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Os sertões e os (des)caminhos da mudança social no Brasil

Os sertões and the (mis)direction of social change in Brazil

Resumos

A obra Os sertões tem sido amplamente discutida em vários campos de interpretação do Brasil, ou seja, na literatura, na sociologia, na antropologia e na história. Este artigo visa demonstrar que o modo de caracterização da existência social do sertanejo fez deste trabalho de Euclides da Cunha um marco na formação das ciências sociais no país. Ao buscar compreender, a partir do evolucionismo spenceriano, os (des)caminhos da mudança social no país o autor contribuiu com a fundação dos primeiros pilares de uma reflexão acerca das singularidades socioculturais brasileiras.

Euclides da Cunha; mudança social; sertão; conflito; República; Brasil


Os sertões has been amply discussed in various fields of interpretation in Brazil, be it in literature, sociology, anthropology or history. This article aims to demonstrate that the means of characterization of the social existence of the peasant from the arid countryside has turned this work of Euclides da Cunha's into a landmark in the formation of the social sciences in Brazil. Based on Spencerian evolutionism, the author analyzes the (mis)direction of social change in the country, as a means to contribute towards the reflection on Brazilian socio-cultural singularities.

Euclides da Cunha; social change; arid countryside; conflict; Republic; Brazil


ARTIGO

Os sertões e os (des)caminhos da mudança social no Brasil

Os sertões and the (mis)direction of social change in Brazil

Maria José de Rezende

Professora de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais–UEL

RESUMO

A obra Os sertões tem sido amplamente discutida em vários campos de interpretação do Brasil, ou seja, na literatura, na sociologia, na antropologia e na história. Este artigo visa demonstrar que o modo de caracterização da existência social do sertanejo fez deste trabalho de Euclides da Cunha um marco na formação das ciências sociais no país. Ao buscar compreender, a partir do evolucionismo spenceriano, os (des)caminhos da mudança social no país o autor contribuiu com a fundação dos primeiros pilares de uma reflexão acerca das singularidades socioculturais brasileiras.

Palavras–chave: Euclides da Cunha, mudança social, sertão, conflito, República, Brasil.

ABSTRACT

Os sertões has been amply discussed in various fields of interpretation in Brazil, be it in literature, sociology, anthropology or history. This article aims to demonstrate that the means of characterization of the social existence of the peasant from the arid countryside has turned this work of Euclides da Cunha's into a landmark in the formation of the social sciences in Brazil. Based on Spencerian evolutionism, the author analyzes the (mis)direction of social change in the country, as a means to contribute towards the reflection on Brazilian socio–cultural singularities.

Key words: Euclides da Cunha, social change, arid countryside, conflict, Republic, Brazil.

Introdução

Os sertões tem sido um dos livros significativamente discutidos no Brasil. Já foram publicados, sobre esta obra, inúmeros estudos, principalmente sob a forma de artigos em revistas especializadas de literatura, ciências sociais e história, bem como diversos textos em jornais de grande circulação e outros periódicos de caráter humanístico, de modo geral. Basta citar, somente a título de ilustração, a lista feita pela editora Aguilar, em 1966, sob a direção de Afrânio Coutinho, na qual constam aproximadamente 800 artigos sobre Euclides da Cunha1 1 Recentemente têm sido publicados vários trabalhos sobre Os sertões. (cf. Ventura, 1996; Hardman, 1996, 1998; Galvão, 1998; Lima, 1998; Roland, 1998). . Dentre esses a maioria versa sobre a análise feita por Euclides da Cunha a respeito do movimento de Canudos que ocorreu no período de novembro de 1896 a outubro de 1897 nos sertões da Bahia.

No transcorrer do séc. XX foi travado um amplo debate sobre qual seria o caráter da obra Os sertões. Sociológico? Literário? Antropológico? Histórico–geográfico? Tudo isso ao mesmo tempo? (cf. Freyre, 1944; Fernandes, 1977; Galvão, 1980, 2000; Lima, 1998; Hardman, 1998). Assinale–se que as principais controvérsias têm–se dado em torno do caráter científico ou não do livro de Euclides da Cunha. Os principais argumentos visam destacar tanto as contradições presentes em suas filiações teóricas quanto a circunscrição ou não de um objeto de análise nos escritos sobre o conflito de Canudos (cf. Rosenfield, 1998).

Partiu–se, neste artigo, do pressuposto de que as contradições no plano teórico e a dificuldade de circunscrição do objeto devem ser problematizadas à luz de um dado momento histórico em que Euclides da Cunha ensaiava os primeiros passos de uma análise sociográfica. Walnice Nogueira Galvão afirma que, ao tentar dar conta dos acontecimentos de Canudos no calor da hora, ele se viu obrigado a "explicitar por tentativas um quadro teórico" (Galvão, 1980, p. 36). Neste estavam presentes, principalmente, as influências de Buckle, Taine, Spencer e Darwin, segundo ela.

"Entretanto, é a partir desse quadro teórico, ou apesar dele, que Os sertões se coloca como um livro precursor, posto na raiz do desenvolvimento das ciências sociais brasileiras nos anos 30 e 40. As interpretações gerais que surgem nos anos 30 apontam para a coexistência de dois países — um litorâneo e adiantado, o outro interiorano e atrasado —, lição aprendida em Os sertões e que mais tarde será radicalizada em contradição ferrenha substituindo a noção de coexistência. Essa é a maior e, até hoje, permanente influência de Os sertões em nossa reflexão social. (...) Na década de 40 começa propriamente a especialização das ciências sociais aqui, abandonadas as preocupações de grandes sínteses expressas na forma do ensaio histórico–sociológico com alcance literário, dada a ênfase agora à pesquisa objetiva e aos pressupostos científicos. A influência de Os sertões vai se fazer sentir na persistência dos temas que levantava — o negro, o mestiço, o índio, os movimentos insurrecionais populares, o subdesenvolvimento (...)" (Galvão, 1980, p. 36).

Segundo Florestan Fernandes, a publicação do livro Os sertões, em 1902, constituiu um divisor de águas no processo de formação das ciências sociais no país. Isso ocorreu em razão de ser ele "o primeiro ensaio de descrição sociográfica e de interpretação histórico–geográfica do meio físico, dos tipos humanos e das condições de existência no Brasil. (...) Daí em diante, o pensamento sociológico pode ser considerado como uma técnica de consciência e de explicação do mundo, inserida no sistema sociocultural brasileiro" (Fernandes, 1977, p. 35).

Dentre os inúmeros enfoques que se poderiam dar à obra em questão, optou–se, neste artigo, por demonstrar como a problemática da mudança social tinha proeminência nas indagações de Euclides da Cunha. As relações entre civilização e barbárie, entre construção e destruição, entre conflito e conciliação, entre identidade e nacionalidade enfeixam os elementos centrais do problema levantado por ele; ou seja, se o país caminhava no sentido da mudança civilizadora a partir da independência, da abolição e da República, qual era o sentido desse processo constituído por elementos construtivos e destrutivos?

A busca do significado da mudança social tem sido uma questão central da sociologia. Portanto, Euclides da Cunha ao tomá–la como o norte de sua reflexão sobre o movimento de Canudos é impulsionado a se aproximar, mais e mais, deste campo de conhecimento. Suas indagações acerca da realidade brasileira remeteram–no, então, às teorizações spencerianas acerca das possibilidades de um dado país evoluir para um estágio em que sejam suprimidas as condições de guerra e de repressões.

Por que, então, esta obra de Euclides da Cunha pode ser considerada um estudo de sociologia2 2 Florestan Fernandes faz uma discussão sobre o caráter de estudo de sociologia da obra Os sertões. No livro A sociologia no Brasil ele afirmava que este caráter não pode ser confundido com a sociologia como investigação sistemática. Somente esta define claramente os padrões de conhecimento científico (cf. Fernandes, 1977, p. 57). ? Este artigo se apoiará no fato de que, ao dar supremacia, em suas análises, às teorias de Spencer, ele foi conduzido a formular problemas que tinham um caráter de estudo de sociologia. Isso se revela nas seguintes indagações de Os sertões que serão trabalhadas neste artigo: Qual era o projeto de civilização que o país possuía? Ele tinha realmente tal projeto? O que se assistia (o massacre dos rebelados de Canudos) em nome do fim da barbárie, no final do séc. XIX, implicaria a destruição do cerne da identidade e da nacionalidade brasileiras? No que consistiam estas duas últimas, bem como as mudanças civilizatórias que as destruíam?

O movimento de Canudos fornecia, segundo ele, todos os elementos para tecer uma ampla reflexão sobre essas indagações, pois no transcorrer desse acontecimento ficou evidente que vigia no país uma idéia (européia) de civilização que era completamente desconectada da realidade brasileira. Ele afirmava que ao destruir Canudos o país agia como um mercenário a serviço de um projeto de civilização que não era o seu. Os princípios de civilização que nortearam a ação contra Canudos eram europeus e não brasileiros (cf. Cunha, 1995, p. 8).

