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As políticas sociais no governo FHC

Social Policies in FHC government

Resumos

O presente artigo busca fazer um balanço analítico do conjunto das políticas sociais que vêm sendo implementadas desde 1995. Não se trata de um balanço dos gastos efetuados na área social, dos recursos efetivamente apropriados pelos setores mais pobres da população. O objetivo aqui é averiguar em que grau se observa neste período uma efetiva mudança na forma de o governo tratar da questão social. Reconhecem-se avanços efetuados, porém constata-se a permanência do mesmo tipo de articulação entre política econômica e política social, entre política social e representação das demandas dos grupos não organizados da sociedade, favorecendo a ênfase na dimensão técnica da conformação dos programas sociais, e sobretudo avalia-se a timidez do governo em efetivamente enfrentar a equação pobreza-desigualdade.

políticas sociais; políticas públicas; combate à pobreza


The aim of this article is to analyses the set of social policies, which have been implemented since 1995. This is not a study of the money spent neither on the social area nor of the budget effectively appropriated by the poorest members of the population. The objective of this paper is to check to which degree the government has made an effective change in the way it deals with the social problem. It is true that some advances were made, but there is still the same kind of articulation between economical policy and social policy, between social policy and representation of the demands of non organized groups, putting an emphasis on the technical dimension of social programs of the framework. Above all, this article evaluates the timidity of the government in effective facing the poverty-inequality equation.

social policies; public policies; fighting poverty


DOSSIÊ FHC 1º GOVERNO

As políticas sociais no governo FHC

Social Policies in FHC government

Amélia Cohn

Professora do Departamento de Medicina Preventina da FM - USP

"Não tenho registro de nascimento e

nunca consegui tirar título eleitoral.

Então não existo"1 1 Declaração de uma sertaneja nordestina ao verificar que seu nome não constava da lista dos incluídos nas frentes de trabalho contra a seca, fevereiro de 1999.

RESUMO

O presente artigo busca fazer um balanço analítico do conjunto das políticas sociais que vêm sendo implementadas desde 1995. Não se trata de um balanço dos gastos efetuados na área social, dos recursos efetivamente apropriados pelos setores mais pobres da população. O objetivo aqui é averiguar em que grau se observa neste período uma efetiva mudança na forma de o governo tratar da questão social. Reconhecem-se avanços efetuados, porém constata-se a permanência do mesmo tipo de articulação entre política econômica e política social, entre política social e representação das demandas dos grupos não organizados da sociedade, favorecendo a ênfase na dimensão técnica da conformação dos programas sociais, e sobretudo avalia-se a timidez do governo em efetivamente enfrentar a equação pobreza-desigualdade.

Palavras-chave: políticas sociais, políticas públicas, combate à pobreza.

ABSTRACT

The aim of this article is to analyses the set of social policies, which have been implemented since 1995. This is not a study of the money spent neither on the social area nor of the budget effectively appropriated by the poorest members of the population. The objective of this paper is to check to which degree the government has made an effective change in the way it deals with the social problem. It is true that some advances were made, but there is still the same kind of articulation between economical policy and social policy, between social policy and representation of the demands of non organized groups, putting an emphasis on the technical dimension of social programs of the framework. Above all, this article evaluates the timidity of the government in effective facing the poverty-inequality equation.

Keywords: social policies, public policies, fighting poverty.

Uma das possibilidades de se abarcar tema de tamanha complexidade e amplitude consistiria na alternativa mais imediata de se optar por traçar um panorama e fazer um balanço das políticas e programas sociais que vêm sendo implementados desde 1994 pelo Governo FHC.

Mas se optar por esse caminho significaria ter a tarefa facilitada pelos inegáveis avanços ocorridos desde então no que diz respeito à atualização dos dados disponíveis bem como à notável facilidade de acesso às informações coletadas e sistematizadas pelos órgãos governamentais, por outro lado significaria também abdicar de enfrentar o desafio para as políticas sociais contido na declaração acima, suscitada pela lucidez do desespero.

Optar por essa alternativa significaria, ainda, restringir os limites da análise aos aspectos meramente financeiros (no que diz respeito ao montante de investimentos governamentais do nível federal na área social) e administrativos (descentralização, eficácia, racionalização dos gastos e das ações, dentre outros) da gestão social desse período. Além, é claro, de se estar meramente sistematizando os dados acessíveis nos sites dos distintos órgãos governamentais (em particular, do IBGE, do IPEA, e dos Ministérios envolvidos).

Dessa forma, talvez o desafio maior ao se enfrentar esse tema resida, exatamente, em se buscar apreender o locus que as políticas sociais assumiram nesses anos recentes frente à questão de pobreza, das desigualdades sociais, e da construção (ou não) dos direitos sociais da ótica da cidadania.

Política econômica e política social: a difícil equação

Quando se analisa o conjunto das iniciativas governamentais na área social a partir de 1994, chama de imediato a atenção tanto sua diversidade em termos de áreas de ação - só o Comunidade Solidária, embora não se declare governo, desenvolve atualmente 16 programas setoriais - como o seu traço pouco ousado, talvez mesmo tímido e convencional.

