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A herança operária entre a fábrica e a escola

Working class heritage between school and factory

Resumos

Este artigo discute os efeitos do fenômeno do alongamento da escolarização nas classes populares por meio do caso específico de duas gerações de metalúrgicos da região do ABC Paulista: aqueles que foram jovens no final da década de 1970 e os jovens do final da década de 1990. A pesquisa de campo foi realizada na fábrica da Mercedes-Benz mediante observação, pesquisa em arquivos e coleta de depoimentos - 52 entrevistas de caráter biográfico. A situação de alongamento dos estudos dos jovens da classe operária é vivenciada de maneira ambígua por pais e filhos. As expectativas de ascensão profissional alimentadas por esses jovens não se têm concretizado, apesar do aumento da escolaridade. Além disso, a defasagem entre a experiência escolar de pais e filhos parece criar uma série de conflitos entre as duas gerações.

Metalúrgicos; Escolarização; Gerações; Trabalho; Transmissão


This article discusses the effects of extending the duration of school education among the working class, focusing on the specific case of two generations of steelworkers from the ABC region of São Paulo: those who were students at the end of 1970s and those at school at the end of the 1990s. Field research was conducted in the Mercedes-Benz factory, using direct observation, archival research and 52 biographical interviews. The prolongation of school education among working class youngsters is experienced ambivalently by parents and children alike. The hopes for career advancement nurtured by these youngsters have failed to materialize, despite the increase in schooling. Furthermore, the difference between the school experiences of parents and children seems to have led to a series of conflicts between the two generations.

Steelworkers; Schooling; Generations; Work; Transmission


DIÁLOGOS COM PIALOUX E BEAUD

A herança operária entre a fábrica e a escola

Working class heritage between school and factory

Kimi Tomizaki

RESUMO

Este artigo discute os efeitos do fenômeno do alongamento da escolarização nas classes populares por meio do caso específico de duas gerações de metalúrgicos da região do ABC Paulista: aqueles que foram jovens no final da década de 1970 e os jovens do final da década de 1990. A pesquisa de campo foi realizada na fábrica da Mercedes-Benz mediante observação, pesquisa em arquivos e coleta de depoimentos – 52 entrevistas de caráter biográfico. A situação de alongamento dos estudos dos jovens da classe operária é vivenciada de maneira ambígua por pais e filhos. As expectativas de ascensão profissional alimentadas por esses jovens não se têm concretizado, apesar do aumento da escolaridade. Além disso, a defasagem entre a experiência escolar de pais e filhos parece criar uma série de conflitos entre as duas gerações.

Palavras-chave: Metalúrgicos; Escolarização; Gerações; Trabalho; Transmissão.

ABSTRACT

This article discusses the effects of extending the duration of school education among the working class, focusing on the specific case of two generations of steelworkers from the ABC region of São Paulo: those who were students at the end of 1970s and those at school at the end of the 1990s. Field research was conducted in the Mercedes-Benz factory, using direct observation, archival research and 52 biographical interviews. The prolongation of school education among working class youngsters is experienced ambivalently by parents and children alike. The hopes for career advancement nurtured by these youngsters have failed to materialize, despite the increase in schooling. Furthermore, the difference between the school experiences of parents and children seems to have led to a series of conflicts between the two generations.

Keywords: Steelworkers; Schooling; Generations; Work; Transmission.

Introdução

No ano de 1978 acho que nós não passamos uma única semana sem fazer greve até dezembro.

Fazíamos duas, três greves por semana. Era greve por qualquer coisa, deu a louca no mundo!

A diretoria meteu na cabeça que era boa, patrão gritava, nego parava...

LULA, em DANTAS (1981, pp. 44-45).

Este trecho da entrevista de Lula, de 1981, possivelmente acione as imagens mais recorrentes no imaginário nacional a respeito do grupo que se convencionou chamar de "metalúrgicos do ABC", sobretudo depois da vitória de Lula nas eleições de 2002, quando a mídia televisiva reproduziu repetidamente as imagens das "grandes greves" da categoria.

A onda grevista, deflagrada em maio de 1978, na Scania, que rapidamente se espalhou por toda a região do ABC Paulista – surpreendendo tanto o patronato como o Estado e até mesmo os diretores do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo –, deu início a um processo que acabou por redefinir o espaço social e político ocupado pela categoria metalúrgica na sociedade brasileira (cf. Abramo, 1999).

Entre as várias imagens do período, existe uma que há muito me chamava a atenção: uma assembléia da categoria no estádio Primeiro de Maio, em São Bernardo do Campo, sobrevoada pelos helicópteros do exército, com soldados apontando metralhadoras contra os trabalhadores. São muitos e muitos rostos de metalúrgicos, cujas existências foram eternizadas por aquelas imagens, mas cujas trajetórias prosseguiram depois delas. Onde estariam eles depois de tantos anos? Ainda seriam metalúrgicos? Haviam se casado? Tiveram filhos? Se os tiveram, como os educaram? Seriam seus filhos também metalúrgicos? Qual seria atualmente sua opinião (e de seus filhos) sobre o movimento grevista? E sobre o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC? Sobre o PT?

Assim, a pesquisa que deu origem a este artigo foi concebida como uma interrogação sobre as transformações vivenciadas pelos trabalhadores metalúrgicos do ABC ao longo das décadas de 1980 e 1990 (cf. Tomizaki, 2005). Inspirada nas pesquisas de Michel Pialoux e Stéphane Beaud, e focalizando as transformações ocorridas no interior da fábrica e também quanto às exigências de qualificação profissional e escolaridade, esta pesquisa desenvolveu-se em torno do grupo operário, de sua história, de seu modo de construção e transformação. A exemplo desses autores, procurei compreender as práticas operárias em seu enraizamento histórico e em seus diferentes níveis: a história coletiva da fábrica no interior da qual se constituem as relações entre os trabalhadores, a história de diferentes gerações, a história dos diversos grupos profissionais, assim como as histórias individuais imbricadas nessa série de histórias coletivas (cf. Beaud e Pialoux, 1999).

