tempo da ditadura. Um balanço apropriado do conflito fundiário nas últimas décadas nos revelaria que ele é apenas um subtema de conflito maior e mal definido entre o Estado oficialmente laico e a Igreja.

É nessa perspectiva que o pesquisador deve preferencialmente trabalhar, para ter a segurança de lidar com a dimensão apropriada de tempo dos processos sociais que examina. Por isso, o tempo de referência destas considerações é o tempo da conjuntura histórica, diferente da conjuntura política e eleitoral, na qual se movem os partidos e os chamados militantes, mesmo, muitas vezes, os militantes de causas humanitárias. Quando se diz, em relação a um tema como este, que um partido não tem proposta alternativa, o que se está dizendo, na verdade, é que esse partido não consegue ter uma consciência de sua ação na perspectiva histórica, a perspectiva do tempo longo das grandes transformações sociais e políticas. Ter proposta alternativa não é o mesmo que ter um propósito proclamado num panfleto ou num programa partidário. O tempo da conjuntura histórica implica menos julgar ações e opiniões de pessoas, e ser contrário ao que são ou parecem ser e fazem. Implica, isso sim, considerar as condições e conseqüências estruturais e históricas do que pensam e dizem, o alcance das decisões que tomam, os limites dessas ações e as possibilidades de seu alcance definidas pela circunstância histórica.

É esse o ponto de vista que me permite compreender que uma política de reforma agrária depende de se conhecer a questão agrária para a qual ela é uma resposta. A questão agrária é, em termos clássicos, o bloqueio que a propriedade da terra representa ao desenvolvimento do capital, à reprodução ampliada do capital. Esse bloqueio pode se manifestar de vários modos. Ele pode se manifestar como redução da taxa média de lucro, motivada pela importância quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição da mais-valia e no parasitismo de uma classe de rentistas. Não é manifestamente o caso brasileiro, ou não o é especialmente, embora também o seja de um modo indireto.

Aqui, o grande capital se tornou proprietário de terra, especialmente com os incentivos fiscais durante a ditadura militar. Antes disso, em muitas regiões do Brasil, grandes proprietários de terra haviam se tornado empresários capitalistas, tanto na região canavieira do Nordeste quanto na região cafeeira do Sudeste. Não se pode explicar a industrialização brasileira a partir do século passado se não se leva em conta essa competência de grandes fazendeiros para acompanhar as possibilidades históricas de seu tempo. Por outro lado, já na ditadura militar, com a política de incentivos fiscais, o capital personificado pelo capitalista, por aquele que pode tomar consciência das contradições que perturbam a reprodução ampliada do capital, foi compensado das irracionalidades da propriedade da terra como titular de renda fundiária. Essas situações, que são as do nosso país, são aquelas em que o capital personificado não se libertou da propriedade da terra, como aconteceu em outros, na extensão necessária a que a contradição entre capital e terra se manifestasse à consciência das diferentes classes sociais como oposição de interesses e irracionalidade que bloqueia o desenvolvimento econômico e social (e político!).

Um segundo modo, como o que ocorreu nos Estados Unidos e outros países, é a necessidade de um mercado interno para o capital industrial. Esse mercado pode crescer com o crescimento da população economicamente ativa, que receba salários e possa comprar. Se as condições de vida dos trabalhadores em geral e dos pequenos agricultores são ruins, é necessário que elas melhorem para que eles ampliem sua entrada no mercado com seu trabalho ou seus produtos. Se eles entram no mercado de produtos ou no mercado de força-de-trabalho de modo restrito, reduzem as possibilidades da reprodução ampliada do capital em seu conjunto. Por isso, em princípio, a modernização das relações de trabalho e a melhora das condições de vida dos trabalhadores interessa, em primeiro lugar, ao próprio capitalista. Este é um ponto que pede discussão: estamos falando da pobreza como empecilho ao desenvolvimento do capital e, por extensão, ao desenvolvimento da sociedade, ainda que nos limites do capitalismo. Podem ocorrer desvios significativos nessa possibilidade histórica. Numa economia que está se tornando cada vez mais dependente de exportação, a redução dos preços dos produtos agrícolas é essencial na concorrência internacional. Na exportação de produtos industriais, o mesmo ocorre, na redução dos custos de reprodução da força de trabalho representados não só pela alimentação, que em grande parte vem da agricultura.

Portanto, até mesmo a grave anomalia de uma massa de miseráveis vivendo em condições sub-humanas não compromete o desenvolvimento capitalista. A exclusão se tornou parte integrante da reprodução do capital, mas se tornou ao mesmo tempo uma anormalidade social (cf. Martins, 1998). Mesmo assim, sobretudo entre técnicos, há quem fale numa espécie de auxílio estatal à pobreza que dispensaria a reforma agrária, custosa, e asseguraria a sobrevivência dos pobres em condições mínimas sem necessidade de pagar o custo de grandes transformações econômicas e sociais, como a reforma agrária1 1 É o que nos diz o influente Francisco Graziano, que foi presidente do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária: "... nada comprova que dar um pedaço de terra para essas famílias marginalizadas seja a única, nem a melhor solução, do ponto de vista do interesse público. Talvez um bom emprego seja preferível ao assentamento. Ou então, tratá-las com mecanismos de política social, assistindo-as devidamente, garantindo-lhes alimentação e saúde" (Graziano, 1996, p. 19; Graziano Neto, 1998, p. 168). Graziano se esquece, como é comum entre os que se preocupam com a questão social do campo de um ponto de vista meramente econômico, que a luta pela terra, da qual deriva a luta pela reforma agrária, é também uma luta pela inclusão, pela inserção social ativa, produtiva, participante e criativa, na sociedade, é luta por dignidade e respeito e não por aquilo que na consciência popular é tido como esmola. .

Nesse âmbito mais amplo, os sujeitos das contendas relativas à questão agrária não são, obviamente, pessoas determinadas com nome e endereço, mas sim personificações dos dilemas e possibilidades de cada momento e da situação social da pessoa. A conflitividade polarizada no tema da reforma agrária propõe que se evite esse território gelatinoso do conflito de opiniões e dos antagonismos partidários e, freqüentemente, eleitorais, para considerar o tema tendo como referência não o governo e menos ainda o governante ou o ministro, mas o Estado. A questão agrária está no centro do processo constitutivo do Estado republicano e oligárquico no Brasil, assim como a questão da escravidão estava nas próprias raízes do Estado monárquico no Brasil imperial. Tanto que o término da escravidão negra em grande parte decretou o término da monarquia. O tempo da questão agrária é o tempo longo dos bloqueios, dificuldades e possibilidades a que o Estado faça uma revisão agrária de alcance histórico e estrutural, mais contida ou mais ousada.

Convém não esquecer de que sendo a questão agrária mais do que a questão dos antagonismos de classes sociais, é também uma questão estrutural maior do que a das questões econômicas, a questão da pobreza, a questão das injustiças sociais. Uma reforma desse tipo interessa não apenas aos pobres, como freqüentemente se supõe. A principal frente de luta e as principais lideranças da luta pela reforma agrária vêm da classe média, ainda que de uma classe média recente, e não raro de intelectuais que não têm nenhum vínculo com a terra ou a agricultura, razão, aliás, das muitas distorções que tem alcançado o debate político sobre o tema.

Estamos em face de um processo histórico em que claramente interesses contraditórios se combinam e forças contrárias se empenham numa certa mesma direção básica. Não só grupos populares estão querendo, mais do que uma reforma agrária. Querem uma revisão do direito de propriedade ao contestarem na prática a sua legitimidade. Também o Estado, e mesmo setores das elites (como os intelectuais, a classe média, setores das forças armadas, as igrejas) estão empenhados nessa revisão ainda que de diferentes modos, mesmo que se desentendam em relação àquilo em que de fato pensam da mesma maneira. A questão agrária hoje é um conjunto de pontas desatadas desse longo e inacabado processo histórico. É nessa perspectiva que pretendo situar a política de reforma agrária do governo atual, em função justamente das mudanças acentuadas que atingem sua definição na quadra histórica presente. É nessa perspectiva, também, que pretendo situar as posições e antagonismos dos contestadores da atual política de reforma agrária. Num caso e noutro, o objetivo é confrontar posições, orientações, decisões e ações com o que sociologicamente é o conjunto de possibilidades históricas para concretizar uma reforma agrária no Brasil.

Não só estão ocorrendo substanciais e significativas mudanças na orientação do Estado brasileiro quanto a isso, como também a sociedade, e nela os grupos mais ativamente interessados numa reforma agrária, está passando por um período muito rico e muito criativo no que se refere a inovações sociais. O fato de que as inovações estejam sendo praticadas por grupos e sujeitos que aparentemente se combatem, não exclui evidências muito claras de encontro e cooperação criativa entre Estado e sociedade para realizar o que pode ser uma importante experiência de reinvenção social na história contemporânea do Brasil.

As ciladas da História na fragilização da questão agrária

É evidente que há no Brasil uma questão agrária. Mas, uma questão agrária que parece distanciada das condições históricas de sua solução definitiva, porque esta sociedade perdeu as poucas oportunidades históricas que teve para resolvê-la. Temos uma questão agrária administrada, sob controle, em grande parte porque, mesmo na máxima exacerbação da luta dos que reivindicam a reforma agrária, ela não se revela comprometedora para o funcionamento dos diferentes níveis do sistema econômico e do sistema político. Ela tende a aparecer residualmente como um problema social não referido a uma questão estrutural.

Para compreender a real natureza dos impasses atuais é preciso remontar à gênese da luta pela reforma agrária e às peculiaridades de seus protagonistas. Com a questão agrária ocorreu algo parecido ao que ocorrera com o problema da escravidão. O fim da legalidade da escravidão no Brasil não foi fundamentalmente resultado de uma luta dos escravos e sim de uma luta das classes dominantes, sobretudo dos chamados liberais exaltados, para que os grandes proprietários de terra fossem, eles sim, libertados do ônus econômico e das irracionalidades econômicas do cativeiro. Houve, sim, lutas pessoais e grupais de escravos pela própria liberdade. Mas, essas lutas nunca confluíram para um projeto coletivo e nacional de libertação dos negros escravizados. É significativo que a promulgação da Lei Áurea tenha ocorrido durante o governo de um gabinete Conservador, constituído por bacharéis e grandes proprietários de terra. O modo como se deu o fim da escravidão foi, aliás, o responsável pela institucionalização de um direito fundiário que impossibilita desde então uma reformulação radical da nossa estrutura agrária.

A reivindicação da reforma agrária, do mesmo modo, nasceu nos anos cinqüenta como reivindicação dos setores esclarecidos da classe média urbana, de setores católicos conservadores e familistas, marcados por moderado e cauteloso empenho, de alguns setores católicos de esquerda e de uma fração das esquerdas laicas. Portanto, mais por um impulso ideológico e por motivação humanitária voltada para a solução das injustiças sociais do que, propriamente, por ser expressão de uma inadiável necessidade de mudança. Geralmente, as transições sociais lentas, como as nossas, tendem a chegar fora de hora à consciência dos setores médios desenraizados, que se sentem impelidos, não raro tardiamente, a radicalizar as mudanças para acelerá-las. Em parte, a luta pelas reformas de base, entre as quais a agrária, teve essas características. Minha impressão, aliás, é a de que dois grandes problemas nacionais, o da violência contra os posseiros da Amazônia e o do trabalho escravo na mesma região, cujo momento agudo ocorreu nos anos setenta e nos anos oitenta, só agora chega com um ímpeto defasado à consciência de alguns setores da classe média urbana, que deles não tomaram ampla consciência no devido tempo.

Justamente essa origem "fora de lugar", na classe média, revestiu a luta pela reforma agrária entre nós de uma intensa ambigüidade, da qual não se libertou até hoje. Basta ter em conta que sob o mesmo rótulo de reforma agrária havia desencontrados projetos de intervenção no direito de propriedade, sempre em nome de terceiros, os trabalhadores rurais. Grupos mais do que antagônicos, inimigos, preconizavam a reforma agrária. Uns em nome do conservadorismo. Outros em nome da revolução. Sem contar que as esquerdas estavam, a respeito, radicalmente divididas. De um lado, havia uma proposta de reforma agrária claramente conservadora, sobretudo a mal definida reforma católica. De outro, havia uma proposta de reforma agrária radical, a das Ligas Camponesas, também ela não muito clara.

