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A sociologia no Brasil

Sociology in Brazil

CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA

A sociologia no Brasil* * Redigido em 1956, este texto foi publicado em 1959 na Enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, Delta S.A., pp. 2216-2232; 2ª ed. 1964, tomo IV, pp. 2107-2123). Tendo aceito o encargo de coordenar o setor de Ciências Sociais, Fernando de Azevedo me convidou para elaborá-lo, ao mesmo tempo que convidava Florestan Fernandes para o básico, "Sociologia". Meio século depois, o seu interesse é apenas o de um "documento de época". Por isso concordei que fosse reproduzido, com todo o inevitável desgaste do tempo. Não me preocupei em corrigir erros eventuais, mas há um, talvez o maior, que me incomoda: a avaliação deficiente da obra de Manoel Bonfim, cuja importância e verdadeiro significado só mais tarde compreendi. (Ver, por exemplo, o artigo "Radicalismos", texto de uma palestra de 1988 publicada em 1990 na revista Estudos Avançados, v. 4, n. 8, e recolhido no meu livro Vários escritos, cuja 4ª edição, pela Editora Ouro sobre Azul, Rio de Janeiro, é de 2004.)

Sociology in Brazil

Antonio Candido

RESUMO

Publicado pela primeira vez em 1959, o texto analisa o processo de formação da sociologia brasileira, desde o final do século XIX, quando seria "praticada por intelectuais não especializados", até a década de 1950, momento em que a disciplina já se havia institucionalizado parcialmente no Brasil.

Palavras-chave: Sociologia brasileira; Ensaísmo; Intelectuais.

ABSTRACT

First published in 1959, the text analyzes the process behind the formation of Brazilian sociology, from the end of the 19th century, when the author argues that it was "practiced by non-specialized intellectuals," until the 1950s, a moment when the discipline had already become partially institutionalized in Brazil.

Keywords: Brazilian Sociology; Essays; Intellectuals.

Introdução

No Brasil, podemos distinguir nitidamente, na evolução da Sociologia, dois períodos bem configurados (1880-1930 e depois de 1940), com uma importante fase intermédia de transição (1930-1940). No primeiro, é praticada por intelectuais não especializados, interessados principalmente em formular princípios teóricos ou interpretar de modo global a sociedade brasileira. Além disso, não se registra o seu ensino, nem a existência da pesquisa empírica sobre aspectos delimitados da realidade presente.

Depois de 1930 ela penetra no ensino secundário e superior, começa a ser invocada como instrumento de análise social, dando lugar ao aparecimento de um número apreciável de cultores especializados, devendo-se notar que os primeiros brasileiros de formação universitária sociológica adquirida no próprio país formaram-se em 1936. O decênio de 1930, rico e decisivo, pode ser considerado fase transitória para o atual período que, iniciado mais ou menos em 1940, corresponde à consolidação e generalização da sociologia como disciplina universitária e atividade socialmente reconhecida, assinalada por uma produção regular no campo da teoria, da pesquisa e da aplicação.

Formação

1 – Duas palavras devem ser invocadas para se entender a formação da Sociologia brasileira: Direito e Evolucionismo. Ela apareceu e encorpou, com efeito, a partir da preocupação de alguns juristas possuídos pelas doutrinas do Evolucionismo científico e filosófico.

Coube aos juristas papel social dominante no Brasil oitocentista, dadas as tarefas fundamentais de definir um Estado moderno e interpretar as relações entre a vida econômica e a estrutura política. Foi a fase de elaboração das nossas leis, aquisição das técnicas parlamentares, definição das condutas administrativas. O jurista foi o intérprete por excelência da sociedade, que o requeria a cada passo e sobre a qual estendeu o seu prestígio e maneira de ver as coisas. Mas como as teorias dominantes na segunda metade do século se achavam marcadas pelo surto científico de então, notadamente a Biologia, que saiu dos laboratórios para se divulgar de maneira triunfante, os juristas mergulharam na fraseologia científica e se aproximaram, neste terreno, dos seus pares menos aquinhoados, médicos e engenheiros, que com eles formavam a tríade dominante da inteligência brasileira. Vemos então, na Sociologia, os juristas inaugurarem uma orientação cientificista – como se dizia – que contou desde logo com a cooperação de engenheiros e sobretudo médicos.

