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Universidade pública e identidade cultural

Public university and cultural identity

Resumos

Elogiamos a atitude dos professores na defesa das universidades públicas e damos ênfase ao papel dessas universidades em nossa identidade cultural como povo. Analisamos a pressão do FMI para que o ensino nas universidades públicas venha a ser pago e o perigo de que isto venha a acontecer em vista de declarações do próprio ministro da Educação. Resumimos as pressões exercidas pela OMC em setores industriais e comerciais e para a privatização do ensino, considerado como mercadoria. Descrevemos a preocupação da UNESCO com essa pressão. Analisamos a penetração cada vez maior das universidades privadas no ensino superior brasileiro, com seu caráter quase sempre comercial, e a diferença de mentalidade cultivada nessas universidades relativamente às universidades públicas.

universidade pública; cultura; OMC; FMI; UNESCO


Praise is bestowed on the attitude of lectures in defense of the public universities and emphasis is given to the role these universities play in shaping our cultural identities as a people. We analyse the pressure by the IMF to make public universities charge fees, and the danger that this may happen vis a vis the statements by the Minister of Education. We summarize the pressure exerted by the World Commerce Organization on industrial and commercial sectors, and for the privatization of teaching seen as a commodity. We describe UNESCO's concern about this pressure. We analyse the growth of the private universities in Brazilian higher education, with its ever commercial character, and the difference in the mentalities cultivated there relative to that in the public universities.

public university; culture; WCO; IMF; UNESCO


DOSSIÊ UNIVERSIDADE E AUTONOMIA

Universidade pública e identidade cultural

Public university and cultural identity

Roberto A. Salmeron

Diretor de Pesquisa Emérito do Centre National de la Recherche Scientifique. Físico do Laboratoire de Physique Nucléaire des Hautes Energies–École Polytechnique, Paris, França

RESUMO

Elogiamos a atitude dos professores na defesa das universidades públicas e damos ênfase ao papel dessas universidades em nossa identidade cultural como povo. Analisamos a pressão do FMI para que o ensino nas universidades públicas venha a ser pago e o perigo de que isto venha a acontecer em vista de declarações do próprio ministro da Educação. Resumimos as pressões exercidas pela OMC em setores industriais e comerciais e para a privatização do ensino, considerado como mercadoria. Descrevemos a preocupação da UNESCO com essa pressão. Analisamos a penetração cada vez maior das universidades privadas no ensino superior brasileiro, com seu caráter quase sempre comercial, e a diferença de mentalidade cultivada nessas universidades relativamente às universidades públicas.

Palavras–chave: universidade pública, cultura, OMC, FMI, UNESCO.

ABSTRACT

Praise is bestowed on the attitude of lectures in defense of the public universities and emphasis is given to the role these universities play in shaping our cultural identities as a people. We analyse the pressure by the IMF to make public universities charge fees, and the danger that this may happen vis a vis the statements by the Minister of Education. We summarize the pressure exerted by the World Commerce Organization on industrial and commercial sectors, and for the privatization of teaching seen as a commodity. We describe UNESCO's concern about this pressure. We analyse the growth of the private universities in Brazilian higher education, with its ever commercial character, and the difference in the mentalities cultivated there relative to that in the public universities.

Key words: public university, culture, WCO, IMF, UNESCO.

O sistema de educação que um país adota representa a imagem que ele faz do seu futuro. A estrutura atual do ensino no Brasil, nos níveis fundamental, médio e superior, é um retrato da sociedade brasileira, com a grande disparidade dos níveis sociais e econômicos e das oportunidades acessíveis aos jovens.

Muito contribuiu para que o ensino brasileiro se encontre na situação em que está o fato de a ampliação da rede de escolas públicas não ter acompanhado o aumento da população, nem o aumento da conscientização de que as crianças e os jovens terão melhor futuro se estudarem. A necessidade de escolas tornou então inevitável a criação de escolas privadas, que existem nos três níveis do ensino. No caso particular do ensino superior, as escolas privadas no Brasil tiveram nos últimos anos, relativamente às universidades públicas, uma expansão situada entre as maiores do mundo, suas matrículas abrangendo mais que 60% dos estudantes.

Os docentes das universidades públicas há muito tempo vêm se exprimindo, a título individual ou em grupos, a respeito dos problemas que enfrentam: condições de trabalho, salários, verbas insuficientes e sua repercussão na pesquisa científica, necessidade de elevar o nível das universidades, e ameaça de que os estudos poderiam passar a ser pagos. Essas questões são examinadas com lucidez porque, em resumo, elas se relacionam com as implicações da estrutura da educação e da pesquisa no futuro do país. O ensino superior não pode ser separado da pesquisa científica. A instituição que mais debate os problemas da ciência e atinge o maior número de universitários é a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Algumas questões são sempre de atualidade. Como vão evoluir as escolas? Até onde irá a comercialização do ensino? Como manter ensino de qualidade para todos? Vamos nos concentrar sobre o ensino superior e insistiremos que a defesa da universidade pública tem de ser ação permanente. Muito já se tem falado e escrito a este respeito e é encorajante constatar que aumenta o número de palestras, discussões, livros e artigos dedicados a estes assuntos. Os aspectos preocupantes não desaparecem, contudo. Se muitos estão conscientes dos problemas, nem todos estão plenamente conscientes da sua extensão. É então importante insistir sobre sua análise, promovendo o diálogo entre docentes e com as autoridades responsáveis, diálogo indispensável ao progresso de tudo o que se relaciona com o interesse público.