Para tanto, optei por não assumir como ponto de partida uma definição preliminar da categoria metalúrgica, que, em tese, pode parecer bastante óbvia: trabalhador metalúrgico é todo aquele que ocupa um posto de trabalho em uma empresa desse setor. Em vez de adotar essa definição objetiva como princípio, pareceu-me mais rica a interrogação sobre como se deu o trabalho de agrupamento, inclusão e exclusão, que produziu essa categoria. Assim, tomei como objeto de estudo a própria formação desse grupo social num dado período, examinando como ele pôde se formar explicitamente diante da sociedade mais ampla, dotando-se de um nome, de organizações, de porta-vozes, de sistemas de representação e valores (cf. Boltanski, 1982).

Necessário foi, portanto, conceber essa categoria como um grupo que se repensa e se refaz cotidianamente nos seus diversos embates, desde os mais amplos (acordos coletivos, campanhas salariais, políticas sindicais) até as microssituações (as disputas nos locais de trabalho, a relação entre pais e filhos, a educação familiar ou escolar). Nesse sentido, a abordagem geracional mostrou-se bastante apropriada aos fins desta pesquisa, visto que ela possibilita uma análise dotada de movimento no tempo e no espaço, o que impede a cristalização de uma interpretação única sobre o grupo estudado, ressaltando a relação entre aqueles que, em suas disputas cotidianas, podem definir suas continuidades e rupturas: os velhos e os jovens (cf. Bourdieu, 1984).

Logo no início da pesquisa, a fábrica da DaimlerChrysler em São Bernardo do Campo, ainda conhecida como Mercedes-Benz, despontou como um campo empírico especialmente rico, visto que, na composição do seu grupo de trabalhadores, existe um espaço importante de relações intergeracionais. De fato, essa montadora desenvolveu, desde o início de suas atividades no Brasil, uma política de formação de mão-de-obra concretizada pelo Senai da empresa, que seleciona seus alunos entre os filhos, sobrinhos, netos ou irmãos dos trabalhadores, e, ao mesmo tempo, uma política de contratação que, privilegiando os jovens que estudaram na escola profissional da empresa, forma novas gerações de trabalhadores ligadas entre si por laços de parentesco1 1 A pesquisa de campo, que se estendeu por aproximadamente um ano, abrangeu 52 entrevistas de caráter biográfico com trabalhadores de duas gerações, observações na fábrica, pesquisa em arquivos da empresa, do Senai e do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e acompanhamento de diversas reuniões no sindicato. .

Assim, diferentes gerações de metalúrgicos encontram-se nessa fábrica, nos lares e no sindicato, negociando nesses locais as transformações e continuidades dos modos de ser, de viver e de se ver no mundo dos membros da categoria. Muitas são as direções nas quais essas disputas acontecem. Neste artigo, discutirei inicialmente as transformações ocorridas, nas últimas décadas, no mercado de trabalho do setor automobilístico da região do ABC, que conduziram à necessidade de maiores investimentos na educação por parte da classe trabalhadora. E, depois, as conseqüências – de ordem objetiva e subjetiva – do processo de alongamento da escolarização dos filhos dos metalúrgicos, num contexto de desemprego crescente, em que os investimentos em formação escolar e profissional – também crescentes – nunca parecem suficientes para garantir que os jovens metalúrgicos ascendam profissionalmente ou ao menos sintam-se seguros em seus postos de trabalho.

O fim de um mundo e a reinvenção da categoria

Se concordarmos que a formação da identidade de um grupo resulta, em grande medida, das maneiras como ele pôde fazer frente aos limites e às possibilidades impostos pela sua existência material, não conseguiremos entender a trajetória dos metalúrgicos do ABC sem compreender as condições materiais e simbólicas no interior das quais essa categoria se formou (cf. Terrail, 1990).

Antes de tudo, é preciso que se considere que o processo de industrialização, que se acelerou no Brasil a partir da década de 1950, transformou as características da sociedade em pelo menos dois aspectos cruciais. Por um lado, houve uma modificação importante da estrutura de classes, devido à significativa expansão das relações de trabalho capitalistas. Por outro lado, na década de 1960, a aceleração do processo de urbanização fez a sociedade brasileira deixar sua condição rural.

Como mostram os estudos realizados por Ribeiro e Scalon (2001), as mudanças estruturais ocorridas na sociedade brasileira nas últimas três décadas representaram uma considerável melhoria na qualidade de vida das pessoas. Além disso, tais transformações possibilitaram um crescimento da taxa de mobilidade social. Assim, a porcentagem de pessoas cuja classe de destino é diferente da classe de seu pai aumentou entre os anos de 1973 e 1996 (em 1973 era de 61,1%, subiu para 66,9% em 1988 e caiu novamente em 1996 para 66,4%). Entretanto, essa mobilidade social caracterizou-se basicamente pela transferência da mão-de-obra do setor rural para o urbano, cujos membros continuaram, em sua maioria, a ocupar postos manuais.

A categoria metalúrgica, concentrada na região do ABC Paulista, pode ser considerada um grupo particularmente implicado em todas essas transformações que atingiram a população brasileira nas últimas décadas. Além de estar ligada ao principal setor produtivo da segunda fase da industrialização brasileira, a indústria automobilística, a categoria constituiu-se inicialmente por trabalhadores oriundos do campo, que se tornaram a primeira geração familiar a vivenciar a condição de operários. Por fim, embora tenham conseguido alcançar significativos avanços no que tange às suas condições de vida e ao acesso a direitos como trabalhadores, os metalúrgicos continuaram a ocupar postos manuais de trabalho, e, em princípio, seus filhos tenderão a ocupar esse mesmo espaço no mundo social.

Assim, compreender a formação e as transformações da categoria metalúrgica da região do ABC Paulista exige que se considerem duas questões fundamentais: em primeiro lugar, o significativo processo de mobilidade social do qual esses trabalhadores foram atores; em segundo, as aceleradas mudanças sociais que ocorreram nos últimos anos, impondo a recomposição dos espaços sociais e a redefinição acelerada de suas posições. Nesses momentos de transformações profundas e aceleradas, a questão identitária, fundamental para a administração do sentimento de pertencimento ou exclusão de um determinado grupo, torna-se "um problema de ajuste, simultaneamente social na sua definição e individual na sua experiência. A relação do indivíduo consigo próprio, ao mesmo tempo em que com sua cultura e sua linhagem, se torna, então, problemática" (Agier, 2001, p. 54).

