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Niklas Luhmann

Niklas Luhmann

Resumos

O artigo traça um sintético retrato intelectual de Niklas Luhmann, focalizando essencialmente sua teoria social; em especial, as idéias expostas em A sociedade da sociedade, que revelam o núcleo construtivista da moderna teoria dos sistemas societais. Por meio da discussão da distinção central dessa obra, entre sistema e ambiente, os autores identificam os pontos básicos de ruptura da teoria de Luhmann em relação ao modelo cognitivo clássico da tradição européia e sua cosmologia humanista. Em seguida, expõem três concepções básicas de sua análise sociológica: sociedades sem pessoas; a sociedade como comunicação; e sociedade como sociedade mundial. Finalmente, apresentam algumas reflexões críticas acerca das possibilidades e dos limites da teoria pós-ontológica da sociedade como sistema auto-referencial.

Niklas Luhmann; sociologia; sociedade; teoria dos sistemas


This paper is a concise intellectual portrait of Niklas Luhmann focusing mainly on his social theory; it highlights the ideas found in The society of society that reveal the constructivist nucleus of modern social systems theory. By discussing the central distinctions of that work, between system and environment, the authors identify the basic breaking off points of Luhmann's theory with regard to the classical cognitive model of the European tradition and its humanist cosmology. Then, they present three basic conceptions of his sociological analysis: society without people; society as communication; and society as world society. Finally, they present some critical thoughts on the possibilities and limits of post-ontological theory of society as a self-referential system.

Niklas Luhmann; sociology; society; systems theory


ARTIGO

Niklas Luhmann

Niklas Luhmann

Gotthard BechmannI; Nico StehrII

IPesquisador associado do Institute for Technology Assessment and Systemsanalysis, Karlsruhe Research Center, Karlsruhe, Alemanha.

IIProfessor emérito de Sociologia da University of Alberta, Edmonton, Alberta, Canadá e Professor visitante do Center for Advanced Cultural Studies, Essen, Alemanha.

RESUMO

O artigo traça um sintético retrato intelectual de Niklas Luhmann, focalizando essencialmente sua teoria social; em especial, as idéias expostas em A sociedade da sociedade, que revelam o núcleo construtivista da moderna teoria dos sistemas societais. Por meio da discussão da distinção central dessa obra, entre sistema e ambiente, os autores identificam os pontos básicos de ruptura da teoria de Luhmann em relação ao modelo cognitivo clássico da tradição européia e sua cosmologia humanista. Em seguida, expõem três concepções básicas de sua análise sociológica: sociedades sem pessoas; a sociedade como comunicação; e sociedade como sociedade mundial. Finalmente, apresentam algumas reflexões críticas acerca das possibilidades e dos limites da teoria pós–ontológica da sociedade como sistema auto–referencial.

Palavras–chave: Niklas Luhmann, sociologia, sociedade, teoria dos sistemas.

ABSTRACT

This paper is a concise intellectual portrait of Niklas Luhmann focusing mainly on his social theory; it highlights the ideas found in The society of society that reveal the constructivist nucleus of modern social systems theory. By discussing the central distinctions of that work, between system and environment, the authors identify the basic breaking off points of Luhmann's theory with regard to the classical cognitive model of the European tradition and its humanist cosmology. Then, they present three basic conceptions of his sociological analysis: society without people; society as communication; and society as world society. Finally, they present some critical thoughts on the possibilities and limits of post–ontological theory of society as a self–referential system.

Key words: Niklas Luhmann, sociology, society, systems theory.

Introdução

Em alguns dos muitos e extensos obituários publicados nos jornais e revistas europeus em 1999, Niklas Luhmann é lembrado como o mais importante teórico social do século XX. No entanto, na maior parte do mundo anglo–saxão, ele é virtualmente desconhecido entre os cientistas sociais profissionais.

Luhmann nasceu numa família de classe média em Lünemburgo, Alemanha, no dia 8 de dezembro de 1927. Depois de se formar muito cedo no 1º ciclo (Notabitur), ele foi recrutado em 1944 e feito prisioneiro de guerra das Forças Americanas. De 1946 a 1949, ele estudou direito em Friburgo, entrou para o serviço público e trabalhou por 10 anos como advogado administrativo em Hanover. Em 1962, ele recebeu uma bolsa de estudos para ir a Harvard onde passou um ano com Talcott Parsons. Em 1968, ele foi nomeado professor de sociologia na recém–criada Universidade de Bielefeld, onde trabalhou até se aposentar. Pouco antes de sua nomeação, perguntaram–lhe com que objeto desejaria trabalhar na universidade. Sua resposta foi: "A teoria da sociedade moderna. Duração: 30 anos; sem custos". Conseqüentemente, ele cumpriu à risca esse programa teórico. No momento de sua morte em dezembro de 1998, aos 70 anos de idade, sua obra consistia de mais de 14.000 páginas publicadas.

A viagem de Luhmann em direção à teoria da sociedade moderna deu–se por meio de dois enfoques; primeiro, na forma de ensaios, desde o fim dos anos 60; e, segundo, a partir dos anos 80 na forma de monografias sobre sistemas individuais de funcionamento da sociedade tais como direito, ciência e arte. Sua evolução intelectual culmina em 1997 com a publicação de seu magnum opus A sociedade da sociedade. Qualquer pessoa que suspeite de redundância ou repetição aqui pode achar, à primeira vista, que seu ceticismo está confirmado. Esse trabalho em dois volumes não contém nenhum assunto novo, muito menos qualquer enfoque até então inédito. Na verdade, está mais para uma conclusão, uma recapitulação, do que a exploração de um novo território. No entanto, uma segunda olhada cuidadosa revela muito que não havia sido dito antes — ou, pelo menos, não dessa forma. Contrastando com os ensaios, que são às vezes experimentais e em um tom jocoso, e que ocasionalmente terminam num ponto de interrogação, o formato do livro requer uma apresentação mais sistemática. A sociedade da sociedade é a pedra final de sua catedral teórica e nos fornece um mapa, e um guia, para a compreensão da moderna teoria dos sistemas.

