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Rester enfant, devenir adulte: la cohabitation des étudiants chez leurs parents

RESENHAS

Melissa Mattos Pimenta

Doutoranda em Sociologia pela FFLCH - USP

Elsa Ramos, Rester enfant, devenir adulte: la cohabitation des étudiants chez leurs parents. Paris, L'Harmattan, 2002 (col. Logiques Sociales), 264 pp.

Rester enfant, devenir adulte debruça-se sobre um dos fenômenos que mais têm inquietado pesquisadores na área de juventude: a permanência, cada vez mais prolongada, de jovens adultos na casa dos pais. Esse fenômeno vem sendo observado desde meados da década de 1980, quando Jean-Claude Chamboredon identificou uma "nova idade da vida", que batizou de "pós-adolescência"1 1 . Ver Jean-Claude Chamboredon, "Adolescence et post-adolescence: la 'juvénisation' ", em Adolescence terminée, adolescence interminable, organizado por Anne Marie Alléon et al. (PUF, Paris, 1985). . As razões apontadas para esse fenômeno são bastante conhecidas: por um lado, a generalização do acesso à educação e a progressiva extensão da escolaridade obrigatória têm levado cada vez mais jovens a prolongar seus estudos; por outro lado, as crescentes dificuldades de inserção efetiva no mercado de trabalho têm levado as novas gerações a experimentar períodos cada vez mais longos de instabilidade laboral, marcados por contratos temporários, condições de trabalho insatisfatórias ou rendimentos insuficientes para a concretização de projetos pessoais, muitas vezes alternados com períodos de desemprego e procura por vagas. A combinação desses dois fatores tem levado à extensão do período entre a conclusão dos estudos e o início da vida ativa, fazendo com que muitos jovens posterguem os planos de abandonar o lar familiar, casar e ter filhos. Esse intervalo maior entre o término da preparação profissional e a formação de uma família, caracterizado tanto como um "adiamento" da vida adulta, quanto um "prolongamento" da situação de juventude, tem sido preenchido por práticas e estilos de vida alternativos ao modelo familiar tradicional, como viver sozinho ou em coabitação e ter filhos fora do casamento. Essas tendências têm ocupado pesquisadores em diversas áreas do conhecimento e produzido inúmeras publicações sobre o tema.

Contudo, a justificativa para a permanência prolongada na casa dos pais pelo viés da falta de trabalho não é suficiente: como explicar a decisão de permanecer em casa por parte de jovens que trabalham, têm rendimentos próprios e são independentes financeiramente? Vários fatores têm sido apontados como causa desse fenômeno, entre eles o entendimento de que a "pós-adolescência" seria um período de "experimentação" e de "desfrute" da juventude, antes da assunção das responsabilidades tradicionalmente atribuídas ao indivíduo adulto.

Mas a permanência prolongada na residência da família de origem também é atribuída a outros fatores estruturais, entre eles os crescentes custos da habitação que, em diversos países, têm dificultado o acesso dos jovens à casa própria. Contudo, um dos aspectos mais importantes são as mudanças significativas nas relações entre pais e filhos, que estabelecem novos padrões de convivência, permitindo maior autonomia aos jovens no âmbito das relações familiares.

A obra aqui tratada ocupa-se justamente das novas dinâmicas de relacionamento entre as gerações no interior do espaço doméstico. Elsa Ramos, socióloga de origem portuguesa radicada na França, é doutora em Sociologia pela Universidade de Paris V e membro do Centre de Recherches sur les Liens Sociaux (Cerlis), dirigido por François Singly. Rester enfant, devenir adulte é fruto do trabalho desenvolvido por ela, no âmbito do tema "Família e Identidades", uma das quatro linhas de pesquisa do Centro, voltada para o estudo dos hábitos, da individualização, das formas de vida em comum, da reformulação dos laços entre os indivíduos na esfera privada e da construção das identidades. O trabalho da pesquisadora, que em 2001 obteve o primeiro prêmio no concurso anual do Observatório da Vida Estudantil, enfoca a construção do "espaço próprio" entre os estudantes que coabitam com os pais. No decorrer de seu texto, a autora procura mostrar de que maneiras a apropriação de um espaço particular no interior da esfera doméstica privada participa da constituição da própria identidade dos jovens estudantes.