A Igreja estava preocupada com a questão social do campo, mais do que com a questão agrária, em posição oposta à do Partido Comunista e por oposição a ele. Na linha do conhecido documento pioneiro de Dom Inocêncio, bispo de Campanha (MG), de 1950, a Igreja reconhecia o risco político das migrações, do êxodo rural e do desenraizamento, que supostamente lançariam os pobres do campo nos braços dos comunistas nas cidades de destino, como Rio e São Paulo. A Igreja passava a pensar alternativas no sentido da preservação da unidade familiar de produção, do trabalho familiar e da família, trabalho familiar que incluía o trabalho não autônomo dos colonos das fazendas de café no Sudeste e dos moradores das fazendas de cana de açúcar no Nordeste, cuja continuidade era comprometida pelas migrações para o meio urbano.

A reforma agrária, ainda sem qualquer definição, passava a ser um objetivo para ela, porém contido e limitado pelo temor de questionar o direito de propriedade e os direitos da classe de proprietários de terra. Era uma motivação conservadora e de direita, menos construída em cima de uma práxis social, que ainda não tinha lugar, uma espécie de antecipação preventiva, e muito mais derivada de um claro antagonismo ideológico em relação às esquerdas. Justamente por isso, Dom Inocêncio reuniu fazendeiros para produzir sua carta pastoral a favor de uma reforma agrária, com base numa posição claramente anticomunista.

Uma exceção anômala nas esquerdas, que poderia ter representado a alternativa de esquerda para a questão fundiária, foi a postura das Ligas Camponesas. O socialista Francisco Julião, também em oposição ao Partido Comunista e por ele hostilizado, mas igualmente hostilizado pelos católicos, procurado pelos trabalhadores de um engenho, propôs que o problema se resolvesse pela Lei do Inquilinato, que já existia, na qual se enquadravam os direitos de parceiros, arrendatários e moradores. Era apenas o preâmbulo da reforma agrária radical por ele preconizada. Mesmo assim, um radicalismo aquém do que entendiam alguns ser o necessário. Do que decorreu o extremismo de Clodomir Moraes e seu grupo, seu afastamento das Ligas, e a fracassada tentativa da guerrilha em Dianópolis (GO). Na base, portanto, uma proposta conservadora, campesinista, e a inquietação camponesa como base de um radicalismo político na superestrutura. Algo muito parecido com o que ocorre atualmente. E na mesma linha, mais adiante, a ação do Partido Comunista do Brasil, secessão filochinesa do Partido Comunista Brasileiro, que preconizava uma via camponesa para o socialismo.

Em geral, os autores de hoje se esquecem de que, antes do golpe, os que se inquietavam com os problemas do campo não estavam articulados por uma interpretação unânime de causas e por unânime proposição de projetos sociais. Os que se identificavam com as idéias do Partido Comunista Brasileiro entendiam que tinha precedência em relação à reforma agrária e a ela se sobrepunha a regulamentação das relações de trabalho no campo. A reforma poderia fortalecer um campesinato cuja condição de classe o levaria para posições conservadoras e de direita. Para esse grupo, estávamos no limiar de uma etapa de desenvolvimento capitalista que pedia modernização das relações de produção, viabilização do trabalho assalariado e transformação dos trabalhadores rurais numa classe operária do campo. Essas concepções perduraram fortemente entre militantes e intelectuais de esquerda, e ainda perduram, e foi um dos fatores da contestação surda, mais tarde, do trabalho da Pastoral da Terra e, até mesmo, um dos fatores do aparelhismo que o atingiu. Hoje estamos em face de uma espécie de esquizofrenia política derivada de uma prática apoiada na realidade do trabalho familiar e de uma ideologia referida a uma classe operária teórica, que raramente se confirma na realidade.

Dessa visão do problema rural resultou, antes do golpe de 1964, uma aliança parlamentar entre a esquerda, os trabalhistas e o que se poderia definir como liberais e nacionalistas para viabilizar a lei de regulamentação das relações de trabalho. Que se consumou com o que na prática foi a extensão das leis trabalhistas aos trabalhadores rurais, supondo-se que isso transformaria as atrasadas relações do colonato no café, da moradia na cana-de-açúcar, do arrendamento em espécie e em trabalho e da parceria em relações contratuais e assalariadas. Era a reivindicação das esquerdas, que raciocinavam a partir de uma concepção de história por etapas. Aí se proclamava a suposta superioridade histórica do trabalho assalariado sobre o trabalho camponês e familiar. Foi, assim, aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, em 1962, durante o governo de João Goulart, que viabilizava a interpretação legal dos conflitos não como conflitos fundiários, embora muitas vezes o fossem, mas como conflitos trabalhistas, embora nem sempre o fossem.

Essa vitória das esquerdas cindiu a luta no campo, esvaziando significativamente o empenho dos que lutavam pela terra ou cuja luta tinha mais sentido como luta pela reforma agrária do que por direitos trabalhistas (cf. Gnaccarini, 1980, p. 177; Furtado, 1964, p. 150-151). De certo modo, amplos setores da esquerda institucional esvaziaram ou ao menos enfraqueceram definitivamente a luta pela reforma agrária. Quando, nos anos recentes, em face das óbvias evidências de radicalismo agrário, esses grupos todos, com variados graus de relutância e incerteza, aceitaram finalmente a evidência da força política do trabalho familiar nas singularidades próprias da sociedade brasileira, acabaram se defrontando com um impasse criado por eles próprios. A ação das esquerdas, já antes do golpe de 1964, dividiu e enfraqueceu a massa dos trabalhadores rurais, segmentando-a em dois grupos com interesses desencontrados: os que lutam pelo salário e pelos direitos trabalhistas, de um lado, e os que lutam pela terra, de outro. Mesmo aglutinados numa única corporação sindical, a Contag - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - foram raros os momentos de coincidência de propósitos e de táticas dos dois grupos. Com freqüência, aliás, tem se falado na conveniência de separar os dois grupos em organizações distintas.

Ficava, pois, em grande parte inviável o projeto, muito pouco elaborado aliás, de uma reforma agrária que transformasse as relações atrasadas do campo em autonomia camponesa e numa economia familiar moderna. A Igreja cometeu sérios erros e relutou comprometedoramente em assumir em tempo a reforma agrária como meio apropriado de política social que assegurasse às suas bases camponesas o direito sobre a terra, pois essa reforma a colocaria numa relação conflitiva com os grandes proprietários de terra, dos quais era uma aliada histórica.

Antes que a Igreja firmasse um ponto de vista oficial e uma posição doutrinária a favor da reforma agrária, o que só se daria em 1980, com o documento Igreja e Problemas da Terra, depois de um lento amadurecimento de sua experiência de pastoral da terra, a ditadura teve dezesseis anos para desmantelar os quadros das esquerdas que atuavam no campo. E sobretudo para concretizar a própria intervenção do Estado no sentido de promover e alicerçar uma aliança entre terra e capital que reduzia o alcance de qualquer reforma agrária porque retirava do capital a necessidade de incluir em seus propósitos políticos o interesse por ela. Aliança cimentada, também, no plano político mediante a repressão policial e militar que promoveria uma limitada reforma agrária dentro da ordem instituída pela ditadura. Aliança garantida pela política de incentivos fiscais e de subsídios para a conversão das empresas urbanas (indústrias, bancos, empresas comerciais) em proprietárias de terra. Essencialmente, o golpe de Estado assegurara que a propriedade da terra, isto é, a renda fundiária, continuaria sendo um dos fundamentos da acumulação e do modelo capitalista de desenvolvimento no Brasil. Portanto, um capitalismo discrepante em relação ao modelo dominante nos países hegemônicos.

Desde 1964, justamente em face dos impasses políticos resultantes da questão agrária, que levaram ao golpe, o Estado brasileiro criou um aparato institucional para administrar a questão fundiária, de modo a que ela não comprometesse e não comprometa os planos nacionais de desenvolvimento que a têm como um dado secundário.

Não houve reforma agrária em lugar algum em que ela não se apresentasse no centro dos impasses históricos. E estar no centro dos impasses históricos depende da própria história e das contradições sociais e não do voluntarismo político de grupos, partidos ou pessoas. Mesmo em 1964, o problema fundiário não respondia sozinho nem principalmente pela crise política. No Brasil de hoje, a questão agrária é, certamente, uma das fontes mediatas dos problemas sociais, mas não a fonte imediata. Este não tem se mostrado como o momento histórico de uma reforma agrária que ponha radicalmente em questão as origens das nossas injustiças sociais e que propicie uma revisão radical dos nossos rumos históricos. As circunstâncias históricas e as composições políticas, mesmo e sobretudo das oposições, não apontam nessa direção. Não o é justamente porque os protagonistas de uma eventual revisão de curso histórico se dividiram num passado não muito distante, como mencionei. As facções atualmente em contenda ideológica e partidária não se deram conta disso e continuam atuando, especialmente as oposições, como se lá atrás, os termos da emergência política da questão agrária não tivessem sido definidos, demarcando assim o seu lugar histórico limitado nos tempos que se seguiram e em nossos dias.

A inquietação no campo produziu, portanto, em âmbitos antagônicos, já a partir dos anos cinqüenta e início dos anos sessenta, essas duas intervenções no processo político que redefiniram profundamente os rumos históricos da sociedade brasileira e a possibilidade de mudanças a partir do campo e da questão agrária: o enquadramento legal diferençado da questão da terra e da questão do trabalho (que, de fato, desde a Lei de Terras, eram uma única e inseparável questão), por iniciativa das esquerdas; e a conversão maciça do grande capital em proprietário de terra, por iniciativa da direita. Essas duas grandes transformações históricas das últimas décadas bloquearam, talvez para sempre, a possibilidade de uma reforma agrária referida à dimensão clássica da questão agrária, a do impasse histórico que inviabiliza o desenvolvimento do capitalismo.

O impasse histórico, a contradição entre terra e capital, que sustentava a luta remanescente pela reforma agrária, se resolveria pelo caminho inesperado e pelo antimodelo de um capitalismo rentista. Para administrar e controlar os problemas sociais e políticos que pudessem advir dessa opção, o regime militar editou o Estatuto da Terra e promoveu a reforma constitucional que tornaria aquela reforma agrária possível. O próprio golpe de Estado selara de vez não só a modalidade de reforma agrária politicamente tolerável, mas também seu lugar limitado nas transformações históricas futuras, o que a Constituição de 1988, editada com livre e clara participação das esquerdas, e contra sua vontade, limitou mais ainda2 2 "Praticamente a única derrota social que ocorreu na Constituinte foi na questão agrária, pois em todos os outros itens houve avanços" (Stedile & Fernandes, 1999, p. 67). .

Não é, portanto, por acaso que o confronto atual entre as oposições e o governo esteja profundamente marcado por questões inessenciais. Uma delas é o empenho do MST, da CPT e de vários intelectuais de esquerda na reinvenção da reforma agrária. Uma boa parte do discurso dessas agências de mediação é hoje dedicada ao conceito de reforma agrária e praticamente nada é dedicado à questão agrária, embora muito se fale na reforma agrária, propriamente dita3 3 A necessidade de, ao falar de reforma agrária, ter que conceituá-la ao mesmo tempo, como ocorre com militantes e especialistas, já é em si mesma uma indicação do terreno impreciso em que medram antagonismos e contestações que não se fundam na própria questão agrária e que se deslocam para o terreno mais complexo do questionamento de legitimidades (cf. Stedile & Fernandes, 1999, p. 157 e ss.; Fernandes, 1998, p. 2; Abelém & Hébette, 1998, p. 246; Carneiro et alii, 1998, p. 267). Convém ter em conta que, para questionar legitimidades e afirmar a própria suposta legitimidade, é necessário ganhar eleições majoritariamente e com margem suficiente para propor alterações radicais na ordem legal e política. . O que é a questão agrária no Brasil de hoje, afinal de contas, que justificaria a necessidade de uma reforma agrária e qual reforma agrária? O empenho é muito mais acentuado na resposta a um problema que se supõe definido do que na pergunta que poderia definir o problema a ser resolvido.