Em torno desse trabalho principal, acrescentam–se outras análises anteriores e individuais: A ciência da sociedade, A economia da sociedade, A arte da sociedade, O direito da sociedade e os dois livros póstumos: A política da sociedade e A religião da sociedade. A introdução a essa série de análises tomou a forma de um livro de 674 páginas com o título de Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Esse trabalho é a mais concentrada, abstrata e — se nos dedicarmos a estudá–lo — a mais compensadora apresentação do núcleo teórico.

Temos agora uma primeira visão geral à nossa disposição. Se quisermos fazer justiça a Luhmann, precisamos nos situar dentro da arquitetura de sua perspectiva geral. Afora esses estudos sistêmicos, Luhmann também publicou uma série de análises sociológicas e histórico–semânticas um pouco menos volumosa. Elas consistem dos quatro volumes do Estrutura e semântica societal e dos seis volumes do Iluminismo sociológico. Esses estudos mostram Luhmann como um scholar universal, que situa sua teoria dentro do contexto histórico do iluminismo e da filosofia européia. Além dessa pesquisa abrangente, ele também produziu uma gama de análises políticas e sociais da sociedade moderna, comentando problemas públicos urgentes. Mencionaremos somente seus livros Sociologia de risco, Comunicação ecológica, A realidade da mídia de massa e A teoria política do estado do bem estar. Ao todo, seu trabalho consiste de umas 700 publicações em traduções incontáveis para o inglês, francês, italiano, japonês, russo e chinês.

Em quase todo seu trabalho, Luhmann faz referência à lógica operativa de George Spencer Brown e ao construtivismo radical. Eles são tratados de maneira sumária para poder delinear o esboço e a estrutura conceitual de sua teoria dos sistemas super–sociais, dotada de uma série de instrumentos metodológicos conseguidos dessa maneira. A teoria da política, sociologia da religião, sociologia da arte e sociologia moral são desenvolvidas em seguida.

Nesse nosso rápido retrato intelectual de Niklas Luhmann, primeiro, focalizamos deliberadamente a substância de sua teoria social, especialmente as idéias encontradas em sua última publicação; mas abstemo–nos de avançar na perspectiva de uma sociologia do conhecimento que tentasse entender, por exemplo, a relutância por parte das ciências sociais anglo–saxônicas em usar as noções de Luhmann tão vigorosa e proeminentemente como aconteceu não só em seu próprio país, mas também na Itália, na França e em muitas outras sociedades não falantes de inglês. Essa é uma história e um desafio que não poderão ser abordados agora. Em segundo lugar, tendo esboçado as características mais importantes do original enfoque teórico–sistêmico de Luhmann, apresentamos algumas observações e reflexões.

Para Luhmann, diferenciação social e formação de sistema são as características básicas da sociedade moderna. Isso também quer dizer que a teoria dos sistemas e a teoria da sociedade são mutuamente dependentes. Nesses termos, a sociedade não é a soma de todas as interações presentes, mas um sistema de uma ordem maior, de tipo diferente, determinada pela diferenciação entre sistema e ambiente; e é exatamente essa distinção o tema do livro de dois volumes de Luhmann A sociedade da sociedade.

A principal mensagem de Luhmann é a seguinte: ou a sociologia é essencialmente a teoria da sociedade, ou não é uma ciência. Se olharmos para trás, para a história da sociologia, isso não é nem um pouco evidente. Muito pelo contrário, no começo do século passado — e particularmente depois de 1945 na Alemanha e em outras partes — a sociologia desenvolvia sua identidade escondendo sua relação com a sociedade. Era principalmente uma teoria de entidades sociais, com categorias tais como papéis, interação, intenção e ação social formando a estrutura conceitual básica de uma sociologia cada vez mais inclinada empírica e teoricamente a seguir o modelo das ciências naturais, com sua ênfase na causalidade e na descoberta de leis.

O conceito de sociedade, no entanto, manteve sua reinvidicação holística; defendida enfaticamente, por exemplo, pela teoria crítica e transformada por Jürgen Habermas em uma teoria da razão comunicativa. Essa reinvidicação ia de encontro à acepção da sociologia como uma teoria universal e independente de entidades sociais. Será que a perspectiva corrente dentro da sociologia tornaria a sociedade um sistema social como outro qualquer, mas ao mesmo tempo um sistema fundamental que abarcasse tudo? A sociologia não conseguiu escapar deste paradoxo ao qual se opôs por meio de repressão e historicização: a teoria social, e particularmente a teoria crítica social, foram amplamente deixadas aos cuidados disciplinares da filosofia, que — acredita–se — possui os especialistas em abordagens holísticas das estruturas essenciais e fundamentais do pensamento e do relacionamento com o mundo. Se cientistas sociais lidavam com a teoria da sociedade, então eles o faziam tipicamente por meio de exegeses dos clássicos, como se a história de sua própria disciplina tivesse a habilidade de preservar e resgatar reinvidicações.

Hoje a exclusão da sociedade pela sociologia parece estar se vingando. Como no mundo reprimido de Max Weber onde os deuses celebravam seu retorno ao mundo na forma de conflitos incessantes de valores, o conceito de sociedade está hoje voltando em uma ampla diversidade de termos tais como "sociedade pós–industrial" (Bell), "sociedade de conhecimento" (Stehr) e "sociedade pós–moderna" (Lyotard); como se um aspecto da sociedade fosse capaz de representar o todo. Tal fabricação ad hoc de terminologia revela o que está sendo suprimido: a saber, a exigência de compreender a sociedade em sua totalidade.