O fenômeno do "prolongamento" da juventude evidencia as ambigüidades do processo de tornar-se adulto na contemporaneidade. Se, antes, a maturidade era atribuída ao completar uma seqüência de etapas que tradicionalmente marcavam a transição entre uma e outra fase da vida, hoje tornar-se adulto é percorrer um caminho cada vez mais sinuoso, com muitas mudanças de orientação, atalhos, alternativas que assinalam múltiplas direções e obstáculos que levam a desvios, paradas e mesmo ao retorno sobre os próprios passos. Nesse sentido, a definição do que significa ser adulto não se limita a determinantes objetivos, tais como a independência de residência ou financeira, mas envolve, necessariamente, a construção de si mesmo como pessoa autônoma e responsável.

A dificuldade em reconhecer a passagem de estatuto nos processos de transição contemporâneos está no fato de que durante muito tempo a idade adulta foi fundamentada em critérios objetivos de independência e autonomia que tendem a ser muito restritivos quando tomados como a única definição. É precisamente porque há muitas formas de ser adulto que o conceito precisa ser relativizado. Segundo Ramos: "A autonomia remete à idéia de que o indivíduo determina a si mesmo as próprias regras, enquanto a independência é um estado no qual o indivíduo se encontra desde que disponha de recursos (nomeadamente econômicos) suficientes para estar livre para atar laços com quem quiser. A autonomia é considerada uma percepção positiva de si à qual o indivíduo tende e difere da independência na medida em que esta aparece como emancipação da casa dos pais. A autonomia refere-se a categorias subjetivas, enquanto a independência se refere a categorias objetivas. Os marcos da independência são os mesmos utilizados para falar da passagem à idade adulta, principalmente a independência residencial e econômica" (p. 18).

Ao optar por pesquisar o caso dos estudantes que vivem com a família de origem, que não são independentes, a autora deparou-se com estratégias particulares de afirmação da autonomia, que passam pela negociação e pelo estabelecimento dos limites do "espaço próprio", tanto no âmbito do espaço físico como das relações entre pais e filhos. A pesquisadora apresenta, assim, uma nova definição de autonomia: a capacidade do indivíduo de julgar a si próprio e de reajustar seus métodos em função dos seus objetivos, baseada na capacidade reflexiva, que confere ao indivíduo poder sobre si mesmo.

Essa concepção de autonomia é um traço fundamental do individualismo característico das sociedades modernas. No caso dos jovens estudantes, o que lhes confere o sentido de autonomia é a capacidade de definir seus próprios projetos, de reconhecer-se a si mesmos e, sobretudo, de fazer com que sejam aceitos e legitimados pelos pais.

A construção da identidade do jovem adulto que mora com a família dá-se por essa via. A autora observa que a constituição do ser adulto sobrepõe-se à constituição de si; todavia, não há um único modelo para esse processo e é preciso, portanto, ouvir e atribuir sentido às diferentes maneiras segundo as quais os indivíduos elaboram a construção de sua auto-identidade.

A pesquisa realizada por Elsa Ramos é centrada na perspectiva da coabitação entre pais e filhos. Essa perspectiva desdobra-se em três dimensões fundamentais: a dimensão espacial, que observa a ação dos ocupantes sobre o espaço físico da casa; a dimensão temporal, que analisa as variações no espaço entre coabitantes no decorrer do tempo, em função da presença e da ausência dos membros da família nos diferentes horários do dia e épocas do ano; e a dimensão relacional, que estuda o gerenciamento do espaço doméstico (as delimitações, as regras, a partilha, as reivindicações), ou seja, a negociação cotidiana entre indivíduos que vivem conjuntamente. Essa transação não se limita ao interior do âmbito doméstico, mas se estende a outros domínios da construção de si, como os estudos, as saídas, as relações amorosas e de amizade.