Qualquer ato do governo em relação à reforma agrária é questionado em nome do fato de que não se trata de reforma agrária. Autores e militantes dizem com freqüência que a regularização fundiária da situação dos posseiros na extensa e complicada região amazônica e no centro-oeste não é reforma agrária e não deveria entrar nas estatísticas oficiais da reforma. Estranhíssima interpretação. Todo o atual aparato institucional das oposições para lutar pela reforma agrária nasceu, floresceu e se consolidou com as sangrentas lutas dos posseiros, sobretudo da Amazônia Legal, para terem seu direito à terra de trabalho reconhecido e legalizado. As grandes lutas pela terra nos anos sessenta e setenta e ainda nos anos seguintes foram fundamentalmente lutas pela regularização fundiária. Então, as oposições à ditadura, a Igreja (e não só a CPT) e a Contag definiam essas regularizações como reforma agrária e clamavam por ela com base no Estatuto da Terra outorgado pela ditadura militar.

De fato, a regularização fundiária no Brasil é, na maioria dos casos, legítimo ato de reforma agrária. Apenas quem não conhece a realidade social do campo pode supor que a regularização é mero ato administrativo sem maior alcance. A sofrida e sangrenta resistência dos posseiros à sua expulsão violenta da terra para beneficiar grileiros e latifundiários e viabilizar a política de consolidação da aliança da terra com o capital, fator de esvaziamento da reforma, impôs ao Estado brasileiro nos anos mais difíceis e repressivos da ditadura a necessidade de atenuar e redefinir parcialmente o seu projeto fundiário. Foi o que salvou o país de se transformar num território de enclaves do poder absoluto do capital latifundista. Esquecer disso ou não saber disso, desqualifica qualquer análise pretensamente crítica da reforma agrária em andamento. A regularização da situação fundiária dos posseiros de extensas regiões do país foi e é um legítimo ato de reforma agrária porque impõe limites ao processo expropriatório que daria ao país uma estrutura fundiária muito mais concentrada e latifundista do que a atual. Chamo a atenção para a proliferação de municípios e cidades onde essa resistência ocorreu, conseqüência de ações que impuseram limites ao enclavismo do latifúndio.

Um segundo questionamento da ação governamental é o da impugnação da política de assentamentos sob o pretexto de que assentamento não é reforma agrária. Ora, assentamento é a forma da redistribuição da terra, que é em que consiste, no essencial, qualquer reforma agrária. Reforma agrária é todo ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra quando esta representa ou cria um impasse histórico ao desenvolvimento social baseado nos interesses pactados da sociedade. Pacto que só se torna eficaz através da mediação dos partidos políticos e no âmbito do possível. Isto é, no âmbito das concessões que as forças em confronto possam fazer para viabilizar uma transformação institucional e social necessária e inadiável em favor do bem comum. E não em favor dos interesses particularistas de uma classe, ou fração de classe, ainda que beneficiando-a de algum modo, seja ela de pobres ou de ricos. Quando os partidos não conseguem chegar a um acordo em nome da sociedade para viabilizar uma reforma desse alcance, abre-se o caminho para a revolução. Mas, a revolução não depende de irritações pessoais. Também ela depende de um consenso básico a respeito do que é necessário, mas se tornou inviável pela via da negociação. Quem se recusa à negociação desde o início da proposição de um problema político, não só não viabiliza seu projeto por caminhos institucionais como não o viabiliza por caminhos revolucionários. É o que se chama de voluntarismo.

Um terceiro questionamento da ação do governo diz respeito aos "números da reforma agrária". O bate-boca em torno desse tema é uma clara expressão do desenraziamento do tema da reforma agrária. Considerar assentamentos todos os casos em que a família se credenciou para receber um título de propriedade de terra inflaciona os números do êxito governamental sem evidenciar, como é necessário, a diversidade de situações problemáticas que pedem ao governo uma ação de política fundiária. A explicitação dessa diversidade, aliás, já obrigaria o MST e a Igreja a melhorarem os seus números e revelaria âmbitos de atuação diversificada das agências de mediação em que a qualidade da sua ação é claramente desigual e até insatisfatória.

Os números de outras agências de mediação também têm fragilidades que em nada ajudam na luta em favor dos injustiçados do campo. Utilizam um modo de calcular a clientela potencial da reforma agrária que repete os erros de procedimento similar adotado pela Contag durante toda a ditadura. O modo como a Contag utilizava os dados do censo introduzia um viés óbvio no número de vítimas do regime fundiário: somava o número de assalariados, ao de posseiros, arrendatários e parceiros e ao de proprietários minifundistas. No cálculo dos assalariados usava os dados do censo agropecuário, sem levar em conta a rotatividade da mão-de-obra agrícola e o fato de que cada trabalhador é, provavelmente, nesse censo, contado várias vezes. Chegava a um número fantástico de mais de uma dezena de milhões de pessoas que supostamente precisavam e pediam uma reforma agrária.

O fato de que os números de assentamentos e regularizações no governo de Fernando Henrique Cardoso ultrapassem os trezentos mil não mede satisfatoriamente a demanda de terra por parte do agricultor familiar, pois o número de sem-terra nas ocupações não diminui. De qualquer modo, há um único número realista, que é o do próprio MST, muito aquém desses números todos. Em termos reais, a efetiva demanda por reforma agrária é constituída pelos sessenta mil sem-terra acampados nas ocupações. É evidente que isso não quer dizer que o problema social da terra se limite a eles. Mas, são eles que expressam acima de qualquer dúvida uma demanda por reforma agrária urgente. É inútil dizer que há 4,5 milhões de famílias sem-terra em todo o Brasil, se apenas cerca de sessenta mil assumem essa identidade. Isso é o que conta politicamente. No mínimo estamos diante de uma demanda diversificada de reforma agrária, que reflete as diversidades regionais do país, o que pode explicar a também diversificação das agências de mediação e o aparecimento de várias delas que preferem encaminhar suas reivindicações por dentro das possibilidades institucionais.

Apesar dos assentamentos e regularizações crescentemente realizados, há também uma renovação cíclica crescente da clientela de reforma agrária. Portanto, essa clientela não procede exclusivamente daquilo que pode ser indicado por estatísticas que se referem, excetuadas a dos assentamentos recentes e a dos acampados, a um passado em que esse problema cambiante era diverso do que é atualmente. Raramente, os dados estatísticos de referência para considerações sobre o presente tem menos de dez anos, quando as coisas eram bem diversas do que são hoje e quando a ação do Estado era bem modesta em comparação com a atual.

A reforma agrária é um tema político que se propõe em termos qualitativos e não em termos quantitativos. Não é o número de desapropriações ou o número de assentamentos em terras desapropriadas ou compradas que definem o perfil da reforma agrária brasileira, sua justeza ou não. O essencial é que haja um setor ponderável da sociedade reivindicando a ampliação do lugar da agricultura familiar no sistema econômico e que em parte essa agricultura familiar esteja nas mãos de pessoas que se ressocializaram na luta pela reforma agrária e nela se politizaram. É o que assegura no campo e no interior a diversificação das oportunidades de trabalho e a modernização não só econômica, como também das mentalidades e das relações sociais. Mesmo que a referência ideológica seja equivocada e insubsistente, posta além da realidade histórica de quem luta pela reforma ou é por ela alcançado. É uma descabida perda de tempo essa querela sobre números que, tanto num lado como no outro, representam algo diverso do que está sendo discutido.

É evidente que o MST, com apoio da Igreja, tem uma proposta de reforma agrária em que a sua forma difere profundamente da forma que lhe dá o Estado brasileiro desde o Estatuto da Terra e, pode-se dizer, desde a Lei de Terras de 1850. A reforma preconizada pelo Estado esteve longamente subjugada, e não só agora, pelo princípio jurídico de que a propriedade da terra neste país é propriedade individual ou de uma associação de indivíduos. Passa, portanto, por um direito individual e não por direitos coletivos ou comunitários, que são os que dão sentido às propostas do MST e da Igreja, mais naquele do que nesta. Foi somente em 1980, que a CNBB em seu documento Igreja e Problemas da Terra reconheceu e pediu o reconhecimento de um direito costumeiro muito presente entre os pobres de amplas regiões brasileiras, que conflitava com o direito dominante e os desfavorecia nos confrontos com a justiça oficial. A Constituição de 1988, de algum modo incorporou esse reconhecimento. Abriu caminho para um reparo parcial, embora tardio, das injustiças fundiárias que decorreram do direito absoluto de propriedade implantado pela Lei de Terras. Esse direito anulara o direito costumeiro fundado no anterior regime de sesmarias, um direito baseado na justa concepção de que o trabalho e a obra do trabalho têm precedência moral em relação aos privilégios de um direito de propriedade fundado no poder ou na compra e na venda. Ao menos, abriu um leque de alternativas para uso social do solo.

A eficácia das intervenções do MST, e sua extraordinária prática de reinvenção social nos assentamentos em que está presente, tem se beneficiado amplamente dessa conquista, embora seus dirigentes e seus militantes não o saibam. A que se junta a abertura de canais de cooperação do Estado, que a reforçam ainda mais nesta conjuntura histórica de fortalecimento da sociedade civil e seu protagonismo. Além do extenso número de assentamentos e regularizações, a cooperação técnica e creditícia, mesmo que na oscilante e até insuficiente disponibilidade de créditos. O que ao mesmo tempo mostra que essas alternativas são inúteis se a reforma agrária ficar exclusivamente nas mãos de técnicos e burocratas públicos, pois são alternativas que dependem de uma ação direta da sociedade e de uma mística de inovação que o empregado do Estado raramente tem. Nos assentamentos, o trabalhador familiar movido por essa mística pode ousar além do imaginável pelo racionalismo formal e burocrático de técnicos e funcionários governamentais.

Portanto, qualquer que seja o número de famílias assentadas ou cuja posse de terra foi regularizada, que ultrapasse o número dos acampados, representa um ganho histórico na luta pela reforma agrária, pois representa inclusão de pessoas no âmbito do direito e do contrato social, inclusão de excluídos. Representa, também, inclusão na alternativa da agricultura familiar com apoio institucional do Estado e a criação de uma situação social que torna amplamente viáveis as inovações sociais propostas pelos beneficiários em nome da mística acima referida e com base no protagonismo histórico da própria sociedade civil. Nesse plano, o governo se situa adiante da reivindicação popular ativa. Ao mesmo tempo, a estabilidade do número de acampados que reivindicam assentamento denuncia insuficiências da política fundiária, pois nos fala de uma contínua recriação de uma forma perversa de pobreza, que é a exclusão e a privação da inserção ativa nas possibilidades sociais e econômicas das novas tendências históricas.

Já o desencontro de opiniões quanto ao que deva e como deva ser a reforma agrária, sobretudo entre os insatisfeitos com a reforma, nos põe diante de uma pobreza de consciência histórica que decorre da desinteligência entre a prática e a teoria dessa prática. Este último é, sem dúvida, o mais grave dos problemas, pois, em nome das paixões e dos interesses partidários e eleitorais de uma classe média profundamente dividida e amplamente desprovida de consciência histórica, dificulta, restringe ou mesmo inviabiliza um serviço aos pobres num momento dramático da economia mundial. Uma classe média cujo antagonismo intransigente em relação ao que vem sendo feito no âmbito do possível é, na história de nosso país, muito mais expressão de uma postura já antiga de tutela iluminista dos pobres e desvalidos, muito mais resquício de uma cultura de tutela gestada na casa-grande, muito mais expressão de uma mentalidade de culpa, pena e caridade do que de uma mentalidade revolucionária.

A fabricação da História na disputa de legitimidades

O desencontro de interpretações sobre os números da reforma agrária, entre o entendimento que deles têm o MST, a Igreja e o PT, de um lado, e o entendimento que deles tem o governo, de outro, revela um território de ficção de grande importância sociológica e política para a compreensão dos confrontos atuais em relação ao tema. Essa é uma ficção reveladora do que é, no conjunto, o embate entre um lado e outro. A compreensão desse conjunto é fundamental para situar e definir o estado da questão agrária e da reforma agrária possível nesta conjuntura histórica. Como mostrei antes, os números utilizados não nos indicam a natureza e o tamanho do problema. Sobretudo, não nos indicam quem são os verdadeiros sujeitos da luta pela reforma agrária. Essa parece ser a grande dificuldade do MST e da Contag, e dos que os apóiam, e é, ao mesmo tempo, a grande dificuldade do governo. Temo que aí resida um fator de afastamento potencial entre essas agências de mediação da luta pela terra e os reais protagonistas dessa luta.