Ao longo das últimas duas décadas, a região do ABC começou a experimentar um processo de crise que se manifestou, principalmente, (a) pela retração de investimentos, (b) pelo fechamento de algumas unidades produtivas e transferência para outras regiões, e, conseqüentemente, (c) pela diminuição do volume de emprego. É preciso que se considere que a tão midiatizada "crise do ABC" está estreitamente associada à forma como nosso país tem se inserido no processo de globalização econômica mundial, já que a abertura econômica e a queda das tarifas alfandegárias tiveram um forte impacto sobre o setor metalúrgico. Por outro lado, a crise da região vincula-se também aos custos crescentes de produção gerados pelas chamadas "deseconomias" de aglomeração na região do ABC, geralmente identificadas com o trânsito caótico, as enchentes na época das chuvas, os impostos locais considerados excessivamente altos, os preços dos terrenos, os altos salários pagos aos trabalhadores e a tradição sindical. Em suma, um conjunto de fatores que o empresariado convencionou chamar de "custo ABC" (cf. Arbix, 1996).

Entretanto, a crise vivida pelo ABC não se configurou, até este momento, como uma séria crise de desindustrialização, visto que o processo de retirada das empresas da região não tem sido significativo (cf. Abramo e Leite, 2002). Assim, apesar do sombrio quadro que se formou a partir do final da década de 1980, no qual São Bernardo do Campo parecia estar fadada a transformar-se na "Detroit brasileira", a década de 1990 assistiu à reação da indústria metalúrgica do ABC, que no ano de 1994 bateu recordes de produção, de produtividade e de vendas, o que fez o Brasil abandonar o décimo terceiro lugar no ranking mundial e tornar-se o nono produtor mundial de autoveículos.

Entretanto, o aumento da produção e da produtividade não significou a eliminação do problema da redução de postos de trabalho. O quadro geral da composição da categoria metalúrgica, mais especificamente dos trabalhadores das montadoras de automóveis, na década de 1990, baseado na Relação Anual de Informações Sociais (Rais), mostra que houve, primeiramente, uma acentuada diminuição do número de ocupados nas montadoras do estado de São Paulo, que passaram de 88.558 em 1989 para 47.119 em 1999 (-46,8%). Ao mesmo tempo, houve uma diminuição do número de trabalhadores com baixa escolaridade: em 1989, 69,9% não possuíam o ensino fundamental completo; em 1999, esse número foi reduzido para 24,9%. Os trabalhadores que se mantiveram empregados, no entanto, conquistaram um acréscimo em seus salários de 6,6% entre 1989 e 1999 (cf. Cerqueira, 2003; Rodrigues, 2001).

Essas transformações estão diretamente associadas aos processos de reestruturação produtiva. Na Mercedes-Benz, a crise e a necessidade de recuperação do mercado motivaram o surgimento, em 1995, de uma proposta de modernização da empresa: o projeto "Fábrica 2000", que provocou grandes alterações na organização do trabalho dessa montadora (cf. Bresciani, 2001; Paulino e Marcolino, 1999).

Os processos de modernização das fábricas brasileiras têm sido acompanhados geralmente da idéia de que as transformações no processo produtivo dependem de uma mão-de-obra com mais tempo de escolarização e mais bem qualificada tecnicamente. Na pesquisa, pude perceber que o discurso sobre a necessidade de escolarização e qualificação incidiu sobre os trabalhadores mais velhos de uma forma muito desorganizada e confusa, imposta pela empresa, e à qual esses trabalhadores tentaram até certo ponto resistir, mas ao mesmo tempo se envolveram quando julgaram ser interessante2 2 No caso da Mercedes-Benz, alguns trabalhadores se recusaram a participar dos cursos de supletivo, mas freqüentaram cursos oferecidos pelo Senai. A maioria dos trabalhadores que não haviam concluído o ensino fundamental aceitou participar do supletivo, mas não deu continuidade ao ensino médio. Um número um pouco mais reduzido decidiu cursar também o ensino médio. . No entanto, a percepção de que essas exigências aumentavam a cada ano fez com que esses mesmos metalúrgicos investissem fortemente na escolarização e formação profissional de seus filhos. Tal investimento no alongamento dos estudos dos filhos carrega uma série de ambigüidades para os que o vivenciam, as quais têm efeitos não somente sobre os indivíduos ou nas relações familiares, mas podem afetar igualmente o futuro de determinadas categorias socioprofissionais.

Pais e filhos: de projetos compartilhados a percursos que se distanciam

Em 1982, quando Severino, então com 21 anos de idade, chegou com sua esposa e três filhos pequenos a São Paulo, ele completava a terceira tentativa de migrar para essa cidade. O processo migratório de sua família havia começado com dois irmãos mais velhos, na primeira metade da década de 1970. Eles foram seguidos por Severino, em 1979, que não conseguiu empregar-se por conta da proximidade do serviço militar obrigatório. Na segunda vez, em 1981, foi a onda de desemprego que frustrou seu projeto. Entretanto, no ano seguinte, a situação de miséria absoluta em que se encontrava sua família motivou a terceira e definitiva vinda para São Paulo.

Depois de trabalhar na construção civil e em algumas pequenas empresas, em 1986 Severino foi admitido na Mercedes-Benz como ajudante de limpeza. De acordo com seu depoimento, seus amigos e familiares consideravam que ele era muito jovem para trabalhar como faxineiro, mas a sua pouca escolaridade – havia apenas concluído o primário – e a ausência de qualificação profissional não lhe possibilitavam conseguir uma ocupação melhor, pelo menos não em uma empresa de grande porte. Diferentemente da conjuntura da década de 1970, as exigências em torno de qualificação e escolaridade já começavam lentamente a aumentar no setor metalúrgico, principalmente nas montadoras de automóveis. Apesar disso, restavam ainda algumas possibilidades de ascensão na fábrica para trabalhadores com pouca escolaridade e nenhuma qualificação profissional. Assim, alguns meses depois de sua admissão, Severino foi transferido para a área produtiva, como auxiliar de produção, onde aprendeu a função de operador de máquinas de usinagem.

