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Comprendre: les jeunes

RESENHAS

Maria Carla Corrochano

Socióloga, doutoranda da Faculdade de Educação - USP

François Dubet, Olivier Galland e Éric Deschavanne (dir.), Comprendre: les jeunes. [Revue de Philosophie et de Sciences Sociales, 5]. Paris, Presses Universitaires de France, 2004, 330 pp.

Obra fundamental para quem deseja conhecer o debate europeu contemporâneo a partir de contextos disciplinares diversos - sobretudo o francês - em torno das principais questões teóricas, metodológicas e políticas relacionadas à juventude. Reunindo artigos de acadêmicos das mais diversas áreas do conhecimento - sociologia, antropologia, psicologia, filosofia e direito -, além de entrevistas e resenhas, Comprendre: les jeunes aborda temas que vão da construção social das categorias adolescência e juventude à definição de políticas públicas voltadas a esses segmentos da população.

Os artigos são distribuídos por partes temáticas diversas: no primeiro bloco, um conjunto de três artigos apresenta os principais discursos em torno das idades da vida e limites para a compreensão da juventude (Deschavanne), a construção da categoria adolescência (Quentel) e a representação jurídica das crianças (Youf); outro conjunto levanta questões relativas à cultura juvenil: uma interpretação das raves (Blanc), a entrevista com o fundador de uma rádio dirigida ao público jovem francês (Bellanger) e uma análise em torno do papel das mídias na formação de crianças e adolescentes (Tisseron).

O segundo bloco, "Ser jovem hoje", traz um artigo que discute as possíveis patologias mentais dos adolescentes (Jeamment) e outro abordando a existência ou não de uma identidade estudantil na atualidade (Erlich); de modo similar, a existência de uma "geração 2000" é debatida por Galland e Chauvel, e a chamada delinqüência juvenil é tema dos artigos de Roché e Mucchielli.

O último bloco traz as reflexões de Singly e Dubet sobre a juventude na sociedade contemporânea, além de entrevista com um ex-ministro da Educação francês discutindo as políticas de educação e de juventude (Ferry). Resenhas de obras centrais para a compreensão do tema compõem a parte final da edição.

Esse conjunto de artigos é também relevante para o debate no Brasil. Um primeiro aspecto importante diz respeito ao diálogo interdisciplinar. Embora a perspectiva sociológica seja predominante no conjunto da obra, estão presentes outros modos de olhar, principalmente da psicologia e da antropologia. Se em muitos dos artigos percebemos a valorização do diálogo interdisciplinar para a compreensão do tema, poucos de fato lançaram mão dessa perspectiva, com destaque para Quentel. O autor esforça-se em apresentar o modo como a adolescência foi debatida em contextos diversos, ao discutir a construção dessa categoria, evidenciando como sobretudo a psicologia, em especial a psicanálise, tomou para si o debate em torno da compreensão do adolescente e de suas diferenças em relação ao universo infantil e adulto.

Na busca por uma compreensão do universo juvenil, muitos autores fazem referência a todos os momentos da vida, infância, adolescência, juventude e mundo adulto, num esforço para considerar suas especificidades e inter-relações. Mas na análise de Youf, o foco se desloca para a infância, ao discutir a representação jurídica das crianças. Já no caso da diferenciação entre adolescência e juventude, a abordagem de Galland e Dubet mostra-se fundamental: embora seja cada vez mais difícil definir onde termina a adolescência e começa a juventude, é evidente que são dois momentos bastante diferenciados.

Ainda que, em alguns casos, de modo antagônico e partindo de perspectivas disciplinares diversas, a construção social das categorias adolescência e juventude seja uma presença recorrente nos artigos, e embora se reconheçam seus estilos, gostos e preferências próprios, outro aspecto comum aos autores é não considerar jovens e adolescentes como "tribos", uma vez que participam ativamente da vida social, trabalhando, estudando, constituindo família, votando. Também é comum a percepção de que os jovens constituem uma geração, na medida em que vivem em determinado contexto histórico e cultural, mas, ao mesmo tempo, se diferenciam. Sobre a relação com os adultos, muitos dos autores problematizam a idéia de conflito entre gerações.