Uma outra expressão do caráter ficcional dos números é a ficção da História fabricada, em que agências ou grupos de mediação da luta dos trabalhadores rurais buscam legitimidade para sua justa intervenção na conversão da luta pela terra em luta pela reforma agrária. Essas agências têm uma concepção difusa do processo histórico sobre o qual incide a sua prática. Não é uma concepção fundada diretamente em sua rica experiência nem é concepção fundada em boa teoria. Antes, é concepção que resulta de mediações ideológicas utilizadas como suporte de uma intervenção em que o protagonista real não tem condições históricas de se interpretar diretamente. Esse é sempre um complicado tema na história das lutas camponesas. Está relacionado com o fato de que as mediações interpretativas da luta pela terra são realizadas por agentes de classe média e a ação se apóia numa visão do processo histórico que é própria dos setores militantes e radicais dessa classe e não do campesinato4 4 Estou utilizando a palavra "campesinato" porque é designação incorporada, pela via política, ainda que indevidamente, ao vocabulário corrente no trato da questão agrária. .

No meu modo de ver, os intelectuais orgânicos diretamente envolvidos na luta pela reforma agrária não só, no geral, partidarizaram sua visão do problema, a partir de sua própria inserção de classe, o que já é um complicador do entendimento dos confrontos atuais. Mas, também, estão empenhados em criar um senso comum que promove radical revisão da história da sociedade brasileira com o objetivo de legitimar a luta política de que participam. Esperam com isso legitimar historicamente o pleito da reforma agrária e o resultado acaba sendo exatamente o oposto. É fácil identificar em seu discurso categorias referidas à necessidade de uma revisão histórica que atribua aos pobres um lugar central na história social do país, mesmo que à custa de distorções óbvias. Esse revisionismo populista não se limita aos trabalhadores rurais. Por conta das mesmas mediações de classe média, ele se estende aos grupos étnicos e raciais, como os índios e os negros e se estende a outras classes sociais, como a classe operária. Estou inteiramente de acordo com a necessidade epistemológica de uma revisão do que se sabe sobre o lugar social das diferentes categorias sociais no processo histórico. Mas, estou inteiramente em desacordo com a ideologização dessa revisão, que deve ser feita com critérios científicos rigorosos.

Os resultados da revisão ideológica são melancólicos. Os militantes negros fetichizam a história de Palmares e omitem informações importantes para que se compreenda porque de fato as populações escravas neste país nunca conseguiram realizar uma insurgência que as tornasse ativas protagonistas de transformações sociais que as beneficiassem. Omitem os conflitos entre etnias negras, omitem as enormes diferenças culturais entre essas etnias, omitem o envolvimento de etnias inimigas na captura, escravização e venda de negros de outras etnias aos traficantes brancos, omitem que em Palmares também havia escravidão e que, por isso, a longa luta ali desenvolvida nada tinha a ver com os princípios da cidadania proclamados mais de um século depois pela Revolução Francesa. A concepção de liberdade que os palmarinos conheciam e praticavam não era muito diferente da relativa liberdade das concepções dos senhores de escravos, uma liberdade circunscrita aos limites de um estamento, apoiada, portanto, em desigualdades sociais profundas.

O mesmo se pode dizer de Canudos. Já ouvi um professor universitário afirmando num documentário que a luta de Canudos era uma luta socialista e igualitária, pela socialização da propriedade da terra. E ouvi, também, o professor José Calasans, competente especialista na história de Canudos, contrapondo-se a essa esdrúxula interpretação com ceticismo, citando nominalmente moradores e participantes da guerra que eram comerciantes e proprietários. Sem contar que a luta de Canudos foi em grande parte uma luta camponesa, mas não foi diretamente uma luta pela terra, que lá não tinha o menor sentido. Canudos foi uma guerra religiosa, em que os moradores tiveram como inimigos e algozes o Estado e a Igreja. Tanto um quanto outra, de diferentes modos, se envolveram no desencadeamento da guerra porque estavam divididos por suas próprias crises: o Estado e seu republicanismo de cúpula, recente e incerto; a Igreja e os problemas internos derivados da romanização. Sobretudo, por um e por outra Canudos era considerado um perigo político e um perigo religioso. Sem contar que os sertanejos de Canudos não declararam guerra a ninguém: foram atacados, como tem acontecido em todas as lutas camponesas deste país, lutas passivas e defensivas. Canudos foi resultado do grande desencontro que separa, ainda hoje, neste país, as elites do povo, desencontro que aparece freqüentemente entre mentores e povo nas lutas recentes pela terra. As elites políticas e sua massa, a classe média, não têm a menor compreensão dos códigos que explicam o mundo e regem a vida dos pobres no Brasil. Indício do ainda forte caráter estamental de nossas classes sociais. Isso vale tanto para os setores da elite que estão nos movimentos sociais quanto para os setores da elite que estão no "outro lado", no Estado5 5 Marcelo Sampaio Carneiro et alii, em seu estudo sobre a reforma agrária no Maranhão, insistentemente chamam a atenção para o grande desencontro cultural que há entre técnicos do governo e assentados, sublinhando que os técnicos são "completamente ignorantes acerca do cálculo camponês no que toca à produção para auto-consumo e para comercialização" (Carneiro et alii, 1998, p. 275). Convém ter em conta o risco de ignorância semelhante do outro lado, o dos intelectuais que apoiam a luta pela terra e se empenham na causa da emancipação dos pobres da terra. O problema mais comum é o do resgate etnográfico de categorias do pensamento popular sem o correspondente resgate da lógica camponesa mediadora das possibilidades do processo histórico, o possível próprio da dialética, sem o que caímos num reducionismo que compromete seriamente os propósitos do apoio e da identificação. .

Um dos resultados desse desencontro tem sido o da extemporânea tomada de consciência de que a história do país é uma história de injustiças sociais acumuladas, de violências reais e simbólicas incorporadas na rotina de vida dos trabalhadores do campo e da cidade. E outro resultado é a consciência maniqueísta desse processo, particularmente clara nos confrontos relativos à questão agrária.

No meu modo de ver, por essas razões, os grupos de mediação concebem a questão agrária, tardiamente, como se ainda fosse predominantemente uma questão estrutural e histórica. Essa concepção se baseia em vários deslocamentos, que têm a ver com o método de leitura da realidade. Usam um método que acumula, que soma, informações históricas. À medida em que mais informações são colhidas sobre a história dos pobres é como se elas se agregassem para constituir um tipo humano, um pobre sempre igual e sempre o mesmo ao longo da história, o que é uma abstração. Esse pobre não existe, não é real nem tem personalidade política. Desse modo, a história aparece como uma soma; não como um movimento de tensões e desencontros, um contraditório processo, uma sucessão de momentos, em que a "bondade" e a "maldade" (se é que se pode falar assim) intercambiam-se entre categorias sociais, conforme a circunstância. Isso nos impede de ver que no processo reprodutivo de uma sociedade profundamente marcada por injustiças, a reprodução só é possível com algum grau de conivência da vítima cooptada pelas circunstâncias e pelas próprias urgências da vida. A História não é apenas um contínuo processo de rupturas. É, também, um processo de contínuas recriações e reiterações.

No camponês de hoje já não subsiste o camponês do passado, senão como um conjunto de superações. Quando se fala em 500 anos de injustiça, cria-se um slogan vazio baseado nessa epistemologia da acumulação, portanto, baseado numa concepção estática da história. Estática e quantitativa, em que as quantidades são interpretadas ao contrário do que são, o que é próprio do raciocínio conservador. Não há aí uma história da práxis, mas uma anti-história, uma história que tem apenas vítimas e não agentes ativos da transformação social. Mesmo silenciado e mesmo por vias indiretas o homem comum tem sido um protagonista da História. Sem essa compreensão, a luta política em nome dos pobres do campo se torna um equívoco e até um engodo.

Nesses grupos de mediação, nota-se uma tentativa de transformar num corpo ideológico coerente o que é um conjunto de resíduos de consciência e de possibilidades próprios de diferentes momentos históricos em que tais possibilidades não se consumaram. Uma petrificação ideológica que precisa ser explicada e superada, se queremos de fato nos comprometer com o destino dos pobres. A substancialização dessas sobrevivências só podem ser explicadas pela desconexão entre prática e teoria. Elas se corporificam num extenso antagonismo maniqueísta, o que talvez explique sua persistência sem a necessidade da verificação na práxis. Estando postas em termos muito gerais, elas se confirmam tanto quando as reivindicações são atendidas quanto quando não o são, na medida em que se propõem em termos de uma espécie de luta entre o bem e o mal. Esse maniqueísmo cultural é bem característico do nosso senso comum e de nossa cultura popular, uma cultura de excludência que, ao mesmo tempo, gera o conformismo maniqueísta e simplificador, que justifica tanto os ganhos quanto as perdas.

A durabilidade em geral curta dos movimentos sociais e, entre nós, sua mais ou menos rápida conversão em organizações, talvez se explique por essa dinâmica redutiva, que não cobra da ideologia a necessidade de sua verificação contínua na práxis. Portanto, um discurso ideológico que, a despeito de seu radicalismo, se conforma com uma práxis aquém das metas ideológicas e, portanto, se dilui na dimensão propriamente reprodutiva (e conformista) dos processos sociais. Trata-se de um falso radicalismo. Por isso, comporta a congérie surrealista de orientações "teóricas" discrepantes, antagônicas e desencontradas: do personalismo católico de Mounier à pseudo dialética do estruturalismo tomista de Althusser, um estruturalismo mecanicista e antidialético que busca coerências formais entre estrutura e superestrutura e não a incoerência revolucionária dos descompassos históricos que fecundam a práxis e a teoria.

Os que lutam pelos trabalhadores rurais querem uma reforma agrária confiscatória e punitiva para o latifúndio. Esse é certamente o ponto que de modo mais claro revela uma certa anulação da concepção de história. No sentido de que os débitos do passado devem ser pagos agora. O latifúndio do passado, porém, era outra coisa. Como mostrou Caio Prado Jr., a fazenda era um mundo, uma comunidade de relações entre estamentos e entre etnias, uma forma peculiar de auto-suficiência, de exploração e desigualdade, permeada por uma violência singular. Hoje o latifúndio é renda fundiária, fonte de um tributo social ao proprietário privado de terra, reserva de valor, instrumento de intervenção especulativa na economia. É o presente que justifica a reforma agrária e não o passado. Li recentemente, no título de um livro sobre o tema, a expressão "revanche camponesa". Portanto, uma certa idéia negativa de vingança, uma negação passiva e imobilista, mas não a negação da negação própria da dialética das superações e da revolução. Esse é o complicado débito teórico que informa o confronto entre MST e Estado, um débito que não afirma a positividade da sociedade contra o Estado, mas apenas a particularidade de um grupo social circunscrito.

Isso aparece, também, na idéia de 500 anos de resistência, em moda nestes dias, como se não houvesse nenhuma diferença entre os momentos históricos, como se os camponeses de hoje estivessem há quinhentos anos esperando por justiça. E os índios também. Os injustiçados morreram e seus descendentes já não têm condições nem de perdoar nem de receber a justa compensação moral e material pelas injustiças sofridas, das quais resulta a situação em que se encontram. Mudou, também, a própria concepção de justiça, sem contar que era outra a idéia que eles próprios tinham dela. Em nenhum momento se leva em conta que os camponeses que hoje majoritariamente lideram o MST são originários do Sul, descendentes de imigrantes, não raro no passado envolvidos no massacre das populações indígenas na disputa pela terra, como aconteceu em Santa Catarina nas lutas de colonos contra os Xokleng6 6 João Pedro Stedile, em seu depoimento a Bernardo Mançano Fernandes sobre o MST, relembra a importância da expulsão de 1.200 famílias de arrendatários brancos da reserva de Nonoai, pelos índios Kaingang, nos episódios precursores do surgimento da organização. E sublinha que os expulsos punham a culpa de sua situação nos índios (cf. Stedile & Fernandes, 1999, p. 25-26). Eles ocupavam as terras dos índios, que viviam na miséria, pagando à Funai um ínfimo arrendamento. . As histórias recentes de Rondônia (do confronto com os Suruí e os Uru-eu-wau-wau) são histórias de conflitos entre colonos descendentes de imigrantes do sul e do sudeste e populações indígenas frágeis e desamparadas. E o próprio MST tem sua raiz imediata na expulsão dos colonos de ascendência européia pelos índios Kaingang de Nonoai, cujas terras arrendavam da Funai mediante pagamentos ínfimos que não redundavam no bem estar dos índios, impedindo que os próprios índios as cultivassem.