Severino é um dos depoentes da primeira geração focalizada por esta pesquisa3 3 Embora o critério etário não seja o único utilizado na definição de uma geração, como veremos em seguida, por motivos operacionais considerei no início da pesquisa como primeira geração aquela formada pelos trabalhadores que eram jovens no final da década de 1970 e a segunda pelos jovens do final da década de 1990. . Trata-se de um grupo de 27 trabalhadores, cujas idades variavam, em 2005, entre 38 e 57 anos de idade. A classificação desse grupo como uma geração, apesar da considerável diferença etária, está baseada na similaridade de suas experiências, capazes de compor um tipo específico de trajetória sociocupacional.

De acordo com Ortega y Gasset, para compreender o que é uma geração precisamos distinguir duas noções: a contemporaneidade e a igualdade de idade. A todo momento coexistem, no interior das sociedades, "contemporâneos" que pertencem a diferentes gerações, grupos que partilham o mesmo tempo vital, o mesmo "hoje", mas que são capazes de entender esse tempo e seus acontecimentos com diferentes "tonalidades", que são constituídas em função de sua idade. Entretanto, o pertencimento a uma faixa etária não é suficiente para estabelecer uma relação de geração: é necessário que exista também uma comunidade espacial e, mais do que isso, uma "comunidade de destino" (cf. Ortega y Gasset, [1923]* * A data entre colchetes refere-se à edição original da obra, indicada na primeira vez em que a obra é citada. Nas demais ocorrências indica-se apenas a data da edição utilizada pelo autor (N. E.). 1981).

Mannheim, embora também não negue o fato de que o critério etário constitui um elemento importante para a definição do fenômeno geracional, considera a contemporaneidade cronológica apenas uma situação de pertencimento potencial a uma geração. É preciso ter nascido na mesma comunidade de vida social e histórica para que seja possível a criação de um modo de comportamento, uma maneira de sentir e de pensar próprios a um grupo. Assim, só podemos falar em uma situação de geração na medida em que indivíduos que entram simultaneamente na vida participem de acontecimentos e experiências capazes de criar laços entre eles. "Somente um mesmo quadro de vida histórico-social permite que a situação definida pelos nascimentos no tempo cronológico torne-se uma situação sociologicamente pertinente" (Mannheim, [1920] 1990, p. 52).

Assim, procurei, por meio de entrevistas com trabalhadores cujas posições no interior da categoria são bastante variadas, destacar as experiências sociais que pudessem ser identificadas como fundamentais para a formação dessa primeira geração. Há elementos comuns nas trajetórias pessoais que, se considerados no seu conjunto e nas suas articulações internas, podem ser interpretados como um "sentido" da trajetória social desse grupo. De modo um tanto esquemático, pode-se dizer que esses trabalhadores da primeira geração constituíram uma trajetória que se define por sucessivos deslocamentos: (a) espacial, concretizado na migração; (b) de setor econômico, por meio da saída do mundo rural e entrada na indústria; (c) na posição ocupada nas relações de poder no interior da fábrica, um resultado das greves que impuseram modificações significativas na correlação de forças entre capital e trabalho; (d) nas condições de vida (moradia, contrato formal de trabalho, acesso à educação, por exemplo), que implicaram a ocupação de um espaço social, econômico e simbólico bastante diferente do ponto inicial de suas trajetórias.

Essa primeira geração de trabalhadores se inseriu no mercado de trabalho industrial entre o final da década de 1960 e meados da década seguinte, e para a maioria deles a contratação na Mercedes-Benz se deu bem mais tarde, em média após oito anos de trabalho no setor metalúrgico.

Embora a qualificação não tenha tido no Brasil o mesmo papel que exerceu nos países capitalistas centrais, no setor automobilístico brasileiro – na época em que os membros da primeira geração chegavam ao mercado de trabalho industrial – ela já se apresentava como um instrumento de regulação social das relações de trabalho (cf. Tartuce, 2004). Entretanto, é preciso considerar que a experiência, para essa geração, ainda podia substituir, em determinadas ocupações, as credenciais de formação profissional. De acordo com os depoimentos, era comum a exigência de testes práticos no processo seletivo da Mercedes-Benz para algumas funções. Exigia-se, assim, experiência em serviço, e não necessariamente a credencial escolar.

Apesar disso, os trabalhadores da primeira geração tinham clareza de que uma maior qualificação técnica, mais do que a escolaridade, poderia lhes garantir a entrada em grupos profissionais mais bem remunerados e com funções menos desgastantes. Assim, embora a demanda das empresas por mão-de-obra qualificada fosse limitada, os trabalhadores dessa geração procuraram, dentro de suas possibilidades, se munir de experiência em serviço ou credenciais escolares, retornando ao ensino formal e, principalmente, buscando cursos de qualificação profissional, dentro ou fora das empresas. Dos 26 depoentes dessa geração, onze cursaram o Senai; desses, sete foram alunos do curso de "Aprendizagem Industrial", cujo objetivo era a formação de trabalhadores especializados, e o restante fez outras modalidades de cursos de preparação mais rápida, tais como o de solda ou inspetor de qualidade, quando já trabalhavam como metalúrgicos.

Severino, por exemplo, faz parte de um grupo que, tendo realizado o processo migratório já adulto, casado e pai de três filhos, não teve oportunidade de se qualificar fora do local de trabalho. Assim, aprendeu a operar máquinas com outros trabalhadores, realizou alguns cursos no interior da própria empresa e só voltou à escola quando a empresa ofereceu um curso supletivo para seus funcionários, no qual concluiu o ensino fundamental e o médio.

