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O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues

RESENHAS

Ismail Xavier, O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, 384 pp.

Sergio Mota

Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio

Há quem acredite que o cinema pode ser um lugar de revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Dentro do projeto de revelação do mundo para o olhar, toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista. É quase impossível conceber uma cultura submetida ao olhar em que a visão não detenha prioridade. Por exemplo, ao eleger a visibilidade como proposta para este milênio, Italo Calvino afirma que não se pode correr o risco de perder "a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens". Para o escritor italiano, a experiência contemporânea é pressionada por um acúmulo de imagens sucessivas que não conseguem se sustentar por si mesmas, diluindo-se antes de adquirir consistência na memória daquele que vê. O que confere à visibilidade estatura de proposta é, justamente, a capacidade de ser um meio transparente, através do qual a realidade se apresenta à compreensão. Sem contar que, quando Calvino elege a visibilidade como um valor literário a ser preservado, não a situa no campo da visão, mas no da imaginação.

Vive-se hoje um mundo dominado de todos os lados pelas imagens, e esse excesso impõe novos repertórios visuais, ao lado de uma idéia recorrente que afirma que tal saturação imagética contribui para uma "falha" no aprendizado do ver. Assim, a questão que se desenha é: de que forma a cena do mundo pode ser codificada diante de uma multiplicação infinita de imagens? No que diz respeito ao olhar, é possível alguma pedagogia que auxilie na apreensão desse mundo saturado, em que tudo se dá ou se põe a ver? Os teóricos pós-modernos revelam que a superabundância induz a um estado de desorientação no qual a percepção não se preocupa se as imagens reproduzem ou não o mundo, na discrepância entre imagens e realidades, olhar e cena, entre significantes e significados. Convertidos em meros produtos de entretenimento, os signos podem deixar de apontar para um mundo de diferenças e de novas possibilidades e criar a simples vertigem da representação, para espectadores reais e virtuais (ver, nesse sentido, o livro Paisagens urbanas, de Nelson Brissac Peixoto).

A importância que a imagem e a visualidade vêm assumindo na epistemé moderna e a existência de um alhures do espetáculo são investigações de O olhar e a cena, de Ismail Xavier. Com o olhar arguto que lhe é peculiar, o crítico arregimenta temas e filmes basilares da cinematografia mundial e nacional, a fim de demonstrar os liames que sustentam as relações entre a estrutura do drama, o lugar da cena e o papel do espectador no cinema diante da oferta desenfreada de imagens. Em um primeiro momento, a sondagem teórica de Xavier passa, obrigatoriamente, pela delimitação do lugar do melodrama teatral no cinema que nascia com o século XX. Resultado imediato de uma época marcada pela inconstância e por precários índices de estabilidade (o século XVIII), a estrutura melodramática apresentou ao espectador a inversão desse estado de coisas. No lugar de uma instabilidade permanente a reboque do desenvolvimento capitalista, um universo codificado, sem riscos, facilmente reconhecido e estruturado com rigidez, dentro de valores que se opunham na simplificação de duas instâncias: o bem e o mal. Nessa rígida estrutura encontra-se, portanto, uma também rígida dualidade (dicotômica, na visão de Xavier) e uma irremediável oposição na qual não há possibilidade de conciliação por parte dos personagens. Em sua pesquisa, o crítico reconhece que tais experiências estabelecem um jogo com uma construção ilusionista de impacto visual, cuja conseqüência imediata provoca no herói melodramático estados emocionais reveladores que jamais se alojam no meio do caminho, em pontos intermediários. É justamente o melodrama o responsável por fornecer a esse espectador desorientado pelos níveis de aceleração advindos da Revolução Industrial uma espécie de cartilha da moralidade (um mundo que ainda tem espaço para reconciliações, conforme afirmou o crítico em outra ocasião).

Nessa delimitação das relações entre melodrama e cinema, Xavier reconhece que o melodrama, após a Revolução Francesa e durante o século XIX, funcionou como uma espécie de motor que impulsionou as origens do cinema (e, mais tarde, da televisão), alimentando-o de enredos rocambolescos, de sentimentalismos e moralismos centrados no inevitável maniqueísmo, representados por atores que tinham na grandiloqüência e no exagero da forma sua principal marca. Dentro dessa perspectiva, o livro de Ismail Xavier não deixa de ser uma historiografia de um certo tipo de olhar que encontra no naturalismo engendrado pela cena burguesa do século XVIII uma aceitação tácita da ilusão. Nesse tipo de drama, a cena se revela um lugar de autonomia que não dá conta do olhar que o espectador, em outra instância, lança sobre ela. Reproduzir na cena o mundo tal como ele se apresenta é tarefa ensinada pelo Iluminismo. Nesse sentido, a cena ganha autonomia pela naturalidade que sua representação encerra e deve ser um espaço discreto, sem o uso de aparentes artifícios e gestos que prejudiquem tal aceitação incondicional.

Nesse percurso crítico, é o cinema clássico o herdeiro do lugar ocupado pelo espectador, principalmente pelo fato de que o dispositivo cinematográfico inaugura um deslocamento importante em relação à estrutura teatral. Com o cinema, a imagem que ocupa o lugar do espectador revela um espaço que se organiza à revelia dele, dentro de uma dimensão terceirizada (porque externa) engendrada pelo olhar da câmera. O que se revela diante desse olhar, principalmente em relação aos dispositivos de representação, é um mundo que apresenta um retrato fiel da realidade, mais que uma instância de "naturalismo", encenado como tal, para garantir a identificação do espectador com a cena descrita que se amalgama com a vida. Como resultado imediato, olhar do espectador e olhar da câmera são faces da mesma moeda e parceiros nessa astúcia da representação. "A projeção da imagem na tela consolidou a descontinuidade que separa o terreno da performance e o espaço onde se encontra o espectador, condição para que a cena se dê como uma imagem do mundo que, delimitada e emoldurada, não apenas dele se destaca mas, em potência, o representa", define o crítico, na tentativa de compreender a logística dessa nova forma de representação arregimentada pelo cinema.