O grande problema era, então, a ausência de um projeto de civilização que levasse em conta o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório, o sertanejo das caatingas nordestinas e do chão úmido da Amazônia. Os setores preponderantes pretendiam impor formas de mudanças sociais que desconsideravam as especificidades brasileiras. Segundo ele, uma sociedade que pretendia imitar as instituições e os modos de ser e de agir europeus não criaria jamais um autêntico projeto civilizador.

Euclides da Cunha demonstrou, através do movimento de Canudos, os descaminhos de uma nação que parecia, no início do séc. XX, ter optado por uma concepção de civilização desconexa em relação aos fundamentos da identidade social e da nacionalidade brasileiras. Ambas definidas em vista do enlaçamento das condições geográficas, topográficas, sociais, raciais e culturais. A inospitalidade da terra, por exemplo, era um dos elementos constituintes de um tipo de agir e de pensar próprio de algumas regiões do interior do país.

Aparentemente a obra Os sertões estaria seguindo uma linearidade que vai da terra para o homem e para a cultura. No entanto, uma leitura atenta do primeiro capítulo deste livro mostra que o modo de Euclides da Cunha apresentar a paisagem física deriva de sua compreensão da paisagem social. Esta última é que fundamenta as suas reflexões sobre aquela primeira. Em várias páginas ele demonstrava a degradação no plano físico a partir da degradação social. Ele, muitas vezes, está falando das condições sociais e políticas nas entrelinhas quando fala da terra. A idéia de força e de violência aplicada à constituição da paisagem física tinha fundamento na paisagem social.

A descrição das condições naturais é uma alusão ao mundo social. Ao descrever as plantas do sertão ele afirmava: "aquelas que unem–se, intimamente abraçadas, transmudando–se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam–se, congregam–se, arregimentam–se. São deste número todas as cesalpinas e as catingueiras" (Cunha, 1995, p. 53).

A resistência dessas plantas assemelhava–se à resistência dos sertanejos que se mostraram capazes, no decorrer dos séculos, de sobreviver a todas as diversidades físicas. Isso criou naqueles últimos uma postura de enfrentamento e de resistência que desnorteou o país durante a Guerra de Canudos, a qual parecia, aos brasileiros das cidades, incompreensível, inimaginável. Indagava–se de onde os sertanejos tiravam a sua força para vencer as forças militares? Da fé? Da crença? Do misticismo? Do fanatismo?

Euclides da Cunha demonstrava que não era de quaisquer elementos místicos que vinham as resistências dos sertanejos. Ela se originava de sua vivência fundada em uma situação física (clima, topografia, etc.) e social (miséria, fome, sede, solidão, angústia) excessivamente violenta sobre todos os aspectos.

"O vulto monumental que levantou de Antônio Conselheiro — não da pessoa do místico, mas do seu tipo de sertanejo isolado da civilização do litoral, de vítima desse isolamento, de monge quase mal–assombrado cercado de beatas, de velhas, de doentes, de jagunços, de brancos, de negros, de caboclos, de centenas de brasileiros pervertidos pelo mesmo isolamento que ele, de asceta terrível dando as costas às mulheres moças e às paisagens macias do lado do mar — permanece obra prima na literatura brasileira. Seus estudos de problemas de formação territorial, social e política do Brasil vieram esclarecer aspectos importantíssimos de nossos antecedentes e da nossa atualidade. Suas caracterizações da paisagem brasileira dos sertões — paisagem física, paisagem cultural — ilumina–as um seguro critério ecológico, ao lado do senso dramático dos antagonismos que turvam a unidade brasileira" (Freyre, 1944, p. 36).

A inércia cômoda a que os homens do litoral estão submetidos não permitia que se enxergasse em Canudos mais do que fanatismo e loucura. Isso valia para os grupos preponderantes, para os políticos, para as autoridades, para os cientistas e para os demais habitantes das cidades. Ele perguntava: que mudança social poderia ocorrer no país se a essência do que era ser brasileiro estava no sertão e este era absolutamente desconhecido?

Ainda se busca "nas velhas páginas de Saint–Hilaire, notícias do Brasil. Alheamo–nos desta terra. Criamos a extravagância de um exílio subjetivo, que dela nos afasta, enquanto vagueamos como sonâmbulos pelo seu seio desconhecido. O verdadeiro Brasil nos aterra; trocamo–lo de bom grado pela civilização mirrada que nos acotovela na Rua do Ouvidor; sabemos dos sertões pouco mais além da sua etimologia rebarbativa" (Cunha, 1966a, p. 135).

Nessas condições, Euclides da Cunha indagava: por que emergia aquele desmedido interesse das autoridades republicanas diante dos acontecimentos do arraial de Canudos? Até então ninguém tinha–se interessado por qualquer ser vivente daqueles sertões. O que havia mudado se a obscuridade daquelas terras permanecia inalterada para todos os não–sertanejos?

Essas perguntas levavam Euclides da Cunha a elaborar uma outra que pode ser sintetizada da seguinte forma: por que não possibilitar que os habitantes do sertão, únicos capazes de sobreviver em situações tão adversas, se organizassem de modo a resolver as suas sobrevivências nas condições escolhidas por eles? (cf. Cunha, 1995, p. 43) Ou seja, se a ação do homem do sertão, através do movimento de Canudos, fundava–se no desejo e na necessidade de permanecer nas condições crudelíssimas vigentes no nordeste por que, então, tal feito incomodava tão desmedidamente a República recém–implantada?

1. O evolucionismo social de Euclides da Cunha e a mudança social no Brasil

Esta análise da obra Os sertões está operando com a distinção entre estudo de sociologia e sociologia como investigação sistemática. Assinale–se que esta diferenciação foi feita por Florestan Fernandes no livro A sociologia no Brasil. A discussão de Euclides da Cunha, não somente, mas principalmente neste livro, representa o ápice dos estudos de sociologia no país, os quais podem ser definidos como aquelas interpretações do Brasil que buscavam, de modo não–sistematizado em termos de padrões científicos, elucidar os fundamentos sociais, econômicos, políticos e culturais da sociedade brasileira com base nas concepções de Spencer, principalmente3 3 "Segundo Vamireh Chacon "a sociologia nasceu no Brasil menos por obra de Comte (...) que de Spencer" (Chacon, 1977, p. 29); enquanto Maria Isaura Pereira de Queiroz observa que "o positivismo exerceu indiscutível ascendência sobre políticos, militares e profissionais liberais da época; mas os cientistas sociais que a partir de 1870 publicavam os seus trabalhos mostravam–se muito mais atraídos pelas teorias de Spencer, que parece ter se constituído o teórico então preferido" (Queiroz, 1989, p. 384; Vila–Nova, 1995, p. 32). .

Vários outros intérpretes do Brasil (Sílvio Romero, Aníbal Falcão, Paulo Egydio de Carvalho, entre outros) vinham buscando compreender os fundamentos socioculturais e políticos do país; no entanto, uma análise comparativa de tais estudos demonstram que o livro sobre Canudos, que veio à luz em 1902, representou um avanço no campo dos estudos de sociologia e, por conseguinte, impulsionou, juntamente com as reflexões dos demais pensadores (Manoel Bomfim, Oliveira Vianna, Alberto Torres, Florentino Menezes, etc.) das três primeiras décadas do séc. XX, o caminho para "a investigação sistemática dos fenômenos sociais" (Fernandes, 1977, p. 58).

Ao pensar o homem situado no sertão e/ou na cidade ele construía os parâmetros dos estudos de sociologia no Brasil que, a partir de então, passam a lidar, de modo persistente, com os encontros e os desencontros, na maioria das vezes violentos, entre as duas civilizações ímpares que constituíam a vida nacional. O estudo de Euclides da Cunha sobre a guerra de Canudos procurou revelar o significado do embate entre duas civilizações bárbaras, ambas brasileiras, através, principalmente, da obra de Spencer. A impossibilidade da mudança social alinhavava as suas reflexões acerca das perplexidades, dos absurdos, dos deconhecimentos e das ignorâncias revelados, de uma só vez, por este embate entre os homens do litoral (leia–se soldados, políticos, intelectuais, etc.) e os do sertão.

Identificar as possibilidades de evolução social que os diversos agrupamentos (no litoral, nos sertões, nas cidades, nas comunidades isoladas, etc.) de brasileiros possuíam era o objetivo principal de Euclides da Cunha. No caso do sertanejo ele procurava mapear os traços físicos, raciais e sociais que permitiam a tipificação, particularmente, daquele grupo de indivíduos. Prevalecia a idéia de que não havia o brasileiro em geral, mas sim o circunstancial, o qual deveria ser o ponto de partida de um progresso fundado nas condições sociais, políticas, econômicas e culturais do país.

