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Viagem a Montbéliard

Journey to Montbéliard

DIÁLOGOS COM PIALOUX E BEAUD

Viagem a Montbéliard

Journey to Montbéliard

Robert Cabanes

RESUMO

No final de janeiro de 2005, Michel Pialoux levou Vera Telles e Robert Cabanes a uma visita a Sochaux-Montbéliard, região onde está instalada, desde os anos de 1930, a fábrica matriz da Peugeot. Os dois pesquisadores, ela brasileira, ele francês, parceiros em uma pesquisa realizada nas periferias da cidade de São Paulo, interessados no contraponto Brasil-França, queriam então conhecer os lugares, as situações e os personagens que comparecem nos livros e nos artigos de Michel Pialoux e Stéphane Beaud. Neste texto, Robert Cabanes faz o relato dessa visita. No tom quase pessoal de um diário de campo, a partir das "histórias simples" recolhidas, aqui e lá, o autor lança questões pertinentes aos lugares e aos sentidos do trabalho no mundo atual.

Palavras-chave: Montbéliard, França; São Paulo, Brasil; Condição operária; Experiência do trabalho; Expressão de si fora do trabalho.

ABSTRACT

At the end of January 2005, Michel Pialoux took Vera Telles and Robert Cabanes on a visit to Sochaux-Montbéliard, a region home to Peugeot's head factory since the 1930s. The two researchers – she Brazilian, he French, partners in a research project conducted in the outskirts of São Paulo and interested in the Brazil-France contrast – wanted to learn on the ground about the places, situations and people appearing in the books and articles published by Michel Pialoux and Stéphane Beaud. In this text, Robert Cabanes produces a report on this visit. Using the almost personal tone of a field diary, based on the "simple stories" collected during the visit, the author discusses some of the key issues relating to the places and meanings of work in today's world.

Keywords: Montbéliard, France; São Paulo, Brazil; Labour conditions; Work experience; Self-recognition outside of work.

No final de janeiro de 2005, Michel Pialoux levou Vera Telles e Robert Cabanes a uma visita a Sochaux-Montbéliard, região onde está instalada, desde os anos de 1930, a fábrica matriz da Peugeot. Os dois pesquisadores, ela brasileira, ele francês, parceiros em uma pesquisa realizada nas periferias da cidade de São Paulo, interessados no contraponto Brasil-França, queriam então conhecer os lugares, as situações e os personagens que comparecem nos livros e nos artigos de Michel Pialoux e Stéphane Beaud.

* * *

Michel Pialoux nos leva, Vera e eu, para visitar "seu campo". A expressão é detestável, mas todos os antropólogos a empregam. Herança colonial, símbolo de uma apropriação pesada: nunca dois no mesmo campo, apenas um único olhar sobre a mesma população. Herança ocidental, também, de uma relação de "clientela": é conveniente responder às questões levantadas por um estrangeiro, pesquisador seguro de si, dominador ou tímido, pois ele é de outra parte e está situado num nível mais elevado da hierarquia social; mesmo que seja pouco provável que se venha a ter necessidade disso, é preferível manter boas relações. Mas esse "campo" é especial: há 22 anos Michel o percorre em todos os sentidos, acompanhado há dezesseis anos por seu parceiro Stéphane Beaud. Algo bastante raro na pesquisa antropológica, que se faz sobretudo na intensidade do investimento, mais do que na longa duração.

Nossa idéia – de Vera, brasileira, e minha, francês –, que trabalhamos na cidade de São Paulo, no Brasil, há igualmente mais de vinte anos, era cruzar nossos olhares com o de Michel, em um meio urbano de trabalhadores que ele começou a conhecer em 1983. Ver a diferença dos aspectos urbanos, o hábitat, a rua, o supermercado, o asfalto e a fábrica, sabendo que aí vivem as populações descritas nos seus livros. Mas, cruzar nossos olhares, por quê? Porque afirmamos, ainda que vagamente, que a mundialização do capital poderia acarretar a do trabalho, e porque sabemos que os sindicatos estão enfraquecidos e os trabalhadores dominados, desorientados, reduzidos à sua condição sem os antigos referenciais de classe. E porque nos perguntamos, enfim, se o trabalho poderia organizar-se diante da onipotência do capital.