Nos artigos que tratam especificamente da construção da categoria juventude, nota-se certa recusa em considerá-la simplesmente uma etapa de transição. Como afirma Quentel, as mudanças que tomam forma nesse período continuam tendo lugar ao longo da vida, com a diferença de que nesse momento elas são enfrentadas de modo mais intenso. Esse autor evidencia que a chamada "crise adolescente" atinge também os familiares dos jovens. Em perspectiva bastante ancorada no campo da psicanálise, o autor aponta que, no momento em que os filhos deixam a infância, também os pais precisam controlar a criança imaginária existente em seu interior, o que se concretiza por meio dos filhos.

Ainda no campo da construção da juventude, Deschavanne refuta dois discursos correntes sobre os momentos da vida: o de sua não-distinção, ou da juventude encarnada como condição do homem contemporâneo; e o da luta dos diferentes períodos da vida, ou seja, o conflito entre as gerações adultas e jovens, em questionável analogia com a luta de classes. Nesse último caso, o princípio da solidariedade entre as gerações e o fato de que a idade seria apenas condição transitória estariam sendo ignorados. Em sua perspectiva, a juventude não é nem o único período da vida das sociedades modernas, nem uma "comunidade" fundada sobre um pertencimento geracional: ela constitui categoria antropológica que existe apenas em relação ao mundo adulto. A partir disso, e pautando-se no contexto europeu ocidental, o autor apresenta três diferentes modelos de entrada na vida adulta, destacando o momento atual e seus riscos, em que haveria uma extensão do período ao longo do qual o indivíduo se torna adulto.

Analisando a condição juvenil na contemporaneidade, Galland e Chauvel perguntam-se sobre a adequabilidade de criar-se a categoria "geração dos anos 2000" e quais seriam suas características fundamentais. As respostas avançam em direções distintas. Ao explicitar o que compreende por geração, diferenciando atributos e identidade geracional, Galland examina as especificidades desses jovens e a existência (ou não) de uma identidade geracional particular. O autor apresenta um quadro de vários fatores, apontados por diferentes pesquisas, que indicariam uma forte especificidade geracional entre os jovens dos anos de 1990 e 2000. Entre eles, destacam-se a maior dificuldade de mobilidade social e a generalização de empregos temporários entre os mais jovens, a despeito dos níveis educacionais mais altos. Ao mesmo tempo, considera excessivas as análises que vêem essa nova geração como de excluídos. Em sua perspectiva, a geração dos anos de 2000 não deve ser tomada apenas como vítima, pois também se beneficia de condições de vida e educação superiores às da geração anterior. De modo contrário, Chauvel enfatiza a degradação das condições de entrada dos jovens na vida adulta, o que permitiria falar de uma situação específica da nova geração, sujeita a uma crise social, econômica e política que torna o seu futuro profundamente incerto. Em sentido amplo, para Chauvel, a piora das condições de vida seria a marca principal da geração atual. Ao mesmo tempo, os dois autores concordam quanto à intensa diversidade existente no interior dessa geração, com destaque para a situação dos jovens de mais baixa escolaridade. Considerando as crescentes dificuldades de certos grupos de jovens para conquistar sua independência, sobretudo econômica, Singly destaca o comprometimento de sua própria autonomia.

Os casos de "delinqüência" seriam mais numerosos entre esses jovens com maiores dificuldades de inserção social? Problematizando o próprio conceito, Roche descreve os mecanismos de ingresso dos jovens no mundo da delinqüência, apontando as dificuldades em obter dados confiáveis que possibilitem compreender sua evolução e natureza, bem como construir mecanismos de prevenção. Enquanto isso, Mucchielle, ao analisar o discurso dos jovens sobre a violência e a posição dos sociólogos, é muito mais sensível à distribuição social da delinqüência juvenil, chamando a atenção para a significação política das violências urbanas.

No campo psíquico, Jeammet não tem dúvidas de que a sociedade atual tem criado dificuldades específicas para os jovens: há um enfraquecimento das interdições (quase tudo é permitido) nunca visto antes, ao mesmo tempo em que aumentam as exigências de desempenho e sucesso individual. Procurando escapar das representações correntes em torno dos problemas de comportamento juvenis, por vezes bastante ambíguas, o autor busca compreender as patologias mentais dos adolescentes, revelando em que medida a perda da mediação e das regras e a dificuldade em afirmar claramente as diferenças (remetendo assim para o caso da família) podem produzir perturbações psíquicas, desde condutas agressivas, dirigidas a si próprio ou aos outros, até aquelas mais interiorizadas, dominadas pela inibição e pelo isolamento.