Então, o que isso significa exatamente para a sociologia, pergunta Luhmann, se queremos evitar a armadilha do objetivismo ingênuo, que vê a sociedade como um objeto dado que efetivamente precede toda observação científica? A implicação do ponto de vista objetivo seria que teríamos que observar a sociedade de um ponto externo à sociedade. Não há tal lugar. Tanto a ciência como a sociedade são uma expressão da realidade social. É precisamente nesse ponto que a sociologia clássica do conhecimento não se sustentou. Ela foi forçada a delegar a observação do conhecimento a uma hipotética inteligência livre que não estava sujeita a nenhuma distorção devido a interesses ou ideologias. Mais recentemente, algumas perspectivas aceitaram a idéia que o ato da cognição é sempre ele mesmo um momento na totalidade da cognição. Luhmann adere a essa perspectiva — e ao mesmo tempo vai além dela com a argumentação de que não pode haver um objeto "sociedade" acessível à observação independente.

Assim que cessamos de ver a sociedade meramente como outro objeto de pesquisa sociológico e, ao invés disso, focalizamos seu significado operacional como condição de possibilidade para a própria cognição social, então a sociologia torna–se um sujeito que lida consigo mesmo do mesmo modo que a filosofia dedica–se à reflexão. Luhmann transfere a estrutura do modo de operação auto–referencial do sujeito à teoria dos sistemas sociais. Ao mesmo tempo, ele responde à pergunta: como é possível praticar a sociologia como uma teoria da sociedade que não descarta prematuramente a conexão entre teoria e sujeito? Isto, de acordo com Luhmann, requer uma rejeição radical de posições epistemológicas baseadas na dicotomia do paradigma sujeito–objeto. A sociologia é confrontada com a sociedade como sujeito. Portanto Luhmann argumenta que isso requer pesquisas sobre as características que ela própria já gerou. Luhmann consistentemente apresenta uma idéia de sociedade radicalmente anti–humanista, não ontológica e construtivista radical.

A suposição mais radical do enfoque teórico maduro de Luhmann é sua ênfase nas diferenças, mais precisamente nas distinções que não são mais vistas como diferenças objetivas mas como construções. A substituição do conceito de sujeito e a transferência da diferenciação sujeito–objeto para uma distinção entre sistema e ambiente levam Luhmann a uma teoria pós–ontológica da sociedade, desenvolvida numa base naturalística e empírica como uma teoria da observação. Esse questionamento fundamental da filosofia moderna do sujeito e sua distinção entre as ciências naturais e as humanidades (acrescido da rejeição de um conceito humanístico–antro–pocêntrico para definir a sociedade) atraiu um grande número de críticas, e mais incompreensão ainda, ao enfoque de Luhmann.

A genealogia da teoria dos sistemas de Luhmann

O conceito de sistema é o ponto de partida essencial de Luhmann. A esse respeito, ele é excepcional na sociologia alemã que, pelo menos desde Max Weber, tem sido constituída basicamente de teoria da ação. A proposta de Luhmann de descrever fenômenos sociais tais como interações, organizações ou sociedades como "sistemas" possivelmente marca essa ruptura conceitual da maneira mais enfática. Pensar em termos de sistemas implica, primeiro, que "não estamos mais falando de objetos, mas de diferenças e, mais ainda, que as diferenças não são concebidas como fatos reais (distinções) voltando, ao invés disso, a um imperativo para executá–los, senão não poderíamos nomear nada, e assim não haveria nada para observar e, portanto, não estaríamos aptos a dar continuidade a nada" (Luhmann, 1997, p. 60).

O texto do "social" (como todos os outros textos) não é nem auto–explicativo nem é depositado numa escrita discreta. E não possui nenhum significado consistente que seja idêntico a ele mesmo, e que pudesse ser rastreado até o instante específico de sua criação. A sociologia tem de trabalhar sem conceber seu domínio de objetos como um conglomerado de coisas, análogo a fatos que possuam uma forma definida — cujas inter–relações, além do mais, estão garantidas num princípio uniforme (seja ele a natureza, a vontade divina, a moral ou um sujeito transcendental). Sob as condições metafísicas do moderno, a metaperspectiva que permite o reconhecimento de algo que se assemelha ao natural como a essência invariável ou a totalidade da sociedade não está mais disponível ao observador.

De acordo com o enfoque da teoria dos sistemas de Luhmann, o mundo (como o horizonte de descrições possíveis) é expresso por meio de uma rede de distinções e rótulos contingentes que sempre devem ser entendidos dentro do contexto. Que um observador possa rotular isto como sendo isto (e não aquilo) só é possível por causa da distinção pela qual os dois momentos, separados um do outro, só podem ser compreendidos em relação um ao outro; as unidades distintivas só possuem sua identidade própria pela sua diferença com o outro. Para caracterizar algo como tal, temos que já o ter distinguido do seu outro distintivo; o que merece ser chamado de verdadeiro, por exemplo, é medido pela diferença de aparência; e falar do passado só faz sentido com referência a um presente que pode ser distinguido (constitutivamente) dele. Mesmo que não seja elevado a questão, esse outro lado de algo que é chamado disto ou daquilo está sempre presente em cada determinação de fala ou gesto que fazemos. É um horizonte permanente. É possível mudar de lado a qualquer hora e trazer o momento distinto da forma (a aparência pela verdade, ou o presente pelo passado) para o foco de atenção, fazendo dele o ponto de partida para mais deliberações. No interesse de um tratamento deliberado do eu e do mundo, é inevitável que distingamos e rotulemos. Tais operações são o começo de toda percepção e reconhecimento.