Temos escolas superiores privadas e universidades públicas. É importante saber o papel que desempenham para o futuro do país. Ao analisarmos este assunto, devemos nos precaver contra mitos criados em críticas formuladas às universidade públicas, ou em defesa das privadas, com afirmações superficiais ou inverídicas, sobretudo quando são feitas comparações com outros países.

Ensino pago nas universidades públicas?

Uma das maiores conquistas da democracia são as escolas públicas gratuitas. E um dos objetivos fundamentais na luta pela educação deveria ser a ampliação da sua rede, oferecendo ensino de qualidade a todos. Essa era a visão social e moral de eminentes educadores que, lutando por esse ideal, contribuíram para ampliar o sistema de educação e elevar o seu nível em várias partes do país. Anísio Teixeira, um dos grandes mestres da educação, defensor intransigente da escola pública, já dizia:

Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública. Mas é ela aceita por todos? Parece que não (Teixeira, 1997, p. 15).

Até há pouco tempo, surgiam rumores no Ministério da Educação de que o ensino nas universidades públicas poderia não mais ser gratuito. As notícias vagas nunca eram desmentidas. Mas de uns tempos para cá, não há mais notícias vagas sob forma de boatos, o próprio ministro da Educação, em entrevistas à imprensa, exprime–se de modo que não deixa dúvida quanto à sua idéia sobre o assunto.

É surpreendente que se possa pensar em ensino pago nas universidades públicas num país que ainda procura a sua imagem democrática. Durante a última ditadura militar, houve ministros da Educação que pensaram em introduzir o ensino pago nas universidades públicas. Mas, apesar de naquele período o país ser dirigido com arbitrariedade ilimitada, até o governo autoritário sem controle público não ousou introduzir essa medida no ensino superior. Paradoxalmente, o assunto é trazido à tona depois da época da ditadura, com a exploração de mudanças que ocorreram, algumas internas, outras internacionais. Uma mudança interna significativa foram as privatizações, e a mudança internacional importante foi a globalização da economia e criação de instituições para defendê–la.

O atual governo tem procedido a privatizações sem discriminação, desfazendo–se de patrimônio nacional sem consulta popular — às vezes com abandono da riqueza do próprio solo, como no caso da Companhia Vale do Rio Doce — apresentando–as sempre como fontes de dinheiro público, inevitáveis e salutares à economia do país. Quanto mais privatizações se fazem, mais se influenciam psicologicamente pessoas para aceitarem outras, com o agravante que os problemas não são debatidos em profundidade com camadas amplas da população. O ensino pago nas universidades públicas poderá então ser apresentado como inevitável e, na mesma linha das privatizações, como fonte de verba para o financiamento das universidades públicas. Não estamos fazendo cogitação teórica, esse argumento já foi apresentado pelo ministro da Educação em entrevistas, como veremos a seguir.

O Estado de S. Paulo de outubro de 1998 publicou artigo assinado por Felipe Werneck, com o título Ministro propõe debate sobre ensino pago, que contém declarações do ministro. O artigo começa com o preâmbulo:

Segundo Paulo Renato, o governo e a sociedade devem discutir o financiamento da universidade pública (Werneck, 1998).

E continua:

O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, defendeu ontem a discussão entre o governo e a sociedade sobre a questão da cobrança de mensalidade em universidades públicas. "Esse é um tema que está sendo debatido em todo o mundo e precisa ser discutido no Brasil, especialmente à luz do pronunciamento do diretor da Unesco" disse Paulo Renato. Na quinta–feira, o diretor–geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), Federico Mayor, defendeu, na Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, em Paris, que estudantes ricos paguem mensalidades como forma de democratizar o acesso às universidades públicas. "É preciso que encontremos novas formas de financiar a universidade", declarou o ministro (Werneck, 1998).

E mais adiante:

Paulo Renato fez questão de dizer que a proposta "ainda" não faz parte do projeto de governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (Werneck, 1998).

O ministro expôs o quadro e definiu a sua posição sem ambigüidade: o ensino pago seria nova forma de financiamento das universidades públicas. Explicitou a previsão que tínhamos feito acima.

Algumas observações são necessárias. A primeira é que, mesmo se tivermos a boa vontade de considerar que às vezes jornalistas deformam o pensamento das pessoas que entrevistam, podemos afirmar que não é verdade que o assunto está sendo debatido em todo o mundo. A segunda observação é que o ex–diretor–geral da Unesco, Federico Mayor, é espanhol e em seu país, a Espanha, as universidades são públicas e gratuitas; os estudantes pagam uma pequena taxa de inscrição uma vez por ano, que ao câmbio atual corresponde aproximadamente a 200 a 250 reais, mas levando–se em conta a diferença de salários médios entre o Brasil e a Espanha, corresponderia mais ou menos à metade dessa quantia.

Vejamos outra notícia. A Folha de S. Paulo de 2 de fevereiro publicou a seguinte matéria, com o título em grandes letras FMI sugere fim da universidade gratuita:

Relatório elaborado por técnicos do FMI (Fundo Monetário Internacional) sugere que as universidades públicas brasileiras deveriam cobrar algum tipo de mensalidade dos estudantes. De acordo com o documento, o ensino superior gratuito beneficia, em maior escala, as pessoas de maior renda. "Isso (a cobrança de algum tipo de mensalidade) iria liberar mais recursos para financiar os ensinos fundamental e médio", afirmam os técnicos da entidade.

O texto não especifica se a cobrança seria feita dos alunos de graduação ou de pós–graduação. Neste ano, o orçamento de ensino superior das 52 instituições federais de ensino superior totaliza R$ 6,14 bilhões.

A sugestão está no relatório "Brasil: Assuntos Selecionados e Estatística", feito pelo FMI no mês passado. O documento analisa a situação da economia brasileira e a eficácia dos investimentos do governo brasileiro nas áreas sociais.