Estranha profissão a de sociólogo ou antropólogo, missionários de uma época em que, certamente, a palavra justa não mais se impõe, mas seu trabalho consiste em descobri-la, suscitá-la em seus interlocutores, aos pedaços ou inteiramente explicitada, para recompô-la e difundi-la ao mundo inteiro, se possível. Tornar a dizer "ao povo" com clareza o que ele nos informa na confusão. Conhecemos bem todas as traições dessa passagem da confusão à clareza, mas é sempre nesse tipo de configuração que as "ciências humanas e sociais" trabalham. Ao menos para a parcela da geração formada na antiga disciplina de "moral e sociologia" e que aprendeu – na França com o crescimento sindical e social dos "trinta gloriosos anos" do pós-guerra; no Brasil com o fim do regime militar (1984) e a vitória do PT nas eleições presidenciais (2002) – que o movimento operário poderia ser um poderoso produtor de civilização. A quase reviravolta da situação na história recente do Brasil incita ainda mais a nos interrogarmos sobre o que se passa do lado do trabalho, sobre o que resiste e se recusa a morrer, sobre o que se recompõe.

Por certo, entre São Paulo (10 milhões de habitantes) e Montbéliard as diferenças são muitas, ainda que as moradias de tipo HLM (correspondente francês aos conjuntos habitacionais do BNH) existam em toda parte, mas bem menos no Brasil, onde a autoconstrução de moradias individuais superou amplamente a habitação planificada, dando uma imagem mais forte de improvisação e de pobreza. Os centros comerciais na periferia das grandes cidades brasileiras ou nas pequenas capitais provinciais francesas nem sempre têm o mesmo standing, mas o parentesco de suas arquiteturas funcionais fazem deles os símbolos visuais mais seguros de nosso grande ideal comum de civilização, o consumo. Consumo mais reduzido nas metrópoles brasileiras, a julgar pela penúria dos equipamentos públicos, pelo estado geral das ruas, pela densidade de seus trabalhadores permanentes: camelôs fixos ou ambulantes, "flanelinhas", coletores de lixo, mendigos. Nada dessa desordem e dessa animação nas cités das periferias francesas, ainda que em alguns lugares se fixem "grupos de discussão" e se permita observar o desemprego, ao vivo.

Mas quais são as pessoas, quais os problemas, as esperanças, nesses lugares? Conhecemos três dessas pessoas, que Michel escolheu por estarem próximas dos 50 anos de idade e por terem vivido a passagem da "classe" à "condição" operária.

Primeiro, Christian, seu amigo desde 1983, que nos alojava. Cada um deles já escreveu sozinho, os dois já escreveram juntos1 1 Christian Corouge e Michel Pialoux, "Chronique Peugeot", Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, 1984/1985, n. 52-53; 57; 60 (N.R.T.). ... Não vou contar tudo isso de novo, mas apenas dar minha impressão pessoal, menos sobre o indivíduo ou o homem – apesar de todo o seu valor – e mais sobre a necessidade, para nós sociólogos ou antropólogos, de captar a dimensão pessoal, a única que pode dar conta de um comportamento, de uma ação, de um investimento coletivos. Evidentemente, Christian é um "caso" ideal para nós, pois desde muito cedo se tornou uma pessoa combativa, desde muito jovem, e continua até hoje...