É, portanto, necessário compreender a História como ela é, como processo contraditório em que o negativo e o positivo se opõem, se alternam, se combinam e se superam na produção do novo: novo momento, nova situação, novas possibilidades. O campesinato do sul tanto produziu o colono que massacrou ou explorou índios até recentemente, quanto, no período relativamente recente, produziu os agentes da luta pela terra e pela reforma agrária, quanto produziu ainda a intelectualidade orgânica em que se constituem os cleros brasileiros, majoritariamente originários do sul e de famílias camponesas, responsáveis pela admirável linha de pastoral social de católicos e luteranos. Desconhecer essas contradições não ajuda nem um pouco a firmar uma legítima bandeira de reivindicação social. Essas contradições são justamente indicativas de como as pessoas e os grupos sociais, ao longo das gerações, podem se transformar profundamente em direção a um ser humano crescentemente humanizado, emancipado e dotado de grande senso de justiça.

No ambiente que dá sentido à atuação da CPT e do MST e ao seu oposicionismo, tem havido uma busca de compensação para essas omissões nos chamados pedidos de perdão. Como o da CNBB, recentemente, que pediu perdão pela complacência e conivência da Igreja com a escravização de índios e negros, pedido que se materializará em cerimônias e rituais previstos para o ano 2000, o ano do Jubileu. Pode-se compreender a importância do gesto simbólico. Mas, é justamente um gesto que anula o sentido da história, que atribui aos protagonistas do passado o pecado do massacre e da escravização. Mas, alguém poderia dizer que a Igreja continua fazendo trabalho missionário entre os índios e que a anulação cultural do outro continua em muitos de seus setores. Embora se deva reconhecer que, com a Igreja ou sem a Igreja, setores laicos da sociedade e do Estado também realizam seu "trabalho missionário" junto às populações indígenas e pobres. Um trabalho que as violenta culturalmente, sendo justo e necessário um missionarismo de contestação orientado pelo propósito da emancipação do outro das injustiças que o degradam e da violência cultural que o aniquila, como de certo modo fizeram os jesuítas no Território das Missões.

O pedido de perdão é generoso e do ponto de vista ético é pedagógico e educativo. Mas, anula o sentido da história porque apaga, desse modo, as formas concretas de inovação e de consciência na circunstância de cada época. Na história da Igreja houve ações orientadas no sentido da emancipação das vítimas do cativeiro, como houve deliberadas ações no sentido de desconhecer a humanidade dos cativos. No pedido de perdão há a suposição historicamente equivocada de que tanto as pessoas como os grupos institucionais são culpados por não terem pensado adiante de sua época. Convém lembrar, que quem pensava adiante de sua época, nesses tempos recuados, ia para a forca ou era queimado vivo. O pedido de perdão, se não for devidamente situado pelo magistério pastoral, instrumentaliza a história contra a própria História para legitimar e justificar sem mediações os conflitos do presente. Uma nulificação da história que anula a historicidade do presente e que justifica o confronto ideologicamente maniqueísta entre MST, CPT e Igreja, de um lado, e Estado do outro. O que dá à luta pela reforma agrária características de uma guerra santa que, como toda guerra santa, é uma guerra sem alternativas e sem saídas políticas.

Essa tendência, no meu modo de ver, começou a tomar conta da ação dos agentes de pastoral a partir do final da ditadura, momento em que os bispos se afastaram do que chamavam de pastoral de suplência. Desse modo devolviam aos leigos a direção das grandes e significativas propostas da Pastoral da Terra e das outras pastorais sociais. Esse afastamento aproximadamente coincidiu com a decisão de alguns agentes de pastoral de laicizarem a luta pela terra através da fundação do MST, uma decisão apropriada num momento em que se lutava pela expansão das liberdades civis.

Mas, os leigos, por força das características da prática desses grupos de mediação, radicalizaram suas concepções e sua atuação a partir de orientações ideológicas que acentuavam o confronto e a polarização. Deixaram em segundo plano o sistema de concepções referidos à idéia de pessoa do personalismo de Mounier e da doutrina social católica7 7 Esta frase de João Pedro Stedile indica os efeitos dessa inversão de referências: "O único debate que conseguimos, nessa época, era pelo viés idealista, cristão" (Stedile & Fernandes, 1999, p. 96) (grifo meu). , que até então fora a base da intervenção dos bispos na defesa das comunidades alcançadas pelos conflitos fundiários. Em grande parte, o recurso ao que pode ser chamado de marxismo vulgar, substancialmente diverso do marxismo clássico8 8 Discordo de Zander Navarro quando ele fala em "atoleiro conceitual do marxismo clássico" para referir-se ao marxismo que informa a ação do MST. Não há nada de propriamente clássico nesse marxismo reducionista que chega até aos agentes de mediação da luta pela reforma agrária por meio de textos e de uma sofrível pedagogia de vulgarização de origem ou de inspiração althusseriana (cf. Navarro, 1996, p. 20 (nota)). , foi uma tentativa de encontrar uma definição concreta, uma cara, para os protagonistas dos conflitos que pareciam propor a emergência de um novo sujeito histórico. Novo não por sua novidade. Mas, novo por sua consciência e sua luta: enfim os trabalhadores da terra decidiam emergir das sombras e da passividade e reivindicar. Obviamente, na luta pela terra não havia a polarização ideológica que tenderia a aparecer na sua mediação pastoral, sobretudo mais tarde. A radicalidade camponesa é menos dicotômica, mais rica e culturalmente muito complexa. A mediação pastoral laicizada tende a simplificar os conteúdos dessa luta, uma luta que não se resume à luta pela terra, como aliás indica a experiência do MST nos assentamentos, mas que se estende à revitalização da família e seu mundo.

É evidente que se posseiros resistiam ou se queixavam, estavam expressando um antagonismo objetivo com quem os expropriava e com quem os explorava. Na conjuntura histórica da ditadura militar, isso significava confronto não só com os grandes proprietários de terra e grileiros, mas confronto, também, com o Estado que a estes estimulava, subsidiava e protegia com seu modelo militar de ocupação da Amazônia. Para uma igreja missionária, como a Igreja na Amazônia, não havia qualquer outra alternativa. Aceitar o programa oficial e suas conseqüências era o mesmo que renunciar ao trabalho missionário. É óbvio que houve muitas descobertas e muitos encontros nessa adversidade. Sobretudo, a notável insurgência moral e religiosa de bispos, padres, freiras e leigos contra brutalidades e injustiças.

O confinamento das igrejas em relação à alternativa escolhida pelo Estado criou a circunstância própria para que valores fundamentais do catolicismo e do cristianismo fossem revigorados e para que um certo humanismo de fundo religioso reafirmasse as opções evangélicas de bispos e agentes de pastoral. Mas, numa situação altamente politizada pelo Estado, e repressiva, as alternativas antagônicas que se abriam pediam a politização da visão de mundo católica, sobretudo a necessidade de definir e compreender as categorias sociais dos que eram vítimas da injustiça e pediam misericórdia.

A aproximação dos católicos de esquerda, educados na tradição da Ação Católica, com os grupos organizados de esquerda, apoiados em corpos doutrinários fechados, durante a ditadura militar, permitiu que os católicos se apropriassem dessas doutrinas para alargar sua compreensão da realidade social com a qual lidavam. A pobreza metodológica desse marxismo simplificado não lhes permitiu, porém, que se dessem conta do grande desencontro que havia entre a pobreza da teoria e a riqueza da prática no trabalho pastoral que se abriu inicialmente na região amazônica e depois no Brasil inteiro. Esse é certamente o mais grave impasse do momento na atuação da CPT e claramente na atuação do MST. Boa parte de seu projeto supostamente alternativo se perde no redutivismo ideológico que anula justamente o que é de fato riqueza de possibilidades e possibilidade do alternativo em sua experiência de base. Esse simplismo tem sido agravado por intelectuais comprometidos com partidos políticos identificados com uma tradição teórico-ideológica laica e iluminista, de raízes burguesas, incapaz de lidar com as utopias, com o simbólico e com as crenças. Um materialismo mambembe que se propõe a si mesmo como um substituto das religiões e retira da práxis dos trabalhadores rurais e dos militantes a mística que a anima e que a faz poderoso meio de inovação social.

O caráter cíclico da questão agrária e o historicamente possível

A ditadura foi, possivelmente, o último episódio do movimento pendular que, no regime republicano, deu vazão às necessidades políticas centralizadoras do Estado nacional, alternando-as com a força do poder local, regional e oligárquico (cf. Leal, 1975). Esse movimento pendular se manifestou na alternância de ditadura e democracia ao longo deste pouco mais de século da República e expressa o momento inconciliável das contradições políticas presentes na constituição do Estado nacional. Foi também o movimento que condenou a democracia em nosso país e as ações cidadãs da sociedade civil a um confinamento restritivo no interior de uma estrutura política clientelista e oligárquica. Sempre que aqui se lutou por um regime democrático, essa luta carregou consigo, como aliado inevitável, os partidos que representam o poder pessoal e o oligarquismo. Porque, convém lembrar, essa tem sido, contraditoriamente, a base do nosso federalismo e do nosso liberalismo (cf. Leal, 1975; Martins, 1994). São muitas as indicações de que esse casulo de contenção pode estar sendo rompido, de modo a viabilizar a liberdade de manifestação da sociedade civil. Já com base no direito à diferença e não com base em uniformidades totalitárias, a partir de referências ideológicas outras que não as decorrentes das formas tradicionais de dominação. é verdade que estamos, tambÉm, presos a um novo enredamento de contenção do ritmo das transformações sociais: as alianças cruzadas.

Há no país partidos antioligárquicos eleitoralmente representativos o suficiente para constituir uma frente política que precipite o Brasil na modernidade política. Mas, que não se aliam entre si. Antes, são marcados por um confronto intolerante que torna essa via impossível. Parece não restar outra alternativa senão a do que estou chamando de alianças cruzadas: cada partido progressista se alia com a oligarquia que pode. Assim como o PSDB se aliou ao PFL e a outros partidos que compõem o pacto de sustentação do governo atual, o PT, por sua vez, neste mesmo ano de 1999, vem fazendo alianças táticas mais complicadas ainda, de que destaco a aliança com o ex-presidente Itamar Franco e, sobretudo, a aliança com a UDR, na Comissão de Agricultura, na votação da questão das dívidas dos produtores rurais. Portanto, o pacto que viabiliza o governo e o regime atinge a todos, mesmo aqueles que se imaginam fora dele. É verdade que na falta das alianças cruzadas os remanescentes do oligarquismo, do populismo de direita e da própria ditadura teriam condições de se juntar numa poderosa frente política capaz de pôr em risco o regime atual. Mas, também eles estão divididos.

De fato, a Constituição de 1988 (e a legislação decorrente) e o "pacto político" que nela se confirmou apontam nos seguintes sentidos: a) modernização e empresarialização das oligarquias, que ocorreu sobretudo durante a ditadura, através da aliança entre o capital e a propriedade da terra; b) descentralização política, com maiores destinações de recursos públicos aos estados e municípios (o que em outras épocas significou o fortalecimento das oligarquias e a descentralização do poder nacional); c) fortalecimento político do governo central, com maiores poderes na definição das diretrizes no uso dos recursos públicos, com formas e proporções de gastos definidos previamente pela Constituição federal ou em leis federais; d) possibilidade de atribuição de deveres federais aos governos locais, como é o caso da reforma agrária, da saúde e da educação pública.

Portanto, no geral, uma conciliação delicada entre poder local e poder nacional, com atribuição de responsabilidades federais aos estados e municípios e, por extensão, às comunidades locais. O risco de repetir-se o reavivamento do clientelismo político municipal e regional parece atenuado pela tutela das grandes diretrizes de política social, econômica e educacional por parte do governo federal. Atenuado, mas não suprimido.

É possível, pois, que a transição e a Constituição de 1988 tenham inaugurado um longo período de estabilidade política, na medida em que evitam que o federalismo e o localismo inviabilizem a nação. Estamos em face de um pacto em que os conflitos sociais e políticos rotineiros numa democracia, qualquer que seja ela, já não podem alimentar essas polarizações estruturais e básicas do nosso sistema político e levar à ingovernabilidade do país. Uma saída conciliadora que evita os inconvenientes do presidencialismo, através de um presidencialismo informalmente parlamentarista, se é que se pode defini-lo assim. A presidência já não pode ser exercida como variante do poder pessoal, com características monárquicas, como está na expectativa popular e nos pressupostos do radicalismo pequeno-burguês de vários grupos de esquerda envolvidos na luta pela reforma agrária. A governação, no novo ordenamento político, pede a corresponsabilidade de todos os setores sociais e políticos do país, sem que isso afete a liberdade de consciência e de filiação partidária. Os municípios e os estados é que se tornam o território do alternativo, cabendo à União propor e gestir as causas e processos supralocais, supra-regionais e até mesmo suprapartidários, como é concretamente o caso da reforma agrária. Estamos, provavelmente, em face de uma redefinição prática das funções da presidência da República, em face de sua especialização, e de uma redefinição histórica das funções da União. Esse é o ponto de compreensão mais difícil.