Em 2003, Severino era membro da Comissão de Fábrica e cursava o terceiro ano do curso superior de teologia. Sua esposa trabalhava como empregada doméstica, função exercida desde que se instalou em São Paulo. Seus três filhos eram metalúrgicos da Mercedes-Benz e haviam cursado o Senai dessa mesma montadora, algo cada vez mais raro entre os trabalhadores de menor qualificação, que enfrentam dificuldades crescentes para que seus filhos sejam aprovados no concorrido processo seletivo dessa escola profissional4 4 Em 2001, o Senai da Mercedes-Benz restringiu a inscrição no processo seletivo aos alunos oriundos de escolas públicas, procurando barrar a entrada de filhos de chefes e gerentes. Um dos gerentes da área de treinamento me explicou, em sua entrevista, que isso se tornou necessário para evitar que a escola profissional perdesse seus investimentos, já que os filhos de chefes e gerentes, depois de concluir o Senai e o ensino médio, dirigiam-se à universidade, sem a intenção de permanecer como trabalhadores da montadora. .

Juliana, a mais velha dos três irmãos, com 24 anos em 2005, cursava jornalismo em uma faculdade privada do ABC e trabalhava na linha de montagem de motores. Luís, 23 anos, cursava engenharia automobilística, também em uma faculdade da região, e trabalhava na oficina mecânica da fábrica, onde são realizados testes e ajustes nos caminhões produzidos pela montadora. Marcelo, o caçula, com 22 anos, também trabalhava na linha de montagem de motores, e, embora já tivesse concluído o ensino médio, ainda não se decidira sobre um curso superior, pois desejava algo que se relacionasse com a música.

É impossível compreender essa relação entre pai e filhos – assim como de todos os outros pais e filhos entrevistados –, e a maneira como eles, por meio de conflitos e alianças, têm construído um projeto para o futuro dos membros da família, sem nos remetermos ao processo de mobilidade social ascendente que marcou o percurso dessas famílias e transformou radicalmente seus modos de vida. Nesse caso, o momento mais significativo do processo de ruptura com o ponto inicial da trajetória familiar parece ter sido a mudança do "Sítio dos Vianas", em Santo André – uma área de ocupação, onde a família de Severino havia conseguido transformar um barraco em uma casa de alvenaria –, para um apartamento em um condomínio fechado, em um bairro de classe média, em São Bernardo do Campo.

Essa mudança foi motivada, de acordo com os depoimentos, pelo aumento da violência na área de ocupação, que culminou com a invasão da casa da família duas vezes numa mesma semana. A transferência para o apartamento, que poderia ser considerada uma conquista, foi vivenciada com certo sofrimento, sobretudo pelos dois filhos mais velhos.

A mudança pra São Bernardo do Campo... mudou tudo! A gente mudou pra um bairro diferente, pessoas diferentes... [...] Era um bairro melhor. [...] Porque o pessoal de Santo André era mais humilde, pessoas que tinham mais noção da vida, pessoas que pra comprar um doce na cantina tinham dificuldade. Enquanto que em São Bernardo do Campo, onde eu fui morar, o pessoal era ligado no tênis que você usava, como seu cabelo era, sua aparência. Nós juntamos tudo pra comprar esse apartamento, minha mãe tava desempregada. Então, foi difícil, a gente tava indo pra lá pra ter sossego e a gente se deparou com essa coisa! [...] Era horrível, eu chorava muito, eu sentia falta da minha casa... (Juliana).

Severino demonstra ter sofrido menos com a mudança do que seus filhos, mas não deixou de se ressentir por ter sido "obrigado" a abandonar sua casa e também o bairro, pelo qual havia "lutado muito" e onde se tornara uma das principais lideranças da comunidade.

Apesar do sofrimento, parece que esse deslocamento foi determinante na constituição de um novo projeto de futuro para os três jovens, o que fica evidente quando comparam sua situação atual com a de seus colegas de infância, que ainda moram no Sítio dos Vianas e já estão casados, com filhos, em geral empregados em situação precária. O caçula, Marcelo, foi o que menos se sentiu afetado pela mudança e, conseqüentemente, possui mais laços de amizade em São Bernardo do Campo. Ele conheceu todo o seu círculo de amigos, inclusive os outros jovens da banda de rock, na qual é guitarrista, na escola ou no condomínio.

A ambigüidade que permeia as transformações nos modos de vida dessa família, de uma geração a outra, pode ser mais bem explicitada pela análise da posição ocupada pelo filho caçula. Sendo o mais adaptado ao novo estilo de vida, Marcelo é também o mais afastado dos próprios membros da família. Assim, por exemplo, ele não gosta do mesmo estilo musical que seus irmãos (que é o mesmo do pai: samba), o que o impede de acompanhá-los nas "baladas". Sua forma de se vestir, os acessórios, o corte de cabelo são bem menos convencionais se comparados com os dos irmãos. Seu pai, em uma conversa informal, após as entrevistas, perguntou-me se eu havia percebido que "Marcelo é muito inteligente" e, em seguida, me disse que chegava a ter medo dessa potencialidade artística e intelectual do filho mais novo, tendo inclusive certa dificuldade de lidar com seus "sonhos". Da mesma forma, na "escala" de negação da herança operária, Marcelo encontra-se no topo absoluto, visto que quase "não se sente na fábrica", pensa o tempo todo na música e diz que sua vida começa quando o horário de trabalho acaba.

A ambigüidade dessa situação está localizada na tensão entre um projeto de rompimento com o ponto inicial da trajetória da família e as conseqüências subjetivas desse processo para os seus membros. Assim, Marcelo, que parece melhor adaptar-se a esse projeto de ascensão, para fazê-lo precisa se afastar do modo de vida anterior de sua família. No estudo de gerações, é importante que se considere que nem sempre a ascensão de um novo grupo significa total ruptura com o passado: o grupo ascendente, como herdeiro, pode apresentar uma nova maneira de agir e pensar e, ao mesmo tempo, dar continuidade a um projeto que lhe antecede. De acordo com Bourdieu, em nossas sociedades, o pai é aquele que encarna a linhagem, cujo projeto deve ser perpetuado. O problema que se coloca é que a perpetuação da posição social do pai muitas vezes significa diferenciar-se dele e ultrapassá-lo, processo que não é vivido sem problemas nem para o pai nem para o filho. Entre as situações de conflitos ligados à ascensão ou ao declínio resultantes do processo de sucessão, aquelas envolvendo pais que viveram suas vidas em uma posição dominada ou subalterna, como os operários, pode ser especialmente difícil. Nesses casos, os filhos podem entender suas próprias vitórias como fracassos, visto que negariam a posição ocupada pelo pai; este, por sua vez, pode desenvolver um olhar ambíguo em relação à vitória do filho: por um lado, deseja que ele supere a situação na qual se sente preso; por outro, à medida que o filho o ultrapassa, se afasta de sua história familiar, de seu grupo de origem (cf. Bourdieu, 1993).