Da perspectiva da teoria dos sistemas, é impossível determinar porque distinções e rotulações em contextos diferentes podem ser feitas de certa maneira e não de outra. A distinção sempre ocorre dentro de um meio em que não houve um pré–pensamento e nem uma determinação prévia, dotando cada forma com um selo de contingência indelével: a princípio poderíamos ter feito distinções completamente diferentes. Falar de sistemas então quer dizer estabelecer uma diferença: aquela entre sistema e ambiente.

Sistema, para Luhmann, quer dizer uma série de eventos relacionados um ao outro, ou de operações. No caso de seres vivos, por exemplo, esses são processos fisiológicos; no caso de sistemas psíquicos, os processos são idéias; e em termos de relações sociais, são comunicações. Os sistemas se formam ao se distinguirem do ambiente, no qual esses eventos e operações ocorrem, e que não pode ser integrado a suas estruturas internas.

Contrastando com seu mentor anterior Talcott Parsons, que definia sistemas por meio da presença de normas e padrões de valores partilhados coletivamente, Luhmann parte de um conceito de sistema formado de maneira estritamente relacional. Sua noção assenta–se na idéia de uma fronteira constitutiva que permite a distinção entre dentro e fora. Cada operação de um sistema (no caso de sistemas sociais: cada comunicação) (re)produz essa fronteira encaixando–se numa rede de futuras operações, na qual, simultaneamente, ele ganha sua própria unidade/identidade. Portanto, tal conceito de fronteira — acima de tudo em relação aos sistemas psíquicos e sociais — não deve ser entendido espacialmente, mas sim operacionalmente:

"A fronteira do sistema nada mais é que o tipo e concreção de suas operações, o que individualiza o sistema. É a forma do sistema cujo outro lado se torna o ambiente" (Luhmann, 1997, p. 76–77).

Essa compreensão operativa requer que se entenda que sistemas não são capazes de transcender suas próprias fronteiras. Tal estratégia de pesquisa se dá pela convicção elementar da improbabilidade da emergência da ordem social. Tudo poderia ser diferente a princípio. Da perspectiva de Luhmann, as estruturas não têm nada de auto–evidente; elas requerem uma construção permanentemente nova do ponto de vista de sua existência e de sua forma determinada. Contrastando com o funcionalismo de persuasão parsoniano, Luhmann não está comprometido com a preservação dos sistemas sociais. Muito pelo contrário, a contingência e a complexidade do social é o ponto inicial de todos os seus esforços teóricos.

A complexidade do desenho da teoria de Luhmann se expressa não só pela diversidade das questões sociológicas com as quais foi capaz de lidar com o apoio da perspectiva da teoria do sistema, mas também pela maneira que as perspectivas variam em suas ênfases cada vez que ele apresenta seu enfoque teórico geral. Seu Sistemas sociais é escrito primeiramente do ponto de vista da distinção entre sistema e ambiente, enquanto A ciência da sociedade toma como ponto de partida a teoria dos sistemas observáveis, o que leva a mais debates epistemológicos sobre a observação da observação. Se tivéssemos de escolher o ponto de vista central para A sociedade da sociedade, o foco estaria claramente no sistema social, em contraste com todos os subsistemas formados através de operações sociais dentro da sociedade.

A diferença das diferenças

Luhmann distancia–se do que ele chama de velha tradição européia teórica ontológica, irremediavelmente datada em seu potencial para captar a sociedade moderna em toda sua complexidade. Ao fazer isso, ele está tentando sobrepujar uma tradição de dois mil anos que, segundo sua visão, foi transcendida pelo processo de diferenciação funcional. Ele caracteriza o velho estilo europeu de pensamento pela preocupação com a identificação da unidade sob a diversidade. A sociedade, na visão clássica, consiste de sujeitos de ação cuja unidade fundamental baseia–se na partilha de um entendimento comum. A ontologia refere–se a um mundo existindo objetivamente, separado dos sujeitos que são conscientes de sua existência e capazes de uma representação linguística não ambígüa.

Contra isso, Luhmann apresenta um mundo que temporaliza, diferencia e descentraliza todas as identidades. Identidades são produtos de eventos passados. A unidade não é mais o ponto de referência definitivo da teoria. Quando ele relativiza até o esquema ontológico da existência/não existência como apenas um dos muitos esquemas observáveis, Luhmann ataca as bases de poderosas tradições do pensamento. O paradoxo, de acordo com ele, é que a velha tradição européia emergiu numa sociedade que, hoje, não existe mais, seja em termos do sistema de comunicação ou em termos de formas de diferenciação.

Mesmo assim, essa tradição permanece como parte integrante de nossa herança histórica e, nesse sentido, é uma parte da cultura que é relevante para a orientação. Não pode desaparecer porque não serve mais; é constantemente negada, e tem que estar disponível para esse fim.

Emerge aqui outra distinção fundamental que Luhmann usa para estruturar sua teoria da sociedade: especificamente, a distinção entre estrutura social e semântica. É característico que essa distinção inclua a si própria, sendo ela mesma uma distinção semântica e o problema é exatamente desarmar o paradoxo de modo frutífero. A teoria da sociedade está localizada em dois níveis: no nível semântico ela se distingue da velha tradição européia, enquanto no nível da estrutura social faz–se referência a evolução, diferenciação e ao desenvolvimento da mídia.

Sociedades sem pessoas

Luhmann introduz três premissas em sua análise da sociedade que produziram não apenas críticas vigorosas, mas também muita incompreensão, a ponto de ser acusado de ter um pensamento anti–humanista e cínico: 1. A sociedade não consiste de pessoas. Pessoas pertencem ao ambiente da sociedade. 2. A sociedade é um sistema autopoiético que consiste de comunicação e mais nada. 3. A sociedade só pode ser adequadamente entendida como sociedade mundial.