Assim, o exame do organograma dos distintos programas e políticas sociais desse período mais recente, mostra um avanço em termos formais quanto ao seu número e seu leque de atuação, o que faz com que o governo brasileiro venha, por exemplo, cumprindo os compromissos assumidos no que diz respeito à agenda social implementada pela ONU2 2 Cf. a respeito, dentre outros, Lindgren Alves (1995), Stiftung (1995) e ainda os relatórios anuais do Observatório da Cidadania, editado pelo Ibase, Rio de Janeiro. .

Mas evidencia-se também que essa ausência de inovação e timidez no modo de se enfrentar a questão social no Brasil continua sendo determinada pelo traço característico do país, herança da era desenvolvimentista que se afirma atualmente buscar superar, de contrapor política econômica à política social. Vale dizer, continua ainda prevalecendo o ditame absoluto da economia sobre as formas de o país gerir a questão da pobreza e das desigualdades sociais. Tanto assim é que no último Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD o Brasil é rebaixado da posição 68 para a 79, provocando um amplo debate sobre mudanças no cálculo do IDH, que neste caso estariam prejudicando nossa situação em termos do ranking mundial (cf. PNUD, 1999).

É perceptível, portanto, uma contradição de base entre a política de ajuste e de estabilização econômica adotada pelo governo e a possibilidade de se promover políticas sociais com impacto efetivo sobre o desenvolvimento social no país.

De fato, a gestão econômica governamental produziu um quadro de recessão econômica e rebateu sobre a questão social de modo dramático, haja visto o aumento da taxa de desemprego no país.

Este modelo econômico gera não só desemprego como reduz o impacto dos programas governamentais de criação de oportunidades de emprego e renda (PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar; PROGER - Programa de Geração de Emprego e Renda; PLANFOR - Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador; dentre outros). Ou ainda, gera permanente pressão para cortes de recursos destinados à área social, ditada pelo compromisso junto às agências multilaterais, de equilíbrio do déficit fiscal.

O modelo de ajuste estrutural em vigor, além de ter as conseqüências mencionadas, vem promovendo a desarticulação de importantes ramos industriais, associada a reformas gerenciais e do processo produtivo por parte das empresas privadas, visando a diminuição do "custo Brasil".

Em termos concretos, isso vem se traduzindo num processo de flexibilização das relações de trabalho e de deterioração dos postos de trabalho (cf. Oliveira, 1998). Embora o processo tenha tido início já nos anos 80, foi na presente década que adquiriu suas características mais perversas de destituição dos direitos trabalhistas historicamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros.

Coerente e articuladamente com esses processos, na área social vêm sendo propostas reformas não só dos programas sociais, mas também do sistema de proteção social, implantando novo padrão de regulação social não mais via trabalho, mas via renda. É o caso das propostas governamentais de reforma da previdência social, que desvinculam o acesso dos cidadãos a determinados benefícios e serviços de sua inserção no mercado de trabalho (formal ou informal), sem no entanto desvincular esse acesso da sua capacidade contributiva, tomando-se neste caso o cidadão em termos individuais.

Com essa reforma, a previdência social, após ter sido alçada ao estatuto de seguridade social em 1988, retrocede por iniciativa do governo à concepção de seguro social, uma vez que passa a vincular o acesso diferenciado ao valor dos benefícios segundo a capacidade de poupança individual de cada um durante sua vida útil.

Dadas no entanto as características estruturais e atuais do mercado de trabalho brasileiro, onde somente menos da metade da PEO encontra-se no mercado formal de trabalho, a implementação de um sistema de seguro social segundo o qual o direito ao benefício está vinculado ao tempo de contribuição do segurado, e não mais ao tempo de trabalho. Isto significará a imposição de uma nova seletividade da clientela assegurada, uma vez que às novas instituições de seguro social - sejam elas públicas estatais ou privadas - só interessará ter como cliente aquele segmento de trabalhadores com uma maior e mais estável capacidade contributiva, independentemente de sua inserção no mercado de trabalho. Dessa forma, esse novo sistema aponta exatamente no sentido de favorecer o segmento de trabalhadores mais qualificados. Registre-se, aqui, que Chile, Argentina e México já passaram ou estão passando por processos de reforma do sistema de proteção social bastante semelhantes, e que embora não estejamos seguindo estritamente nenhum desses modelos, o custo social e financeiro da transição de um regime de seguro social para outro serão equivalentes, isto é, altos (cf. Soares, 1999; Laurell, 1998; Vergara, 1994).

O que essas outras experiências latino-americanas apresentam em comum, e este é o rumo que também está sendo traçado pelo Brasil, é constituir-se paralelamente, no outro extremo desse sistema de proteção social de caráter diretamente contributivo, um conjunto de políticas sociais de caráter não contributivo, voltado para o atendimento de direitos sociais de cunho universal, e financiado portanto com recursos fiscais. Neste caso, essas políticas sempre esbarram e são extremamente vulneráveis à imposição dos limites cada vez mais estreitos ditados pelo compromisso do governo brasileiro com agências internacionais de contenção da dívida pública.

De 1994 para cá, a tendência é exatamente a de se conformar no país um sistema dual de proteção social, entendendo-se por sistema de proteção social todo o conjunto de políticas sociais (aí incluída a previdência social), com distintas lógicas na sua articulação com a dinâmica macroeconômica. De um lado, o subsistema de proteção social relativo aos benefícios sociais securitários - e, portanto, contributivos; de outro, o subsistema relativo aos benefícios sociais assistenciais - e portanto, redistributivos, financiado com recursos do orçamento fiscal.