Partindo da hipótese de que o espaço é um indicador significativo do processo de construção das identidades, Ramos desenvolveu um trabalho inovador, na medida em que, na sua abordagem metodológica, integra a observação e a interpelação do espaço apropriado pelos jovens sujeitos. Nesse sentido, não basta recolher os discursos e as representações sobre como os estudantes negociam seu "espaço próprio" no cotidiano das relações familiares, mas observar, por meio da visita à casa dos jovens entrevistados ou de sua reconstituição pictográfica, como esse espaço é apropriado, ocupado e organizado por eles. A escolha do quarto como um dos objetos privilegiados de análise das relações familiares entre pais e filhos justifica-se na medida em que constitui o local mais privado do jovem estudante na casa. Segundo a autora, o sentido que o jovem adulto atribui aos seus objetos "é revelador das relações que estabelece consigo mesmo e com aqueles que o rodeiam" (p. 25). Desse modo, para o pesquisador, observar o quarto e os objetos que o compõem é um meio de compreender as relações, os laços e as identidades que o indivíduo constrói durante sua biografia.

A família atua na outra ponta das relações cotidianas e exerce um papel fundamental no processo de construção identitária de cada um dos seus membros, ao mesmo tempo em que ampara e integra, estabelecendo relações de dependência material e afetiva, deveres e obrigações.

A questão central exposta pela obra diz respeito a como o jovem pode sentir-se adulto ou autônomo no âmbito da coabitação intergeracional. Ao interrogar-se de que maneiras a concepção de "espaço próprio" é elaborada, em oposição ao "espaço dos pais", a autora busca investigar a evolução das relações intrafamiliares por meio das quais os jovens vão construindo sua autonomia e sua identidade adulta.

Para isso, optou por uma abordagem sociológica compreensiva, que tem como base entrevistas individuais. Trata-se de perceber como um jovem adulto passa a reivindicar o direito de ter seu próprio espaço no interior do domicílio familiar e o direito de ter seus próprios princípios de organização do quarto, desde a arrumação dos objetos à regulação de quem entra e dos horários reservados para diferentes atividades. A autora observa que as reivindicações dos jovens adultos não são conquistadas sem conflitos, uma vez que existem tensões entre as aspirações de autonomia e as obrigações impostas pela vida em comum. É interessante que o gerenciamento dos conflitos implica estratégias de separação e distinção dos domínios particulares e comuns, que se impõem perante as diferentes necessidades de privacidade.

As entrevistas foram realizadas com cinqüenta estudantes entre 19 e 27 anos, em sua maioria de classe média, em Paris e região. Num primeiro momento, o objetivo foi recolher os discursos dos sujeitos sobre a partilha cotidiana do espaço familiar em seu sentido mais amplo, levantando informações sobre o espaço, o uso do tempo e as diversas relações entre os jovens adultos e seus pais, irmãos, amigos(as) e namorados(as). Num segundo momento, tratou-se de apreender o modo como os jovens vivenciam seu "espaço próprio, na casa dos pais", entre dependências objetivas e aspirações de independência e autonomia. As entrevistas foram realizadas na casa dos informantes, o que permitiu à pesquisadora visitar e observar o espaço doméstico e os diversos elementos que compõem o quarto dos estudantes. Nos casos em que isso não foi possível, os participantes foram solicitados a desenhar uma planta da habitação.

A obra é dividida em duas partes. A primeira trata especificamente do domínio privado dos jovens adultos coabitantes: o quarto. Nessa seção, Ramos analisa até que ponto o "espaço próprio" dentro da casa dos pais é um espaço pessoal. O primeiro capítulo trata de uma de suas funções: a separação em relação à convivência cotidiana com os demais membros da família. Aqui são explorados os sentidos e as motivações para sua efetivação, as estratégias de delimitação do privado por parte dos jovens e os pontos de conflito entre pais e filhos.

O segundo capítulo trata da função do quarto como experimentação e criação de si, por meio da ação dos ocupantes sobre o espaço físico. A autora observa como, por intermédio de sua relação com os objetos, a identidade é construída. Trata-se de um duplo esforço de análise: por um lado, o sentido que as inscrições materiais têm para o observador que está fora do âmbito íntimo; por outro lado, o sentido que os sujeitos atribuem às suas próprias ações. É precisamente nessa parte que se encontra a originalidade do trabalho de Elsa Ramos: a sobreposição de duas leituras simultâneas sobre o mesmo campo de interlocução simbólico e material. Os objetos pessoais, os móveis que fazem parte desse espaço e sua disposição são dotados de sentidos que refletem uma identidade expressada nos gostos pessoais, naquilo que é mostrado ou apenas sugerido. O quarto, entretanto, não é imutável no tempo: possui também uma história própria, que integra a memória familiar e pessoal, parte importante do processo de constituição da identidade. As relações familiares revelam-se na transformação do espaço, na descrição de como era antes e nos projetos de modificações para o futuro: "O desejo de uma re-apropriação do espaço do quarto, de uma re-atualização, segue-se à tomada de consciência de uma evolução pessoal. A transformação permite distinguir dois períodos da vida do jovem adulto. Transformar o quarto é também um meio de se distanciar em relação aos pais" (p. 112).