De acordo com o FMI, o governo gasta, com cada aluno do ensino superior, cerca de 16 vezes mais do que com um estudante do ensino fundamental. Além disso, a proporção de alunos por professor é mais baixa no ensino superior.

Renda

O aumento dos investimentos no ensino fundamental é considerado no relatório como uma maneira de melhorar a distribuição de renda no país.

"Enquanto gastos do governo nos ensinos médio e superior costumam ter impacto negativo na distribuição de renda, investimentos na pré–escola e no ensino fundamental têm efeito oposto", diz o documento.

Para o FMI, uma das principais deficiências dos investimentos na área social, em especial, nos projetos relativos a educação e saúde é a má distribuição dos recursos destinados a essas áreas. Melhores resultados poderiam ser obtidos sem que seja necessário um aumento do orçamento nessas áreas, diz o FMI.

Segundo o documento da entidade, muita coisa poderia melhorar se os gastos do governo fossem mais eficientes. Ainda há muito a ser feito para que a assistência social seja uma poderosa rede de segurança social e instrumento de alívio da pobreza no Brasil, afirma o documento.

Elogio

O documento ressalta, porém, que "apesar disso, há muitos programas bem direcionados e que conseguem atingir a camada mais pobre da população". Um dos programas elogiados é o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), o dispositivo criado pelo Ministério da Educação para financiar projetos dos governos regionais.

Para o FMI, o Fundef ajudou a diminuir a diferença entre os salários pagos a professores do ensino fundamental em cada Estado. Os salários mais baixos geralmente são recebidos por professores das regiões norte e nordeste, se comparados àqueles das demais regiões do país.

O aumento do número de crianças na escola também foi elogiado pelo FMI. O documento aponta que, em 1999, cerca de 95% das crianças entre 7 e 14 anos estavam na escola, contra 90% em 1994. Mas as taxas de reprovação ainda são consideradas altas (Folha de S. Paulo, 2001).

O mesmo jornal apresenta na primeira página um resumo da sugestão do FMI de que as universidades públicas brasileiras se tornem pagas, que termina com as palavras: O ministro Paulo Renato (Educação) não descartou a proposta de cobrar mensalidade. Para ele, "esse é um assunto importante, que o país terá de discutir no futuro".

Se o jornal não se enganou e traduziu fielmente as palavras dos "técnicos" do FMI, essas palavras são um insulto ao bom senso do povo brasileiro. Não precisamos pensar, os técnicos do FMI pensam por nós. Esse documento contém afirmações absurdas, algumas até ridículas, mas extremamente preocupantes porque provêm de uma das instituições internacionais que dirigem o mundo. Pessoas que não estejam a par do assunto, inclusive do que ocorre no exterior, influenciadas por essas afirmações, ficarão com impressões erradas. Vejamos alguns dos pontos abordados.

Em primeiro lugar, se os "técnicos" do FMI estão preocupados com a distribuição de renda no país, em vez de cobrar mensalidade de estudantes em universidades públicas, não poderiam procurar outras fontes para melhorar a renda, que trariam muito mais dinheiro? Por exemplo, não poderiam utilizar a força do FMI para fazer com que os bancos paguem impostos, ou para fazer que os lucros das multinacionais sejam taxados, ou que a transferência de capital para fora do país seja taxada e, especialmente, se estão preocupados com justiça social, obrigar as multinacionais a pagar aos trabalhadores brasileiros os mesmos salários que pagam aos trabalhadores dos seus países de origem?

Os "técnicos" do FMI se admiram de que o governo gasta com cada aluno do ensino superior cerca de 16 vezes mais do que com estudante do ensino fundamental, e de que a proporção de alunos por professor é mais baixa no ensino superior? Mas eles por acaso não sabem o que é uma universidade e não sabem o que acontece em seus próprios países? Isso é tão grotesco que não sabemos se vale a pena rebater, porque envolve vários aspectos. É evidente que uma universidade precisa ter infra–estrutura, não somente para o ensino de medicina, engenharia, ciências da natureza, mas também para todas as ciências humanas, muitíssimo mais cara do que necessita uma escola elementar. Outro aspecto, que deveria ser levado em consideração por pessoas que se dizem interessadas por distribuição de renda, é que para o quociente 16 influi no denominador o baixo salário das professoras de ensino fundamental, verdadeiras heroínas nacionais.

Dizem os "técnicos" do FMI que gastos do governo nos ensinos médio e superior costumam ter impacto "negativo" na distribuição da renda. Onde foram buscar essa informação? Não sabem eles o que todo mundo sabe, que o ensino superior de qualidade é indispensável para o futuro do país, e é por isso que os países que controlam o FMI procuram ter as melhores universidades e os melhores universitários?

É estranho que o governo não tenha reagido contra afirmações como uma das principais deficiências dos investimentos na área social (saúde e educação) é a"má distribuição dos recursos" destinados a essas áreas, melhores resultados poderiam ser obtidos "sem que seja necessário um aumento no orçamento nessas áreas", e "muita coisa poderia melhorar se os gastos do governo fossem mais eficientes".

O FMI nos ensina, então, que o Brasil não precisa aumentar os orçamentos dedicados à saúde e à educação!

Os funcionários do FMI vêem somente números. Que competência têm eles para julgar o nosso sistema de ensino, nossas condições, nossa história, nossa cultura e nossas aspirações? Não deveria o ministro ter rebatido essa interferência? Seguindo essa linha, burocratas do FMI poderiam também concluir que poderíamos fechar nossas universidades e importar professores estrangeiros.