O banimento das pessoas para o ambiente da sociedade completa a descentralização da cosmologia humanista. Tendo sido retirada do centro do universo na Renascença, desprovida de sua origem única ao ser colocada no contexto da evolução por Darwin, e desnudada de sua autonomia e autocontrole por Freud, o fato da humanidade agora ser libertada das amarras da sociedade por Luhmann parece ser uma extensão consistente dessa tendência. Enquanto a tradição clássica européia, com sua distinção entre humanos e animais, dotava os humanos de sentido, razão, vontade, consciência e sentimentos, a separação inexorável dos sistemas mentais e sociais que Luhmann substitui por homo socialis deixa claro que a sociedade é uma ordem sui generis emergente, que não pode ser descrita em termos antropológicos. A sociedade não tem o caráter de um sujeito — nem mesmo no sentido enfático transcendental, como uma condição da possibilidade de idéias subjacentes definitivas ou de mecanismos de qualidades humanas. Não é um endereço para apelos humanos de ação, e certamente não um lugar para reinvindicar igualdade e justiça em nome de um sujeito autônomo. A sociedade é a redução comunicativa definitiva possível que separa o indeterminado do que é determinável, ou o que é processável da complexidade improcessável.

Numa análise detalhada, Luhmann traça a distinção cada vez maior entre o indivíduo e a sociedade. Só depois de uma clara separação ter sido feita entre sociedade e humanidade é que é possível ver o que pertence à sociedade e o que está alocado à humanidade. Isso abre as portas à pesquisa sobre a humanidade, a consciência humana e o funcionamento da mente humana com base em medidas empírico–naturais. A tese da separação de sistemas sociais (ou sistemas da sociedade) e sistemas físicos torna possível entender claramente o relacionamento entre sociedade e humanidade e segui–lo através de sua trajetória histórica. Os dois são nesse sentido sistemas autopoiéticos, um operando na base da consciência e o outro na base da comunicação. Mas o que é sociedade?

Sociedade, numa aproximação inicial, é o sistema social inteiro, incluindo tudo que é social, e consciente de nada social fora de si mesmo. No entanto, tudo que é social é identificado como comunicação. A comunicação "é uma operação genuinamente social (e a única que é conjunta socialmente). É genuinamente social porque pressupõe uma maioria de sistemas de consciência colaboradora ao mesmo tempo que não pode (exatamente por essa mesma razão) ser atribuída como uma unidade a nenhuma consciência individual". Por outro lado, é também verdadeiro que qualquer coisa que pratique comunicação é uma sociedade. Isso envolve definições de grande abrangência.

A sociedade como comunicação

Em primeiro lugar, a comunicação é uma realidade sui generis que não pode ser atribuída a nada mais. Em segundo lugar, a comunicação é um mecanismo que constitui a sociedade como um sistema autopoiético e processa–a nesses termos. A negação da comunicação é, ela mesma, comunicação e portanto expressão da sociedade. Em terceiro lugar, se comunicação quer dizer reprodução autopoiética, isso quer dizer que a sociedade é uma ordem auto–substitutiva que só pode mudar nela mesma e através dela mesma. A comunicação se torna a estrutura básica da sociedade, na qual a relação entre comunicação e sociedade é circular: não existe comunicação sem sociedade assim como não existe sociedade sem comunicação. Mas o que é comunicação? Ou será que não é mais possível colocar tal questão num período pós–ontológico?

A resposta mais simples é que a comunicação é uma operação no sentido preciso em que uma distinção é feita. Atos comunicativos não dizem nada sobre o mundo e a comunicação não reflete nada sobre o mundo, o qual não é refletido pela comunicação, mas sim classificado por ela. O propósito da comunicação é criar diferenças que possam depois ser incluídas em outras comunicações, formando e estabilizando as fronteiras do sistema. Mas a própria comunicação não é ela mesma original, não é qualquer elemento definitivo, mas uma síntese de seleções processadoras às quais Luhmann chama de informação, transmissão e compreensão. Essas três operações discriminatórias têm estrutura binária.

A informação é selecionada da memória partilhada, um reservatório do qual coisas são selecionadas como sendo relevantes para a transmissão ou para o esquecimento. Para se completar um ato de comunicação tem–se que decidir o que é representado ou aceito ou rejeitado, não entendido. Transferido para o sistema social, poder–se–ia dizer que a informação pode ser vista como uma referência externa, a transmissão como auto–referência e a compreensão como condição para a transferência de sentido em comunicações ulteriores. A síntese dessas três seleções é um evento auto–referencial e fechado. Isso permite a Luhmann deixar claro a autoconstituição do que é social. Se o que é social é nada mais que comunicação, isso também implica que consiste desse processo autopoiético que tem a sua própria dinâmica. O ambiente é então apenas um estímulo e não uma fonte real de informação. Consequentemente, compreensão significa uma rede não–arbitrária de eventos comunicativos em um processo de comunicação auto–referencial. A discussão repetida forma identidades que constituem fronteiras.

A sociedade, ou o que foi anteriormente entendido como sociedade pela sociologia, agora está livre de todas determinações substanciais. Não é uma unidade moral, não está baseada em consenso nem qualquer integração racional (de qualquer tipo); é formada somente por comunicação em curso. Consequentemente, não faz sentido falar de distinções tais como economia/sociedade ou ciência/sociedade, já que política, economia e direito não podem ser vistos como algo externo ou separado da sociedade, mas são atos da sociedade em suas operações comunicativas. Para Luhmann, a sociedade, portanto, consiste da totalidade daquelas operações que não fazem uma distinção pelo fato delas fazerem uma distinção. Isso relega a um status teórico secundário todas as suposições sobre entendimento, progresso, racionalidade e outros objetivos.