Redefine-se assim, na atualidade, a articulação entre políticas econômicas e políticas sociais. O primeiro daqueles subsistemas, o que diz respeito aos direitos contributivos, vincula-se às diretrizes macroeconômicas enquanto instrumento para a criação de poupança interna para se alavancar a taxa de investimento da economia; e o segundo deles, de caráter não contributivo, fica à mercê da disponibilidade - sempre escassa - de recursos orçamentários da União.

Neste ponto deve-se registrar que, no caso dos direitos não contributivos, o potencial redistributivo das políticas a eles vinculadas, na sua essência, é maior se e sempre quando se tratarem de políticas universais e financiadas com recursos orçamentários provenientes da contribuição fiscal. No caso brasileiro, no entanto, não é isso que vem se verificando: essas políticas, exatamente por se contraporem mais diretamente aos ditames da lógica macroeconômica em vigor de diminuição do déficit público, acabam por ter seus recursos cortados, e em conseqüência sua população-alvo restringida aos segmentos mais pobres da sociedade. É a conhecida focalização das políticas sociais, que se traduz, como testemunha nossa larga experiência histórica, em políticas de cunho clientelista, de caráter imediatista e, portanto, em políticas de governos e não em políticas de Estado.

Começa-se assim a deslindar o pleno significado do desabafo - ou grito de desespero - da autora da epígrafe: diante de uma seca brutal, prevista com anos de antecipação pelos especialistas da área, numa região cronicamente vitimada pela aridez, ao invés de se tomarem medidas de caráter estrutural na resolução de uma das principais causas da pobreza na área, lança-se um programa - mais um dentre tantos outros similares adotados no passado remoto e recente - de frentes de trabalho. Uma vez mais, improvisam-se medidas de emergência para um problema que é estrutural. E nesse sentido, de fato, ao não ter a nossa interlocutora título de eleitor, vê-se desprovida até mesmo dessa moeda de negociação tradicional e comum da nossa cultura política.

Mas, nesse ponto, deve-se tomar uma dupla cautela: a primeira consiste em não satanizar o nível local ou mesmo regional, exatamente porque o clientelismo é um traço ainda persistente de nossa cultura política que vai do sertão ao planalto, passando por nossos parques industriais os mais modernos; a segunda delas consiste em ter claro que exatamente por decorrência dessas culturas e práticas políticas, as políticas sociais no país, como já demonstrado inúmeras vezes, acabam por reproduzir, ao invés de compensar, as nossas desigualdades sociais.

E isso porque essas políticas, mesmo quando definidas como universais e de caráter não contributivo, tendem tão somente para a universalidade de um patamar básico de acesso a determinados serviços sociais, gerando seletividade nos níveis mais complexos dessas mesmas redes de serviços, comprometendo assim a garantia da eqüidade de acesso aos mesmos. São os casos típicos de dois setores estratégicos na área social: o da saúde - com o PAB (Piso de Atenção Básica), os PACS (Programas de Agentes Comunitários de Saúde) e o PSF (Programa de Saúde da Família) -, e o da educação - neste caso bastando verificar as desigualdades regionais de cobertura do nosso sistema de ensino básico, bem como a taxa de escolarização bruta do ensino superior por região da população na faixa etária correspondente (cf. Castro, 1999).

No entanto, desde 1994 o governo vem definindo a agenda do debate público no que diz respeito às políticas sociais em torno de alguns eixos centrais, e que tampouco neste ponto demonstram capacidade de inovação na forma de se enfrentar a questão social no Brasil. Cabe ressaltar, aqui, que não só a articulação entre políticas econômicas e políticas sociais (em que pese aumentar a diversidade e a complexidade destas) continua obedecendo à mesma lógica da era desenvolvimentista, como se aprofunda a concepção da existência de um alto grau de autonomia existente entre as dimensões sociais e políticas em nossa sociedade: passa-se a conceber a vida social, cada vez mais, como uma série de "problemas sociais" a serem enfrentados de forma isolada e desarticulada entre si. Reproduz-se assim, uma vez mais, a concepção segmentada da questão social e, em decorrência, a formulação e implementação de políticas sociais setorializadas sem um projeto para a sociedade que as articule e imprima um sentido político ao seu conjunto. Em outras palavras, ao invés de se enfrentar a pobreza de uma ótica estrutural, vale dizer, da ótica da sua superação, a concepção oficial é de aliviar a pobreza dos "grupos socialmente mais vulneráveis" (República Federativa do Brasil, 1995).

O social e o político: outra difícil equação

Essa mesma autonomia que se estabelece entre o econômico e o político na concepção que inspira as políticas sociais desde 1994 (embora, é bom que se registre, aí não tem início, mas tão somente se aprofunda), também ocorre entre o social e o político. Reduz-se, assim, a questão social à questão da pobreza, e as políticas sociais à questão da parca disponibilidade de recursos orçamentários para o setor, no geral associada a uma concepção dos serviços públicos estatais como perdulários, dada sua própria natureza. É o que vem se traduzindo em afirmações dos nossos governantes tais como "o Brasil não gasta pouco com a área social, ao contrário, gasta muito e mal".