As afirmações do FMI precisam ser combatidas energicamente e os que estão em melhores condições para isso são os universitários. De acordo com a Folha de S. Paulo, dois reitores reagiram contra a idéia de universidade paga. O reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professor Ótom Anselmo de Oliveira, disse que não seria conveniente a cobrança de mensalidade e o reitor da Universidade Federal da Paraíba, Professor Jader Nunes de Oliveira, foi mais explícito, dizendo que se trata de uma ingerência indevida do FMI nos assuntos do Brasil (Folha de S. Paulo, 2001). O Professor tem razão e utilizou a expressão correta: ingerência indevida. Esperamos que muitos reajam como os dois reitores.

A posição do ministro da Educação tem encorajado certas pessoas a exprimir, em artigos publicados em jornais, opiniões favoráveis ao ensino pago nas universidades públicas, apresentando argumentos de lamentável superficialidade, não credíveis, ou até nenhum argumento. Entre elas, um professor aposentado da Faculdade de Direito da USP. Quando lemos esses artigos, temos vontade de perguntar a essas pessoas como vêem o futuro do país, em que micro–sociedade vivem, e quais são os seus salários. Certamente não são salários da ordem de grandeza dos salários da vastíssima maioria dos brasileiros.

Observamos que as pessoas que se exprimem favoravelmente ao ensino pago nas universidades públicas não apresentam argumentos à altura do problema. Para defender a idéia, sempre se limitam a dizer que as escolas privadas dos cursos fundamental e médio podem pagar aos professores salários mais elevados que os das escolas públicas e podem assim ter melhores professores e ministrar ensino de melhor qualidade; e como conseqüência os alunos dessas escolas têm mais chance de entrar na universidade do que os alunos das escolas públicas. E como esses alunos pagam as escolas de ensino fundamental e médio, também poderão pagar o ensino universitário. Esse argumento é de um cinismo inaceitável e um insulto aos professores das escolas públicas, que não são profissionais menos competentes, nem menos conscienciosos que os outros. A verdadeira razão é que há muito tempo a política educacional não tem estado à altura das necessidades do país.

O problema básico é então que as escolas públicas precisam ter a infra–estrutura melhorada para poderem elevar o nível do ensino, para que possam dar aos seus alunos uma atenção maior, porque são elas que recebem a quase totalidade das crianças das famílias pobres sem orientação intelectual, que necessitam um amparo especial. O professor da escola pública trabalha em condições muito mais difíceis do que o da escola privada por causa das origens dos alunos. Em muitas famílias pobres, não é somente o dinheiro que falta, mas também o ambiente propício ao sucesso escolar das crianças. O professor precisa então de condições de trabalho que lhe permitam dar a essas crianças uma atenção especial indispensável.

A solução, como todos sabem, é elevar o nível da escola pública. Certamente não será cobrando mensalidade nas universidades que o problema será resolvido. Tornar os estudos universitários pagos não teria nenhuma influência no nível das escolas públicas e aumentaria ainda mais a diferença de chances entre jovens de famílias que podem pagar e os de famílias que não podem pagar.

A defesa da universidade pública gratuita releva de profundo interesse social, senso de responsabilidade e de ética. A universidade se confunde com a consciência do povo, tem de formar as gerações que deverão compreender e participar da solução dos seus problemas. Os estudos pagos dificultariam ainda mais o acesso às escolas superiores dos jovens de famílias menos favorecidas. Seria criminoso oficializar nas universidades públicas o ensino de classe social como se estabeleceu nas escolas do ensino médio. O ensino pago faria com que a população dos estudantes universitários se deslocasse cada vez mais para uma elite econômica privilegiada, e se afastasse da diversidade das origens sociais e culturais e da multiplicidade das experiências que só podem melhorar o espírito crítico e a exigência intelectual. A universidade tem, portanto, de oferecer a todos os jovens a mesma oportunidade; seria não somente socialmente injusto como também imoral incorporar em sua própria estrutura elementos que conduzissem à discriminação de classes por situações econômicas.

É ao mesmo tempo lamentável e perigoso que pessoas, inclusive jornalistas, escrevam sobre ensino pago de modo superficial, deixando o leitor na ignorância do que realmente ocorre no mundo. O pagamento eventual do ensino em universidades públicas é às vezes aventado em jornais brasileiros mas, contrariamente ao que se lê, não é assunto de cogitação na imensa maioria dos países. Em todos os países da Europa menos um, as universidades são públicas e gratuitas. A exceção é a Grã–Bretanha, onde há duas universidades privadas, Cambridge e Oxford, fundadas há cerca de oito séculos que, apesar de terem acumulado fortunas colossais com doações que receberam durante muitos anos, não poderiam sobreviver sem auxílio do governo. Há na Grã–Bretanha universidades públicas pagas. Essa afirmação, feita sem explicações, pode ter várias interpretações. Duas perguntas cruciais são: qual o valor da anuidade, e quem paga? Nos estudos mais caros, como engenharia, medicina, ciências, cobram aproximadamente 1.500 dólares por ano, quantia pequena em relação ao poder aquisitivo da população naquele país. Mas o interessante não é que a quantia seja pequena, é que o estudante não paga; o governo da localidade onde está situada a universidade paga pelo estudante, que tem os estudos gratuitos.

Outra noção errada é de que nos Estados Unidos os estudos seriam pagos. Na verdade, de todo o capital envolvido no ensino em todos os níveis, 25% provêm do setor privado e 75% do governo. No Estado da Califórnia, que é o mais rico, o maior orçamento é o da educação.