Partindo dos ensinamentos de Herbert Spencer (1820–1903), ele procurava compreender as ações dos sertanejos em face das circunstâncias a que eles estavam submetidos. "Spencer descobre uma constante universal e atuante nas várias adaptações que os seres humanos (Spencer, 1972a; 1904a) fizeram a diferentes condições de vida: a propensão para adaptar–se com vistas à adequação às circunstâncias do ambiente" (Levine, 1997, p. 134).

Em Os sertões ganhavam proeminência as capacidades de sobrevivência dos sertanejos em geral, mas ele procurava assinalar, no decorrer de suas reflexões, que essa adaptabilidade tinha gerado dois tipos de homens: o aniquilado e o rebelde. Ainda seguindo Spencer ele procurava os traços de luta e de resistência que o próprio processo de ajustamento ao meio impunha. Aqueles primeiros sucumbiam à hostilidade das circunstâncias e passavam a viver em um estado quase vegetativo. Os segundos labutavam com todas as formas de inospitalidades vencendo todas as agruras, quotidianamente. Somente estes eram os fortes, os vigorosos (nos moldes anunciados por Spencer), os que tinham um papel primordial na evolução social que se fazia necessária.

A análise das unidades constituintes da sociedade como um todo era feita tomando–se os diversos agrupamentos sociais e as singularidades individuais dos diversos grupos formadores de dois mundos (litoral e sertão) cindidos. Isso visava atingir o que Spencer recomendava na obra On social evolution, ou seja, "as propriedades das unidades definem as propriedades do todo que elas compõem" (Spencer, 1972a, p. 97).

O detalhamento da relação entre o meio físico, o clima, a topografia e as condições biossociais de um tipo especial de mestiçamento que se deu no interior do país objetivava fundamentar a compreensão de um modo de vivência produtor das atitudes e dos comportamentos dos sertanejos. Somente assim era possível alcançar a complexidade de seus intentos de construir uma forma de agrupamento que encontrou enormes resistências no interior do corpo social brasileiro.

Assinale–se que, conforme argumentava Weber, em Economia e sociedade, o organicismo interpretava o comportamento do indivíduo de modo semelhante àquele como a fisiologia tratava o comportamento de um órgão do corpo humano (Weber, 1991, p. 9–10). Os sertanejos, os agrupamentos de homens do sertão eram, sem dúvida, pensados por Euclides da Cunha como órgãos dentro da sociedade brasileira. Ele constatou princípios fisicossociais orientadores das ações e dos comportamentos desses indivíduos a partir da raça e do clima, por exemplo, mas a sua explicação operava, em diversos momentos da obra, porém não em todos, evidentemente, uma excessiva biologização do social4 4 Este modo de conceber a vida social estava filiado inteiramente aos pressupostos de Spencer (cf. Spencer, 1904c ; 1972b). .

Conforme muitos intérpretes do Brasil (Sílvio Romero, Capistrano de Abreu, Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, etc.), Euclides da Cunha seguia também os ensinamentos de Spencer segundo o qual a sociedade constitui "realidade supra–orgânica, não exclui, porém, antes supõe o orgânico e o inorgânico" (Vila–Nova, 1995, p. 33). Mas, talvez seja ele o que tentou com maior precisão, no início do séc. XX, aplicar o método organicista para explicar um dado acontecimento social: o movimento de Canudos.

A evolução social seguindo esta concepção, a saber, que a sociedade era um organismo, significava a construção de novas situações fundadas tanto na derrota do isolamento (que implicava uma disfunção) destes grupos sociais (órgãos), que viviam interiorizados nos sertões do país, quanto na manutenção de seus traços formadores da identidade brasileira. A sua inserção num projeto civilizador supunha esses dois momentos que se imbricariam na formação de um outro estágio social.

A inspiração nas formulações de Spencer sobre a evolução orgânica baseada na passagem de formas de vida simples (primitiva, comunitária) para formas de vida crescentemente complexas (organizada em instituições como Estado e indústrias) levava–o a demarcar as dificuldades de progresso da sociedade brasileira em razão do cruzamento das raças, do mestiçamento, da inferioridade5 5 Segundo Gilberto Freyre as teses preconceituosas de Euclides da Cunha contra os mulatos, por exemplo, serviram para embasar o arianismo de Oliveira Vianna e de outros intérpretes do Brasil (cf. Freyre, 1966 e Vianna, 1982). , da colonização, do isolamento, da cisão entre o litoral e o sertão, das dificuldades políticas e econômicas e da precariedade da ciência.

De acordo com a visão de Spencer, Euclides da Cunha considerava que o conhecimento profundo dessas características formadoras desses desafios ímpares seria feito pela ciência, que tinha um papel fundamental no processo de construção de estágios sociais mais avançados (cf. Cunha, 1966, p. 140). O rigoroso desvendamento das condições sociais e naturais conduziria à compreensão das partes constituintes da totalidade da vida social em seus aspectos evolutivos e singularizados pela formação sociocultural brasileira.

Segundo Euclides da Cunha, o caldeamento racial de onde emergiu o homem brasileiro era a base explicativa do país e de suas possibilidades de mudanças. Centrado na idéia de raça que se desdobrava para a idéia de cultura, ele procurava os elementos que pudessem demonstrar que a sociedade brasileira era "realmente um organismo" (Levine, 1997; Spencer, 1972a) formado de múltiplas combinações inusitadas.

O entrelaçamento de raças era, segundo ele, algo complicado em razão da impossibilidade de supor que o resultado de um cruzamento x e y seria sempre idêntico. As combinações e recombinações demonstravam que

"os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram–se; originam número igual de subformações — substituindo–se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mameluco ou curiboca e o cafuz. (...) E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravando–o e dificultando–o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante as dosagens variáveis do sangue. O brasileiro tipo abstrato que se procura (...) só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo" (Cunha, 1995, p. 82).

E por que em Os sertões as reflexões acerca da mudança social no país tinham como ponto de partida a crítica às várias conclusões fictícias a respeito da capacidade étnica do brasileiro? Ao destacar ora a supremacia do branco, ora a do negro, ora a do indígena e ora a do mulato, o que estava implícito, afirmava ele, era a busca de uma unidade de raça inexistente.

"Predestinamo–nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos. (...) Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça–o outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram" (Cunha, 1995, p. 84).

A evolução social e biológica se imbricavam na medida em que, para ele, era parte de um mesmo processo deixar de ser incivilizado e deixar de ser sub–raça.

"Daí resvalar por vezes, tanto quanto o seu contemporâneo Silvio Romero, e, talvez, por influência do também seu contemporâneo Nina Rodrigues, em incertezas quanto à exata situação biológica do mestiço; o qual, biologicamente inferior, seria também sociologicamente incapaz de concorrer para o progresso brasileiro com que sonhava a engenharia de Euclydes. É evidente que sua descrença no mestiço por preconceito cientificista era uma descrença que alcançava principalmente o mulato e o cafuzo; e não o ameríndio" (Freyre, 1966, p. 28).

O modo de Euclides da Cunha conceber a formação da identidade brasileira estava, então, permeado pela convicção de que o brasileiro era, de fato, inferior racialmente. Mas nem por isso devia ele pretender deixar de ser o que era para se assemelhar ao europeu. Havia em suas indagações uma contínua insistência em que era melhor ser genuinamente brasileiro, por pior que isso fosse racialmente, do que ser a cópia de um europeu.

Assim, construir um projeto civilizador não queria dizer ajustamento aos moldes europeus que tiveram uma outra formação histórica. Era, sim, estabelecer um processo de integração nacional partindo das diferenças de raça, de região e de cultura tendo sempre em vista que o cerne da civilização brasileira estava presente nos sertanejos das terras desérticas (nordeste) e das terras úmidas (Amazônia).

No entanto, nas primeiras cem páginas de Os sertões, Euclides da Cunha destacava com veemência as dificuldades de mudanças sociais. Segundo ele, o país era incivilizado não somente por incapacidade sociocultural, mas, também, por motivos físicos/raciais. Ele buscava desconstruir uma visão apologística do Brasil na qual ganhavam destaque as matas verdes, as praias e os litorais maravilhosos. Descortinar o país significava lançar luzes sobre o sertão, o deserto, as incertezas e os parasitismos ditados pelas condições adversas da seca, do clima, do mestiçamento, etc.

Diante dessa situação, de que modo o sertanejo poderia, então, ser considerado o cerne da nacionalidade brasileira? A concepção evolucionista respaldava a sua explicação. Seguindo Spencer que supunha que o movimento civilizador estava fundado no estabelecimento de raças vigorosas (cf. Spencer, 1972a), ele buscava na sobrevivência de um tipo ímpar de sertanejo, em um meio hostil, as razões para considerá–lo exemplar de rigidez física e moral.

