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Apresentação

Apresentação

Vera da Silva Telles

Em 1999, é publicado na França o Retour sur la condition ouvrière (De volta à condição operária) de Michel Pialoux e Stéphane Beaud. Com base em mais de quinze anos de pesquisa sobre a empresa Peugeot em Sochaux-Montbéliard, os autores apresentam uma fina etnografia da condição operária sob o impacto da chamada reestruturação produtiva em curso desde meados dos anos de 1980, mais intensamente nos de 1990. Pialoux iniciou a pesquisa em 1981 e Beaud a ela se integrou em 1988, ou seja, desde o início do processo. Sob o foco crítico dos autores está a "decomposição da classe operária" em suas várias dimensões e as variadas formas de resistência ao longo desses anos. A questão, ao mesmo tempo sociológica e política, proposta ao debate: o que vem a ser a condição operária "após a classe operária", sem os suportes materiais, políticos e simbólicos oferecidos pela "classe", tal como esta foi construída durante décadas de lutas sociais, a qual se fez ver e reconhecer como "classe organizada" no plano sindical e no plano político, conquistando os direitos e as garantias sociais que vêm sendo erodidos nos últimos anos.

É um trabalho sociológico de envergadura, envolvendo temas em geral tratados em campos disciplinares distintos, mas que aqui comparecem como dimensões estruturantes da condição operária: trabalho, escola, moradia. Também a diferença entre gerações, e a ruptura na transmissão da herança operária, uma herança sobretudo política. Em torno das gerações mais jovens, vão se perfilando as diversas facetas que definem a atual condição operária: os novos dispositivos produtivos e o trabalho precário, a democratização do acesso escolar e as promessas frustradas de progresso social, a segregação espacial e os estigmas associados às condições degradadas de moradia, o racismo renovado e a discriminação que atinge os jovens de famílias imigradas, tudo isso junto podendo entrar em ponto de combustão nas rebeliões urbanas que se vêm repetindo nas periferias francesas nos últimos tempos. Foi justamente uma rebelião ocorrida em Montbéliard em 2000 o ponto de partida para o livro Violences urbaines, violence sociale: genèse des nouvelles classes dangereuses (Violências urbanas, violência social: gênese das novas classes perigosas), publicado em 2003. E é por referência aos acontecimentos recentes na França, de outubro-novembro de 2005, que os autores iniciam a discussão no artigo "Rebeliões urbanas e a desestruturação das classes populares (França 2005)", que abre este número da revista Tempo Social.

Na entrevista realizada em janeiro de 2006, esses temas são retomados. E o leitor poderá situá-los por referência aos percursos e às questões de pesquisa que levaram os autores, em especial Michel Pialoux, a uma aventura sociológica pouco usual no atual ambiente acadêmico: uma pesquisa etnográfica de longa duração para tratar de um tema que, já desde meados dos anos de 1980, havia saído do foco das atenções políticas e também da agenda da pesquisa acadêmica. No posfácio da segunda edição do Retour... (Fayard, 2004), os autores comentam que, ao ser publicado em 1999, o livro teve pouca repercussão na imprensa escrita e televisiva. A "questão operária" parecia não interessar a mais ninguém, tema considerado obsoleto diante das inovações tecnológicas e dos pretensos imperativos de modernização impostos pela terceira revolução industrial. Em 2000, a condição operária passaria a ganhar um renovado interesse, porém por vias inesperadas. O sucesso de público e crítica do filme de Laurent Cantet, Ressources humaines1 1 O filme, Recursos humanos, saiu no Brasil em 2001. Trata do conflito entre um pai operário não qualificado e um filho com diploma comercial e que logo descobre o implacável universo de uma empresa regida pelos novos procedimentos de gestão das relações de trabalho. , fez com que a condição operária voltasse ao debate. Filmes e documentários sobre o tema começaram a se suceder na França. Resenhas do livro multiplicaram-se, debates com os autores foram organizados em diversos lugares na França, com uma afluência significativa de operários, de "velhos" militantes e também jovens em situação de trabalho precário (cf. Beaud e Pialoux, 2004, pp. 442-447). E os acontecimentos recentes no cenário francês terminaram por dar ressonância às questões tratadas pelos autores, trazendo à tona a atualidade da condição operária.

O dossiê deste número da revista Tempo Social sobre a "sociologia da condição operária" tem o objetivo de contribuir com esse debate. E sobretudo trazer ao conhecimento dos leitores brasileiros a obra de Michel Pialoux e Stéphane Beaud, até agora de conhecimento restrito aos que tiveram acesso a seus livros e publicações em revistas francesas2 2 Ver as principais publicações dos autores listadas ao final deste texto. . Referência obrigatória para os pesquisadores que tratam da condição operária na atualidade, foram também poucos os que puderam se beneficiar da estadia de Pialoux no Brasil no segundo semestre de 1992, promovida pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na ocasião, Pialoux ministrou, junto com José Sérgio Leite Lopes (Museu Nacional – UFRJ) e José Ricardo Ramalho (UFRJ), o curso "Sociologia histórica e história antropológica: temas sobre a classe trabalhadora". Fez também uma apresentação no grupo de Sindicalismo do Encontro Anual da Anpocs. Os livros de Pialoux e Beaud ainda não foram traduzidos no Brasil. Parte dessa lacuna foi preenchida com a tradução brasileira do livro organizado por Pierre Bourdieu, A miséria do mundo (Vozes, 1997), em que os autores redigiram três capítulos. E, mais recentemente, com o livro organizado por Pierre Encrevé e Rose-Marie Lagrave, Trabalhar com Bourdieu (Bertrand Brasil, 2005), em que os autores apresentam as questões que estiveram na origem da pesquisa realizada em Sochaux-Montbéliard, bem como as orientações e os procedimentos de investigação sociológica.