Globalização da economia e pressões na Organização Mundial do Comércio

A pressão para a globalização da economia está sendo exercida, no âmbito internacional, também para a privatização do ensino em todos os níveis e é oficializada na Organização Mundial do Comércio (OMC). Esta Organização substitui uma outra, chamada General Agreement of Tarifs and Trade (GATT), que tinha sede em Genebra, na Suíça, cuja finalidade era tratar de problemas ligados às tarifas de importação de mercadorias por todos os países. A OMC foi criada com a finalidade de ampliar as atribuições do GATT.

A OMC tem um secretariado, ao nível de funcionários sem poder de decisão, cujas atribuições se resumem a convocar reuniões, transmitir suas decisões e manter arquivos, mas não tem uma assembléia permanente, é dirigida por mão invisível. É a organização que tem o maior poder nas decisões sobre comércio internacional, mas não tem um projeto de sociedade. Os temas a serem discutidos são escolhidos de acordo com uma filosofia de proteção de direitos comerciais, numa luta de interesses, e são os países ricos que dispõem das maiores armas para defenderem os seus, não hesitando para isso em ultrapassar os limites da arbitrariedade. Uma vez aprovadas, as decisões da OMC passam a ter força de leis internacionais.

A regularização do comércio mundial é, evidentemente, necessária. No entanto, a atuação da OMC preocupa mais do que a de qualquer outra organização internacional do passado, porque ela defende, brutal e cegamente, direitos dos poderosos que impuseram os seus direitos, sem qualquer consideração de justiça social, ou de desenvolvimento dos países mais pobres e mais fracos. Vamos citar exemplos de decisões que aparentemente não têm nada a ver com universidade ou cultura, mas veremos como os assuntos são tratados do mesmo modo quando se trata de interesses econômicos. É importante que todos tenham noção clara sobre o funcionamento da OMC.

É bem conhecida a dificuldade dos países do Terceiro Mundo para exportarem suas matérias primas a preços justos, enfrentando o protecionismo alfandegário dos países importadores, que em geral não querem reconhecer nos outros o direito de proteger os seus. Mas a luta ocorre em todos os domínios. O Brasil, por exemplo, está lutando para se manter no mercado mundial de aviões. O Canadá processou o Brasil na OMC, acusando–o de subvencionar a produção dos aviões ERJ–145 e outros pela Embraer, ganhou o processo e o Brasil está intimado a lhe pagar multa colossal, como se o Canadá não subvencionasse de nenhum modo a construção ou a comercialização do seu avião Bombardier, concorrente dos aviões brasileiros. Os Estados Unidos estão ameaçando de processar a Europa na OMC, acusando–a de auxiliar na construção dos aviões Airbus, porque estes aviões, de concepção moderna, estão sendo cada vez mais procurados, inclusive por companhias norte–americanas, possuindo já mais de 50% do mercado mundial dos aviões de porte médio, porcentagem que aumenta de ano a ano. Em outro domínio, os Estados Unidos tentaram processar países europeus que auxiliam seus agricultores. Esta proteção é legal e necessária, por vários motivos. Na Europa, há uma democratização na distribuição da terra, que é dividida em pequenas parcelas nas quais são os proprietários que trabalham, não há grandes latifúndios como no Brasil e nos Estados Unidos. Por exemplo, como ficariam os criadores de gado e de carneiro, se não fossem indenizados por serem obrigados a abater todos os seus animais, quando um deles é atingido pela doença da "vaca louca" ou da febre aftosa? Os Estados Unidos alegam que não protegem, mas o governo americano compra os produtos que os agricultores não conseguem vender. Isto, não consideram proteção.

A luta dentro da OMC às vezes têm, à primeira vista, aspecto ridículo, mas no fundo revela diferenças de concepção de sociedade entre países. Os Estados Unidos processaram a França na OMC e ganharam o processo, para poderem introduzir na França bananas a preço inferior ao preço da banana francesa. Como podem os americanos vender banana a baixo preço? A banana francesa provem da Martinica, que é um departamento da França (equivalente a um estado no Brasil), sujeito, portanto, às leis francesas. Em conseqüência, os trabalhadores das plantações de bananas têm a mesma proteção social que todos os trabalhadores da França têm, com leis trabalhistas, direitos sindicais, salários decentes, medicina socializada, escolas públicas gratuitas para os filhos e aposentadoria. O estado e os patrões dos trabalhadores têm então de arcar com as despesas relativas a essa proteção social, que influem, evidentemente no preço da banana, como influem em todos os preços. Por outro lado, a banana americana não é plantada nem na Califórnia, nem no Texas, ela vem da Guatemala, onde a companhia americana de frutas explora os trabalhadores guatemaltecos com salários baixos, sem proteção social, em condições escandalosas. Essa situação não é levada em conta pela OMC, as condições dos trabalhadores não são da sua alçada, ela não se ocupa de questões sociais. A banana americana pode então chegar à Europa a preço baixo e invadir o mercado. A França tentou impedir a entrada em seu território, aumentando a taxa aduaneira, e foi processada na OMC: teve de pagar multa aos Estados Unidos pelas bananas que americanos extraem da Guatemala em condições de exploração do seu subdesenvolvimento.

Outro escândalo, freqüentemente noticiado na imprensa, é o monopólio que as grandes indústrias farmacêuticas têm dos medicamentos que produzem, com preços exorbitantes que os tornam inacessíveis às populações da maioria dos países. A sua produção é considerada propriedade intelectual, protegida por patentes. A primeira reação contra esse monopólio veio da Índia. Um químico hindu, Khwaja Abdul Hamied,que estudou em Berlim quando jovem, criou uma indústria farmacêutica em 1935. Seu filho, Yusuf Hamied, que estudou em Cambridge, dirige a indústria e produz os chamados medicamentos genéricos, vendendo–os a baixos preços, e se tornou grande defensor do direito dos países pobres de terem acesso a medicamentos modernos. Entre eles, aqueles contra a AIDS. Recentemente ofereceu à organização humanitária de ação internacional chamada Médecins sans Frontières (Médicos sem Fronteiras), criada na França, o medicamento contra a AIDS rigorosamente a preço de custo, U$350 para o tratamento de uma pessoa. Esse é 5% a 10% do preço do medicamento no mercado internacional. As grandes indústrias já tentaram impedi–lo de produzir medicamentos genéricos, mas o governo da Índia, muito dignamente, protege essa indústria e não admite interferência externa.

