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Espiritismo à brasileira

RESENHAS

Sandra Jacqueline Stoll, Espiritismo à brasileira. São Paulo, Edusp/Orion, 2004, 296 pp.

Yvonne Maggie

Professora titular de Antropologia da UFRJ

Espiritismo à brasileira começa com um fascinante relato da presença de Francisco Cândido Xavier, o famoso médium Chico Xavier, no programa Pinga Fogo da TV Tupi em 1971, em um evento inédito e ao vivo: a transmissão de uma sessão mediúnica. Coincidentemente, esse foi o mesmo ano em que o exu Seu Sete da Lira, incorporado na médium dona Cacilda, incendiou a cidade do Rio de Janeiro com sua aparição espetacular, também ao vivo, nos programas de Chacrinha e de Flávio Cavalcanti.

O livro dedica-se a entender a reinterpretação que se fez no Brasil do espiritismo francês de Allan Kardec. Seus escritos, e os de outros autores europeus espíritas na segunda metade do século XIX, venderam quase tantas cópias quanto A origem das espécies de Darwin.

Mas enquanto na Europa a doutrina de Allan Kardec minguou, no Brasil se manteve muito viva. Stoll aborda o espiritismo em terras brasileiras por meio da análise da vida de Chico Xavier, falecido em 2002, e, como contraponto, do estudo da trajetória de outro seguidor do espiritismo de inspiração kardecista tupiniquim ainda atuante, Luiz Antonio Gaspareto. A autora argumenta que cada um desses personagens incorpora uma das duas vertentes, ou versões, brasileiras da doutrina kardecista. De um lado, o santo que se afasta do mundo e que, como todos se lembram, era uma figura quase sem corpo apesar de sempre ter se apresentado com enorme cuidado pessoal, com os cabelos bem penteados escondendo a calvície. De outro, o santo que se imiscui nas coisas do mundo e se apresenta com beleza como que pós-moderna, com brincos na orelha e músculos à mostra. As fotos da edição cuidadosa mostram claramente esses dois tipos com características físicas e representações corporais de santidade contrastantes.

Segundo Sandra Jacqueline Stoll, Chico Xavier afastou-se do cientificismo da doutrina de Kardec ao se aproximar do catolicismo com seu "discurso das virtudes" e da noção de santidade cristã. Na argumentação da autora, essa transformação foi uma das razões do sucesso do espiritismo de inspiração kardecista no Brasil. A vida de Chico Xavier é um exemplo de vida monástica, pois o médium renunciou à sexualidade e aos bens materiais. Personificou assim um tipo ideal de espírita que representou esse ethos religioso. Chico Xavier gozou de enorme fama nacional e não há cidadão brasileiro que não se lembre de sua figura emblemática. Psicografava cartas de vítimas de assassinatos, peças que foram incorporadas a processos criminais. Também psicografou poemas de Augusto dos Anjos e Alphonsus de Guimaraens (alguns reproduzidos no livro), entre outros, e escritos de Humberto de Campos, a ponto de sua viúva ter movido um processo por plágio contra o médium e a Federação Espírita. Um amigo meu, poeta e descendente de um dos escritores psicografados por Chico Xavier, comentou laconicamente: "Se é verdade que os poetas depois da morte continuaram fazendo poesia, eles pioraram muito!".

A crítica a essa versão de santidade é construída por meio da figura contrária de Gaspareto. Visto como dissidente pelos seguidores de Allan Kardec, o médium pinta quadros em sessões alucinadas nas quais incorpora Picasso, Monet e Toulouse-Lautrec, entre outros tantos. (Não há notícia de processo de plágio nesse caso!) Uma dessas sessões, na qual Toulouse-Lautrec assinou as telas, foi transmitida pela TV Cultura em 1990. Gaspareto, segunda a autora, faz uma nova síntese na qual entram elementos do espiritismo, do "neo-esoterismo" ou da "nova era", e de práticas de auto-ajuda.

Chico Xavier representou, assim, a versão do renunciante, enquanto Gaspareto expressa a versão do bon vivant ou, na interpretação de Stoll, se "[...] aproxima da teodicéia da boa fortuna", no sentido weberiano. O primeiro pregava o asceticismo, o segundo defende a "ética da prosperidade". Ainda segundo a autora, ser espírita para Chico Xavier representava o sofrimento, o sacrifício, a renúncia, a pobreza e a caridade. Para Gaspareto, representa a felicidade, o prazer, a auto-realização, a prosperidade e a auto-ajuda. O livro termina sugerindo que esses dois "[...] modelos éticos convivem no contexto espírita tensionando-se mutuamente, sem que, contudo, seja possível prever o desenlace".

Independentemente dos possíveis rumos futuros dessa tensão no espiritismo brasileiro, a leitura do livro de Sandra Jacqueline Stoll suscita questões ainda mais difíceis de serem respondidas. Não fica claro, por exemplo, por que Kardec, tão popular na França do século XIX, mas que certamente não revolucionou o mundo europeu como o fez Darwin, teve tanto sucesso aqui. Diferentemente da Europa, os espíritos e os espíritas foram centrais na vida brasileira, pelo menos até bem recentemente. Hoje em dia seu lugar no espaço público, sobretudo a televisão, parece ter sido tomado pelo seu inimigo mortal, as igrejas neo-pentecostais, que no seu afã de pregar uma teologia da prosperidade procuram relegar os espíritos ao status de emissários do demônio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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