Sociedade como sociedade mundial

Em sua terceira determinação de sociedade — mais especificamente a definição de sociedade como sociedade mundial — Luhmann mais uma vez coloca–se deliberadamente em contraste com a velha tradição européia. Ele evita uma definição territorial de sociedade que identifica as fronteiras da sociedade com as fronteiras dos Estados nacionais. As interdependências globais e a dissolução de restrições temporais e espaciais pelas tecnologias modernas de informação e transporte reduzem fortemente a plausibilidade de uma definição de sociedade territorialmente limitada. Os conceitos alternativos de um sistema internacional ou uma sociedade transnacional falham porque, para todas as diferenciações culturais que eles enfatizam, não chegam a uma unidade da diferenciação resultante e portanto não são capazes de explicar o "inter" e o "trans". Ao invés de ser um sucessor da tradição do societas civilis findet eles meramente descrevem a diversidade crescente, a complexidade e o aumento de opções disponíveis. Se o mundo não é mais entendido como a coleção de todos os objetos visíveis e diretos, como o aggregatio corporum, o que resta do senso comum que possibilita que falemos de uma sociedade mundial?

Luhmann baseia sua concepção em uma observação essencialmente comum. A exploração final da terra, e talvez a exploração do espaço, tornou evidente que o mundo é um complexo fechado e comunicativo. Em princípio, qualquer ponto do globo é acessivel à comunicação, apesar de todos os obstáculos técnicos, políticos e geográficos. A sociedade mundial é a auto–eventuação do mundo em comunicação. Essa definição adquire plausibilidade se incluirmos o foco futuro vital da sociedade moderna dentro dessa perspectiva. Historicamente, pode haver uma distinção entre os territórios individuais, mas uma coisa que todos partilham agora é que o futuro só pode ser visto como uma unidade. "Mundial" então quer dizer exatamente essa referência na estrutura da comunicação dos sistemas funcionais completamente diferenciados, de tal forma que "mundo" como o horizonte total de experiências sensoriais não é um agregado, mas melhor um correlato, das operações comunicativas que ocorrem nele.

Epistemologicamente falando, essa mudança tem implicações de longo alcance. A sociedade só é observável dentro dela mesma e pode ser vista como uma unidade de maneiras diferentes sem ser capaz de, por decomposição, chegar a um mundo genuíno observável conjuntamente. Sempre acabaremos com novas distinções, com construções. Para Luhmann a localização socioestrutural da teoria da observação é secundária. Observação de segunda ordem significa localizar um observador no mundo que observa outros e gerar as várias versões do mundo (incluindo o nosso observador) — apesar de só podermos fazê–lo em um mundo.

Teorias das teorias

Mas como pode a sociedade documentar–se sem entrar em contradição consigo mesma e particularmente sem recorrer a referências transcendentais externas a ela mesma? No último capítulo de A sociedade da sociedade, sob o título Autodescrições, Luhmann trata da intrincada relação entre teoria e sujeito. A teoria pode explicar seu próprio lugar dentro do processo da sociedade? E se puder, ela não vê, até certo ponto, de fora, apesar de isso ser possível dentro da sociedade na qualidade de comunicação? Nesse ponto somos lembrados (de modo não totalmente inapropriado) da mão de Escher desenhando–se a si mesma, gerando ela mesma e sua própria imagem no curso de sua própria operação. Luhmann segue numa linha similar: tal qual as auto–observações, autodefinições (geração de textos) são operações individuais do sistema. De fato, as descrições e o que é descrito não são dois objetos separados ligados apenas externamente — como na autodescrição, o que é descrito é sempre parte do que está sendo descrito e ela transforma–o simplesmente pelo fato que aparece e se presta a ser observado.

A sociologia, então, é sempre a construção da unidade dos sistemas dentro do próprio sistema, nunca chegando a um fim desse processo. Essa constatação leva Luhmann a evitar qualquer conclusão para sua própria teoria. Apesar de haver aqui uma relação particularmente próxima com Hegel, que também deu ao absoluto um caráter auto–referencial, ao ver o sistema como inteiramente auto–referencial — onde nada pode ser externo porque tudo que é externo já virou um aspecto de seu autodiferencial — Luhmann deixa essa tradição exatamente nesse ponto, traduzindo–a para um vocabulário cibernético e, assim, sobrepujando–a. A sociedade também não é um sujeito no sentido antropológico–interativo, como Adorno ainda a via apesar de toda a sua crítica à filosofia: a sociedade é "uma relação coagulada entre pessoas". A humanidade não é o elemento definitivo na sociedade, assim como a sociedade não pode mais ser descrita dentro do modelo cognitivo clássico de sujeito–objeto; porque a própria auto–referencialidade da sociedade causa o desmoronamento dessa dualidade, uma vez que a cognição procura certeza intersubjetiva por parte do sujeito e pressupõe objetos estáveis. A sociedade não é em caso algum tal objeto estável.

Reflexões críticas

De acordo com o enfoque de Luhmann, apenas a semântica construtiva radical fornece distância suficiente para prevenir que se sucumba às sugestões inerentes à terminologia tradicional. A terminologia de Luhmann na parte teoricamente mais exigente de seus trabalhos não contém associações nem conotações clássicas. Se não quisermos abandonar a leitura dos estudos de Luhmann devido à pura resignação, frustração ou até raiva, então sua terminologia requer uma considerável tolerância, da parte do leitor que não conheça a terminologia da teoria dos sistemas.