A sociologia brasileira formou-se, portanto, sob a égide do evolucionismo e recebeu dele as preocupações e orientações fundamentais, que ainda hoje marcam vários dos seus aspectos. Dele recebeu a obsessão com os fatores naturais, notadamente o biológico (raça); a preocupação com etapas históricas; o gosto pelos estudos demasiado gerais e as grandes sínteses explicativas. Daí a predominância do critério evolutivo e a preferência pela história social, ou a reconstrução histórica, que ainda hoje marcam os nossos sociólogos e os tornam continuadores lógicos da linha de interpretação global do Brasil, herdada dos "juristas filósofos" (para falar como Clóvis Bevilaqua) do século passado [XIX]. É preciso salientar que o evolucionismo não constituiu importação artificial de modas européias, mas se adequou a várias das nossas realidades locais, de povo que procurava justamente construir de si mesmo uma representação coerente no plano ideológico, preocupado com o peso do passado escravocrata, as possibilidades do desenvolvimento futuro, o significado positivo ou negativo que teriam neste processo as raças díspares e a decorrente mestiçagem. Graças a ele, ou melhor, graças à sua superação, a partir de Euclides da Cunha, foi possível elaborar uma fórmula bem brasileira de estudos sociais, em que a reconstrução do passado se amoldava a certos pontos de vista do presente; em que o estudo se misturava à intuição pessoal e o cientista ao retórico, ou ao escritor, dando lugar às obras capitais de Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior, academicamente indefinidos entre Sociologia e História.

2 – Talvez a primeira manifestação do que seria considerado Sociologia no Brasil durante quase meio século se encontre na Introdução à história da literatura brasileira (1881), onde Silvio Romero estabelece as diretrizes que orientaram por muito tempo os estudos sociais no Brasil, ao interpretar o sentido da evolução cultural e institucional segundo os fatores naturais do meio e da raça. Mas o primeiro escrito teórico de certo vulto sobre a matéria (deixando de lado as repetições automáticas dos positivistas) foi possivelmente devido a Tobias Barreto e obedeceu – vale mencionar – a um critério negativista. São as "Glosas heterodoxas a um dos motes do dia, ou variações anti-sociológicas" (1884 a primeira parte; 1887 a segunda), onde contesta, com a vivacidade costumeira, a validade e autonomia da nossa disciplina. Levando o naturalismo científico às conseqüências finais, argumenta que as leis sociais não são naturais, pois são normativas; logo, não estão regidas pelo princípio do determinismo, sem o qual não há ciência. Os fatos sociais pertencem a uma esfera "mecanicamente inexplicável".

A sua argumentação é brilhante mas pouco convincente, a despeito de raciocinar com lógica dentro da concepção adotada. Tobias rejeita com bom senso a assimilação da sociedade ao organismo, o que foi aceito pelos estudiosos que o seguiram e dele receberam influência, mas que, à exceção de poucos (entre os quais Artur Orlando), viam nela um organismo peculiar submetido às leis gerais da evolução, aproximando-se assim de Spencer e garantindo a sua autonomia. Talvez devido a Tobias, nem todos o fizeram explicitamente, como, por exemplo, Fausto Cardoso, magnetizado pelo famoso princípio biogenético fundamental de Haeckel, cuja aplicação aos fatos sociais Tobias repelira e ele procura justificar de maneira não raro feliz, firmando-se no monismo mecanicista contra o monismo teleológico, e deste modo, dizia, permanecendo mais fiel ao filósofo alemão.