Observe–se que ele não estava falando do sertanejo de modo geral, mas de um tipo específico. Deste ele procurava extrair os germes indicadores da possibilidade de um processo de transfiguração da sociedade brasileira, o que ele fazia seguindo algumas indicações de Herbert Spencer. Em um artigo publicado em 1904, intitulado Gouvernement du parti (Spencer, 1904a), o sociólogo inglês sintetizava as suas conclusões do livro The study of sociology (Spencer, 1972b) acerca de mudanças que poderiam advir de causas aparentemente sem importância.

Embasando seus argumentos inteiramente nas ciências biológicas, Spencer afirmava que, se um pequeno germe poderia destruir uma dada forma de vida, um pequeno acontecimento social (insurreição de algumas pessoas, nascimento de uma cidade, novos agrupamentos sociais, etc.) poderia, também, ter múltiplos resultados e redefinir uma dada sociedade como um todo (cf. Spencer, 1947).

A obra Os sertões estava calcada nesse pressuposto, visto que a descrição sociográfica das condições de existência que fizeram surgir a vila de Canudos e também o processo de resistência para mantê–la elucidavam os elementos definidores daquela manifestação coletiva que permaneceu ao longo de sua duração incompreensível aos homens do litoral, aos cientistas e aos governantes. A luta cotidiana do sertanejo que criou a vila de Canudos tinha múltiplos fundamentos, os quais eram raciais, físicos e sociais. Isso era elucidado, por exemplo, no modo de ele descrever o encontro de duas civilizações distintas: a do norte e a do sul.

Anteriormente ao movimento de deslocamento dos Bandeirantes para o norte ficava evidente que a hostilidade do meio físico fortalecia organicamente o sertanejo, mas comprometia o desenvolvimento de uma firmeza moral que se assentava na luta por condições sociais, econômicas e políticas menos precárias. Antes da Expedição denominada de Bandeiras, a qual ocorreu entre o final do séc. XVI e o início do XVIII, uma parte significativa dos brasileiros do sertão não conhecia outro modo de vida a não ser aliar–se e adaptar–se ao meio. Isso ocorria não somente no âmbito físico, mas também no social.

Segundo Euclides da Cunha a adaptabilidade à inospitalidade era formadora de uma diferença básica entre o norte e o sul do país. Esta última se manifestava em todas as esferas da vida social. Formavam–se, assim, no país duas situações históricas distintas e alheias uma a outra. No que diz respeito ao nordeste, ele afirmava: "o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida — realizando a anomalia de deslocar para uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha. Bateu–o, felizmente, a onda impetuosa do sul" (Cunha, 1995, p. 95).

À medida que o paulista não se adaptava às inospitalidades com a facilidade que se incorporavam a elas os sertanejos, criava–se nos sulistas uma outra mentalidade voltada para as mudanças, para os melhoramentos. Isso, sem dúvida, afirmava ele, repercutia na vida política, conforme demonstrado no parágrafo anterior.

O surgimento de um tipo de homem nos sertões capaz de enfrentamentos como os de Canudos devia–se ao irradiar dos Bandeirantes para o nordeste e para outras partes do Brasil. A interiorização de tipos sociais (paulista) distintos levou a um processo de mestiçamento que fez surgir um tipo de sertanejo extremamente arrojado no enfrentamento das condições mais adversas. As Bandeiras que uniram homens do sul e do norte promoveram tanto uma união étnica quanto uma união de duas sociedades desconhecidas.

Euclides da Cunha insistia que vinha do indígena e do bandeirante a rebeldia que estava presente nos sertanejos de Canudos. Os negros teriam pouco contribuído com a formação do jagunço, do vaqueiro e dos demais homens daquela região de modo geral, já que eles teriam permanecido quase que integralmente no litoral. Eram raros os que penetravam o sertão. Tanto estes últimos quanto os brancos jamais se avolumaram a ponto de dissolver a influência do aborígene.

"As entradas de um e outro lado da meridiana, impróprias à dispersão, facilitavam antes o entrelaçamento dos extremos do país. Ligavam–nos no espaço e no tempo. Estabelecendo no interior a contigüidade do povoamento, que faltava ainda em parte na costa, e surgindo entre os nortistas que lutavam pela autonomia da pátria nascente e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo–os por igual com as fartas boiadas que subiam para o vale do Rio das Velhas ou desciam até às cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade" (Cunha, 1995, p. 113).

Os impulsos agressivos dos sertanejos de Canudos advinham de um entrelaçamento étnico/cultural que fez surgir mestiços que traziam como herança a rebeldia tanto do aborígene quanto do paulista aventureiro. Nasciam, assim, afirmava ele, estes sertanejos que se formavam de um "complexo feroz de vitoriosos (bandeirantes) e vencidos (indígena)" (Cunha, 1995, p. 113–114).

Observe–se que Euclides da Cunha estava buscando incessantemente a caracterização de um brasileiro particular pelo qual, até então, segundo ele, nem as autoridades nem os cientistas tinham tido interesse. Este homem era o que havia feito não somente o movimento de Canudos, mas também a Cabanagem, a Balaiada, etc. Ele pretendia demonstrar que algo não perceptível, no que tange às possibilidades de mudança social, pulsava no interior de uma sociedade obscura que não se deixava conhecer facilmente.

"E ali estão com as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até ao fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de séculos" (Cunha, 1995, p. 114).

Ao adentrar o mundo desconhecido de Os sertões, Euclides da Cunha assinalava que os seus habitantes eram portadores de caracteres expressivamente definidos e imutáveis. A população aborígene que deu origem àqueles sertanejos teria tido, no seu passado, uma formação religiosa oriunda dos missionários (Jesuítas e Capuchinhos) que tiveram um papel importante em Monte Santo (BA). "Essa população perdida num recanto dos sertões, lá permaneceu até agora, reproduzindo–se livre de elementos estranhos (...) realizando um cruzamento que fez surgir o mestiço, definido, completo" (Cunha, 1995, p. 118).

Esse mestiço era, então, completamente diferente do mestiço do litoral. A sua segregação social e espacial, o meio físico e o clima teriam contribuído para que se formasse no país um tipo diverso capaz de ações de resistência como as que ocorreram no movimento de Canudos. E isso era possível porque os sertanejos compartilhavam suas superstições, seus vícios, seus fanatismos e suas virtudes.

O isolamento dessa população tê–la–ia poupado, de certa forma, de um mestiçamento extremado como teria ocorrido no litoral com o mulato, o cafuzo e o mameluco. Isso era para Euclides da Cunha uma vantagem do sertanejo. "A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontavam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso" (Cunha, 1995, p. 122).

Ele partilhava, assim, de uma mentalidade, reinante em sua época, que desabonava o mestiçamento. No entanto, é preciso se ater à especificidade de seu modo de concebê–lo, ou seja, ele procurava detectar gradações diferentes de misturas raciais havidas na formação do povo brasileiro. O mestiçamento acentuadamente prejudicial seria aquele ocorrido entre os homens do litoral porque ele desenfreou em múltiplas combinações inusitadas entre brancos e negros, principalmente6 6 Gilberto Freyre, em 1933, contestou veementemente estas pressuposições em Casa–grande & senzala (Freyre, 1994). .

Segundo ele, os mestiços do litoral não tiveram condições físicas (étnicas e raciais) e sociais de gerarem qualquer solidariedade entre as gerações que foram se sucedendo. Estabeleceu–se um processo contínuo de antíteses em que eles se sentiam não integrados à vida nacional, mas sim intrusos. Eles eram esmagados pela força e não pela civilização.

Aliás, ele ressaltava que não se assistia no Brasil a qualquer projeto de civilização no sentido de progresso social e político. A Abolição e a República não o foram. O bombardeio a Canudos era uma das maiores provas disso. A evolução não seria alcançada pelas forças das armas como supunham as autoridades políticas brasileiras. Era preciso apresentar aos brasileiros intenções e ações, de fato, civilizadoras.

Os sertanejos, por exemplo, possuíam uma formação sociocultural indicadora de disponibilidades para criar meios de rompimento com a precariedade e a miséria. Se eles faziam de um jeito permeado por ignorâncias e fanatismos é porque eles não conheciam nenhuma outra maneira. Os condutores da economia e da política nunca lhes apresentaram qualquer outro modo de modificar as condições de extrema pobreza a que estavam submetidos.

O país somente poderia civilizar–se, para Euclides da Cunha, através de um projeto de integração nacional em que estivessem incluídos todos os brasileiros. A evolução significava a criação de condições econômicas, políticas e sociais para o rompimento da exclusão da maioria da população.

Em suas obras (cf. Cunha, 1966a; 1966b), ele procurava os fundamentos das ações dos diversos agentes que emperravam a efetivação de mudanças profundas na sociedade brasileira. A guerra de Canudos teria sido o momento em que teria ficado evidente a indisponibilidade dos setores preponderantes em decifrar e enfrentar as reais causas dos males que acometiam a sociedade brasileira.