Temos a impressão de estar diante de um homem (de 55 anos) cujo prazer de viver só pôde manter-se pelo encadeamento de combates pessoais. Combate pelo reconhecimento profissional como jovem operário, OS (ouvrier specialisé)2 2 Operário em postos não-qualificados (N.R.T.). , o que passa primeiro pela redefinição do trabalho, que é quase sempre, objetivamente, um "trabalho imbecil". É preciso então fazer tudo para torná-lo mais suportável, primeiro na discussão com os chefes de nível mais baixo, depois subindo na cadeia hierárquica: redefinição de tarefas, pausas, reconhecimento pelo salário... Para isso é preciso evitar que a relação com os colegas caia numa rotina indiferente, tensa ou conflituosa, é preciso sempre pensar numa melhora, ir adiante... Pensar-se a si mesmo é impensável sem que se pense no coletivo: o indivíduo não é isolável. Tensão permanente, portanto, no coletivo dos pares em primeiro lugar, do qual cada um sempre pode furtar-se, buscando o prazer noutra parte que não no trabalho, a menos que o prazer de tornar-se um "pelego" seja mais excitante. E, quando a estrutura sindical que permitiu essa ação se fragiliza, quando a função de "delegado sindical" que Christian levara a peito durante muitos anos desaparece, quando a empresa recusa ouvir e demite, quando o coletivo se desfaz, o que resta senão as crises e as depressões, que são sempre ditas como pessoais, porque os indivíduos não são capazes de se adaptar às famosas "mudanças sociais"? É então que se intensificam todas as angústias oriundas das violências sofridas e que, antes, a ação coletiva permitira controlar. Nesse momento o laço conjugal, exposto duramente à prova, pode romper-se ou solidificar-se.

Se a demissão tivesse ocorrido, como foi o caso para muitos, teria sido necessário partir novamente do zero, reiniciar a vida. Christian, felizmente, não foi demitido e pôde dar um novo salto, contando com a idade, a antigüidade, a experiência, com seu otimismo no pessimismo. Pôde passar da linha de montagem ao retoque manual de carrocerias defeituosas, um trabalho de artesão quase independente, caminho certo de uma satisfação imediata, pois todos os seus atos de trabalho exigem imaginação... O prazer coletivo não existe mais, e o de artesão tornou-se de uma raridade absoluta em toda a fábrica... é inútil sonhar.

Salvo dessa maneira no plano do trabalho, Christian, mesmo assim insatisfeito, buscou prazeres derivados e complementares, como abater madeira na floresta, um divertimento tanto mais intenso quanto indefinido, ou definido pelo inconsciente; brincar de avô oferece grandes descobertas; e ler, conversar, polemizar, alimenta sempre aquela fidelidade a si mesmo, suscetível de ser investida (pois nunca se sabe) em toda situação propícia a uma ação coletiva desses "sempre esquecidos" da História que, felizmente, sabem manter-se presentes... Foi assim que Christian apresentou-se a nós, por intermédio de Michel, sonhando com uma aposentadoria antecipada – que ele prefere ao salário –, que lhe fizesse esquecer a fadiga de seu trabalho noturno, e também porque ele se tornou um pouco selvagem.

Akim nos falou menos coisas porque o vimos mais rapidamente. Mas, ao que parece, não hesitou em nos contar sua angústia, porque conhece Michel há muito tempo. Também ele foi delegado sindical e grande redator de panfletos, capaz de exprimir com exatidão e sensibilidade o sentimento coletivo, e não pôde se resignar em ver os ventos mudarem, o sindicato desfazer-se e os delegados serem lançados no esquecimento. Ele continua querendo desempenhar um papel de delegado, que não exerce mais, mas a título pessoal, por sua própria conta e risco; apresenta queixas e move processos contra a empresa, mantendo-se graças a soníferos e remédios. Sair desse ciclo mortífero, que dura já sete ou oito anos, só pode exigir-lhe um imenso esforço, e ele o faria se uma nova perspectiva de emprego se apresentasse. Na sua idade, e no estado de tensão em que se encontra, prefere não dar o salto no escuro, não recomeçar do zero; prefere a segurança que conhece em sua situação atual, mesmo sendo frágil e não duradoura. Solteiro, Akim tem poucos amigos e não é muito velho (45 anos), embora com mais de vinte anos de trabalho na linha de produção, onde permanece ainda hoje, sem promoção, à noite. Mas ele nos dá a impressão de que em um determinado momento, que desconhecemos, mas que se inicia quando descobriu o racismo no sindicato, abriu-se uma ferida que persiste ou aumenta com o encadeamento das infelicidades profissionais e privadas, sem um coletivo em que se agarrar.