Procurando aplicar ao direito as teorias dele, foi sem dúvida um dos primeiros sistematizadores da sociologia biológica no Brasil, em A ciência da história (1895) e sobretudo em Estudos de taxinomia social (1898), antecedidos pela base teórica geral de A concepção monística do universo (1894), onde combate a "ilusão teleológica" de Tobias e define o seu mecanicismo estrito. São livros brilhantes e nem sempre coerentes, cruzados aqui e ali por lances de grande intuição sociológica, como quando, em A concepção e nos Estudos, estabelece uma espécie de teoria da mudança social pela dialética da maioria conservadora, que se apega à ordem, da minoria transformadora, que forja as utopias, e da minoria refratária dos reacionários.

Para ele, o erro de Spencer consistia em tomar o homem como unidade social, quando esta deveria ser buscada no grupo, segundo deixara implícito Comte ao estudar a família. No mundo físico, no biológico e no social, as unidades são sempre agregados complexos, aos quais se deve referir a aplicação das leis; o argumento de que o princípio de Haeckel vem abaixo se aferirmos o desenvolvimento individual ao da História insubsiste, se atentarmos que ele se aplica, em ciência social, a cada povo em confronto com outro ou com a humanidade total.

Nos Ensaios de filosofia do direito (1895), Silvio Romero consagra dois longos capítulos à refutação do pessimismo de Tobias e às leis de Cardoso, argumentando a favor da necessidade e autonomia da Sociologia, contra o primeiro; e lembrando, quanto ao segundo, que a extensão por ele operada, no seu extremo mecanicismo, de leis naturais ao domínio do social teria como conseqüência lógica a incorporação das ciências sociais à Biologia. A sua atitude pessoal era mais compreensiva graças à aceitação quase integral do sistema de Spencer, que permitia visão mais fecunda dos fenômenos sociais. Destes, procura no mesmo livro estabelecer uma classificação – inspirada, embora não o mencione, na que fizera o seu mestre – do que chamava "produtos superorgânicos". Tratava-se, no seu intuito, de estabelecer quais as "criações fundamentais e irredutíveis da humanidade", os fatos culturais a que se reduzem todos os que vemos manifestarem-se na realidade, e que para ele eram cinco: religião, economia, política, estética e ciência. A sua contribuição teórica não vai além; não é nela que devemos buscar a sua importância na formação da nossa Sociologia, mas na atividade de pesquisador das tradições orais, que foi o primeiro a colher e sistematizar (A poesia popular no Brasil, 1880; Cantos populares do Brasil, 1883; Contos populares do Brasil, 1885), além da propaganda constante, em breves escritos e referências, impondo com o seu prestígio a jovem ciência; finalmente, pela adoção, na última fase da carreira, dos métodos da escola de Le Play, que divulgou e que influíram, combinados às teorias antropossociológicas de Lapouge e Ammon, em estudiosos mais jovens, como Oliveira Viana.

No mesmo sentido que ele – isto é, do que se poderia chamar um biologismo mitigado – escreveram Clóvis Bevilaqua (crítico inteligente do pessimismo de Tobias e do darwinismo extremado de Gumplowicz) e um discípulo amado, Augusto Franco, divulgador e comentador da corrente a que se filiavam todos.

3 – Mais que qualquer outro, Silvio Romero se liga em espírito aos que, simultaneamente à sua atividade, passaram da divagação ou da teorização mais ou menos retórica aos estudos monográficos e à interpretação sistemática da realidade. É um segundo aspecto dentro do período que estudamos, e no qual devemos considerar os autores dos primeiros trabalhos que se prendem diretamente ao espírito sociológico pela atitude em face da realidade, a consciência dos problemas ou a marcha da investigação de cunho monográfico: Lívio de Castro, Paulo Egídio e Euclides da Cunha.