A linguagem rigorosa, austera e artificial não é devida a nenhuma afetação, mas sim ao rigor de seu programa teórico — e esse programa tem que manter uma distância das implicações da semântica da teoria social tradicional européia. A esse respeito devemos levar a sério a penúltima sentença de A sociedade da sociedade, segundo a qual uma adequada teoria moderna da sociedade requer o sacrifício do mero prazer do reconhecimento e o julgamento da construção da teoria por seus próprios méritos.

Isso não implica que a leitura da teoria de Luhmann seja simplesmente uma batalha com construções nominais e cascatas de termos abstratos; nela pode–se encontrar análises da semântica européia tradicional, nas quais Luhmann tenta clarificar porque elas não são mais adequadas para os fatos estruturais da sociedade moderna. Repetidamente há formulações enfáticas e paradoxais, nas quais os frutos da troca da formação da teoria por observação de primeira ordem para observação de segunda ordem estão todos agrupados como se sob uma lente de aumento. Um exemplo disso seria quando Luhmann, falando sobre memória, diz que sua função verdadeira não é a de armazenamento, e sim de esquecimento; ou quando ele concebe a informação como sendo o produto da deterioração que desaparece quando é atualizada.

Tais paradoxos são mais do que um jogo de palavras muito habilidoso: eles proporcionam pontos de entrada no âmago construtivista da teoria societal de Luhmann, que consiste do fato que toda observação é baseada em paradoxo até o ponto em que ela depende de distinções sobre as quais ela não pode refletir como um todo uniforme. A unidade do mundo, tal como a unidade da sociedade, de acordo com Luhmann, não pode ser afirmada como um princípio mas simplesmente como um paradoxo — isso também é uma consequência da perda de sentido da semântica tradicional.

Mas será que a perda de sentido da velha semântica européia é realmente afirmada frente aos quatro volumes de Luhmann sobre "a estrutura da sociedade e da semântica"? Ou, pelo menos, será que é bem reforçada pela metodologia? Podemos duvidar que isso aconteça uma vez que Luhmann é forçado a depender dos desenvolvimentos socioestruturais para poder estabelecer a perda de significado da semântica sócio–política. Essa circularidade é provavelmente o ponto fraco da teoria da sociedade de Luhmann. Claro que isso não lhe passou desapercebido, mas as soluções que ele sugere não são particularmente consistentes. Elas vão desde a admissão da circularidade como um pré–requisito inevitável da formação da teoria — a qual a semântica tradicional européia só pode evitar ao recorrer a construções metafísicas tais como Deus, natureza ou razão — à alegação que mudanças semânticas estavam sujeitas à mudança estrutural a distância considerável, o que resultou no fato da semântica estar novamente numa posição onde pode retratar os fatos verbalmente. Mas será realmente verdade que a mudança social precede a mudança cognitiva, ou será que há casos em que o oposto é verdadeiro?

Luhmann analisou a mudança da sociedade tradicional européia para a sociedade moderna usando três dimensões, a cada uma das quais ele dedica três capítulos principais da sua teoria societal (A sociedade da sociedade): primeiramente, a dimensão social que Luhmann concebe como a da comunicação e da mídia, constituída apenas pela distinção entre ego e alter (deliberadamente evitando a semântica tradicional européia de pessoa e sujeito); em segundo lugar, a dimensão temporal, onde passado e futuro estão separados, e que Luhmann chama de evolução — definitivamente não de progresso, uma vez que não há nenhum meio orientador, entre as várias mídias e a diferenciação funcional da sociedade não há um sistema guia; em terceiro e último lugar, a dimensão factual, que Luhmann entende como diferenciação funcional, e na qual estamos preocupados em determinar o sistema e o ambiente. Essas não são, no entanto, distinções estáveis e aquilo que constitui o ambiente depende então dos componentes do sistema envolvido, na ciência ou na economia, direito ou educação. E isso também muda durante a evolução dos sistemas componentes.

Um dos pontos decisivos para a teoria da sociedade de Luhmann é a asserção de que não há nenhuma dominância de qualquer sistema componente na dimensão da diferenciação funcional como, por exemplo, na política; que na dimensão da comunicação, nenhum meio dominante pode ser reconhecido; e, além disso, que a falta de sistemas orientadores e de mídia dominadora é a característica definitiva da sociedade moderna. Essa é também a razão pela qual a semântica européia tradicional não pode mais descrever a sociedade moderna adequadamente.

Mas será que a perda de medida devido à conversão de normas e valores em formas de comunicação societal, como Luhmann as descreve, é realmente plausível? Desafortunadamente, em nenhum lugar Luhmann faz referência ao conceito de esferas de justiça de Michael Waltzer; dentro desse conceito, o que Luhmann descreveu como a autodescrição apropriada de sociedades modernas é descrita como sua norma–a–ser–permanentemente–alcançada, como a medida da justeza que é permanentemente ameaçada pela dominação — nos termos de Luhmann — dos sistemas componentes.

Isso fecha o círculo de uma linha de pensamento principal, de tal forma que o que inicialmente parecia um paradoxo _ em outras palavras, que o eu é ao mesmo tempo o que é diferente — emerge como uma teoria da sociedade completa que também inclui uma reflexão sobre sua própria posição na sociedade, e vê a sociedade nesse sentido como uma unidade capaz de se automodificar. Se levarmos essa perspectiva rigorosamente intra–social a sério, aceitando que qualquer comunicação sobre a sociedade só pode ocorrer dentro dela, então não há lugar para a reflexão crítica sobre a sociedade fora dela, onde a sociedade pode ser vista como um objeto. Essa descrição da sociedade na sociedade não é mais baseada no conceito de sujeito ou vista da perspectiva da racionalidade transcendental. É a operação tautológica da comunicação em si. A sociedade é a fórmula da sociedade para a autodescrição da unidade social. Uma definição enfática de sociologia teria que procurar a unidade dessa diferença para distinguir o que é verdadeiro, o que é essencial. A unidade da sociedade seria então uma sociedade que chegou a si mesma, correspondendo ao seu ideal. A tradição reservou o rótulo de "iluminismo" para isso e mediu a sociedade existente frente a isso. As explicações sociológicas do iluminismo devem abandonar essas asserções, uma vez que essa posição ainda pode ser observada, mesmo que seja apenas do ponto de vista de uma observação de segunda ordem. A contingência da mundo não pode ser revertida nesse sentido, porque a teoria sociológica pertence exatamente àquilo que ela está analisando, isto é, a sociedade.