Esta concepção de que as entidades públicas estatais desperdiçam recursos tem servido de justificativa para a busca de racionalização dos gastos sociais dentro de uma ótica demasiado estreita. Esta racionalização vem se desdobrando na fixação de três parâmetros principais para as políticas sociais: focalização, descentralização e novas formas de parcerias entre Estado, Mercado e Sociedade.

Daí decorrem as propostas em debate na agenda pública, uma vez mais por iniciativa do Executivo, e os programas que vêm sendo implementados na área social, e que giram em torno da reforma do Estado. Tema sem dúvida polêmico, que vem alimentando vigorosos debates sobre o papel do Estado e a questão social, e que se desdobra em duas dimensões: uma de caráter mais estrutural, e que diz respeito ao papel do Estado no campo das políticas sociais; e outra, enfatizando a dimensão burocrático-administrativa do Estado, e que diz respeito às novas formas de gerenciamento dos equipamentos sociais público-estatais.

Em ambas as dimensões há a opacidade na relação entre o social e o político no enfrentamento da questão social, produto por sua vez do que vem sendo denominado de "opacidade social" como traço das realidades sociais atuais (cf. Fitoussi & Rosanvallon, 1996). Na primeira delas, de caráter mais estrutural, o que está em jogo é a questão da amplitude das áreas de responsabilidade de atuação do Estado no campo social. Neste caso, focalização, descentralização e parcerias ganham um significado específico no debate que vem sendo travado. Este debate diz respeito exatamente às competências do Estado diante das novas formas de regulação social vigentes em nossa sociedade, e que cada vez mais se distanciam do fator trabalho, mas que tampouco podem ter como parâmetro o padrão vigente nas sociedades ditas avançadas (cf. Offe, 1984; Santos, 1999; Oliveira, 1999).

Neste caso, a defesa da focalização das políticas sociais reside numa constatação dos limites estruturais do próprio Estado. Mas não só no sentido clássico já apontado por Offe. No caso brasileiro, a insuficiência de recursos para cobrir as necessidades sociais, respeitando os direitos universais dos cidadãos, se agrava e reafirma não só pela crise fiscal do Estado, como do próprio modelo antes prevalecente de Estado desenvolvimentista (cf. Sallum Jr., 1994; 1996). Diante disso, e reforçado por inúmeros diagnósticos e avaliações de programas e políticas sociais implementadas e que registram evidentes distorções entre o público-alvo originalmente definido e aquele efetivamente atingido, erige-se o postulado da ineficiência intrínseca do Estado na área social e a exigência de se buscar novos modelos de solidariedade social que permitam ao Estado ver-se aliviado de tamanha responsabilidade de ser o provedor dos direitos sociais básicos dos cidadãos brasileiros.

No âmbito das políticas sociais, a tradução imediata desse ideário está manifesta num processo social de naturalização da pobreza. Não só ela é inevitável, como combatê-la eficazmente significa enfatizar a manutenção de políticas econômicas de estabilização fiscal (o social se transmudando assim em econômico). Em decorrência, os parcos recursos que o modelo econômico vigente permite disponibilizar para a área social devem ser dirigidos para os segmentos mais pobres da população, ou no jargão das agências multilaterais, para os "grupos socialmente mais vulneráveis".

Isso vem redundando na definição das políticas sociais voltadas para o combate à pobreza, e não para a superação da pobreza, o que tem duas conseqüências imediatas: a distância cada vez maior entre as instâncias política e social, fazendo com que a questão social da pobreza se traduza em diagnósticos de natureza técnica equacionados pelos limites da possibilidade econômico-financeira do Estado; e a segmentação no interior da própria área social em políticas não só focalizadas em termos de determinados grupos sociais a que são dirigidas, como focalizadas no interior dos próprios setores a que estão vinculadas. Educação e saúde, por exemplo, tratam isoladamente o mesmo desafio, comum a ambas: a universalização do acesso a um patamar básico de serviços.

Outra conseqüência diz respeito à conformação de um sistema dual de proteção social, não mais referido à inserção ou não no mercado formal de trabalho, mas a níveis de renda traduzidos em graus distintos de capacidade contributiva dos diferentes segmentos sociais, e que agora dizem respeito aos passíveis de serem incluídos pelo processo de globalização, e aqueles definitivamente excluídos desse processo, ou na afirmação de Fiori (1995), os "não globalizáveis" no modelo econômico por ele definido como de "novíssima dependência". Com isso, encontram-se, de um lado, políticas de universalização de um patamar básico de acesso a determinados níveis de serviços sociais, financiadas com recursos orçamentários e, de outro, um sistema privado, no geral continuando a ser subsidiado pelo Estado (através, por exemplo, do instrumento da renúncia fiscal) e destinado aos segmentos sociais de maior poder econômico.

Não só vão então se forjando novos modelos de solidariedade social - a cada um segundo sua capacidade própria de poupança durante seu período ativo, e para os pobres um sistema estatal básico - como consolida-se a concepção da responsabilidade do Estado no campo social como a responsabilidade pelos mais pobres. A conseqüência imediata desse processo, em termos da sedimentação do divórcio que sela entre as demandas sociais e sua possibilidade de representação política, é um sistema igualmente dual e desigual de formulação de demandas políticas na área social: o dos inseridos e os dos não inseridos; ou dos organizados e dos não organizados; ou ainda, daqueles segmentos capazes de construírem sua própria identidade social no interior de um quadro de carências, e aqueles que não o são.