2. Embrutecimento, resignação, apoliticismo e religião nos sertões da Bahia

O cerne da identidade cultural brasileira revelava–se no modo de vivência do sertanejo durante séculos. Esta última estava marcada pelo enfrentamento de inúmeros reveses que a sua existência impunha. Tendo vivido "entre ciladas e surpresas repentinas, ele talhou a vida a sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto. O jagunço recua. Mas é um negacear demoníaco" (Cunha, 1995, p. 135).

Ao mesmo tempo em que os homens dos sertões eram bárbaros e impetuosos eram também extremamente servis. Eles se entregavam à servidão sem avaliar o seu sentido, o seu significado. Mas, sabia–se, ela estava carregada de fidelidades, de lealdades, de honestidades, de princípios e de valores. O endurecimento de seu modo de ser assemelhava à inospitalidade da terra. O homem e a terra se confundiam nesse processo de definição de uma vivência que combinava docilidade e brutalidade.

Euclides da Cunha traça no capítulo III de Os sertões um perfil positivo da cultura do sertanejo. A sua brabeza persistente, a sua determinação em arrancar os meios de sobrevivência de condições inóspitas e a sua honestidade para com os outros eram pontos indicativos de que o Brasil possuía, em seus lugares mais obscuros e desconhecidos, seres sociais dotados de características que se faziam necessárias para implementar qualquer processo de mudança no Brasil.

Em razão das condições incivilizadas da sociedade brasileira toda e qualquer modificação social tinha que se pautar por aquilo que o sertanejo era. E ele era rudeza e lealdade, doçura e brutalidade, energia e apatia, dureza e honestidade, obscuridade e alegria, preguiça e trabalho árduo, delicadeza e força, luta e recuo. Tudo isso a um só tempo, em uma só vida, em uma só vivência, em um só espaço.

Euclides da Cunha demarcava os extremos antagônicos que formaram a identidade cultural brasileira. Este é um elemento de proximidade com Gilberto Freyre que, ao analisar basicamente os homens do litoral, constrói uma análise do padrão de organização social e do padrão de domínio brasileiros centrados no equilíbrio de antagonismos (cf. Freyre, 1962; 1967; 1994). No entanto, aquele primeiro buscava, em essência, apontar como se dava a formação de uma cultura em que os antagonismos são combinados e levados ao extremo, ao mesmo tempo, enquanto o segundo destacava com maior ênfase os traços de uma cultura fundada nos equilíbrios e nos amaciamentos das diferenças.

Para Euclides da Cunha não havia a geração de equilíbrios estáveis, porque não havia modificações das condições de adversidades que levavam a extremos de força e de resignação. Os antagonismos se conciliavam no âmbito da própria vida do sertanejo, mas isso não redefinia as condições sociais a que eles estavam submetidos. Os hábitos culturais, em um contexto de seca, tornavam clarividentes os modos de enfrentamento de uma vida tormentosa, e isso era feito como se fosse possível resistir através da penitência, da fé, da reza e da simpatia. A transfiguração do sertanejo nos períodos de seca mostrava que as combinações de força e de resignação, de energia e de apatia, de brutalidade e de docilidade possibilitavam compreender as nuanças de um modo de ser e de agir fincado no empenho de resistir.

Se o sertanejo era a maior expressão da nacionalidade brasileira, as considerações apresentadas anteriormente sugerem que, para Euclides da Cunha, as mudanças sociais tinham, a um só tempo, condições de se realizarem e também enormes empecilhos, pois a criação de um hábito de sofrimento, no qual se cristalizou uma resignação árdua, emperrava a formação do desejo de transmutação das condições a que os sertanejos, em particular, e os brasileiros, em geral, estavam submetidos.

No caso dos sertanejos, a religião teria tido um papel essencial na definição de sua cultura política, por exemplo. A sedimentação de uma religiosidade pautada em superstições levou à "cristalização de uma fórmula superior das esperanças messiânicas" (Cunha, 1995, p. 156). O messianismo político teve o seu campo de expansão nos sertões do norte em razão de que a fé religiosa desempenhou papel central na vida do sertanejo. As maneiras de conceber o mundo, a vida social e a vida política, estavam atravessadas por dois elementos básicos: o fanatismo e o devotamento. Brutalidade e fé permeavam–lhes as idealizações de uma vida menos martirizada pela miséria e pelo isolamento.

Em Canudos os sertanejos se juntavam em torno de misticismos idealizadores de uma condição menos miserável. Euclides da Cunha mostra que eles agiam dessa forma obedecendo a uma determinada lógica social. O aparecimento de Antônio Conselheiro se explicava, por exemplo, pelas condições sociais enlaçadas às condições físicas definidas pelo deserto, pelo clima, pela seca, etc. A soma daquelas duas resultava em males sociais incomensuráveis que vinham se aprofundando durante vários séculos no país.

Ele afirmava que, numa situação de hostilidade geográfica, climática, etc., era plenamente compreensível o desenvolvimento de um tipo de fé religiosa pautada em crendices e superstições. O entregar–se ao messianismo político e religioso estava motivado pelo próprio sofrimento individual e coletivo a que estavam os sertanejos submetidos.

Antônio Conselheiro teria aparecido "como integração de caracteres diferenciais–vagos, indecisos, mal–percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade" (Cunha, 1995, p. 166).

Ao tratar da relação entre individualidades e coletividades observa–se que Euclides da Cunha buscava estreitar, a partir do evolucionismo social, sua compreensão do fenômeno que se notabilizou como Movimento de Canudos. A sua descrição dos tipos humanos dos sertões e de suas condições de existência representou uma investida rumo à construção de uma análise pautada na sugestão de Spencer segundo a qual as propriedades individuais são fundamentais para compreender as propriedades do todo (Spencer, 1972a, p. 97; 1904b, p. 235).

O autor de Os sertões partia do pressuposto de que a análise seria feita dando ênfase à dificuldade de "traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é capítulo instantâneo da vida de sua sociedade" (Cunha, 1995, p. 166).

As atitudes, as ações e os comportamentos individuais não podiam ser simplesmente separados de uma dada formação social coletiva, mas também não deviam ser dissolvidos nesta última. O surgimento de Antônio Conselheiro, por exemplo, não se explicava somente através da psicose mística dele como indivíduo isolado. Euclides da Cunha afirmava que a formação étnica da sociedade brasileira bem como as condições de exclusão social tinham que ser tomadas como pano de fundo para explicar como o líder de Canudos tornou–se uma autoridade única e inconteste nos sertões da Bahia.

Do ponto de vista étnico, a mestiçagem do homem era, para Euclides da Cunha, um elemento que apresentava, no mínimo, duas características. Uma delas era responsável pelo florescimento de uma mentalidade confusa expressa no modo de o sertanejo interpretar o mundo exterior em face dos estágios raciais e sociais diversos que o formaram. A outra era, no entanto, dotada de elementos positivos ligados ao modo exclusivo de mestiçamento estabelecido nos sertões do país, o qual se regulava pelo cruzamento predominante do aborígene com o branco que resultou na formação de indivíduos empenhados em resistir e em pelejar incansavelmente com o meio, devido não às condições genéticas, mas sim às condições de luta para vencer as adversidades naturais e sociais.

Euclides da Cunha empenhava–se em estabelecer um tipo de análise em que os traços negativos do mestiçamento nos sertões não anulassem os traços positivos desse mesmo processo. Em conseqüência dos acontecimentos de Canudos, ele assinalava que tinha florescido no interior do país uma cultura que possibilitaria desdobramentos inimagináveis de resistências e de lutas para vencer a miserabilidade que assolava a vida daqueles brasileiros esquecidos durante séculos pelo governo e pelas autoridades em geral.

Essa resistência fazia–se de modo obscuro, desordenado e inconseqüente pois ia–se definindo num misto de "conselhos dogmáticos, preceitos vulgares de moral cristã e de profecias esdrúxulas. E no meio desse extravagar adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando–o à insurreição contra a forma republicana" (Cunha, 1995, p. 184).

O ataque à República não era, então, observava Euclides da Cunha, o centro da luta de Canudos. Ele se constituiu como um dos elementos no processo de questionamento das condições de pobreza a que estavam submetidos os sertanejos. De modo simplista Antônio Conselheiro pregava que a desgraça dos poderosos iria chegar cedo ou tarde. As autoridades começam a interpretar esse tipo de premonição como uma espécie de primeiro sinal contra as leis republicanas colocadas em prática na década de 1890.

Mas de que modo e em que momento Antônio Conselheiro passou a pregar contra a República? Euclides da Cunha demonstrou que foi quase como um acidente que se efetivou tal rebeldia. Ele explica que

"decretada a autonomia dos municípios, as câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos, etc. Ao surgir a novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou–o a imposição; e planeou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o 'auto de fé', que a fraqueza das autoridades não impediria, e pregou abertamente a insurreição contra as leis" (Cunha, 1995, p. 195–196).