O verdadeiro significado da sociologia seria então que ela está livre para se engajar nesse tipo de autodefinição tendo em vista modificar os legados semânticos da tradição para os relacionamentos sociais estruturais transformados no processo da "re–descrição". Isso faz a ponte entre a segunda maior distinção entre semântica e estrutura social. A sociedade moderna, através da diferenciação funcional, gera a compulsão para a auto–observação e então muda todos os elementos temáticos. Assim o pós–modernismo atinge um ponto onde o passado se torna material para descrições presentes que criam novas formas através da re–descrição e portanto se tornam construções autoperpetuantes. No entanto, não é uma questão de olhar para trás, nostalgicamente, para o que passou, mas sim de estar consciente da semântica, que está permanentemente se renovando. A coisa decisiva é a diferença, e não a unidade de um observador–que–tudo–vê. Nesse sentido a teoria de Luhmann é uma teoria pós–ontológica que procede de maneira empírica e operacional, e que está ainda enfrentando seu teste prático.

Ao mesmo tempo, a pergunta permanece: até que ponto a desconstrução impiedosa do conceito de sujeito e sua substituição pelo conceito de sistema autopoiético, auto–referencial fechado — que não é mais um objeto especial mas é percebido como a diferença entre sistema e ambiente ­ cria uma distância da velha tradição européia e suas contradições? Será que a ênfase na categoria de diferença como conceito sociológico chave constitui uma reação adequada às antinomias de uma configuração definitiva ainda antropológica da sociologia, baseada na noção fundamental de um sujeito não resolvido e usando a humanidade, sua subjetividade e liberdade, como os princípios decisivos básicos de orientação?

Uma continuação da discussão mostrará até que ponto a guinada radical da teoria da identidade para a da diferença constitui uma substituição da tradição do pensamento em termos de unidade ou totalidade. Em seu lugar, Luhmann introduz a teoria da observação de segunda ordem, que tem a intenção de eliminar todas as premissas transcendentais e determina descrições de descrições e observações de observações como as referências definitivas, que abolem pontos de vista e conclusões privilegiados. Nesse sentido a sociologia se organiza como pesquisa. A fertilidade desse modelo teórico terá que se provar no sentido de até que ponto ele pode ajudar a transformar as heranças tradicionais em contingências, para que possam ser reutilizadas "como meio para modelar novas formas que foram ganhas com a reconstrução" (Luhmann, 1998, p. 1148). Nesse sentido, Luhmann permanece ligado à velha tradição européia — a única dúvida é o grau de distância entre os dois.

Luhmann repõe à sociologia uma questão que ela quase havia esquecido: a discussão científica e refletida da sociedade. Assim como a biologia e a física não dependem somente de seus conceitos básicos, a sociologia não é apenas uma teoria social. No entanto, se ela quiser fornecer informações sobre seus fundamentos e sua posição na sociedade, ela mal pode evitar reflexões teórico–sociais; mesmo que só porque ela é capaz de, em virtude de sua função na sociedade, observar todas as formas prévias de reflexão, tais como religião, filosofia e ciência.

A teoria da sociedade de Luhmann, poder–se–ia dizer, oferece um caminho que leva, através dos métodos científicos mais recentes e estritamente com base teórica, a uma rica teoria da sociedade moderna. Luhmann abre conexões para a sociologia com outras ciências, e isso possibilita que ele integre o fluxo da nova pesquisa sobre sua teoria. Dois grupos de problemas podem ser examinados na busca futura de uma teoria da sociedade. Primeiro, podemos nos perguntar se partilhamos da descrição de Luhmann do problema de proceder consistentemente de uma constituição intra–social de teoria. Isso já resolverá bastante. Segundo, temos de rever sua solução de conceber a teoria da sociedade como uma teoria do sistema social, ou trocá–la por uma alternativa razoável. Como, de todo modo, não necessitamos mais chegar a conclusões finais, é agora uma questão de descobrir continuações úteis, uma vez que está claro que, mesmo depois de Luhmann, haverá ainda descrições sociológicas e outras descrições da sociedade. A questão é meramente se elas alcançarão o nível e o grau de complexidade presente no trabalho de Luhmann, especialmente na sua última monografia. Como disse Adorno: "Só uma teoria madura da sociedade pode dizer o que é a sociedade". Talvez a perspectiva de Luhmann tenha nos levado um passo mais perto disso.

Sugestões para outras leituras

Recebido para publicação em agosto/2001

Tradução de Marina H. G. MacRae

  • LUHMANN, Niklas. (1997) Die Gesellschaft der Gesellschaft Frankfurt am Main, Suhrkamp.
  • _______. (1998) Observations on modernity Stanford, Stanford University Press.
  • LUHMANN, Niklas. (1989) Ecological communication Chicago, University of Chicago Press.
  • _______. (1990) Essays on self–reference New York, Columbia University Press.
  • _______. (1993) Risk: a sociological theory New York, Aldine de Gruyter.
  • _______. (1995) Social systems Stanford, Stanford University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Nov 2001

Histórico

  • Aceito
    Ago 2001
  • Recebido
    Ago 2001
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