Em outras palavras, o novo ordenamento propõe o fortalecimento da sociedade e dos movimentos sociais que se manifestam por ela em face do Estado e o recolhimento do Estado nacional a funções reduzidas e ordenadoras. Em grande parte, portanto, o chamado "estado mínimo" tem entre nós as funções de desoligarquizar paulatinamente o Estado e de atribuir à sociedade civil ações e iniciativas que lhe deveriam ser próprias e que foram viabilizadas, embora monopolizadas, pelo Estado desde, pelo menos, a Revolução de 1930. Essa atribuição, porém, implica num novo pacto entre o Estado e a sociedade, o pacto da ordem e da lei e nele o pacto da atualização e modernização da lei, até mesmo por iniciativa popular. A sociedade, portanto, passou a ter até mesmo funções legislativas diretas no caso em que a delegação de vontades, através do voto, não dê conta de todas as demandas sociais.

No meu modo de ver, as complicadas transformações que estão ocorrendo no país se explicam nesse quadro de referência e é por meio dele que estou procurando compreender os desencontros entre o MST e as oposições, de um lado, e o governo, de outro. Para, no final, procurar entender que rumos estão de fato abertos ou se abrindo como caminhos possíveis para ações e propostas de resolução dos problemas sociais, dentre eles o problema da pobreza no campo. Trata-se de saber qual é o possível que se abre diante de nós e em que medida as posições e ações do governo, de um lado, e dos que a ele se opõem, de outro, sobretudo no que se refere à reforma agrária, correspondem a esse possível ou se colocam aquém ou adiante dele. Trata-se de uma reflexão sobre as mediações e as condições objetivas da práxis dos poderes, grupos, classes e movimentos sociais que se crêem atuando em função das possibilidades objetivas do momento histórico. Tudo sugere que mesmo os grupos que se consideram dotados do mandato da História e até do mandato divino estão muito aquém dessas possibilidades.

A tortuosa via de demonizar o governante, percorrida atualmente pelos que querem ações de governo diversas das atuais, dentre eles os que lutam por uma supostamente outra reforma agrária, vitimará mais adiante os atuais opositores. Nesse quadro de referência, como acontece num regime parlamentar, o presidente personifica as contradições do Estado e do pacto que o sustenta. Atua, portanto, nos limites de sua função pública e não na amplitude de sua vontade pessoal. E nesse caso fica mais claro que o Estado não é a presidência da República e sim uma multiplicidade de funções em três poderes independentes entre si numa república federativa.

Essas mudanças afetam decisivamente a questão agrária e a política fundiária do Estado brasileiro. A propriedade da terra, já na ditadura militar, como mostrei antes, associada ao capital e claramente submetida à lógica da reprodução capitalista ampliada, se institucionaliza politicamente, através do pacto, como fundamento do nosso capitalismo rentista. Porém, o objetivo do governo e do partido nele hegemônico parece ser o de modernizar e desenvolver, conciliando. Nesse sentido, o rentismo apoiado na relevância da propriedade da terra está em conflito com os propósitos governamentais e, ao mesmo tempo, está "domesticado" pela aliança política em que o governo se baseia. A questão agrária está passando a ser, provavelmente, uma questão social e historicamente cíclica e deixando de ser uma questão que apareça em primeiro plano no processo político como questão estrutural. Algumas das ações mais significativas do atual governo, no âmbito da questão agrária, tem sido justamente as de confinar o rentismo nos limites de uma legalidade estreita, agindo dentro da lei e não contra ela. Neste final de 1999, quando estou escrevendo este artigo, o ministro de Política Fundiária determinou a anulação de todos os títulos de terra irregulares, cancelando os respectivos registros. Trata-se de uma verdadeira desconstrução do regime fundiário que teve sua origem na Lei de Terras, de 1850, e seu cume na ditadura militar, na complacência para com formas irregulares de apossamento de terras por parte de grileiros e especuladores. Uma atuação direta sobre os elementos propriamente históricos de nossa questão agrária.

Se assim for, a política fundiária tem por objetivo reconhecer a institucionalidade do problema como problema social e o ministro tem aí a função de gestor de uma conflitividade administrável, como de certo modo já se propunha no regime anterior. Com a diferença de que agora devem prevalecer os mecanismos da negociação, e portanto os da lei, e não os da repressão. A política fundiária tem por objetivo atenuar e circunscrever o rentismo, atenuado, portanto, pela própria reforma agrária, gostem dela ou não os opositores do governo. Quando se diz que a reforma agrária entrou na agenda política do Estado, ainda que de modo limitado, não é apenas, e talvez nem fundamentalmente, em conseqüência da ação do MST e das oposições ao governo. Pois em termos de conflitividade ela já estava proposta no regime militar. No meu modo de ver, entrou na agenda do Estado como recurso institucional para atenuar os efeitos politicamente conservadores da propriedade da terra, que se manifestam nos problemas sociais, e para acelerar a modernização da elite fundiária e das oligarquias.

Nesse sentido, a ação modernizadora do governo, por essa via, tem um aliado fundamental no oposicionismo do MST, da Igreja e do PT quanto à reforma agrária. O pacto seria provavelmente inviável sem essa oposição. É o que torna extremamente difícil para essas agências de mediação da luta pela terra sair da armadilha histórica em que aparentemente caíram em conseqüência dos conflitos e contradições entre as facções políticas anteriores à ditadura, que fragmentaram a questão agrária e lhe retiraram força e prioridade históricas. Esse parece ser um dos efeitos da prática política baseada na concepção da história por etapas, difundida entre nós como doutrina por alguns grupos de esquerda. Com isso, a amplitude da intervenção na questão agrária é hoje dominada por necessidades sociais e políticas que não são apenas as necessidades dos trabalhadores rurais sem terra.

Essa frente de ação sobre o latifúndio e o clientelismo oligárquico foi aberta pelo Estado pós-ditatorial como forma de intervenção indireta nos estados e sobretudo nos municípios quanto ao uso dos recursos públicos, quanto ao cumprimento local de obrigações constitucionais da União e quanto à transferência a grupos comunitários locais e aos municípios de funções públicas sob controle federal. Como mencionei, é o caso da reforma agrária e da gestão das condições de desenvolvimento e consolidação da agricultura familiar. A municipalização das políticas relativas a temas sociais abre um amplo terreno de participação da sociedade civil por delegação do Estado9 9 Zander Navarro, numa perspectiva completamente diferente da que adoto neste texto, chama a atenção para o desinteresse do MST por essas novas possibilidades de atuação decorrentes da descentralização política do país (cf. Navarro, 1996, p. 15 e 44). . A sociedade pode, assim, através de grupos comunitários e das administrações locais, se tornar guardiã e gestora direta das questões relativas ao chamado bem comum. Em boa parte, funções que as câmaras municipais tiveram no período colonial, agora, porém, muito ampliadas. Trata-se, portanto, de um revigoramento dos valores mais positivos do nosso municipalismo.

Ora, esse tem sido o território do poder oligárquico, em última instância beneficiário do capitalismo rentista e das formas de dominação propiciadas pelo latifúndio. Tais mudanças criam o aparato institucional que coloca o latifúndio e seu poder político em face dos clamores e dos direitos do povo, da sociedade, dos movimentos sociais e dos grupos comunitários. Portanto, estamos em face de uma transferência de poder que, ao mesmo tempo em que assegura a funcionalidade do pacto político atual, pode incorporar os descontentes e politicamente excluídos na co-responsabilidade da gestão da coisa pública. Eu não subestimaria a enorme brecha à participação popular que se abre com essas mudanças. Mas, não subestimaria, também, a competência dos grupos políticos de tradição oligárquica para se aproveitarem dessas possibilidades, mesmo tendo que disputá-las com os grupos emergentes da sociedade pós-ditatorial.

Aliás, em muitos lugares, o MST tem se aproveitado larga e inteligentemente dessas possibilidades e o mesmo se pode dizer de vários setores das igrejas. Essas mudanças começaram por iniciativa popular, durante a ditadura, nos vários lugares da Amazônia em que as lutas populares, em particular a luta pela terra, deram lugar à luta pela criação dos novos municípios e à formação dos governos locais num espaço de participação aberto claramente pelo trabalho pastoral. Processos similares têm acontecido em outros lugares do país após o fim da ditadura. Quase que se pode dizer que na história do Brasil são essas iniciativas novas que invertem o processo característico que aqui fez do Estado o criador da sociedade civil10 10 Foi Fernando Henrique Cardoso quem chamou a atenção para a peculiaridade do caso brasileiro, em que ao invés da sociedade civil criar o Estado, o Estado é uma herança da metrópole e tem sido dele a iniciativa de criar a sociedade civil (cf. Cardoso, 1977, p. 81-84). . Nesses casos, é a sociedade civil que toma a iniciativa de estender a rede das instituições do Estado. Trata-se de uma inversão de rumos de importância fundamental no desenvolvimento social, no combate ao oligarquismo e ao poder pessoal e na consolidação da democracia.

Essas mudanças abrem tais possibilidades de intervenção histórica nos rumos sociais e políticos do país por parte da sociedade e dos que são considerados excluídos que seria um erro subestimá-las. Muitas ações do MST e de setores da Igreja, em diferentes pontos do país, indicam um apropriado aproveitamento dessas possibilidades, mesmo que o MST combata explicitamente o que entende ser as "segundas intenções" de mudanças que, na verdade, são anteriores ao atual governo, quando não havia nem mesmo "primeiras intenções"11 11 Em relação à suposição sobre as "intenções ocultas" do governo, cf. Stedile & Fernandes (1999, p. 49-155). . Elas têm sido alargadas pela ação desses grupos e propiciado uma atividade criadora que pode ser definida como reinvenção social, que é o verdadeiro sentido da práxis. Algo inimaginável pelas esquerdas tradicionais antes e depois do golpe e inimaginável pelos governos e técnicos governamentais tem decorrido dessas possibilidades: a modernização criativa da agricultura familiar, sobretudo em áreas de reforma agrária, a partir da mística da tradição, da família e dos laços comunitários reavivados e modernizados na experiência ressocializadora dos acampamentos e da luta pela terra. Mesmo que nesse processo possa ocorrer a anomalia de manifestações de mandonismo dos próprios militantes, também eles, não raro, ainda influenciados por uma cultura do poder pessoal.

Convém levar em conta, ainda, um conjunto de alterações no direto de propriedade, restrições redutivas, que não têm sido notadas pelos que se preocupam com a reforma agrária, mas que em geral não as vinculam à questão agrária e à questão do território. Refiro-me à lenta retomada do senhorio, do domínio, do território por parte do Estado e ao fato de que essa retomada praticamente nada tem a ver com as lutas sociais no campo nem com as lutas indígenas, sobretudo no período da ditadura. A Lei de Terras, de 1850, fôra promulgada por um Parlamento constituído de grandes fazendeiros e senhores de escravos. Não havia nenhum grupo popular reivindicando um regime fundiário diferente do aprovado em substituição ao regime de sesmarias que cessara nas vésperas da Independência. Por essa Lei, dois distintos institutos foram unificados num só: o domínio, que pertencia ao Estado, e a posse útil, que era do particular. Por ter o domínio da terra, o senhorio, o Estado preservava o direito de arrecadar as terras às quais o particular não desse utilidade, não tornasse produtivas. Até o século XVIII, a Coroa com freqüência recorreu a essa prerrogativa para redistribuir terras que não fossem devidamente utilizadas. A Lei de Terras, porém, transferiu ao particular domínio e posse, criando uma espécie de direito absoluto que é a principal causa do latifundismo brasileiro e das dificuldades para dar à terra, plenamente, uma função social.