Apesar das diferenças entre eles, os três filhos de Severino construíram uma trajetória bastante comum entre os depoentes da segunda geração, que pode ser considerada mais homogênea, dado que suas experiências pessoais, escolares e profissionais são muito mais próximas do que as da primeira geração5 5 Podemos considerar que um grupo faz parte de uma geração quando seus membros possuem uma espécie de reação unitária, uma ressonância comum, o que não quer dizer que se trate de um grupo concordante em suas ações ou idéias. No interior de uma mesma geração podem existir grupos adversários entre si, mas o que importa é que estejam ligados aos mesmos problemas, problematizem e remetam-se às mesmas questões (cf. Mannheim, 1990). .

Nesta pesquisa, a segunda geração foi representada por um conjunto de 25 depoentes, cujas idades variavam entre 20 e 34 anos. Trata-se de um grupo de jovens majoritariamente nascidos em São Paulo (capital) ou na região do ABC, cujos pais são migrantes e metalúrgicos – dos 25 trabalhadores, 22 eram filhos de metalúrgicos, e 18 desses pais eram trabalhadores da Mercedes-Benz. Eles vivenciaram uma trajetória escolar regular e 21 deles tiveram formação profissional do Senai, 14 dos quais passaram pelo Senai da própria Mercedes-Benz. Outra característica importante, e que os diferencia da maioria dos jovens brasileiros, é a inserção no mercado de trabalho: 20 deles tiveram sua primeira experiência profissional na Mercedes-Benz, sendo efetivados após concluírem o Senai. Entre os 25 jovens entrevistados, 16 cursavam ensino superior e os demais haviam concluído o ensino médio, dois se preparavam para o vestibular. Com exceção dos mais velhos, nascidos até a metade da década de 1970, que após concluírem o Senai foram admitidos em áreas indiretamente ligadas à produção, a maioria desses jovens metalúrgicos ocupa funções ligadas diretamente às áreas de produção, com 14 deles ocupando postos de trabalho em linhas de montagem.

Além das experiências, esses jovens compartilham um sentimento comum em relação à sua condição de operários: trata-se de uma situação provisória, que pretendem ultrapassar conquistando credenciais escolares mais valorizadas. O alongamento dos estudos para esses metalúrgicos tem conduzido à formação de altas expectativas com relação a uma possível ascensão socioprofissional. O adiamento, ou, no limite, a impossibilidade de realizar esse projeto faz com que eles vivenciem com grande frustração sua situação como operários. Como bem expressa Luís, um dos filhos de Severino:

Lembra que eu falei que eu vinha alegre pro Senai? Pra fábrica eu vinha chorando! (risos) Sinceramente! Eu acordava e pensava: Ah! Meu Deus! Tem que ir! [...] No Senai você imagina uma coisa, quando você vai pra lá [para a fábrica], é outra... Você imagina que você vai usar tudo que o Senai te deu, e daí você vê que não é isso, tem gente que não fez Senai e faz melhor do que quem fez... Poxa! Faz Senai pra depois ficar apertando botão! [...] Você imagina que você vai usar alguma coisa técnica... Fábrica é uma coisa, Senai é outra... (Luís).

Os depoimentos e as observações demonstram que o mal-estar provocado pela inadequação entre as expectativas, baseadas na posse de credenciais escolares, e a realidade do trabalho na fábrica interfere de maneira definitiva na relação desses jovens com os trabalhadores mais velhos, muitas vezes seus próprios pais. De acordo com Pialoux, as gerações podem ser caracterizadas pelas diferentes estratificações de experiências sociais. Desse modo, uma significativa defasagem entre as experiências escolares da geração de pais operários e aquelas de seus filhos oferece uma espécie de caso experimental para o estudo dos confrontos existentes entre operários de diferentes gerações (cf. Beaud e Pialoux, 1999).

Os conflitos decorrentes dessa defasagem podem ser analisados, no caso dos trabalhadores da Mercedes-Benz, em duas dimensões: de um lado, as transformações na organização do processo de trabalho criaram uma nova hierarquização, tanto dos saberes como das atitudes esperadas dos operários, o que coloca os grupos em disputa: os mais velhos apóiam-se em seus saberes práticos e em uma postura de força e responsabilidade, enquanto os jovens apóiam-se em suas credenciais escolares e sua capacidade de ser "flexíveis". Por outro lado, a exemplo do caso estudado por Pialoux, a empresa tem interesse na construção de um discurso de desvalorização dos conhecimentos e certificações da primeira geração, normalmente identificada como mais combativa e resistente às mudanças. Os pais operários vivem, assim, uma espécie de desqualificação do valor de sua força de trabalho e de seus diplomas na empresa, no mercado de trabalho e também dentro de suas casas, onde a contestação é oriunda dos próprios filhos (cf. Idem).

Como a pesquisa não focalizou as casas dos trabalhadores, mas se baseou em observações etnográficas da fábrica, analisarei como os conflitos geracionais, motivados pela defasagem nas experiências escolares, se expressam no interior do local de trabalho. De uma maneira geral, podemos dizer que os enfrentamentos entre as duas gerações estudadas têm duas motivações principais: de um lado, as disputas em torno do controle sobre o processo de trabalho, e, de outro, as disputas em torno da herança política da categoria metalúrgica. No cotidiano da fábrica, essas duas dimensões dos conflitos entre velhos e jovens trabalhadores se confundem e têm como cenário as transformações nos processos produtivos e na organização do trabalho, que tem provocado uma espécie de envelhecimento das práticas da primeira geração, tanto no âmbito do trabalho como da política.