Essa estratégia da construção da cena como imago mundi ou como microcosmo privilegiado, para fins de ilusionismo (algo como afirmar que o espectador faz parte da cena e com ela se confunde ou identifica), é habilmente demonstrada por Xavier, que disseca esses dispositivos de representação em dois momentos modelares, representados por D. W. Griffith (clássico do cinema norte-americano em formação), que se serviu em excesso do modelo melodramático, e Alfred Hitchcock, que superou ironicamente tal estrutura, utilizando artimanhas metalingüísticas, para revelar uma outra logística do espetáculo (nesse sentido, valem o livro as análises de dois filmes do diretor inglês, Vertigo e, principalmente, Janela indiscreta).

Em um segundo momento, Ismail Xavier volta-se para a produção nacional, a fim de discutir estratégias de atualização da matriz melodramática nas minisséries de Gilberto Braga (Anos dourados e Anos rebeldes). Interessa ao crítico, nesse momento, revelar os possíveis liames entre as formas do melodrama (e a persistência de tal modelo) e o realismo, e também demonstrar, por outro lado, de que forma a televisão foi o agente que procurou constituir um certo senso comum pós-freudiano no Brasil, que passa a legitimar novas estratégias morais de inspiração humanista. Xavier, em uma leitura precisa, identifica os esquemas melodramáticos de tais objetos e revela de que maneira, principalmente em Anos dourados, aparece uma certa modernização que conserva a estrutura do melodrama clássico, o que responde, por um viés conciliatório, à crise do modelo patriarcal.

Apesar de ser uma coletânea de textos publicados em ocasiões distintas, impressiona o fato de o livro não cometer, em nenhum momento, o pecado irreparável da falta de conjunto, comum nesses casos. A mudança da transitoriedade de textos dispersos para a durabilidade do livro é relevante para se analisar até que ponto uma reunião de ensaios pode perder o foco e a objetividade. Não é o caso de O olhar e a cena, dono de uma unidade evidente que enfeixa seus artigos e se ramifica por suportes teóricos diferenciados: uma reflexão a respeito dos desdobramentos do melodrama em diferentes canais de representação, uma tentativa de colocar em xeque "os problemas enfrentados na crítica dos filmes cuja interpretação se enriquece a partir do cotejo com formas da encenação teatral herdadas pelo cinema" e, principalmente, um estudo da maneira, na saturação de imagens da indústria cultural e do produto de massa, como os filmes analisados sobrepujaram (ou ratificaram) o viés ilusionista do cinema e das artes.

Esse esqueleto teórico de um pensamento crítico irrefutável encontra sua apoteose na leitura que Xavier faz da obra de Nelson Rodrigues, o que ocupa boa parte do livro e um módulo inteiro ("O cinema novo lê Nelson Rodrigues"). O crítico examina as adaptações cinematográficas do autor de A falecida sob a perspectiva da transformação do país nos últimos quarenta anos, o que faz, pelo menos desse capítulo, uma reflexão de referência no campo dos estudos sobre esse autor. No cinema brasileiro, nunca houve um escritor que tenha inspirado tantos filmes como Nelson (cerca de vinte longas), entre 1952 e 1999. Como já havia feito com as produções anteriores, Xavier reconhece os elementos melodramáticos de tal dramaturgia e a forma com que o cinema se apoderou desse repertório de crises, que não permite retorno aos padrões nem dá espaço para reconciliações, consoante revela o crítico nas leituras que realiza, entre outras, dos filmes Boca de ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos, e A falecida (1964), de Leon Hirszman, que procuraram solucionar tensões entre a necessidade de construção realista e os textos de que partiram. Com a intenção de fazer um balanço dessa produção cinematográfica, a análise reconhece que o momento mais produtivo desse conjunto de adaptações se deu quando houve uma clara intenção, na escolha de tom e gênero, de, por meio dos filmes, radiografar o Brasil e produzir um extrato de diagnósticos que revelam, principalmente nas obras adaptadas por Arnaldo Jabor, as contradições do processo de modernização, com ares tragicômicos e alegóricos.

Na verdade, reconhecer o lugar que ocupa o espectador em relação à cena que se disponibiliza é, de certa forma, dentro de uma perspectiva histórico-social e estética, entender a natureza específica da experiência audiovisual como interface espaço-temporal, em que se entrechocam o tempo das narrativas, a linguagem de imagens visuais e o sujeito projetado nesse jogo, que não é apenas o sujeito do discurso fílmico, recurso interno do texto como relação de enunciação. É, também, corpo social e historicamente em processo. Como afirma o próprio crítico: "Para existir em sociedade, em especial no império do marketing e da competição, precisamos criar a cena, estar disponíveis diante de um olhar que nos toma como objeto, nos oferecer como espetáculo, cumprindo os protocolos de sua geometria e de seu desempenho. Há variadas formas dessa geometria e de seus componentes, lugares específicos de manifestação que se mesclam ao mundo prático e se expandem sem fronteiras claras no dia-a-dia, no núcleo familiar, nos confrontos em sociedade, em tudo que a crítica cultural já observou sobre o poder, o erotismo e a sedução, na esfera pública e na vida privada".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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