Após esse episódio Antônio Conselheiro, que já vagava há 20 anos pelos sertões, passava a ser perseguido pelas autoridades. O beato e seus seguidores, desde então, peregrinavam à procura de um local sagrado "onde não penetraria a ação do governo maldito" (Cunha, 1995, p. 200). Tal busca cessou quando alcançaram o arraial de Canudos que passava, a partir de então, a crescer desmedidamente. O beato arrebanhava inúmeros seguidores que iam chegando e se fixando miseravelmente em choupanas rudimentares, relatava o autor de Os sertões.

Segundo Euclides da Cunha, a pobreza unia–se ali a uma cultura mestiça, expressa tanto na forma de ser e de agir quanto na religiosidade exacerbada e extravagante. Através da descrição da paisagem física e social ele traçava um retrato de uma comunidade de fanáticos que se vingavam da hostilidade do meio físico e social no qual estavam inseridos. A precariedade de suas vidas assemelhava–se à precariedade da moral da própria sociedade brasileira, afirmava ele.

Os sertanejos que se fixavam em Canudos tornavam–se ainda mais destemerosos e fanáticos. Passavam a não temer ninguém e a não acatar nada a não ser as ordens e as decisões irrevogáveis de Antônio Conselheiro que fazia vistas grossas aos saques e outros desmandos praticados intermitentemente por eles. No entanto, não agiam orientados por qualquer convicção política, pois "o jagunço é tão inapto para aprender a forma republicana como a monárquico–constitucional" (Cunha, 1995, p. 221), afirmava Euclides da Cunha.

Ele destacava a incapacidade dos sertanejos para o mínimo entendimento da política. A sua inabilidade e a sua incapacidade não lhes permitia compreender estas duas formas de governar que eram inacessíveis ao seu entendimento. Eram "espontaneamente adversários de ambas. Estavam na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro" (Cunha, 1995, p. 221).

A inabilidade política dos sertanejos era visível a qualquer indivíduo que parasse naquelas terras mais do que poucas horas. O Brasil litorâneo não tinha capacidade para distinguir as ações desencadeadas naquele arraial. Era mais fácil atacá–los como uma ameaça a um governo republicano que deixava na penumbra, no mínimo, um terço da população do país, afirmava Euclides da Cunha.

Sua crítica mais contundente era direcionada àqueles ilusionistas que insistiam em implantar uma República nos moldes de outras nações. Copiar formas de agir e de comportamento político de povos estranhos ao nosso era, para ele, uma espécie de paliativo maquiador de nossas dificuldades sociais, culturais, econômicas e políticas. Suas indagações suscitavam a seguinte questão: De que modo o país poderia mudar, se as ações governamentais não levavam em consideração os elementos formadores da nacionalidade brasileira?

Ao dar centralidade às tendências messiânicas do sertanejo e ao apelo deste a lideranças como a de Antônio Conselheiro, Euclides da Cunha mostrava que o movimento de Canudos possuía inúmeros significados, mas não o que lhe queriam impingir as autoridades republicanas. Estas e as populações urbanas consideravam que aquele era um movimento que havia nascido para lutar contra as medidas políticas que eram implementadas desde 1889.

O equívoco era completo, pois o próprio modo como o sertanejo criticava a República estava fundado em uma existência social pautada na religiosidade popular. A idéia de que a República era o anticristo, era a impiedade e a implementação de leis demoníacas demonstrava o quanto os "rebelados eram fragilíssimos" (Cunha, 1995, p. 225) politicamente.

Eram fortes no processo de enfrentamentos das diversidades físicas e sociais, mas não em matéria de discernimento dos fundamentos políticos da República. Eles intuíam que esta última, assim como a Monarquia, não estava voltada para amenizar a sua miserabilidade, mas sim para cobrar impostos e exigir obediência às leis. Portanto, os sertanejos de Canudos organizavam–se de acordo com o seu próprio mundo. Assim como os habitantes do litoral, os habitantes do sertão viviam, também, exilados dentro do país.

3. O Brasil seria uma nação incivilizável? O que Canudos ensinava sobre isso?

A análise de Euclides da Cunha recortava o Brasil em duas partes. Uma formada pelo sertão e a outra pelo litoral. Ambas de difícil possibilidade de evolução social e política. Não se deve esquecer que, em razão da perspectiva teórica spenceriana a que ele se filiava, as características destas duas partes se imbricavam e, assim, definiam as propriedades do país como um todo. Ou seja, se o Brasil era incivilizável, isso não se devia somente à existência das gentes dos sertões com suas crendices, superstições, fanatismos e messianismos religiosos e políticos, já que os habitantes do litoral também eram portadores de uma cultura de indiferença, de apoliticismo e de conformismo que impedia o florescimento de qualquer mudança social e política substantiva.

Euclides da Cunha afirmava: "acima do desequilibrado que dirigia Canudos estava toda uma sociedade de retardatários. (...) De um lado (estavam) os matutos do Conselheiro, embuídos de uma nevrose coletiva, de outro os expedicionários também broncos e rudes" (Cunha, 1995, p. 266–277). A pergunta que o autor de Os sertões fazia era a seguinte: as autoridades que estavam acima destes últimos eram diferentes de Antônio Conselheiro? Se o eram, não o eram em termos repressivos7 7 Euclides da Cunha, ao descrever o Cel. Antônio Moreira César que comandara a primeira expedição regular a Canudos, destacava a sua tendência indescritível para as maiores barbaridades. Era um desequilibrado que não se pautava em crendices e superstições como Antônio Conselheiro, mas em ódios extremos. Ele narrava o caso de um jornalista que foi linchado na rua, em 1884, em que Moreira César era um dos oficiais que comandou a decisão da execução (Cunha, 1995, p. 322). . A barbárie imperava nos dois lados. No entanto, as forças expedicionárias eram representantes do Brasil que pretendia ser civilizado. Elas vinham das cidades, do litoral. Isso revelava que mesmo os que se supunham evoluídos não passavam de bárbaros.

A formação da nacionalidade brasileira, "a partir de uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas minerais e as utopias românticas do apostolado" (Cunha, 1995, p. 236), era a base para compreender os (des)caminhos de um dado processo social que emperrava mesmo diante de prenúncios de possibilidades transformadoras como a Independência e a República, por exemplo.

O jagunço e o cangaceiro tinham que ser tomados, segundo Euclides da Cunha, como produto histórico das condições sociais reinantes nos sertões. Eles eram forças sociais desvairadas por causa da indisciplina, do banditismo, da desordem, dos estigmas que marcavam a população mestiça, do mandonismo político e da intransigência das leis. Esses elementos convergiram na formação do cerne da nacionalidade brasileira de tal forma que "a significação superior dos princípios (republicanos) democráticos" (Cunha, 1995, p. 316) foram aqui anulados.

Nessas condições, afirmava Euclides da Cunha, o movimento de Canudos passava a ser combatido em duas frentes. Em uma pela força das armas e na outra pela construção de uma opinião pública que se pautava na desmoralização dos sertanejos e de sua luta. Ocorria, assim, um "caso vulgaríssimo de psicologia coletiva: colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente neutral, constituiu–se veículo propício à transmissão de todos os elementos condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava. (...) As maiorias conscientes, mas tímidas, revestiam–se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos que lhes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas — sobretudo nas ruas — individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo. (...) A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da indiferença geral de todas as mediocridades irritadiças conseguiram imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza" (Cunha, 1995, p. 317–318).

A surpresa dos habitantes das cidades foi, no entanto, incomensurável diante da capacidade de resistência do sertanejo. Os bárbaros das cidades não contavam com uma luta nos termos em que foi conduzida pelos bárbaros de Canudos. Diante do inusitado aqueles primeiros atribuíam às forças ocultas a capacidade dos seguidores do beato para repelir os expedicionários republicanos. A incompreensão era alarmante, o desconhecimento do país era total.

As indagações eram as seguintes: como uma população miserável e faminta conseguia resistir a uma batalha dessa natureza? Na medida em que não se tinha a resposta, a opinião pública em geral passava a difundir a idéia de que, se a luta dos sertanejos não fosse destroçada, eles seriam capazes de ações cada vez mais ousadas, o que poria todo o país em risco. Esse tipo de pensamento que envolvera também Euclides da Cunha antes de ele chegar ao local em que se travava a batalha era fruto de um desconhecimento profundo do país, de suas gentes, de suas culturas e de seus desejos e objetivos, assinalava ele.