O exemplo da Índia foi seguido pela África do Sul, Tailândia e Brasil. Nosso ministro da Saúde promoveu a produção de medicamentos genéricos pela indústria nacional, inclusive aqueles para combater a AIDS, vendidos a preços muito inferiores aos preços dos mesmos medicamentos importados. Atitude digna de elogios, que deve ser apoiada e defendida por todos, sem ambigüidade e sem restrição. Como foi amplamente divulgado pela imprensa de todo o mundo, os Estados Unidos vão processar o Brasil na OMC, por não respeito à propriedade intelectual.

Na África do Sul, país pobre que tem 40 milhões de habitantes, 10% da população é atingida pela AIDS. Se nada for feito, 4 milhões de pessoas terão uma morte anunciada. O governo decidiu então produzir o medicamento para combater a doença e o distribui à população. Nos dias em que este artigo está sendo escrito, março de 2001, um acontecimento importante está ocorrendo neste país: 39 das maiores indústrias farmacêuticas do mundo se uniram e estão processando o governo da África do Sul, por não respeito a patentes. O processo está sendo julgado pela Corte Suprema do país. Se esta alta corte der ganho ao governo, estará abrindo um precedente histórico da maior relevância na legislação internacional, quebrando o cerco até agora intransponível imposto aos países pobres. Este precedente sem dúvida seria repetido em outros lugares.

Pressão na OMC para privatização do ensino

Há alguma relação entre os exemplos que demos acima, de pressões em indústrias de aviões e de medicamentos, em agricultura e em produção de bananas, com ensino, educação e universidades? Há muita relação, como veremos, devido à pressão oficializada na OMC.

Numa reunião da OMC realizada em 1994, foi assinado um acordo geral para o comércio de serviços (AGCS). A inclusão de serviços foi novidade na OMC, que agora tem direito de interferir para que tudo seja privatizado: transportes, telefone, distribuição de água, produção e distribuição de eletricidade, até os correios. O que nos interessa particularmente é a educação, que foi incluída como serviço, ao mesmo nível que aqueles prestados por empresas comerciais. O AGCS prevê negociações aceleradas para eliminarem medidas que ainda impedem o acesso efetivo ao mercado de serviços, entre eles, a educação.

A pressão é enorme. Na OMC, os Estados Unidos tentaram impor a privatização de todas as atividades culturais, com proibição dos governos de subvencioná–las, quaisquer que fossem as atividades. Cinema, teatro e publicação de livros não poderiam mais ser auxiliados. A Europa recusou essa proposta e fez com que fosse adotada uma sugestão da França, de excluir atividades culturais das normas da OMC, isto é, adotar uma exceção cultural.

Se a OMC impuser a liberação do ensino, de maneira que pessoas de qualquer país tenham o direito de fundar e possuir escolas em qualquer outro país, essa decisão terá força de lei internacional. Então nenhum país terá o direito de proteger suas escolas, seu ensino e os fundamentos da sua cultura, será obrigado a aceitar em seu próprio solo escolas imaginadas alhures e financiadas por financistas ocultos. E para financistas ocultos, aviões, bananas, medicamentos, escolas e universidades que dêem lucro econômico são a mesma coisa. Esse é o perigo que se anuncia.

O perigo que acabamos de descrever não é exemplo teórico, abstrato. Já existem círculos financeiros nos Estados Unidos fazendo pressão para criarem universidades americanas privadas em outros países. Em novembro de 1999 houve uma reunião em Uppsala, na Suécia, com a finalidade de estudar a implantação de universidades privadas norte–americanas na Europa, onde, como é sabido, não faltam universidades, entre as quais estão as melhores do mundo. A reunião não foi aberta a todos os países. A França, onde não há universidades privadas e onde o ensino público e gratuito em todos os níveis é considerado um dos fundamentos da República, não foi convidada a participar da reunião.

Um exemplo de privatização do ensino deveria reter a atenção, o da Nova Zelândia. Hú poucos anos, esse país privatizou totalmente o ensino, desde o fundamental até o universitário. A conseqüência é que um quarto das suas escolas estão sendo consideradas em situação catastrófica.

A educação visada por financistas é o que se pode chamar a educação para a empresa, isto é, ensino para fazer somente profissionais, o que significa educação de pequeno alcance, na qual a formação do cidadão consciente não é cogitada. Nem mencionam eles universidades como as que nós queremos para o nosso ensino superior, com atividade em ensino e em criação intelectual em todos os campos, letras, artes, ciências humanas, ciências naturais e exatas, lugar de germinação da cultura e da identidade de um povo.

Campanhas antiglobalização

Estão aumentando as campanhas antiglobalização e anti–OMC. A primeira grande manifestação ocorreu de 30 de novembro a 3 de dezembro de 1999, durante a reunião da OMC em Seattle, nos Estados Unidos, na qual participaram ministros do comércio de 135 países. O objetivo da reunião era discutir e aprovar regras para o comércio internacional. Mas ela se caracterizou por uma acirrada luta dos países ricos entre si, principalmente Estados Unidos de um lado e União Européia do outro, para defenderem seus mercados. Os países dominantes tiveram atitude escandalosamente colonialista, não demonstrando nenhum interesse pelos países do Terceiro Mundo, que encontram dificuldade em defender seus direitos, mesmo quando esses direitos foram estipulados em acordos anteriores aprovados por todos. Devido à arrogância dos ricos, 52 países pobres, especialmente da África, decidiram não assinar um eventual texto final, para cuja discussão nem foram convidados — embora estivessem presentes — e que mal teriam tempo de ler. A reunião fracassou, nenhum acordo foi possível.