Diante dessa complexidade do quadro de demandas sociais, e seu espelho na política, torna-se possível a concepção de que políticas sociais são políticas de combate à pobreza - e portanto nada de muito novo com relação ao passado recente - que tampouco transformam-se em campos estruturadores de novas práticas sociais. Os próprios canais de participação social e de controle público, previstos constitucionalmente, e mesmo quando incentivados pelo governo, uma vez mais reforçam essa dicotomia entre os excluídos e os incluídos: quem fala e defende os interesses de nossa sertaneja, que não preenche nem as exigências da tradição clientelista de nossas políticas sociais, mas tampouco preenche os mínimos requisitos burocrático-administrativos (mesmo nesse esforço de busca de uma nova racionalidade dos serviços públicos estatais) para se credenciar junto aos órgãos públicos como cidadã - e não carente - portadora de determinadas necessidades e direitos sociais?

Noutros termos, o conjunto de políticas sociais em curso desde 1994, em que pese o cenário inovador, depois de décadas, de estabilidade econômica em que ocorrem, não traz consigo o esforço necessário e urgente para se lograr superar a fragmentação das análises - e sua conseqüência na própria formulação e implementação dessas políticas - sobre o desenvolvimento social brasileiro, e que insiste ainda em prevalecer. E continua dominando do ponto de vista da dicotomia, como se viu anteriormente, entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social, quanto da segmentação das políticas e programas sociais.

Ao prevalecerem tais perspectivas, prejudica-se o próprio debate sobre a construção de um pacto de solidariedade social que permita a formulação e implementação de políticas socioeconômicas redistributivas. Em conseqüência, as políticas sociais acabam sendo condenadas aos limites estreitos do "alívio da pobreza", e portanto sempre fadadas ao insucesso, uma vez que se constituem em políticas e programas destinados exatamente ao combate a determinadas carências a que estão submetidos determinados grupos sociais, produtos, por sua vez, da desigualdade gerada pelo próprio mercado e pelas políticas macroeconômicas.

Quanto à descentralização das políticas sociais nesse período mais recente, a literatura é vasta e diversificada (cf. Elias, 1997; Arretche, 1998; Almeida, 1995). Mas não obstante essa diversidade, por sinal respaldada na própria diversidade de experiências setoriais de descentralização de políticas sociais, nela percebe-se a existência de um consenso sobre o fato de esse processo vir possibilitando um leque rico de experiências locais inovadoras e criativas para dar conta do enfrentamento da pobreza. Por outro lado, parte dessa literatura registra a contradição que vem marcando esse processo de descentralização quanto aos interesses dos níveis central e local. Neste caso, o que tem se apontado é que, em consonância com o modelo econômico adotado, para o nível central a descentralização significa a possibilidade do exercício de maior controle sobre o dispêndio de recursos na área social, contribuindo portanto para a redução do déficit público. Em contrapartida, os municípios acabam sendo pressionados a dar conta da demanda local sobre os seus equipamentos sociais.

E se a relação entre as esferas de governo a partir do novo pacto federativo instituído pela Constituição de 1988 vem sendo marcada por um maior grau de autonomia (caso típico dos municípios, alçados à condição de ente federado) (cf. Abrucio, 1994; 1998), a transferência dos recursos ligados a programas sociais, não vinculados constitucionalmente ao orçamento fiscal, e o próprio sistema de convênios que prevalece entre as esferas de governo para tal fim acabam por se revelar um ponto de estrangulamento para o desenvolvimento das políticas sociais. Isto porque assim elas continuam dependentes de fontes de recursos instáveis, passíveis de freqüentes e comuns contingenciamentos por parte do governo central.

Por outro lado, do ponto de vista político, a descentralização também é defendida como mecanismo de se lograr uma maior democratização do Estado, e conseqüentemente uma maior racionalidade das políticas estatais, embora nestes casos não fique clara a relação entre ambos os fatores. Isso porque aqueles que defendem a descentralização da ótica de constituir um mecanismo que imprime maior racionalidade ao Estado (em qualquer de suas esferas de governo) enfatizam a dimensão econômica mas também a possibilidade que a maior aproximação "física" entre Estado e cidadãos traz de este adaptar com maior eficiência os serviços sociais às reais necessidades da população. Mas aqueles que defendem a descentralização como meio do exercício do controle público sobre o Estado, e portanto de democratização da gestão local, assim enfatizando mais a dimensão política do que econômica desse processo, imprimem um outro significado à racionalidade: não mais respondendo somente às necessidades reais da população, mas sobretudo às suas demandas, isto é, às necessidades sociais tal como percebidas pelos distintos grupos sociais, que as traduzem assim em demandas políticas.