A segunda parte trata das três dimensões da construção do "espaço próprio": a delimitação daquilo que pertence ao jovem estudante, daquilo que é pertinente aos pais e daquilo que diz respeito ao coletivo familiar. Nessa seção são analisadas as relações de negociação das regras de convivência entre pais e filhos. No capítulo três, a autora identifica o ordenamento do espaço (os objetos, o lugar de cada um, o que se pode fazer em cada um dos cômodos) e do tempo (os horários, as freqüências, a duração das atividades) fixado pelos pais. As relações familiares são observadas dentro da perspectiva de negociação dessas regras: por um lado, de que maneiras elas são estabelecidas e sua obediência é cobrada; por outro lado, as estratégias empregadas pelos jovens no sentido de subverter ou alterar a ordem e ampliar sua autonomia.

O quarto capítulo trata da construção do mundo pessoal no interior da esfera doméstica. Aqui a autora retoma a função de separação do quarto como local privilegiado do privado, porém estende a análise além dos limites físicos da habitação, para as relações que os jovens adultos mantêm fora da casa, nomeadamente as relações amorosas, as relações de amizade e as saídas, encontros e atividades de lazer. Esse universo de relações pessoais na maior parte das vezes não se deseja partilhar com os pais; desse modo, os jovens adultos desenvolvem estratégias para proteger esse mundo essencialmente privado das interferências familiares. Nesse capítulo, Ramos explora as motivações por trás da interdição do privado, especialmente no âmbito das relações amorosas, que envolvem os tabus sobre a sexualidade, os conflitos na convivência com namo- dos(as) e amigos(as), o uso do telefone, os horários de voltar para casa à noite, entre outros aspectos. O texto é um interessante mergulho nos aspectos mais íntimos das relações entre pais e filhos, explorando os conflitos entre os modos de pensar dos jovens e das gerações mais velhas, os medos, os embaraços, as justificativas para a necessidade de omitir e esconder determinados comportamentos.

Finalmente, o último capítulo analisa o espaço das relações comuns entre os familiares, em que os jovens adultos se sentem como "iguais" perante os pais. Esse espaço é constituído por meio da participação pessoal na construção da coesão familiar. É no desenrolar das atividades em grupo, como assistir à televisão ou à hora das refeições, que a identidade familiar é afirmada. O sentimento despertado pelos hábitos familiares é o de "nossa" casa, "nossa" família. A principal característica dessa dimensão das relações entre pais e filhos é a convivência, os momentos de agregação dos diferentes participantes, em que o grupo se afirma como unidade, e a pertença ao "nós" é validada entre os próprios membros. Segundo a autora, esse aspecto é extremamente importante para a constituição da identidade autônoma do indivíduo jovem, uma vez que é no decorrer da convivência que as transformações das regras são negociadas, o que permite aos jovens, tanto quanto aos pais, acomodar as mudanças inerentes ao amadurecimento e às necessidades de adaptação do grupo familiar.

Por meio do estudo aprofundado das relações familiares, Elsa Ramos apresenta indícios importantes para a compreensão dos fatores que possibilitam a convivência prolongada de pais e filhos no mesmo espaço doméstico. Num contexto em que há maior liberdade para experimentar diferentes relações afetivas e o exercício da sexualidade antes do matrimônio e da conquista de uma residência própria, Rester enfant, devenir adulte provoca muitas reflexões sobre o papel da família na mediação entre o imperativo da privacidade e as necessidades do indivíduo no processo de construção da autonomia.

Notas

  • 1
    . Ver Jean-Claude Chamboredon, "Adolescence et post-adolescence: la 'juvénisation' ", em
    Adolescence terminée, adolescence interminable, organizado por Anne Marie Alléon
    et al. (PUF, Paris, 1985).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Nov 2005
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