A relação entre diferentes gerações, que é também uma relação entre "transmissores" e "herdeiros", evidencia um dos grandes problemas do homem: a perenidade e a finitude da vida. Geralmente, os processos de sucessão são apontados como conflituosos porque determinam a morte de um dos grupos que se confrontam. Morte física ou simbólica, os processos de sucessão estão ligados à idéia do "fim de um tempo" e início de uma "nova era", de uma nova maneira de pensar e agir, e, conseqüentemente, à ascensão de indivíduos capazes de conduzir ou conviver com as transformações necessárias, em detrimento de outros que não se encontram mais em condição de dirigir ou mesmo de permanecer em determinado grupo.

Assim tem ocorrido com os jovens metalúrgicos da Mercedes-Benz e seus pais (biológicos ou simbólicos) dentro da fábrica. O alongamento dos estudos dos jovens é interpretado pelos mais velhos como a realização de um projeto de ascensão (que não é garantida, mas que seria impensável sem o avanço nos estudos), no qual o filho poderia abandonar a condição operária. Por outro lado, essa ascensão pode afastar pais e filhos, na medida em que estes, baseados em sua posição de "estudantes", "formados", "qualificados", questionam a autoridade dos membros da primeira geração.

Apesar das duras críticas desferidas contra os jovens, os trabalhadores mais velhos tendem a não admitir, em seus depoimentos, a existência de conflitos concretos entre os dois grupos. Os jovens, por sua vez, são muito mais enfáticos ao citar os problemas na relação entre as duas gerações. Em geral, os jovens declararam que se sentiram muito mal recebidos pelos trabalhadores mais velhos quando chegaram à fábrica, e ainda se ressentem da maneira como eles tentam lhes impor sua autoridade, baseada na experiência. De acordo com os entrevistados, os mais velhos, apoiando-se em sua experiência profissional, não aceitam suas opiniões e desconsideram os conhecimentos teóricos dos "moleques do Senai", como normalmente são chamados. Os jovens, por sua vez, acreditam que possuem de fato maiores conhecimentos técnicos do que os mais velhos, tendo, assim, mais condições de dominar o trabalho e encontrar novas alternativas para os problemas da produção. Parte dessa crença é fomentada no interior do próprio Senai. De acordo com alguns jovens, os mestres da escola profissional insistiam na diferenciação entre eles e os "antigos trabalhadores".

Primeiro que você sai do Senai superprepotente, entendeu? Porque, ali, o mestre do Senai já fala pra você que você é superior ao resto da categoria, que quando você vai chegar na peãozada, você vai se sobressair, que os caras são tudo semi-analfabeto. Então você fica vendo a peãozada... às vezes você nem integra com a peãozada, e muito menos com o cara do sindicato (Marcos, 29 anos, filho de metalúrgico da Mercedes-Benz e membro da Cipa).

Apesar dessa postura dos jovens, confiantes em sua qualificação técnica, os mais velhos parecem reverter "o jogo" na fábrica, fazendo valer sua autoridade sobre o trabalho. A estratégia dos jovens, que ainda são minoria na maior parte das áreas, é se unir para tentar resolver os problemas na produção sem a ajuda dos mais velhos, com os quais sentem que não podem contar, e ao mesmo tempo ignorar determinadas provocações, até como forma de irritar ainda mais os antigos trabalhadores. Entretanto, pude identificar, por meio das trajetórias de alguns jovens, que, quando eles entram para uma área produtiva em número bastante reduzido e ficam sob responsabilidade direta de um trabalhador mais velho, que deve lhes ensinar o trabalho, as chances de serem bem recebidos e mais bem "assessorados" aumenta significativamente. Acredito que nessas circunstâncias os trabalhadores mais velhos não se sintam ameaçados e o jovem, por sua vez, afastado dos outros alunos do Senai, apresente também uma postura menos desafiadora.

Entretanto, os conflitos entre as duas gerações parecem ter raízes mais profundas. Para os mais velhos, um dos problemas está relacionado com o fato de os mais jovens se beneficiarem das conquistas da primeira geração e não demonstrarem reconhecimento aos esforços que foram empreendidos para que se chegasse à situação atual da categoria. Nas palavras de um trabalhador mais velho: "Os jovens pensam que a Mercedes nasceu assim!". Mais do que isso, os mais velhos possuem uma hipótese, confirmada pelas minhas entrevistas: a maioria dos jovens nem mesmo conhecia a história da categoria no ABC antes do ingresso na fábrica. Entretanto, embora isso seja verdadeiro, em seus depoimentos os jovens parecem reconhecer que as ações do sindicato contribuíram para que a categoria conquistasse determinadas vitórias. Por outro lado, no entanto, acreditam que certas práticas de oposição à empresa, como as greves, não têm mais sentido atualmente. Por conta disso, o discurso dos sindicalistas não surte um grande efeito sobre eles.

Dessa forma, além das práticas no trabalho, também as práticas políticas da primeira geração parecem superadas aos olhos desses jovens. O alongamento dos estudos fez com que eles passassem para o "outro lado" da barreira que divide, no Brasil, aqueles que têm acesso à escolarização e os que ficaram à margem dela, como seus pais. Como conseqüência, os jovens metalúrgicos têm a impressão de que o legado político dos pais operários não lhes concerne, o que não quer dizer que não reconheçam sua importância, mas sim que se trata de "uma herança, que eles não querem porque lhes parece de uma outra época e demasiadamente distante da sua condição social" (Beaud, 2003, p. 309).

A recusa da herança política atinge especialmente os filhos dos sindicalistas, como Juliana, Luís e Marcelo. Severino é um líder muito conhecido por toda a fábrica, e, como pude identificar em outros casos analisados, os trabalhadores esperam que os filhos das lideranças comecem muito cedo a ocupar um espaço ao lado dos pais e, mais tarde, o próprio lugar do pai. Entretanto, nenhum desses três jovens pretende dar continuidade à militância sindical de Severino, primeiramente porque têm a intenção de se desligar da fábrica nos próximos anos e depois porque acreditam que não possuem o mesmo "dom" para a representação dos interesses coletivos.