Quanto a Bébert, ele suportou por muito pouco tempo o trabalho "imbecil". Lidou com ele com humor, escrevendo, descrevendo cenas e situações de trabalho que faziam seus companheiros, e talvez uma parte de seus "chefes", rir. Até o dia em que, por ocasião da importante greve de 1981, os colegas lhe pediram para escrever sobre esse momento coletivo. E isso acabou se transformando num livro (Grain de sable sous le capot, publicado em 1990, e que deverá reaparecer em 2006 pela Editora Agone, em uma edição revista e ampliada em 120 páginas, dando conta do período pós-1990, e com um prefácio de Michel)3 3 Publicado em 1990 pela editora La Brêche com o pseudônimo Marcel Durand, o título Grain de sable sous le capot (Grão de areia sob o capô) faz referência às práticas de sabotagem fabril freqüentes nas então taylorizadas linhas de produção das grandes fábricas (N.R.T.). . Mas Bébert sempre aplicou, também, outros tipos de tratamento a seu trabalho. Milita nos movimentos libertários: ecologia, direitos do homem, anti-racismo, contra a pena de morte... E cultiva seu "prazer": conheceu quase a metade dos países do mundo viajando como mochileiro, desenha, cozinha, faz artesanato artístico, reinventa seu apartamento com cenários de estações ou de temas, nunca muito caros... Como se o sufocamento de sua expressão no trabalho o lançasse numa proliferação de expressões na vida privada e pública, para recompor fora do trabalho o que se decompõe no trabalho. Bébert parece infatigável; mesmo às vésperas da aposentadoria, não se detém; já é um costume inveterado. Somente a doença ou a morte, como se diz...

Essa "visita" nos parece rica de ensinamentos sob um duplo aspecto. Ela confirma nossas dúvidas, surgidas no Brasil, sobre a insuficiência das abordagens da sociologia ou da antropologia do trabalho, que se reduzem a um estudo da fábrica ou do local de trabalho. Pois essas histórias nos fazem perceber que o que cada um diz remete a uma "esperança de vida", na qual o trabalho tem um lugar preponderante, esperança que parece interdita de expressão no próprio local de trabalho, lugar confiscado, privado, propriedade do capital. Poderíamos dizer que todos os estudos de sociologia do trabalho que não saem do local de trabalho limitam-se a fazer o relato de uma dominação minuciosamente construída, mais ou menos aceitável, mais ou menos adaptável, mais ou menos combatida. Mas, quando as lutas são sufocadas e o sindicalismo é estritamente controlado e reprimido, não é na empresa que se pode encontrar as aspirações operárias. Aqui, nessas histórias, não se trata tanto de lutar por uma posição social – já que, afinal de contas, ela não pode ser mais baixa –, nem por uma mobilidade social que se sabe impossível. Como então apreender essas aspirações no local de trabalho? Como fazê-lo da mesma forma como captamos nessas histórias, em que cada um luta desesperadamente pelo reconhecimento de si, para estar presente a si mesmo, pela idéia que faz de sua honra e de sua dignidade? Não há luta mais íntima (é o que a investigação antropológica permite compreender, seja na França seja no Brasil) e, ao mesmo tempo, mais universal (é o que uma visão dos dois continentes permite pensar). Quantos bilhões de trabalhadores no mundo estão envolvidos nesse combate? E, porque as armas dessa dignidade lhes são recusadas no trabalho, quando se conhece a imensidão dos "recursos de produtividade", para falar como os "executivos" ou os "capitalistas", o que os trabalhadores podem representar? Nessa maneira de produzir riqueza esmagando-os, há uma barbárie que condena a longo prazo uma civilização, não em nome da moral, mas porque ela não pode deixar de suscitar outra civilização alternativa. A menos que se imagine o fim de todas as opções e da história, o que não é impensável, mas que certamente suscitaria os sobressaltos de uma violência ainda desconhecida.