Sobretudo a partir da Revolução de 1930, o Estado brasileiro começou uma lenta retomada do seu domínio sobre o território por meio de medidas restritivas ao direito de propriedade. A primeira foi o Código de Águas, que restringiu o direito de propriedade ao solo e dele excluiu o subsolo. Outras medidas na mesma linha: o senhorio da União sobre terras de marinha. Mais tarde, o decreto de tombamento de bens históricos, que introduziu condições restritivas ao exercício do direito de propriedade, legislação que foi alargada para os bens de interesse turístico e ambiental; o reconhecimento da posse imemorial das terras indígenas pelos respectivos povos, tutelados da União; a separação de domínio e posse no território do Distrito Federal; a proteção às reservas florestais e nesse sentido a imposição de restrições de uso de uma parcela da propriedade fundiária. Na ditadura militar, o próprio Estatuto da Terra, ao definir a categoria de latifúndio e estabelecer-lhe restrições que o tornam passível de desapropriação por interesse social, estendeu ao solo uma parcela de domínio regulamentar por parte da União, num certo sentido próximo do regime sesmarial. Mais recentemente, na própria Constituição de 1988, o reconhecimento do direito de posse às terras dos antigos quilombos por parte das comunidades negras. E por fim o estabelecimento do confisco territorial das propriedades utilizadas para o cultivo de plantas tóxicas que causem dependência física de seus usuários, como a maconha.

Desde o Estatuto da Terra, a reforma agrária se situa nesse processo lento de retomada do domínio da terra por parte do Estado. Como mencionei antes, o Ministério de Política Fundiária promoveu, nas últimas semanas de 1999, a anulação dos títulos de 3.065 propriedades, correspondentes a 93.620.587 hectares de terra, conforme o Livro Branco da Grilagem de Terras, duas vezes a área da França. Serão revertidos ao domínio da União, para integrar o fundo de reforma agrária ou para projetos ambientais. O que constitui uma poderosa indicação de que a questão agrária reaparece com toda sua força histórica na questão do território e, portanto, no âmbito dos poderes do Estado nacional. A questão agrária se redefine como forte componente da questão da soberania e não mais exclusiva ou principalmente como irracionalidade do processo de reprodução ampliada do capital. Redefine-se, pois, como questão política engendrada pela questão social, o que confirma a nossa tendência histórica de ter nos pobres e desvalidos os agentes sempre indiretos das ações demarcatórias da História, ainda que delas destinatários, mesmo que não reconheçam aí o seu "projeto social explícito".

É necessário ter isso em conta quando se fala em reforma agrária no Brasil. Sobretudo porque, por esse meio, a reforma se torna parte de uma ação do Estado que reconhece a precedência das funções e dos interesses sociais e do Estado em relação ao direito de propriedade. Por meio da União, o Estado retira direitos territoriais do particular e os entrega à sociedade. São bens a cujo uso e gestão se sobrepõem os direitos atuais e futuros da sociedade. Trata-se do estabelecimento de progressivas, ainda que lentas, limitações ao exercício do direito de propriedade em nome não só de sua função social, mas também de sua função política na soberania do Estado.

Houve, mesmo, outras intervenções para emendar a excessiva amplitude dos direitos transferidos aos particulares pela Lei de Terras, nos casos em que o direito de propriedade passou a ser causa de problemas sociais. Além do Estatuto da Terra, já mencionado, o regime militar, ainda no governo Castelo Branco, reconheceu em relação ao Nordeste canavieiro o direito de enfiteuse dos trabalhadores da cana sobre a parcela de terra utilizada na produção direta dos meios de vida pela família do morador. É um direito de uso, em parte conforme uma possibilidade aberta pela Lei de Terras quando estabeleceu a possibilidade de reconhecimento da posse em fazenda alheia até como propriedade do morador. Trata-se da chamada "lei do sítio". Uma decisão surpreendente num regime nascido de um golpe de Estado para defender os direitos do latifúndio e consumar de vez os propósitos da Lei de Terras.

Nessa perspectiva, trato do tema tendo em conta mudanças estruturais de longo curso e, por elas, o balizamento da questão agrária. Não obstante, tanto do lado do MST, da Igreja e das oposições partidárias e civis ao governo, quanto do lado do próprio governo, parece não haver a menor clareza quanto a uma questão essencial que essa perspectiva sugere. Penso ter mostrado neste artigo, como já o fiz em outros trabalhos, os bloqueios gerados pelo modo histórico como se deu a abolição da escravatura e a implantação do correlato regime de propriedade fundiária que temos. Bem como os episódios sucessivos, até mesmo com a participação de grupos que hoje têm uma concepção radical do problema, que simplificaram a questão agrária e reduziram a possibilidade de uma reforma na profundidade que muitos almejam.

Mesmo atenuado pelas sucessivas intervenções que apontei, o regime de propriedade envolveu tão intensamente as instituições, em especial o Judiciário, ao longo da história republicana, que se tornou impossível fazer uma reforma agrária que não passe pelo pagamento de uma substancial renda fundiária aos proprietários. A questão, portanto, não é a de se optar entre pagar e não pagar como parecem supor o MST e a CPT, na compreensível suposição da supressão histórica da renda fundiária e da estatização da propriedade da terra. Mesmo nos casos de desapropriações com base na Constituição, o governo é obrigado a pagar pela terra e não raro tem sido obrigado, por decisões judiciais, a pagar mais do que ela realmente vale, conforme revela o chamado Livro Branco das Superindenizações, do Ministério Extraordinário de Política Fundiária12 12 Com base em informações sobre mais de setenta processos judiciais de donos de terras desapropriadas, movidos contra o Incra, as super-indenizações somavam, em 30 de setembro de 1999, mais de sete bilhões de reais, suficientes para assentar trezentas mil famílias de agricultores. As indenizações pleiteadas da Justiça e muitas vezes concedidas estão muito acima das avaliações feitas pelo próprio órgão de reforma agrária. . Sem contar os casos reconhecidos ou denunciados pelo próprio governo em que funcionários do órgão encarregado da reforma aparecem envolvidos em avaliações indevidas. Além disso, o assentado em terras oriundas de desapropriações, desde a Lei de Terras de 1850, tem que pagar pela terra recebida, sem o que as leis não permitem que lhe seja entregue o título definitivo de propriedade.

A questão é, portanto, outra: como adquirir terras necessárias à reforma agrária pelo menor preço e em condições menos desvantajosas. Porque na questão agrária há o lado do direito de propriedade só parcialmente atenuado ao longo da história republicana e há o lado dos problemas sociais que gera em ritmo relativamente rápido. É esse desencontro que faz com que a questão agrária se manifeste como questão social e não como questão econômica ou simplesmente política. O enquadramento do regime de propriedade nas necessidades da sociedade e do Estado vem se dando de modo muito lento, devido aos bloqueios políticos de que ela está cercada. Já os problemas sociais que ela cria podem ser resolvidos, e vêm sendo, com agilidade muito maior, mesmo que haja quem a considere insuficiente. Isso se dá em grande parte, porque a reforma agrária se tornou uma resposta às conseqüências da questão agrária e não às suas causas de longo curso histórico. MST e CPT querem uma reforma agrária que atinja as causas, que são causas históricas, que se tornaram causas institucionais e políticas, sem, entretanto, oferecerem perspectivas de saída política para elas no marco da lei e da ordem. Pois, para isso é preciso ganhar eleições e não as ganhando é preciso estar disponível para a negociação política de questões como essa, que são questões sociais e nacionais, suprapartidárias, como foi a abolição da escravatura. É aí que a credibilidade e a legitimidade do confronto se perde.

A estratégia governamental tem sido, no meu modo de ver, a de encontrar caminhos que permitam criar um estoque de terras disponíveis para realização de assentamentos, mediante a definição de uma variedade de alternativas: sejam as desapropriações, sejam as compras em leilão (que forçam a queda do preço a ser pago), seja o Imposto Territorial Rural, que pode contribuir para a depreciação de preços acrescidos pela especulação, sejam as terras arrecadadas por outros meios, como as oriundas do pagamento de débitos a agências do governo, ou confiscadas, como é o caso das terras em que a Polícia Federal descobre cultivos de maconha13 13 O Ministro de Política Fundiária, nos primeiros dias de janeiro de 2000, criou a Superintendência Extraordinária do Incra no Médio São Francisco, abrangendo o chamado "polígono da maconha". No mesmo dia solicitou à Advocacia Geral da União a execução de 79 propriedades expropriadas, com cerca de sete mil hectares, para imediata utilização no programa de reforma agrária e assentamento de 250 famílias. .

Duas orientações do governo, portanto, se combinam para fazer da reforma agrária um procedimento cíclico de política fundiária e social: de um lado, uma rotina de formação de estoques de terras para reforma agrária; de outro, uma diversidade de mecanismos de aquisição de terras para formação desses estoques. A que se acresce agora uma terceira, a de incorporar a agricultura familiar ao Ministério de Política Fundiária, forma de reconhecer a necessidade de uma política fundiária e social em relação a essa parcela da população brasileira. População que reentra ciclicamente na demanda de terra e de reforma agrária, muitas vezes em conseqüência da má gestão dos projetos de assentamento nas mãos de funcionários governamentais, ou de seu excessivo tecnicismo, um dos fatores de alta proporção de abandono de terras distribuídas em ocasiões anteriores a beneficiários da reforma agrária. Os motivos ainda não estão inteiramente claros, mas provavelmente em conseqüência de erros técnicos sistemáticos praticados desde o governo militar, e até antes (nos casos da colonização oficial), por funcionários responsáveis pela execução da reforma14 14 Os graves problemas do relacionamento dos técnicos do Incra com os assentados, introduzindo irracionalidades inacreditáveis na execução da reforma agrária, é constatada por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhão num dos projetos de assentamento daquele estado: "Aqui o problema residia no fato de os trabalhadores já terem plantado e colhido duas safras de cana-de-açúcar e de não terem tido o que fazer com aquela produção, pois teria havido a promessa de construção de uma destilaria para a produção do aguardente e da rapadura, o que não ocorreu" (Carneiro et alii, 1998, p. 275). . Essa má gestão e fatores outros, como a escolha de terras impróprias para agricultura e crises de mercado, acabam reintroduzindo no elenco dos que pedem reforma agrária outros membros de famílias, em especial seus descendentes, por ela supostamente beneficiadas em décadas passadas.

Isso nos põe diante de uma circularidade de demanda por novos assentamentos que tira da reforma agrária seu caráter extraordinário e a repõe e vai repor continuamente ainda como um problema social com aparência de problema estrutural, com características de um confronto radical que questiona tanto o Estado quanto a própria sociedade. Portanto, um problema, que se tornou rotineiro, de emprego e de reincorporação contínua ao processo produtivo, através de redistribuição de terras, dos que foram por ele descartados. Um problema que acaba indevidamente aparecendo ou sendo apresentado como um impasse histórico que pede, para alguns, uma revolução, quando na verdade pede uma profunda transformação do modo de vida de significativas parcelas da população, sobretudo a devotada ao trabalho agrícola.

Aparentemente, o Estado brasileiro caminha rápido para a definição da institucionalidade dessa intervenção cíclica e tópica na estrutura fundiária para reparar-lhe os defeitos, na impossibilidade de uma intervenção definitiva e extraordinária que tenha efeito, ao menos, a longo prazo. Portanto, a política fundiária do governo atual não tem se limitado à redistribuição e à regularização da posse da terra, como pedem os opositores, mas tem se orientado, pela primeira vez na história republicana, no sentido de fazer da reforma agrária um procedimento institucional que reconhece e assegura o lugar social e institucional da agricultura familiar na sociedade e na economia. Tudo indica que estamos em face de um esforço político para pôr um garrote nos mecanismos de expulsão e de exclusão das populações rurais. E, também, para assegurar que a eficácia econômica comparativa da agricultura familiar em relação às degradadas alternativas de inserção na vida urbana constitua um eixo de proteção e até de reaglutinação das famílias atingidas ao longo das últimas décadas, desde o governo Goulart, por mecanismos econômicos de dispersão e de desagregação. Ao mesmo tempo, uma política de modernização que previne o confinamento dessas mesmas famílias num tradicionalismo arcaizante que tem seus óbvios efeitos excludentes. Justamente aí são óbvias as convergências entre as orientações do MST e as orientações do governo, o que dá à contestação do primeiro em relação ao segundo uma conotação estranha ao tema propriamente da reforma agrária. As desapropriações, assentamentos e regularizações vão aos poucos se tornando um momento de uma intervenção maior de política social que tem outras implicações e desdobramentos.