Eu admiro pra caramba meu pai, eu acho legal pra caramba! Só que eu não tenho vontade não [de militar no sindicato]! Acho que não vai dar certo pra mim! Não dá certo comigo! Eu não tenho vontade... (Marcelo).

Considerações finais

Os processos de sucessão em geral são vividos de forma contraditória tanto por aqueles que transmitem suas posições como por aqueles que, como herdeiros de um determinado espaço social e simbólico, sentem-se chamados a dar continuidade a um projeto que pode ser pessoal, familiar, profissional ou político. A situação não tem sido diferente no caso dos metalúrgicos do ABC: os dados da pesquisa apontam para as inúmeras ambigüidades e contradições do processo de sucessão no interior da Mercedes-Benz, que, se num primeiro momento parece predominantemente marcado por conflitos, em outros também tem espaço para a formação de alianças entre as duas gerações.

Os episódios nos quais as alianças entre as duas gerações se tornam explícitas normalmente guardam relação com a situação de fragilidade enfrentada pelos jovens metalúrgicos no mercado de trabalho. Isso porque, ainda que pareçam mais bem preparados para enfrentar as dificuldades do mercado, esses jovens se tornam bastante vulneráveis num contexto de desemprego estrutural e de expansão do sistema de ensino, que leva a uma desvalorização crescente dos diplomas. Além disso, seus próprios modos de agir como trabalhadores parecem conduzir também a uma perda das armas simbólicas com as quais a primeira geração contava, entre elas a solidariedade e a confrontação aberta com a empresa.

Exemplo disso foi um episódio ocorrido em 1998: a Mercedes-Benz havia começado, dois anos antes, a realizar contratações por tempo determinado, normalmente de jovens trabalhadores solicitados em momentos de alta produção, e que depois eram dispensados, podendo ser recontratados em outros períodos ou não. Alguns jovens entrevistados chegaram a passar por essa situação três vezes seguidas. Em 1998, quando o contrato de um grupo estava para ser encerrado, os trabalhadores da fábrica, basicamente os mais velhos, ameaçaram iniciar uma greve caso os jovens não fossem efetivados pela empresa. O grupo foi efetivado, e essa foi a última tentativa da montadora de contratar por tempo determinado.

Diante da fragilidade dos mais novos, os antigos trabalhadores lançam mão de suas tradicionais práticas políticas, para evitar que os jovens entrem em uma situação de precarização. Assim, as gerações se encontram, disputam o espaço da fábrica, o poder sobre as decisões, e os mais velhos, ao mesmo tempo em que impõem sua autoridade, precisam também colaborar e abrir espaço para que os jovens ocupem dignamente seu lugar na fábrica. E, ao fazerem isso por todos os jovens, o fazem também por seus filhos, como bem observa este depoente:

Se tivesse só jovem nessa empresa, e não tivesse o pessoal antigo, dificilmente eu teria sido efetivado. Talvez eu tenha sido efetivado não pelo pessoal ter parado, mas não deixa de ter feito uma pressão... mas se fossem só jovens, duvido que eles iam parar, duvido, mesmo! [...] Então, talvez a solidariedade deles venha por causa disso, porque eles já sentiram isso com eles e eles sabem o quanto é ruim [o desemprego], e talvez um trabalhador mais velho que olha pra gente, que é mais novo, imagina o filho dele e pensa: "Se fosse meu filho..." (Adriano, 28 anos, filho de metalúrgico da Mercedes-Benz).

Texto recebido e aprovado em 17/4/2006.

Kimi Tomizaki é professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP). E-mail: kimi@usp.br.

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  • *
    A data entre colchetes refere-se à edição original da obra, indicada na primeira vez em que a obra é citada. Nas demais ocorrências indica-se apenas a data da edição utilizada pelo autor (N. E.).
  • 1
    A pesquisa de campo, que se estendeu por aproximadamente um ano, abrangeu 52 entrevistas de caráter biográfico com trabalhadores de duas gerações, observações na fábrica, pesquisa em arquivos da empresa, do Senai e do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e acompanhamento de diversas reuniões no sindicato.
  • 2
    No caso da Mercedes-Benz, alguns trabalhadores se recusaram a participar dos cursos de supletivo, mas freqüentaram cursos oferecidos pelo Senai. A maioria dos trabalhadores que não haviam concluído o ensino fundamental aceitou participar do supletivo, mas não deu continuidade ao ensino médio. Um número um pouco mais reduzido decidiu cursar também o ensino médio.
  • 3
    Embora o critério etário não seja o único utilizado na definição de uma geração, como veremos em seguida, por motivos operacionais considerei no início da pesquisa como primeira geração aquela formada pelos trabalhadores que eram jovens no final da década de 1970 e a segunda pelos jovens do final da década de 1990.
  • 4
    Em 2001, o Senai da Mercedes-Benz restringiu a inscrição no processo seletivo aos alunos oriundos de escolas públicas, procurando barrar a entrada de filhos de chefes e gerentes. Um dos gerentes da área de treinamento me explicou, em sua entrevista, que isso se tornou necessário para evitar que a escola profissional perdesse seus investimentos, já que os filhos de chefes e gerentes, depois de concluir o Senai e o ensino médio, dirigiam-se à universidade, sem a intenção de permanecer como trabalhadores da montadora.
  • 5
    Podemos considerar que um grupo faz parte de uma geração quando seus membros possuem uma espécie de reação unitária, uma ressonância comum, o que não quer dizer que se trate de um grupo concordante em suas ações ou idéias. No interior de uma mesma geração podem existir grupos adversários entre si, mas o que importa é que estejam ligados aos mesmos problemas, problematizem e remetam-se às mesmas questões (cf. Mannheim, 1990).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Recebido
      17 Abr 2006
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: temposoc@edu.usp.br