Lívio de Castro, morto aos 27 anos com uma ponderável bagagem inédita, publicada depois em parte sob a direção de Silvio Romero, seu mestre, talvez nunca tenha escrito a palavra "sociologia". Era médico interessado em antropologia física e fisiologia nervosa, mas com pendor irresistível para os problemas sociais. A sua obra principal, A mulher e a sociogenia, escrita em 1887, quando tinha 23 anos, e editada no decênio seguinte, tem por objeto definir o papel da mulher na sociedade moderna, escopo sociológico que procura fundamentar com uma primeira parte biológica e uma última parte que se diria educacional. O livro tem de comum com os do tempo o dogmatismo naturalista mal disfarçado em objetividade científica, a inflexibilidade e facilidade das conclusões, o jargão técnico. Mas separa-se deles pelo rigor demonstrativo, a segurança do roteiro, o senso prático e uma eloqüência contida pela sobriedade e o senso de medida. Apesar do que há de obsoleto nos seus pontos de apoio e no superado cientificismo do tom, é um raro exemplar de mentalidade científica no Brasil de então, mormente se atentarmos para o campo dos estudos sociais, em que os melhores, como um Silvio Romero, pouco mais faziam que jogar um disfarce pseudo-sistemático sobre a gratuidade dos palpites, alçados a verdades objetivamente determinadas.

Lívio de Castro parte do estudo antropológico da mulher e, por meio de extrapolações baseadas na craniometria de Broca, aceitas sem discrepância no tempo, conclui pela sua inferioridade intelectual, que se acentua relativamente no correr da evolução filogenética. Isto, segundo ele (e aqui principia certo discernimento sociológico), porque as sociedades humanas dão ao homem oportunidade de se empenhar na luta pela vida, que proporciona a evolução por meio da seleção; no decorrer dela, verifica-se um aperfeiçoamento progressivo de que a mulher é privada pela sua condição, hoje diríamos alienada, de "animal doméstico do homem". São portanto fatores de ordem cultural que interferem na evolução biológica, gerando a inferioridade intelectual do sexo oprimido. Mas na sociedade moderna não é mais possível confiná-la à especialização doméstica; é preciso, pelo contrário, iniciá-la na mesma ordem de atividades mentais consideradas privativas do homem. A educação adequada mostrará a sua capacidade de desenvolvimento e ela atingirá, com o passar do tempo, capacidade craniana compatível com o maior nível de que a espécie é capaz.

Sente-se que para o autor a parte fundamental do livro era a laboriosa argumentação antropológica, ilustrada pelo método etnográfico ao sabor de Letourneau – isto é, justamente a que nada vale para o leitor moderno. Mas permanece a idéia geral da mulher como sexo alienado na história, e, conseqüentemente, as conclusões de ordem sociológica e educacional. Pela seriedade, lógica, apelo aos números, esforço de provar com dados brasileiros, orientação progressista que rompe sob a tentativa algo ingênua e não raro pedante de objetividade, A mulher e a sociogenia constitui um dos mais importantes marcos na formação da nossa Sociologia.

A um organicismo atenuado pela influência de Tarde, filiou-se Paulo Egídio, cuja preocupação central foi desenvolver em São Paulo, desde os fins do decênio de 1880 até o primeiro deste século [XX], verdadeira propaganda sociológica pela imprensa, os cursos e o livro. A sua obra mais importante são os Estudos de sociologia criminal (1900), crítica às Regras do método sociológico, de Durkheim (1896), sobretudo ao capítulo III, relativo à "distinção do normal e do patológico", que feriu cruamente a consciência jurídica de Paulo Egídio, cujos ditames ele procura então conciliar com as exigências intelectuais. Como escrevi noutra oportunidade, "tudo se prende à conhecida afirmação do sociólogo francês de que os fatos verificados com intensidade e regularidade são normais a uma dada sociedade, e patológicos os que aberram da norma". Trata-se de substituir o juízo de valor pela verificação empírica, superando o subjetivismo. E, assim, afirma que o crime é normal, dada a regularidade com que ocorre, pois o patológico importa sempre em exceção, que contraria o ritmo ordinário dos fatos. Paulo Egídio reagiu vivamente, mas procurou dar à sua reação o mesmo rigor demonstrado nos argumentos de Durkheim. Podemos interpretar esta atitude como fruto de um conflito entre a consciência jurídica – vezada a discernir o bem e o mal em termos de imperativo ético – e a sua convicção determinista – pronta a aceitar a relatividade das instituições e o caráter social dos valores.