Não obstante, aqui uma vez mais se verifica a complexidade da realidade brasileira, não só pela sua heterogeneidade regional, mas pela sua desigualdade social: os espaços institucionais de participação na formulação e controle de implementação das políticas sociais - os distintos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais setoriais - tendem a ser ocupados exatamente por representantes dos setores organizados (e portanto pelos incluídos) de nossa sociedade, dificultando a presença da representação dos interesses particulares desses setores articulados aos interesses gerais e universais, vale dizer, dos direitos sociais básicos. E, da mesma forma que no texto constitucional não está clara a distinção das competências de cada esfera de governo nas distintas áreas sociais, tampouco está claramente estabelecida, e juridicamente resolvida, a natureza deliberativa desses Conselhos, que enquanto tal a rigor deveriam definir as políticas a serem executadas pelos Ministros e Secretários (estaduais e municipais), ao mesmo tempo que estes acabam por acumular e centralizar o poder, uma vez que no geral dirigem a pasta na qual estão alocados, e os respectivos conselho e fundo setorial, tendo portanto enorme poder e peso na definição das agendas públicas locais, e conseqüentemente na configuração do que venham a ser as demandas sociais.

Não obstante, não resta dúvida que esses espaços institucionais de participação social vêm favorecendo, desde 1989, a emergência de novos atores sociais, multiplicando-se, assim, a possibilidade de construção de novas identidades sociais. Esse processo, no entanto, senão contraditório, é paradoxal, uma vez que a maior parte dessas distintas experiências de descentralização, várias delas incentivadas pelo governo central a partir de 1994, vêm apontando a iniciativa do Executivo (isto é, dos governos) como decisiva na implementação dessas formas de participação social.

Quanto ao terceiro parâmetro apontado - novas formas de parceria entre Estado/Sociedade/Mercado - ele vem se revelando bastante mais complexo, embora apresente uma perigosa homogeneidade no que diz respeito à sua participação na definição do que venha a ser, nestes tempos, a responsabilidade pública do Estado (anteriormente referido como Estado provedor) e os equipamentos públicos estatais (referido como Estado produtor). Em primeiro lugar, na realidade brasileira não há tradição de a sociedade substituir o Estado na produção de serviços sociais básicos, a não ser em casos tão específicos que se configuram como exceção (como o cuidado aos portadores do HIV/AIDS e de deficiências físicas, por exemplo). Nesse sentido, experiências de co-gestão e de participação nos colegiados formados pelos Conselhos apontam para uma relação de externalidade entre a sociedade e o Estado: o diagnóstico dos problemas setoriais existentes é comum a ambos, mas a responsabilidade é do outro - no caso, do Estado.

Em segundo lugar, as parcerias do Estado com o Mercado, aqui entendido como o setor privado produtor de serviços, ainda são esparsas e, na grande maioria das vezes, dependentes de subsídios fiscais, e portanto dificilmente se configuram como uma ação autônoma, e menos ainda se traduzem em formas inovadoras e mais racionais (e portanto menos dispendiosas) de gestão dos recursos públicos.

A terceira forma, a mais estimulada pelo governo central, diz respeito as novas formas de gestão dos equipamentos públicos estatais, como é o caso das propostas de gestão através de organizações sociais. O objetivo, aqui, é imprimir maior racionalidade aos serviços públicos estatais, uma vez que caudatárias do propósito de reforma administrativa do Estado, necessária dado que lhe é agregado como atributo natural a irracionalidade, o desperdício, a impunidade. Mas é também nesse quesito que se concentram os defensores da necessidade da reforma do Estado, entendida como a redução do seu tamanho acompanhada da delegação para o mercado da responsabilidade pela produção dos serviços sociais (cf. Pereira, 1998).

Estabelece-se, a partir daí, na agenda pública, uma comunhão artificial entre reforma administrativa do Estado e reforma do Estado, que passam a ser tidas como sinônimos, deslocando-se uma vez mais a questão social para o espaço do questionamento sobre capacidade técnico-burocrático-administrativa do aparato estatal, sobrepondo-se o cálculo da racionalidade econômica sobre a dimensão política de contratos sociais anteriormente estabelecidos, sobretudo no caso dos direitos contributivos, bem como sobre a dimensão das necessidades sociais básicas institucionalizadas como universais, e também se configurando como expectativa de implementação desses direitos. As demandas sociais pulverizam-se, portanto, entre os setores sociais mais organizados e os não organizados, distanciando-se a relação entre o social e o político. As conseqüências imediatas, no âmbito das políticas sociais, vêm sendo duas. De um lado, a questão social não é definida como uma questão da política, é bem verdade que felizmente nem tampouco como questão de polícia, mas de cálculo econômico entre o "possível" e o "necessário", reduzindo-se assim a esfera pública e, conseqüentemente, a questão social sendo progressivamente expulsa da esfera política. De outro lado, em função de se imprimir maior racionalidade às políticas sociais, passa a imperar o raciocínio do custo/efetividade no interior dos setores públicos estatais, como se eles fossem idênticos ao mercado.