Neste dossiê, Olivier Masclet e Angelina Peralva lançam ao debate, sob perspectivas diferentes, questões tão importantes quanto ainda pouco consideradas para bem situar a crise das periferias francesas, tão pulsante (mais uma vez) nas rebeliões urbanas de 2005: uma representação política esvaziada em sua capacidade de dar forma e expressão pública aos impasses atuais da sociedade francesa, seja pela recusa dos partidos de esquerda em dar voz aos jovens de famílias imigradas, apesar de sua importância na renovação da vida associativa nos bairros periféricos (Masclet), seja pela crise que mina as bases da democracia atual, desafiada pela globalização e pela figura do imigrante estrangeiro, que desnudam os limites dos parâmetros nacionais para a regulação democrática dos conflitos sociais (Peralva).

Nos quatro artigos que compõem a segunda parte do dossiê, os autores estabelecem um profícuo diálogo com Pialoux e Beaud, e abrem um debate renovado sobre a atual condição operária no Brasil, discutindo as formas sempre singulares pelas quais os trabalhadores elaboram a experiência operária na falta das referências coletivas de "classe" (Robert Cabanes); os efeitos sobre o trabalho e os trabalhadores da "flexibilidade à francesa" aplicada na Peugeot Citroën instalada no Rio de Janeiro em 2001 (José Ricardo Ramalho e Marco Aurélio Santana); o surgimento de um novo tipo de operário, o teleoperador, no bojo do processo de terceirização das empresas ao longo das duas últimas décadas (Ruy Braga); os descompassos e conflitos entre duas gerações de operários metalúrgicos no ABC paulista em função do aumento da escolaridade dos mais jovens e das suas frustrações em relação às expectativas de ascensão profissional (Kimi Tomizaki).

Na terceira parte, "Perspectivas em debate", os autores exploram outras linhas de investigação, ora indagando acerca da experiência social plasmada sob a égide do trabalho precário (Vera Telles), ora fazendo render a perspectiva investigativa aberta por E. P. Thompson em seu A formação da classe trabalhadora na Inglaterra (Alexandre Fortes), ora investindo na renovação da história social do trabalho em meio ao considerável legado de estudos sobre trabalho e trabalhadores no Brasil (Antonio Luigi Negro e Flávio Gomes), e ora testando outras formas de conhecimento sobre a condição operária, a partir de uma pesquisa co-produzida com os trabalhadores no setor de enfermagem em um hospital público psiquiátrico em Buenos Aires, Argentina (Alberto L. Bialakowsky e equipe).

Esperamos que esse conjunto de artigos, fazendo eco à discussão lançada por Pialoux e Beaud sobre a atualidade da "questão operária", contribua para ampliar o debate, dando ressonância a esse exercício de uma renovada sociologia da condição operária que os colaboradores deste número da revista Tempo Social oferecem aos leitores brasileiros.

Principais publicações de Michel Pialoux e Stéphane Beaud

Livros

AMRANI, Younes & BEAUD, Stéphane. (2004), Pays de mallheur! Un jeune de cité écrit à un sociologue. Paris, La Découverte.

BEAUD, Stéphane. (2002), 80% au bac et après? Les enfants de la démocratisation scolaire. Paris, La Découverte.

BEAUD, Stéphane & PIALOUX, Michel. (2003), Violences urbaines, violence sociale: genèse des nouvelles classes dangereuses. Paris, Fayard.

_____. (2004), Retour sur la condition ouvrière: enquête aux usines Peugeot de Sochaux-Montbéliard. 1ª edição 1999. Paris, Fayard.

Artigos

BEAUD, Stéphane. (1993), "Le rêve de l'intérimaire". In: BOURDIEU, Pierre (org.). La misère du monde. Paris, Seuil, pp. 349-365.

_____. (1996), "Un ouvrier, fils d'immigré, 'pris' dans la crise: rupture biographique et configuration familiale". Genèses, 24: 5-32, set., Paris.

BEAUD, Stéphane & PIALOUX, Michel. (1997), "Permanentes e temporários". In: BOURDIEU, Pierre (org.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, pp. 309-320.

PIALOUX, Michel. (1992), "Alcool et politique dans l'atelier: une usine de carrosserie dans la décennie des années 1980". Genèses, 7: 94-128, mar., Paris.

_____. (1995), "L'ouvrier et le chef d'équipe ou comment parler du travail?". Travail et emploi, 62, pp. 4-39, Paris.

_____. (1997a), "A perturbação do delegado sindical". In: BOURDIEU, Pierre (org.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, pp. 371-388.

_____. (1997b), "O velho operário e a nova fábrica". In: BOURDIEU, Pierre (org.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, pp. 321-338.

PIALOUX, Michel & BEAUD, Stéphane. (2005), "Etnografia operária e sociologia: a composição de uma equipe". In: ENCREVÉ, Pierre & LAGRAVE, Rose-Marie (orgs.). Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

PIALOUX, Michel & COROUGE, Christian. (1984-1985). "Chronique Peugeot". Actes de la recherche en sciences sociales, I (52-53): 89-95, jun. 1984; II (54): 57-69, set. 1984; III (57): 108-128, jun. 1985; IV (60): 72-74, set. 1985.

Vera da Silva Telles é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, Cenedic-USP. E-mail: tellesvs@uol.com.br.

  • 1
    O filme,
    Recursos humanos, saiu no Brasil em 2001. Trata do conflito entre um pai operário não qualificado e um filho com diploma comercial e que logo descobre o implacável universo de uma empresa regida pelos novos procedimentos de gestão das relações de trabalho.
  • 2
    Ver as principais publicações dos autores listadas ao final deste texto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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