A identidade estudantil é tema de apenas um artigo. Ao tomar como parâmetro a ampliação do número de jovens com acesso ao ensino superior e a chegada de novos grupos sociais a esse nível de ensino, Erlich pergunta-se sobre a possibilidade de se falar de uma identidade estudantil (universitária) que se diferencie de outras identidades juvenis. Para responder a essa questão, o autor percorre diferentes representações em torno da categoria estudante, seja no âmbito do senso comum, seja na esfera acadêmica ou das políticas, e ao mesmo tempo procura desvendar as particularidades ou heterogeneidades das condições materiais e sociais dos estudantes e seus diferentes níveis de integração no seio do mundo universitário e social. O autor defende a existência de múltiplas situações estudantis que precisam ser evidenciadas, entre elas a do estudante que ainda vive com seus pais e apenas estuda, a do estudante trabalhador, a do estudante pai de família e a do estudante morador do centro ou da periferia. Ao mesmo tempo, destaca uma espécie de coesão relacionada a certos benefícios materiais e simbólicos obtidos a partir da condição de estudante, e entende que a identidade estudantil está conectada também à identidade da geração na qual os estudantes se inserem, não apenas pela proximidade de idade, mas pelas preocupações e práticas de sociabilidade comuns, e sobretudo pela aquisição progressiva da autonomia.

Um exame dos desafios atuais do sistema escolar francês, sobretudo em sua relação com os jovens, é tema da entrevista realizada com Luc Ferry. A análise e as interrogações sobre as políticas de juventude vêm associadas à apreciação da política educacional francesa. Não há na coletânea nenhum outro artigo que paute as políticas de juventude em âmbito mais amplo.

Questões relativas à cultura de massa e às mídias ocupam espaço maior no conjunto da obra, sendo tema de três artigos com percepções diversas. Na interpretação de Blanc, os jovens têm criado estratégias para escapar do controle midiático, com destaque para o fenômeno das raves. Bellanger toma como exemplo sua experiência em uma rádio dirigida aos jovens e explica seu sucesso em função do espaço que oferece, ao contrário das demais instituições. Por fim, Tisseron relativiza o poder e a capacidade da mídia (sobretudo da TV) de produzir efeitos, principalmente perversos, entre crianças e adolescentes; o mesmo autor questiona pesquisas que avaliam tal impacto apenas pelo número de horas diante da TV, desconsiderando a programação e outros fatores relacionados ao consumo televisivo, como as relações com família, escola, amigos e meio ambiente, entre outros. Embora o foco de sua atenção seja a criança, a conclusão se dirige ao universo juvenil, mostrando como a mídia também pode servir às necessidades emocionais e relacionais de muitos jovens, com destaque para o papel da internet.

A importância de o mundo adulto assumir seu papel no espaço público é aprofundada na discussão de Dubet sobre a experiência juvenil contemporânea. A juventude é definida pelo autor como uma dupla experiência: a da liberdade e a da excelência, em que o risco de ficar fora do jogo é cada vez maior. Nesse contexto, os adultos têm se recusado progressivamente a cumprir seu papel de proteção e de responsabilidade, além de fugirem do debate, em situações nas quais a emergência e a explicitação de conflitos podem ter importante papel educativo na estruturação das identidades jovens.

Dubet reconhece a dificuldade dessa tarefa educativa, uma vez que os adultos não ocupam o mesmo lugar de outrora, mas, ao deixarem de exercer seu papel, acabam dificultando o processo de construção de identidade entre os próprios jovens. Para deixar claro o que quer dizer, oferece-nos como exemplo uma situação bastante recorrente em vários trabalhos desenvolvidos com jovens: a de delegar a outros jovens, supostamente mais próximos, o trabalho educativo junto àqueles considerados "mais difíceis".

Poderíamos apontar alguns temas que não foram abordados nessa coletânea, mas chamamos a atenção para a ausência da questão do trabalho. Embora citado em vários dos artigos, sobretudo pelas dificuldades crescentes das novas gerações em adentrar e permanecer no mercado de trabalho, o tema não é objeto específico de nenhum deles. Tal omissão, embora relevante, não torna a obra menos importante. Em boa medida, para nós, essa lacuna parece refletir, em contraste com o que ocorre no Brasil, o lugar (ou o não-lugar) ocupado pelo trabalho na sociedade européia, na construção da categoria juventude. Todavia, a diversidade de temas e pontos de vista apresentados nessa coletânea é fundamental para quem deseja compreender não apenas as questões e as contradições inerentes à juventude, mas a própria sociedade contemporânea.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Nov 2005
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