Essa vem sendo, a nosso ver, o que poderia ser denominado de "segunda geração de privatização dos serviços sociais", em analogia com o que vem sendo intitulado de "segunda geração de reforma do Estado" (Oszlack, 1999) e que consiste não mais em os recursos públicos comprarem serviços produzidos pelo setor privado, mas exatamente em se transplantar para o interior do setor público estatal critérios e práticas de seletividade próprias do mercado. À guisa de ilustração: no geral essas novas formas de gestão dos equipamentos estatais contam com uma receita fixa garantida (o mecanismo intitulado de captação) tendo sua margem de lucratividade, ou de superávit, definida pela contenção das despesas. Para que essa contenção não se traduza simplesmente em corte de determinados serviços e ações mais onerosos, seria necessária a garantia de efetivos mecanismos de controle público que impedissem que os equipamentos assim gerenciados praticassem a seletividade do acesso da clientela a níveis mais sofisticados de atendimento de suas necessidades e demandas3 3 Note-se, aqui, que o mesmo instrumento de captação vem sendo adotado pelo governo como critério de repasse de recursos para estados e municípios, como é o caso do Piso de Assistência Básico (PAB), por exemplo, e que vem sendo implementado pelo Ministério da Saúde. . Constituem exemplos típicos desse fenômeno, resguardadas as devidas diferenças, as experiências do Hospital das Clínicas de São Paulo, destinando parcela de seus leitos públicos estatais à demanda privada, e a desastrosa experiência, de iniciativa municipal na última gestão Maluf, do Plano de Assistência à Saúde em São Paulo (1993-1997).

Na realidade, o que vem ocorrendo, ditado pela primazia da urgência econômica sobre a social, e possibilitado pela extrema fragmentação social derivada do o modelo econômico adotado, é que essa comunhão artificial que se estabelece entre reforma administrativa e reforma do Estado, cuja expressão mais acabada são as novas experiências de gestão através de organizações sociais, cooperativas de trabalho, autogestão, dentre outros, torna-se sinônimo da implementação da racionalidade própria do setor privado na gestão do setor público estatal, fazendo com que este atue sob a mesma lógica de custo/efetividade que comanda o setor privado. Eficiência - produzir mais com menor custo - traduz-se em efetividade - produzir com menor custo gerando maior impacto, comprometendo-se, assim, a essência da responsabilidade do Estado, que consiste exatamente em implementar políticas sociais efetivamente redistributivas. Com isso, vem se agravando o traço histórico de nossas políticas sociais, reprodutoras das desigualdades sociais, tal como demonstrado no documento brasileiro elaborado para a Cúpula de Desenvolvimento Social, em 1995.

Não se trata, aqui, de invalidar ou mesmo questionar os programas que visam estender o acesso da população aos serviços básicos - sejam eles de saúde ou de educação, dentre outros -, mas sim de apontar para o fato de que eles não eximem a responsabilidade do Estado - nos níveis federal, estadual e municipal, cada um na abrangência de sua competência - de articular a esses programas políticas sociais de médio e longo prazos voltadas para a superação da pobreza. Por outro lado, tampouco se deve cair apressadamente na armadilha simplista de que as restrições que vêm ocorrendo, seja através da desinstitucionalização de direitos sociais historicamente conquistados, seja através de sucessivos cortes de recursos para a área social, são fruto direto do processo de globalização, e não também do modelo de ajuste econômico que vem sendo adotado desde 1995.

Na atual conjuntura, em que a crise econômica se torna mais aguda, e a recessão se faz presente, é exatamente a área social aquela que se revela, novamente, mais vulnerável às restrições orçamentárias. E esses cortes - que vêm ocorrendo com assustadora freqüência sobretudo a partir da maxidesvalorização do real, em janeiro do corrente ano - se fundamentam tanto na circunstância objetiva de que são exatamente esses os recursos sobre os quais o governo tem controle enquanto despesas do Orçamento da União (sob a rubrica "Outras Despesas de Custeio e de Capital"), como, sobretudo, na circunstância política igualmente objetiva de que esses cortes atingem, no geral, exatamente aqueles setores sociais com menor capacidade de fazer valer seus direitos e suas demandas.

Pobreza e desigualdade: a equação evitada

No debate público recente, a "bandeira" da pobreza tem sido disputada por diferentes forças políticas. A disputa, afinal, é sobre quem, muito mais que quais setores, foi vanguarda na defesa dos interesses dos pobres propondo programas e políticas sociais focalizados para esse segmento. No entanto, cabe sublinhar que enquanto a pobreza é disputada, o mesmo não ocorre com a desigualdade, uma vez que esta implica necessariamente em mecanismos diretos ou indiretos de redistribuição de renda.

E, se continuar a prevalecer essa forma de atuação das elites políticas - dos mais diferentes matizes político-ideológicos - as políticas e programas sociais no país estarão condenados aos limites estreitos da concepção de políticas para o alívio da pobreza, ao invés de estarem voltados para a superação da pobreza. Fato este tanto mais grave porque as reformas estruturais da década de 90 promovidas na América Latina aumentaram as desigualdades sociais na região, em particular no Brasil. Este é o país da região que apresenta as maiores disparidades regionais e os maiores índices de concentração de renda: enquanto a renda per capita anual média do Estado do Piauí é idêntica à do Haiti, e 76% dos brasileiros têm um nível de renda inferior à média anual per capita brasileira, que é de US$ 4,800, 10% das famílias brasileiras apropriam-se de 12,5% da renda nacional, enquanto os 40% das famílias mais pobres se apropriam de apenas 11,8% da renda total (cf. Cepal, 1998; IBGE, PNAD, 1995).

É exatamente a partir da constatação desse quadro, que mostra a persistência da brutal concentração de renda no país, bem como da lógica perversa que persiste na implementação de medidas de combate à pobreza, que ganha importância enfatizar, no diagnóstico que embasa as propostas dessas políticas e, portanto sua formulação, a perspectiva da sua qualidade. Entende-se aqui por qualidade das políticas sociais menos a sua dimensão da relação custo/efetividade, tão em voga, e mais o seu conteúdo enquanto instrumento de construção da cidadania e da autonomia desses sujeitos, população-alvo das políticas sociais, ao se buscar satisfazer determinadas necessidades básicas exatamente desses segmentos mais pobres da população.