Em Seattle, foram muito significativas a ação vigorosa de 800 a 1.000 organizações não governamentais de muitos lugares, com cerca de 50.000 representantes, e a atitude voluntariamente passiva de representantes de alguns países do Terceiro Mundo. Pela primeira vez na história, a sociedade civil se preparou em escala mundial para protestar contra a globalização, com participação de sindicatos, como o poderoso sindicato de trabalhadores norte–americano AFL–CIO, organizações ecologistas, organizações religiosas e organizações específicas anti–mundialização criadas nos últimos anos em várias partes, como o International Forum on Globalization e a Public Citizen, dos Estados Unidos, Friends of the Earth, da Grã–Bretanha, Third World Network, situada em Penang, na Malásia, o Observatoire de la Mondialisation da França. A ação dessas organizações teve grande destaque em jornais de todo o mundo.

A segunda grande manifestação, também amplamente noticiada pela imprensa mundial, ocorreu em fevereiro de 2001 no Fórum de Porto Alegre, como oposição ao Fórum de Davos, na Suíça, que é anualmente o grande encontro dos apóstolos da globalização.

A preocupação da UNESCO

Os atuais dirigentes da UNESCO preocupam–se com a campanha pela privatização do ensino ao nível mundial na OMC. A profundidade da preocupação pode ser avaliada pelo fato de a revista de publicação mensal Correio da UNESCO ter tratado do assunto duas vezes no ano passado. No número de fevereiro de 2000 há um artigo com o título A educação se tornará uma mercadoria? e sub–título A Organização Mundial do Comércio começou um processo de liberação da educação, um dos últimos mercados tão lucrativos quanto protegidos; até aonde irá ela? O número de novembro contém vários artigos, e a capa com o título Educação: um mercado de 2.000 bilhões de dólares.

Podemos fazer estimativas do negócio que representaria a educação no mundo, se fosse paga em todos os níveis do ensino. De acordo com a UNESCO, há atualmente no mundo 90 milhões de estudantes no ensino superior e 1,1 bilhão de alunos nos cursos equivalentes aos nossos fundamental e médio. Cada qual pode fazer suas hipóteses sobre anuidade paga por cada aluno e, multiplicando–a pelo número de alunos, calcular a soma que poderá atingir o ensino pago no mundo. Faremos um exercício.

Comecemos com o ensino superior. As mensalidades pagas este ano nas escolas privadas de direito, administração e psicologia, em São Paulo, variam aproximadamente de 700 a 1.000 reais, correspondente a 4.200 a 6.000 dólares por ano. Nos cursos de engenharia, medicina, odontologia, as mensalidades não são menores. Façamos uma subavaliação, considerando uma anuidade menor do que as dadas acima, 3.500 dólares. O montante das anuidades pagas no ensino superior seria 90 milhões multiplicado por 3.500 dólares, isto é, 315 bilhões de dólares.

No ensino fundamental e médio o mercado também é enorme. Este ano, em São Paulo, as mensalidades dos cursos fundamentais variam aproximadamente de 300 a 750 reais. Uma escola da periferia da cidade cobra mensalidade mais baixa, de 185 reais. No ensino médio as mensalidades variam de 500 a 850 reais. Como a maioria das crianças não chega ao ensino médio, imaginemos que todos paguem a anuidade do ensino fundamental. Façamos novamente uma hipótese com grande subavaliação, que todos paguem a mensalidade mais baixa existente na periferia de São Paulo, somente 185 reais por mês. Isto corresponde a aproximadamente 1.100 dólares por ano. Os estudantes do ensino fundamental e médio pagariam então 1,1 bilhão multiplicado por 1.100 dólares, isto é, 1.200 bilhões de dólares por ano.

O ensino de todos os níveis corresponderia então, com nossas hipóteses que não são exageradas, a um mercado de aproximadamente 1.500 bilhões de dólares por ano. A UNESCO fez uma estimativa utilizando os valores das anuidades reais atualmente pagas no mundo e concluiu que elas dariam o montante de 2.000 bilhões de dólares. Esta quantia é muito superior ao orçamento da maioria dos países, é tão importante ou mais, por exemplo, quanto a indústria automobilística.

Embora com mensalidades subavaliadas, as condições do nosso exercício para os ensinos fundamental e médio não são realistas, pois até 185 reais por mês não poderiam ser pagos por todos nos países do Terceiro Mundo. Mas, se somente 15% da população mundial pudesse adotar o ensino pago com as mensalidades dessa hipótese, o mercado seria de 180 bilhões de dólares, nesse nível do ensino somente.

Essas são as perspectivas de um ensino pago no mundo.

Universidades privadas

Como a rede de universidades públicas não satisfez a procura, a criação de universidades privadas foi inevitável. Estas aparecem como soluções para a formação de jovens em certas profissões e são estruturadas de acordo com as condições locais. Mas apesar do aspecto local, elas participam do processo internacional de privatização do ensino.