O autor de Os sertões dava, através do acompanhamento in loco, uma guinada na interpretação dos fatos em andamento. Ele agia como um cientista social mesmo não o sendo, pois, apesar de seus valores republicanos e de sua noção carregada de teses preconcebidas sobre o movimento de Canudos, ele se empenhava em decifrar sentidos e significados até então inimagináveis para os brasileiros em geral acerca dos acontecimentos no sertão da Bahia. O seu empenho para compreender a subjetividade do homem do sertão em vista de suas condições físicas e sociais possibilitou que ele traçasse um marco definitivo por onde se desenvolveria, nas décadas posteriores, a sociologia brasileira8 8 Gilberto Freyre afirma que o livro Os sertões é notável como literatura e notável como ciência ao mesmo tempo (cf. Freyre, 1966, p. 20) .

A sua sociografia possibilitou que a luta de Canudos fosse problematizada de modo que as duas partes do Brasil (sertão/litoral) confluíssem. Nos capítulos iniciais ele destacava o quanto elas estavam distantes e separadas e nas partes finais ele traçava um painel de um encontro entre o litoral e o interior através de uma guerra. Esse encontro era crudelíssimo, violento, ou seja, de enfrentamento, que se deu não somente entre homens (seguidores do Conselheiro e expedicionários) mas, principalmente, entre duas civilizações que tomaram corpo e forma alheando–se simultaneamente.

Seu estudo de sociologia se constituía graças ao esforço de retratar o sertanejo como uma força social que lutava para redefinir as suas condições através de uma força messiânica. A substancialidade de sua análise para as ciências sociais brasileiras está no modo como ele indagava sobre o tipo de organização social que emergia em Canudos. Euclides da Cunha perguntava se ela reproduzia ou não os vícios sedimentados há séculos na estrutura social brasileira.

Em sua avaliação havia em Canudos um empenho em construir uma ordem social que era a um só tempo inovadora e mantenedora de elementos socioculturais sedimentados no país. Ela inovava ao propor um padrão mais eqüitativo de distribuição daquilo que era conseguido por todos e, também, ao propor uma forma de administração do povoado pautada na tentativa de garantir proteção às mulheres e às crianças.

Mas era, também, uma ordem social que mantinha alguns traços arraigados no modo de organização social e político brasileiro. Nas mãos de Antônio Conselheiro estava o controle rígido de todo o povoado. Ele legislava e aplicava rigorosamente penalidades contra aqueles que desobedeciam às mais elementares regras de conduta e de comportamento. O aprisionamento daqueles que não rezavam pode ser citado como exemplo.

Mantinha–se, assim, uma ordem despótica materializada na figura do pai e/ou do protetor, dando continuidade ao padrão de organização social, cultural e de domínio brasileiro. No entanto, o beato não era inteiramente impositivo; era, também, permissivo em alguns aspectos, tais como: não reprimir os atos de violência praticados pelos sertanejos nas cercanias, tolerar os casamentos que se desfaziam e que se recompunham continuamente, etc.

Euclides da Cunha demonstrava que os indivíduos que se aglomeravam em Canudos tentavam estabelecer uma forma de organização social protetora e crudelíssima ao mesmo tempo. A justiça de Antônio Conselheiro era extremamente rigorosa para todos os que ali viviam. Havia uma ordem moral rígida quanto à distribuição dos meios de sobrevivência entre cada membro do povoado e permissiva no que dizia respeito ao sexo e ao casamento, por exemplo.

O movimento de Canudos ensinava que todo e qualquer processo de evolução social e política no país somente se efetivaria se fossem levadas em conta, segundo Euclides da Cunha, as singularidades culturais brasileiras. Assim como os sertanejos que, tanto de modo positivo quanto negativo, inovavam e, também, mantinham essencialidades de uma forma de organização social, os brasileiros de maneira geral não conseguiriam construir um processo de mudança totalmente transfigurador. Os elementos fundadores da civilização brasileira se fariam presentes indubitavelmente.

Euclides da Cunha considerava isso positivo e negativo ao mesmo tempo. Negativo, no sentido de que existiam traços que dificultavam toda e qualquer mudança social e positivo, em vista da necessidade, em toda e qualquer transformação, de manter vivo o cerne da nacionalidade brasileira. Enfim, o país era civilizável se fosse entendido por civilização algo completamente distinto dos padrões europeus. Ou seja, o Brasil teria que construir um modo próprio de civilizar–se.

De modo certo ou errado os sertanejos de Canudos haviam tentado reverter as suas condições de desamparo e de miserabilidade. A iniciativa fora indiscutivelmente válida e a reação das forças oficiais irreparavelmente brutal. Estaria aí, não somente nesse episódio, mas também em outros, o nó a ser desatado, no decorrer das próximas décadas, caso o país tencionasse transformar–se.

4. A República, o espantalho monárquico e os fanáticos de Canudos

No final da década de 1890 havia em algumas capitais, afirmava Euclides da Cunha, alguns "platônicos revolucionários que se agitavam a favor da restauração monárquica; fez–se de tal circunstância ponto de partida para a mais contraproducente das reações" (Cunha, 1995, p. 385). Ou seja, o massacre empreendido em Canudos era justificado em nome da necessidade de reprimir um movimento anti–republicano que se alastrava pelo país afora e tinha como fundamento conspirar contra as instituições implantadas desde 1889.

Ironizando o modo como o governo, o exército e o povo em geral agiam diante do sucesso dos sertanejos em confronto com as forças expedicionárias, ele afirmava que em alguns momentos os mais exaltados pareciam acreditar, de fato, que um messias de feira tivesse nas mãos o destino do país. Antônio Conselheiro passava a ser definido como o homem que estava pondo em perigo a República na medida em que a desmoralizava aviltantemente.

Os jornais conclamavam a população para defender a República. O espantalho monárquico tornava–se uma obsessão (cf. Cunha, 1995, p. 387). Na imprensa e nas ruas das capitais era defendido o massacre daqueles que estavam desmoralizando a pátria. Ao considerarem os sertanejos o braço armado do movimento monarquista, instigavam a todos a se posicionarem contra os seguidores do beato.

O Presidente de República Prudente de Morais (1894–1898) argumentava contundentemente, afirmava Euclides da Cunha, que "por trás dos fanáticos de Canudos trabalhava a política" (Cunha, 1995, p. 387). Portanto, era preciso combatê–los com veemência.

Nas cidades iniciavam–se manifestações extremamente violentas contra tudo o que representasse simpatia aos monarquistas. Aos gritos de viva a República e Viva Floriano Peixoto defendia–se um ataque destroçador sobre Canudos. Os habitantes do litoral revelavam–se, afirmava Euclides da Cunha, quase que irracionais. Esses acontecimentos demonstravam o quanto era superficial esse verniz de cultura que ao desbotar deixava evidente que eram eles somente trogloditas que tencionavam passar por cultos e superiores aos homens do Conselheiro.

No final do livro Os sertões ele fazia uma crítica contundente ao brasileiro de modo geral. Na primeira metade da obra ele traçava um painel da rudeza e da incivilização do sertanejo; no entanto, nos capítulos finais, ao analisar as posições dos habitantes das cidades diante do que estava ocorrendo em Canudos, ele concluía que o chamado Brasil civilizado não era superior em termos políticos, de modo algum, ao Brasil atrasado.

Os brasileiros supostamente civilizados não compreendiam o que estava ocorrendo no sertão da Bahia e passaram a apoiar um verdadeiro desastre. Nesse aspecto ficava evidenciado o quão desinformados eram os citadinos acerca do Brasil para além do litoral. Os sertanejos não podiam ser diferentes na sua incivilização, mas o homem do litoral tinha obrigação de o ser, segundo Euclides da Cunha. "Insulados no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez — bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá–lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando–lhe o brilho da civilização através do clarão das descargas" (Cunha, 1995, p. 389).

Transparecia no calor dos acontecimentos que o que mais surpreendia os habitantes da capital da República, por exemplo, era que os sertanejos reagissem à ação das forças expedicionárias. Houve um verdadeiro mal–estar nacional à medida que a resistência dos homens do sertão se mostrava inquebrantável. Evidenciava–se um país não acostumado à tamanha determinação. Implicitamente estava o desejo de que estes últimos sucumbissem à ordem republicana.

Observe–se que, quando Euclides da Cunha mencionava os moradores das cidades, ele se referia essencialmente aos habitantes da capital da República, ou seja, o Rio de Janeiro. Para ele, as manifestações desta população eram as mais representativas da parte do país que pretendia ser civilizada. Acompanhando as suas atitudes e os seus comportamentos, ele construía um perfil do homem litorâneo. Evidentemente que assim procedendo ele acabava traçando um panorama generalizado sobre todos os moradores do litoral.

A pergunta que se deve fazer é a seguinte: as atitudes, os comportamentos e os posicionamentos em relação a Canudos eram idênticos em todas as maiores cidades do Brasil? Ele não tinha como dar a resposta, já que esse propósito nem sequer estava em seu horizonte. Era preciso realizar uma pesquisa sistematizada em termos de um padrão científico de conhecimento sociológico que demandaria um tipo de trabalho distinto do que ele desenvolveu para escrever Os sertões. Florestan Fernandes afirmava que Euclides da Cunha fez uma pesquisa de campo acidental e informal (cf. Fernandes, 1976, p. 42).