Essa visita nos mostra igualmente a necessidade de suscitar a questão da relação entre trabalho e sindicalismo. O que faz o trabalho para se organizar e se reorganizar? Essa segunda questão é preocupante, pois a repressão sindical ganhou uma amplitude maior e o sindicalismo, os sindicalismos, se retraem, desorientados por essa nova incapacidade e pela baixa de seus efetivos, em todos os países, sobretudo na França. Podemos fazer todas as críticas possíveis a uma ou a outra dessas organizações, mas todos os juízos ficam aquém da observação geral que constata o anacronismo de sua concorrência diante da unidade do capital, que este realiza em cada país ou em escala mundial. E poderíamos levantar uma última questão: estaria ainda a valorização do trabalho na matriz da ação sindical, ou seria ela uma simples negociação dos frutos do trabalho? O desequilíbrio atual da relação de forças parece confiná-la à segunda alternativa, enquanto a expectativa dos trabalhadores permanece sempre centrada na primeira.

No Brasil, em São Paulo, quais são as expectativas? Aqui a classe operária é menos antiga e as pessoas são bem mais facilmente expulsas do trabalho assalariado (dois terços da população ativa de São Paulo vivem do trabalho assalariado; são obrigadas a depositar nele menos expectativas, mas nem por isso ele perde, para as pessoas, seu valor, pois é sua única propriedade).

Ao deixar seu Nordeste natal aos nove anos de idade, Absalão, o mais velho de nove irmãos, torna-se vendedor de rua; depois, freqüenta a escola, trabalha como office-boy e como operário protético. Monta um laboratório, mas os dentistas não o pagam. O acaso de um concurso faz que se torne vigia de prisão aos 25 anos de idade. A observação da violência regulada entre os prisioneiros e da violência sempre intencionalmente desregrada dos guardas (o objetivo de seu posto é favorecer a violência entre prisioneiros) leva-o a constituir um código pessoal de relações, baseado em uma imagem profissional de sua função: reduzir a violência. Convocado pelos prisioneiros como mediador em suas rebeliões armadas, chocado pelo desrespeito à palavra dada por parte do poder carcerário por ocasião das negociações, Absalão acaba sendo ameaçado de morte por ter impedido um acerto de contas entre eles. Mas o que finalmente o tira de circulação é uma atividade sindical que ameaça bloquear as engrenagens bem estabelecidas da administração carcerária. Depois de dezessete anos de trabalho, é despedido. Grande conhecedor de seu bairro, onde participava da vida associativa e política, organiza a coleta seletiva de lixo, primeiro passando de porta em porta, depois recolhendo, em troca de remuneração, o material de todos os coletores de rua, que armazena na garagem de um amigo. Sua participação ativa nas reuniões da municipalidade, que apoiava esse tipo de iniciativa, permite-lhe obter material (prensa de papelão, máquina de lavar e triturar matéria plástica), conseguir um depósito mais amplo e participar do sistema cooperativo municipal. Atualmente, seis pessoas trabalham com ele, além de cerca de quarenta coletores do bairro. A remuneração dos coletores é fixada pelo mercado, conforme o tipo de produto, e a daqueles que trabalham na reciclagem depende das receitas, que não são muito elevadas, mas são suficientes para os investimentos suplementares necessários. Absalão apresenta essa atividade como um trabalho social (que produz emprego), autogerido (a cada um segundo suas necessidades) e que lhe garante um mínimo de reconhecimento social.