Países como o nosso são ainda vulneráveis aos maus processos que ocorrem no mundo. O capital internacional transformou em mercado dois domínios que os governos democráticos que trabalham pela justiça social incluem no âmbito das suas responsabilidades e os defendem: saúde e educação. A alta porcentagem de privatização da saúde no Brasil é bem conhecida, instituiu uma medicina de classe social. Há um contraste entre o grande número de médicos competentes que temos e o acesso da população aos cuidados médicos. Os que podem pagar têm atendimento de qualidade, igual ao que existe nos países do Primeiro Mundo. Mas para grande parte da população, certos tipos de tratamento, e principalmente a urgência de tratamento, são inacessíveis. Os efeitos da privatização do ensino são menos evidentes do que os da privatização na saúde. Além disso, devido a uma submissão histórica dos pobres aos ricos, a grande maioria da população vê o ensino pago como algo natural, quase como uma fatalidade.

Há grande diferença entre a mentalidade cultivada em nossas universidades privadas e nossas universidades públicas. A não ser em poucas honrosas exceções, as escolas de ensino superior pago são empresas comerciais. Os objetivos econômicos de sua fundação ficam às vezes evidentes quando são criadas por investidores alheios aos meios universitários e aos problemas de ensino, interessados nos lucros e não no que se ensina. Temos conhecimento pessoal de casos assim. Como já foi dito por outras pessoas, muitas das escolas de ensino superior pagas usurparam o nome universidade. A situação deve ser considerada grave, porque as universidades privadas tornaram–se influentes no sistema de educação no Brasil, que tem hoje uma das maiores porcentagens do mundo de estudantes de ensino superior matriculados em escolas pagas.

A influência tende a aumentar. Universidades privadas estão procurando estender suas atividades a dois campos: cursos de pós–graduação e ensino à distância. A pretensão a dar cursos de pós–graduação é, em muitos casos, uma aberração porque esses cursos somente têm sentido quando são associados à pesquisa. Isto poderá ter duas conseqüências perniciosas. Uma é que, com o argumento de oferecer tais cursos, essas universidades vão fazer concorrência às universidades públicas na obtenção de verbas provenientes dos organismos oficiais que financiam pós–graduação. Outra conseqüência é o perigo de se verem banalizados os diplomas de mestrado e de doutorado, em mistura de bons com não bons.

O ensino à distância, que tem aspectos atraentes para algumas situações específicas, é assunto complexo que exige atenção especial. Há o perigo de chamados cursos universitários à distância com diplomas universitários. Os estudantes praticamente não assistem às aulas, e não têm o necessário e indispensável contato com professores. É importante que se utilizem dispositivos legais para que tais diplomas não sejam reconhecidos, pois poderiam colocar em perigo o sistema universitário do país, devido à confusão entre tais cursos e os verdadeiros cursos universitários, que provocaria uma banalização de diplomas.

Universidades públicas

A universidade não pode ser considerada somente em seu aspecto utilitário, ela é o lugar onde se planta a semente da cultura que mantém a identidade nacional. São as universidades públicas que têm as melhores condições para preservar nossas aspirações culturais, indispensáveis para que o povo não seja uma massa informe, tenha vida e tenha uma identidade como povo. É por isso que devem estar entre as instituções prioritárias que definem o futuro do país, devem ser tratadas com a maior dignidade e ser colocadas no mais alto nível moral.

Nossas universidades públicas têm feito enorme progresso e continuam progredindo. Devemos nos lembrar de que, embora algumas escolas superiores tenham sido fundadas como escolas isoladas há mais de um século, nossas universidades são recentes, comparativamente às européias e a algumas norte–americanas. Depois de algumas tentativas de criação de universidade sem repercussão, a primeira que se consolidou foi a de São Paulo, fundada em 1934, há apenas 66 anos. Neste intervalo de tempo, foram criadas cerca de uma centena de universidades públicas, federais, estaduais e municipais, o que não foi feito sem grande esforço. Todas elas são inseridas no meio social, contribuindo substancialmente para o seu desenvolvimento.

Graças às universidades públicas, temos pessoas da mais sólida formação em todos os setores da atividade, como ciências humanas, artes, medicina, engenharia, ciências naturais. Esse progresso foi atingido devido ao espírito de iniciativa, o esforço e à clarividência dos professores, clarividência que em muitas ocasiões estimulou governantes a tomarem atitudes em prol do ensino superior. Neste sentido, o Brasil é um país de sorte porque, entre todas as comunidades universitárias do mundo, a sua comunidade é uma das que mais analisam os problemas das suas universidades e mais atuam em busca de soluções. É fundamentalmente devido à ação dos docentes que nossas universidades progridem e vão continuar a progredir. A ação deve não somente continuar, mas se intensificar em situações como a existente no atual governo, cujos responsáveis pela educação, como o próprio ministro, não dialogam com os professores, nem mesmo com os reitores. São os docentes que devem procurar o diálogo. Por exemplo, no caso particular de ameaça de ensino pago nas universidades públicas, se os reitores, professores e estudantes não fizerem nada, haverá o perigo de um dia o país acordar com um fato consumado.

Devemos continuar defendendo nossas universidades públicas e trabalhar para melhorá–las continuamente, apoiando os professores em seus esforços e em suas aspirações. Eles mantêm nossa identidade cultural. A luta que travam com lucidez é luta pelo futuro.

Recebido para publicação em abril/2001

  • Folha de S. Paulo. (2001) FMI sugere fim da universidade gratuita. São Paulo, 02/02, p. 1 e G8.
  • TEIXEIRA, Anísio. (1997) Educação para a democracia. Rio de Janeiro, UFRJ.
  • WERNECK, Felipe. (1998) Ministro propõe debate sobre ensino pago. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10/10. Disponível na Internet www.estadao.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Maio 2001

Histórico

  • Aceito
    Abr 2001
  • Recebido
    Abr 2001
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