Isso, no entanto, não pode ser visto somente como uma questão de opção pessoal dele, porquanto seria um trabalho que exigiria um grau maior de desenvolvimento das ciências sociais no país e no mundo naquele momento. Estas ganhavam as suas teorizações metodológicas mais apuradas exatamente no final do séc. XIX e início do séc. XX com Durkheim e Weber, ou seja, na mesma época em que Euclides da Cunha estava tentando explicar os acontecimentos de Canudos à luz do evolucionismo spenceriano, principalmente.

Verifica–se, voltando à problemática principal deste artigo, que para o autor de Os sertões a incivilização do homem das cidades era, então, muito mais grave que a do sertanejo. Aqueles primeiros não tinham a menor noção das condições sociais e políticas vigentes no país como um todo e se contentavam com os autos–de–fé de alguns jornais que insistiam que aqueles segundos haviam formado um exército rigorosamente treinado e poderoso e, portanto, não eram somente um bando de fanáticos (cf. Cunha, 1995, p. 390). Procurava–se, assim, justificar as ações desmedidas que recaíram sobre Canudos na 4ª expedição que foi descrita, por Euclides da Cunha, como fuzilamento em massa dos sertanejos (cf. Cunha, 1995, p. 422).

Esse processo de brutal assassinato dava–se em nome de alguns desvarios. Um deles fixava–se na idéia de que os habitantes de Canudos estavam pondo em risco a República, e o outro se construía sobre a conjectura de que uma suposta horda de jagunços se espalhava pelo país com seus exércitos disciplinados e dispostos a lutar em favor da monarquia. A insanidade coletiva tomava conta dos moradores do litoral que passavam a exigir uma ação mortífera e definitiva sobre os seguidores da Antônio Conselheiro.

Agindo respaldada em tais desvarios e insanidades a última batalha em Canudos tingiu, afirmava Euclides da Cunha, as páginas da história brasileira de horrores e de amostras da ferocidade dos inimigos imaginários da República. No calor dos acontecimentos ficava evidenciado o quanto os brasileiros em geral eram dados ao fanatismo. Os sertanejos tinham deixado isso evidenciado durante todo o processo de constituição do povoado de Canudos9 9 O povoado de Canudos tinha 5.200 casas quando as forças expedicionárias iniciaram as batalhas para o destruir completamente. e de suas lutas; os habitantes das cidades pareciam enlouquecidos em defesa da República e da destruição dos homens do Conselheiro. Os soldados no decorrer das batalhas beijavam uma medalha de Floriano Peixoto que traziam ao peito como se saudassem um santo milagreiro.

O fanatismo era, então, o ponto em comum entre as duas nacionalidades cindidas. No entanto, se ele era admissível e até compreensível nos habitantes do sertão, ele não o era na parte do país que se supunha civilizada. O encontro entre o litoral e o sertão ressaltou o quanto os brasileiros eram iguais e diferentes ao mesmo tempo. Os habitantes do litoral ao chegarem ao sertão tinham a impressão imediata de que estavam mergulhando em outra civilização, o que era apresentado por Euclides da Cunha como expressão de um modo de organização social que dividiu o país em duas partes que se estranhavam completamente.

"Discordância absoluta e radical entre as cidades e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional. Viam–se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia–os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam–se fora do Brasil. A separação social completa delatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria" (Cunha, 1995, p. 551).

Observe–se que o autor de Os sertões falava em sensações de afastamento que devem ser lidas como uma espécie de distanciamento. A suposição de que os moradores do litoral eram os representantes do que havia de evoluído no país não passava também de uma sensação, de um delírio. Havia um antagonismo, de fato, entre o sertão e o litoral, o que não queria dizer, argumentava ele, qualquer superioridade em termos sociais, culturais e políticos do último sobre o primeiro.

Euclides da Cunha, ao narrar a crueldade dos derradeiros dias da guerra, demonstrava minuciosamente o quanto esta tese de superioridade caía por terra. Os soldados degolavam e estripavam os que ousavam sobreviver ao massacre que recaiu sobre o povoado de Canudos do modo mais bárbaro possível. E como reagiam os sertanejos diante disso tudo? "Permaneciam mudos, estóicos, inquebráveis. Pareciam ressurgir das cinzas" (Cunha, 1995, p. 593). Assim, se havia alguma lição de supremacia, esta era dada pela comovente resistência dos jagunços. "Canudos não se rendeu. Exemplo único na história brasileira. Resistiu até o esgotamento" (Cunha, 1995, p. 642).

Os ataques dos canhões e das bombas de dinamite objetivam apagar geográfica e socialmente a existência daquele povoado; e, além disso, a resistência que os matutos ali demonstraram devia ser implodida para que ela não ficasse sequer na memória de qualquer brasileiro. A obra de Euclides da Cunha procurava eternizar esse traço de robustez demonstrado pelos sertanejos durante as diversas batalhas.

"Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra: enrijavam–nos os reveses, robustecia–os a fome, empedernia–os a derrota. Ademais entalhava o cerne de uma nacionalidade. Atacava–se a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite (...). Era uma consagração" (Cunha, 1995, p. 629).

A luta que se estabeleceu em Canudos não foi, então, a derrota do sertanejo, foi antes a consagração de uma resistência ímpar que exigia que ele fosse pensado como o centro de toda mudança social que se pretendesse empreender no país. Se não havia, no país, unidade de raça como Euclides da Cunha afirmava no início da obra, havia, porém, algo estável que fazia do matuto que se ajagunçava uma rocha viva da nacionalidade brasileira. Enfim, ele afirmava que tinha encontrado algo de estável naqueles lutadores de Canudos: a uniformidade de caracteres físicos e morais responsável pelas suas resistências, até o último minuto, em uma guerra ímpar e sem precedentes no país.

Recebido para publicação em outubro/2000

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  • VILANOVA, S. (1995) Sociologia e póssociologia em Gilberto Freyre Recife, Massangana.
  • WEBER, Max. (1991) Economia e sociedade I Brasília, UNB.
  • 1
    Recentemente têm sido publicados vários trabalhos sobre
    Os sertões. (cf. Ventura, 1996; Hardman, 1996, 1998; Galvão, 1998; Lima, 1998; Roland, 1998).
  • 2
    Florestan Fernandes faz uma discussão sobre o caráter de estudo de sociologia da obra
    Os sertões. No livro
    A sociologia no Brasil ele afirmava que este caráter não pode ser confundido com a sociologia como investigação sistemática. Somente esta define claramente os padrões de conhecimento científico (cf. Fernandes, 1977, p. 57).
  • 3
    "Segundo Vamireh Chacon "a sociologia nasceu no Brasil menos por obra de Comte (...) que de Spencer" (Chacon, 1977, p. 29); enquanto Maria Isaura Pereira de Queiroz observa que "o positivismo exerceu indiscutível ascendência sobre políticos, militares e profissionais liberais da época; mas os cientistas sociais que a partir de 1870 publicavam os seus trabalhos mostravam–se muito mais atraídos pelas teorias de Spencer, que parece ter se constituído o teórico então preferido" (Queiroz, 1989, p. 384; Vila–Nova, 1995, p. 32).
  • 4
    Este modo de conceber a vida social estava filiado inteiramente aos pressupostos de Spencer (cf. Spencer, 1904c ; 1972b).
  • 5
    Segundo Gilberto Freyre as teses preconceituosas de Euclides da Cunha contra os mulatos, por exemplo, serviram para embasar o arianismo de Oliveira Vianna e de outros intérpretes do Brasil (cf. Freyre, 1966 e Vianna, 1982).
  • 6
    Gilberto Freyre, em 1933, contestou veementemente estas pressuposições em
    Casa–grande & senzala (Freyre, 1994).
  • 7
    Euclides da Cunha, ao descrever o Cel. Antônio Moreira César que comandara a primeira expedição regular a Canudos, destacava a sua tendência indescritível para as maiores barbaridades. Era um desequilibrado que não se pautava em crendices e superstições como Antônio Conselheiro, mas em ódios extremos. Ele narrava o caso de um jornalista que foi linchado na rua, em 1884, em que Moreira César era um dos oficiais que comandou a decisão da execução (Cunha, 1995, p. 322).
  • 8
    Gilberto Freyre afirma que o livro
    Os sertões é notável como literatura e notável como ciência ao mesmo tempo (cf. Freyre, 1966, p. 20)
  • 9
    O povoado de Canudos tinha 5.200 casas quando as forças expedicionárias iniciaram as batalhas para o destruir completamente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2001

    Histórico

    • Aceito
      Out 2000
    • Recebido
      Out 2000
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: temposoc@edu.usp.br