Cido, por sua vez, viu-se desde cedo às voltas com o conflito doméstico e aos 12 anos, depois de três anos de escola primária, seguiu o pai no trabalho aventureiro que ele lhe propunha. De cidade em cidade, de fazenda em fazenda, trabalha sucessivamente como vaqueiro, pedreiro, garimpeiro, frentista. Volta sozinho a São Paulo, onde, submetido às vexações da mãe, que tornara a se casar, retoma o mesmo estilo incerto de vida, dormindo na rua ou na casa de amigos(as) ocasionais. Com o casamento, estabiliza-se em uma moradia, mas prossegue o mesmo tipo de trabalho como pedreiro ou condutor de máquinas em canteiros de obras. Só suporta trabalhos mais longos se encontra empregadores que compreendem seu estilo de anarquista moderado. Mas o mercado da construção é cada vez mais ocupado por intermediários (os "gatos") que contratam trabalhos por tarefa, para redistribuí-los a assalariados não registrados, e que eles esquecem freqüentemente de pagar. Quando a injustiça é muito forte, a revolta o anima e o leva a organizar reivindicações nos locais de trabalho perpetuamente mutáveis. Com cerca de 45 anos de idade, no final dos anos de 1990, sempre reduzido a um salário de iniciante, ele recusa o que considera uma humilhação e não trabalha mais senão pelo mínimo necessário à subsistência de sua família de três filhos. Crítico ácido da enormidade das desigualdades sociais e observador lúcido da dificuldade de união das classes populares, por um momento militante da extrema esquerda, ele só encontra uma saída na ajuda associativa aos jovens de rua, situação que conhece bem, e na luta pela indenização das pessoas atingidas pela destruição de suas casas.

Em contraponto, vemos a trajetória de sua esposa, operária-modelo e dócil que aos 14 anos entra na indústria da confecção, e se revela uma costureira excepcional; após seis meses de trabalho, já obtém o máximo da remuneração de uma operária, entre 1972 e 1981, quando então se casa e muda de cidade. Ao retornar a São Paulo, em 1984, e mais particularmente a partir de 1990, o desenvolvimento da subcontratação, a baixa das remunerações, a desonestidade dos empregadores a obrigam a trabalhar em casa, até o dia em que, junto com outras sessenta, sua residência é demolida por uma suposta ilegalidade de ocupação de terreno, destruição rapidamente reconhecida como ilegal pela justiça, mas que não obriga nem os poderes públicos nem o falso proprietário a indenização alguma. Voltando ao trabalho fabril e acumulando uma dupla jornada de trabalho para poder reconstruir a casa, contrai várias doenças profissionais (desvio da coluna vertebral, lesões por esforços repetidos nos punhos, nos braços, nos ombros, nos joelhos), que resultam em uma licença por invalidez. Desde o período em que trabalhava em casa, quando já havia as ameaças de destruição das residências, até hoje, ela transfere para o trabalho no bairro uma revolta até então pouco expressa. Tanto ela como Cido se mobilizam e lideram a luta por uma indenização coletiva, e se tornam as referências de solidariedade do bairro.

Como não sentir – e fortemente – nessas histórias simples, nos dois continentes, a angústia de uma regressão da civilização, de uma desconsideração do trabalho, de um impasse?

Texto recebido e aprovado em 15/3/2006.

Tradução de Paulo Neves

Revisão técnica de Vera Telles

Robert Cabanes é pesquisador do Institut de Recherche pour le Développement – IRD, na França. E-mail: robert.cabanes@wanadoo.fr.

  • 1
    Christian Corouge e Michel Pialoux, "Chronique Peugeot",
    Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, 1984/1985, n. 52-53; 57; 60 (N.R.T.).
  • 2
    Operário em postos não-qualificados (N.R.T.).
  • 3
    Publicado em 1990 pela editora La Brêche com o pseudônimo Marcel Durand, o título
    Grain de sable sous le capot (Grão de areia sob o capô) faz referência às práticas de sabotagem fabril freqüentes nas então taylorizadas linhas de produção das grandes fábricas (N.R.T.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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