Mas isso implica a necessidade de reconstruir a esfera pública, sujeita nesta década a um processo de crescente privatização e destruição, como analisa Oliveira (1999), e que tem origem exatamente na atual crise do contrato social, e de seus critérios de inclusão e de exclusão, como aponta Santos (1999), "gerando uma crescente fragmentação da sociedade, dividida em múltiplos apartheids, polarizada ao longo de eixos econômicos, sociais, políticos e culturais. Não só perde sentido a luta pelo bem comum como também parece perder sentido a luta por definições alternativas de bem comum" (Oliveira, p. 91).

O que se buscou apontar aqui, no caso específico das políticas sociais que vêm sendo implementadas sobretudo a partir da segunda metade desta década, é exatamente o seu traço tradicional, e nesse sentido tímido, que vem redundando seja num processo de destruição da esfera pública, e/ou de sua privatização, seja num processo de sua substituição pela esfera privada, o que alerta para a necessidade de que essa tendência seja confrontada com propostas de construção de um projeto para nossa sociedade que imprima a qualidade de promoção da cidadania às nossas políticas sociais, e não de reprodução da subalternidade, como vem ocorrendo até o momento.

Nesse sentido, talvez o que os debates e embates políticos que vêm se travando em torno delas estejam exatamente indicando é a necessidade de uma profunda reforma do Estado, de sua democratização, de torná-lo um Estado forte e democrático que efetivamente inclua os cidadãos, como aponta Lechner (1993), para o que se torna condição necessária o respeito a contratos sociais preexistentes, apontando assim para a garantia da previsibilidade de determinados padrões de proteção social anteriormente firmados4 4 Isso implica, por exemplo, não confundir brutais distorções existentes no sistema brasileiro de previdência social com simples privilégios, negando-se assim o próprio processo histórico de construção desse sistema. Ou no outro extremo, partindo-se de um diagnóstico da crise financeira atual da previdência social propor-se como solução técnica para saná-la as seguintes alternativas polares: ou investir no passado (isto é, manter as garantias previdenciárias dos idosos), ou no Brasil do futuro (isto é, investir nos mais jovens), a partir da reformulação dos direitos previdenciários visando o seu equilíbrio contábil futuro, em detrimento do respeito aos contratos existentes, dada a impossibilidade de "caixa" do sistema atual. Embora não seja consenso, uma vez que há técnicos e especialistas do governo que assumem os atuais gastos previdenciários como gastos não passíveis de compressão, sintomaticamente esta vem sendo uma das propostas defendidas junto ao governo para a reforma de nosso sistema previdenciário. IPEA/UFF (1999), especialmente Neri, M. - "Capital Enhancing poverty alleviation policies in Brazil". . Isso porque, nesse ponto, a democracia não se distancia do mercado: ambos exigem para a sua sustentação a previsibilidade e, portanto, a segurança da permanência de determinadas regras do jogo. E talvez aí se reponha a tensão, já apontada por vários autores, entre capitalismo e democracia.

Recebido para publicação em setembro/1999

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  • Vergara, Pilar. (1994) Rupturas e continuidades na política social chilena. Lua Nova, São Paulo, 32: 37-68.
  • 1
    Declaração de uma sertaneja nordestina ao verificar que seu nome não constava da lista dos incluídos nas frentes de trabalho contra a seca, fevereiro de 1999.
  • 2
    Cf. a respeito, dentre outros, Lindgren Alves (1995), Stiftung (1995) e ainda os relatórios anuais do Observatório da Cidadania, editado pelo Ibase, Rio de Janeiro.
  • 3
    Note-se, aqui, que o mesmo instrumento de captação vem sendo adotado pelo governo como critério de repasse de recursos para estados e municípios, como é o caso do Piso de Assistência Básico (PAB), por exemplo, e que vem sendo implementado pelo Ministério da Saúde.
  • 4
    Isso implica, por exemplo, não confundir brutais distorções existentes no sistema brasileiro de previdência social com simples privilégios, negando-se assim o próprio processo histórico de construção desse sistema. Ou no outro extremo, partindo-se de um diagnóstico da crise financeira atual da previdência social propor-se como solução técnica para saná-la as seguintes alternativas polares: ou investir no passado (isto é, manter as garantias previdenciárias dos idosos), ou no Brasil do futuro (isto é, investir nos mais jovens), a partir da reformulação dos direitos previdenciários visando o seu equilíbrio contábil futuro, em detrimento do respeito aos contratos existentes, dada a impossibilidade de "caixa" do sistema atual. Embora não seja consenso, uma vez que há técnicos e especialistas do governo que assumem os atuais gastos previdenciários como gastos não passíveis de compressão, sintomaticamente esta vem sendo uma das propostas defendidas junto ao governo para a reforma de nosso sistema previdenciário. IPEA/UFF (1999), especialmente Neri, M. - "Capital Enhancing poverty alleviation policies in Brazil".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Out 1999

    Histórico

    • Recebido
      Set 1999
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: temposoc@edu.usp.br