Os críticos e opositores do governo têm reiteradamente assinalado que a intervenção governamental no problema da terra é caudatária das iniciativas dos próprios ocupantes de terra e das ações do MST na ocupação de terras improdutivas. Isso é certamente verdade, em grande parte. Mas, o que é apontado como debilidade da ação governamental é, de fato, debilidade de compreensão das novas circunstâncias históricas do agir político por parte desses opositores. Seria um erro não reconhecer que, desde o Estatuto da Terra, a ditadura, por razões de segurança nacional e de controle militar das lutas sociais no campo, havia incorporado na própria lei elementos de definição prévia de áreas de tensão social para que o governo se antecipasse ao conflito e fizesse as desapropriações necessárias à reforma. Esse procedimento tinha por objetivo inviabilizar a transformação das tensões no campo em conflitos articulados ideologicamente e vinculados a partidos na ilegalidade, que comprometessem a segurança do regime. Aliás, o governo militar teve como norma não fazer desapropriações nem realizar assentamentos em áreas invadidas.

Quem reivindica hoje essa antecipação governamental parece não se dar conta de que ela diz respeito à continuidade de um procedimento ditatorial para esvaziar as lutas e reivindicações sociais. A situação histórica e política agora é outra. E é outra também no sentido de que a precipitação das tensões, num clima de negociação política possível, como o atual, e de administração possível dessas tensões, indica com precisão maior do que a dos critérios técnicos os lugares e as propriedades em que a intervenção governamental é necessária. Portanto, uma mudança politicamente significativa em relação ao que ocorria no tempo da ditadura. Com a descentralização política antes mencionada, e a redefinição do lugar da sociedade, em face do Estado, na gestão de questões sociais ou das questões de interesse da comunidade local, a precedência e a iniciativa das organizações e movimentos sociais no processo da reforma agrária é o normal e não o contrário. Esse parece ser o novo formato da ordem política.

O cíclico e o institucional da questão agrária apontam numa direção que o governo aparentemente não está considerando nem as oposições estão, se temos em conta o modesto desempenho e a modesta criatividade dos partidos de oposição no Congresso, em relação à questão agrária, em contraste com um desempenho em geral notável em relação a outros temas. Na impossibilidade política de uma revisão suficientemente profunda do regime de propriedade e da estrutura fundiária, e em face de um agudo questionamento da legitimidade da lei, cabe, mas não tem sido considerada, a alternativa de uma intervenção prospectiva nesse direito. Refiro-me à possibilidade do Estado brasileiro legislar prospectivamente em relação à herança fundiária, no que se refere ao latifúndio, estabelecendo limites físicos ao tamanho da propriedade, como faz o Estatuto da Terra, e restrições adicionais do mesmo tipo, na sucessão dos herdeiros. E no caso de empresas, definir prazo e modalidade de aproveitamento produtivo e correto da terra. Dependendo das circunstâncias políticas, o ritmo dessa revisão da persistência de latifúndios e enclaves, que ultrapassem o que a lei estabelece, pode ser acelerado ou ralentado. Seria possível estabelecer que, nos casos de sucessão de propriedades acima de um módulo pré-fixado e nos casos de empresas e entidades, essas terras teriam que ser parcialmente incorporadas ao fundo da reforma agrária cíclica, mediante a indenização e pelo meio que a lei definisse.

Os efeitos simplificadores da concepção da história e limitadores de uma práxis conseqüente em relação à questão agrária se revelam aí. Eles se revelam na falta de uma providência prática em relação ao futuro e às gerações futuras, dada a aparente impossibilidade de encaminhar a questão de outro modo no presente. A história não é apenas o processo do atual, mas também a intervenção nas necessidades sociais e nas possibilidades do amanhã, quando o país se vê hoje em face de obstáculos politicamente intransponíveis para concretizar mudanças mais profundas. Certamente, é possível um pacto nacional de todos em relação às necessidades do futuro, em relação a um problema social e histórico que é, de fato, um problema suprapartidário, como o foi o da escravidão no século passado. Partidarizá-lo não é, propriamente, prestar um serviço aos pobres da terra e, certamente, menos o é reformar o passado.

Recebido para publicação em dezembro/1999

  • Abelém, Auriléa Gomes & Hébette, Jean. (1998) Assentamentos da reforma agrária na fronteira amazônica. In: Schmidt, Benício Viero, Marinho, Danilo Nolasco C. & Couto Rosa, Sueli L. (orgs.). Os Assentamentos de Reforma Agrária no Brasil. Brasília, Editora da UnB, p.237-255.
  • Cardoso, Fernando Henrique. (1977) O Estado na América Latina. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.). O Estado na América Latina. Rio de Janeiro, Cedec/Paz e Terra, p.77-99.
  • Carneiro, Marcelo S. et alii. (1998) Assentamentos e ações de reforma agrária no Maranhão. In: SCHMIDT, Benício Viero, MARINHO, Danilo Nolasco C. & Couto Rosa, Sueli L. (orgs.). Os Assentamentos de Reforma Agrária no Brasil. Brasília, Editora da UnB, p. 257-280.
  • Fernandes, Bernardo Mançano. (1998) Que reforma agrária? Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Geografia Agrária, realizado na Faculdade de Ciências e Tecnologia - FCT/Unesp, Presidente Prudente (SP), 4 a 8 de dezembro.
  • Furtado, Celso. (1964) Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura.
  • Gnaccarini, José César. (1980) Latifúndio e Proletariado. São Paulo, Polis.
  • Graziano, Francisco. (1996) Qual Reforma Agrária? São Paulo, Geração Editorial.
  • Graziano Neto, Francisco. (1998) A (difícil) interpretação da realidade agrária. In: Schmidt, Benício Viero, Marinho, Danilo Nolasco C. & Couto Rosa, Sueli L. (orgs.). Os Assentamentos de Reforma Agrária no Brasil. Brasília, Editora da UnB, p.153-169.
  • Leal, Victor Nunes. (1975) Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo, Alfa-Ômega.
  • Martins, José de Souza. (1994) O poder do atraso. Ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo, Hucitec.
  • _______. (1998) Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo, Paulus.
  • Navarro, Zander. (1996) Políticas públicas, agricultura familiar e os processos de democratização em áreas rurais brasileiras (com ênfase para o caso do Sul do Brasil). Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho sobre Processos Sociais Agrários, no XX Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), Caxambu (MG), 22 a 26 de outubro.
  • Stedile, João Pedro & Fernandes, Bernardo Mançano. (1999) Brava Gente - A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo, Fundação Perseu Abramo.
  • 1
    É o que nos diz o influente Francisco Graziano, que foi presidente do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária: "... nada comprova que dar um pedaço de terra para essas famílias marginalizadas seja a única, nem a melhor solução, do ponto de vista do interesse público. Talvez um bom emprego seja preferível ao assentamento. Ou então, tratá-las com mecanismos de política social, assistindo-as devidamente, garantindo-lhes alimentação e saúde" (Graziano, 1996, p. 19; Graziano Neto, 1998, p. 168). Graziano se esquece, como é comum entre os que se preocupam com a questão social do campo de um ponto de vista meramente econômico, que a luta pela terra, da qual deriva a luta pela reforma agrária, é também uma luta pela inclusão, pela inserção social ativa, produtiva, participante e criativa, na sociedade, é luta por dignidade e respeito e não por aquilo que na consciência popular é tido como esmola.
  • 2
    "Praticamente a única derrota social que ocorreu na Constituinte foi na questão agrária, pois em todos os outros itens houve avanços" (Stedile & Fernandes, 1999, p. 67).
  • 3
    A necessidade de, ao falar de reforma agrária, ter que conceituá-la ao mesmo tempo, como ocorre com militantes e especialistas, já é em si mesma uma indicação do terreno impreciso em que medram antagonismos e contestações que não se fundam na própria questão agrária e que se deslocam para o terreno mais complexo do questionamento de legitimidades (cf. Stedile & Fernandes, 1999, p. 157 e ss.; Fernandes, 1998, p. 2; Abelém & Hébette, 1998, p. 246; Carneiro
    et alii, 1998, p. 267). Convém ter em conta que, para questionar legitimidades e afirmar a própria suposta legitimidade, é necessário ganhar eleições majoritariamente e com margem suficiente para propor alterações radicais na ordem legal e política.
  • 4
    Estou utilizando a palavra "campesinato" porque é designação incorporada, pela via política, ainda que indevidamente, ao vocabulário corrente no trato da questão agrária.
  • 5
    Marcelo Sampaio Carneiro
    et alii, em seu estudo sobre a reforma agrária no Maranhão, insistentemente chamam a atenção para o grande desencontro cultural que há entre técnicos do governo e assentados, sublinhando que os técnicos são "completamente ignorantes acerca do cálculo camponês no que toca à produção para auto-consumo e para comercialização" (Carneiro
    et alii, 1998, p. 275). Convém ter em conta o risco de ignorância semelhante do outro lado, o dos intelectuais que apoiam a luta pela terra e se empenham na causa da emancipação dos pobres da terra. O problema mais comum é o do resgate etnográfico de categorias do pensamento popular sem o correspondente resgate da lógica camponesa mediadora das possibilidades do processo histórico, o possível próprio da dialética, sem o que caímos num reducionismo que compromete seriamente os propósitos do apoio e da identificação.
  • 6
    João Pedro Stedile, em seu depoimento a Bernardo Mançano Fernandes sobre o MST, relembra a importância da expulsão de 1.200 famílias de arrendatários brancos da reserva de Nonoai, pelos índios Kaingang, nos episódios precursores do surgimento da organização. E sublinha que os expulsos punham a culpa de sua situação nos índios (cf. Stedile & Fernandes, 1999, p. 25-26). Eles ocupavam as terras dos índios, que viviam na miséria, pagando à Funai um ínfimo arrendamento.
  • 7
    Esta frase de João Pedro Stedile indica os efeitos dessa inversão de referências: "O único debate que conseguimos, nessa época, era pelo
    viés idealista, cristão" (Stedile & Fernandes, 1999, p. 96) (grifo meu).
  • 8
    Discordo de Zander Navarro quando ele fala em "atoleiro conceitual do marxismo clássico" para referir-se ao marxismo que informa a ação do MST. Não há nada de propriamente clássico nesse marxismo reducionista que chega até aos agentes de mediação da luta pela reforma agrária por meio de textos e de uma sofrível pedagogia de vulgarização de origem ou de inspiração althusseriana (cf. Navarro, 1996, p. 20 (nota)).
  • 9
    Zander Navarro, numa perspectiva completamente diferente da que adoto neste texto, chama a atenção para o desinteresse do MST por essas novas possibilidades de atuação decorrentes da descentralização política do país (cf. Navarro, 1996, p. 15 e 44).
  • 10
    Foi Fernando Henrique Cardoso quem chamou a atenção para a peculiaridade do caso brasileiro, em que ao invés da sociedade civil criar o Estado, o Estado é uma herança da metrópole e tem sido dele a iniciativa de criar a sociedade civil (cf. Cardoso, 1977, p. 81-84).
  • 11
    Em relação à suposição sobre as "intenções ocultas" do governo, cf. Stedile & Fernandes (1999, p. 49-155).
  • 12
    Com base em informações sobre mais de setenta processos judiciais de donos de terras desapropriadas, movidos contra o Incra, as super-indenizações somavam, em 30 de setembro de 1999, mais de sete bilhões de reais, suficientes para assentar trezentas mil famílias de agricultores. As indenizações pleiteadas da Justiça e muitas vezes concedidas estão muito acima das avaliações feitas pelo próprio órgão de reforma agrária.
  • 13
    O Ministro de Política Fundiária, nos primeiros dias de janeiro de 2000, criou a Superintendência Extraordinária do Incra no Médio São Francisco, abrangendo o chamado "polígono da maconha". No mesmo dia solicitou à Advocacia Geral da União a execução de 79 propriedades expropriadas, com cerca de sete mil hectares, para imediata utilização no programa de reforma agrária e assentamento de 250 famílias.
  • 14
    Os graves problemas do relacionamento dos técnicos do Incra com os assentados, introduzindo irracionalidades inacreditáveis na execução da reforma agrária, é constatada por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Maranhão num dos projetos de assentamento daquele estado: "Aqui o problema residia no fato de os trabalhadores já terem plantado e colhido duas safras de cana-de-açúcar e de não terem tido o que fazer com aquela produção, pois teria havido a promessa de construção de uma destilaria para a produção do aguardente e da rapadura, o que não ocorreu" (Carneiro
    et alii, 1998, p. 275).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Out 1999

    Histórico

    • Recebido
      Dez 1999
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