Procurou solver o impasse aplicando os próprios critérios metodológicos de Durkheim e, tomando o crime pela sua manifestação exterior apenas, argumentou que a existência desta exprime a repulsa de toda sociedade em face do delito; o horror ao crime seria cientificamente comprovado pela evolução, inclusive dos sistemas repressivos, e o pensador paulista chega a postular a sua diminuição progressiva, num otimismo condizente com a sua formação spenceriana e, no caso, fracamente baseado em precárias estatísticas locais. Notamos, todavia, a admiração despertada nele pela obra de Durkheim, que o levou à tentativa de conciliar ao máximo sua consciência jurídica com a coerência de um método que vinha trazer à Sociologia a possibilidade de superar as generalidades do evolucionismo, criando balizas para a determinação empírica dos tipos sociais. Talvez Paulo Egídio não tenha compreendido isto logicamente, mas com certeza o sentiu; tanto assim que consagra a metade do livro à exposição proba e inteligente das regras durkheimianas, procurando, ademais, na segunda parte, conciliar a sua aplicação com a rejeição do critério distintivo entre normal e patológico. É sem dúvida prova de capacidade haver compreendido no fim do século XIX, ainda que por oposição, a importância da obra de Durkheim, e havê-la divulgado, mais de vinte anos antes da sua incorporação à nossa rotina sociológica.

O engenheiro Euclides da Cunha (que nos conduz agora a uma esfera muito mais elevada de talento) escreveu sobre uma situação social diretamente observada. Enviado para noticiar a campanha contra os fanáticos de Canudos, o sociólogo brota nele de imprevisto, pelo encontro fortuito do geógrafo com o repórter e o patriota republicano. Angustiado pelo drama que viu e à luz do qual meditou os problemas sociais que o condicionaram, descreveu-o com um espírito parecido ao de Lívio de Castro – buscando explicação rigorosa no determinismo naturalista, representado pelas forças do meio físico e da constituição racial, que traçou com um toque de fatalidade.

As suas notórias influências são o darwinismo social de Gumplowicz, sublinhando o conflito dos grupos na disputa da supremacia, e a teoria de Buckle, hipertrofiando o papel dos fatores geográficos na formação e desenvolvimento dos grupos humanos, já amplamente divulgada e aplicada no Brasil na História da literatura brasileira, de Silvio Romero. Há, portanto, como que o reconhecimento de uma dívida no fato de Euclides da Cunha o haver escolhido para saudá-lo na Academia Brasileira – o que Silvio fez num discurso onde boa parte é consagrada aos problemas sociais do Brasil, encarados segundo o ponto de vista da escola de Le Play, que então divulgava com ardor.

Se deixarmos de lado as suas considerações já superadas sobre a formação étnica do tipo sertanejo, ou o rigor algo estrito com que expõe o condicionamento físico, ainda nos surpreende hoje a acuidade sociológica demonstrada na descrição e análise da sociedade sertaneja, como fruto do isolamento. Da segregação geográfica e cultural, parte para apontar o que constitui (do ângulo que nos interessa) a sua melhor contribuição: o estudo da situação de conflito entre essa cultura e a que se desenvolvia nas regiões litorâneas sob o signo do progresso moderno. Do acontecimento, Euclides extrai limpidamente a teoria, salientando o significado social da coexistência de dois Brasis, cujas relações poderiam tomar periodicamente um sentido de grande tragédia coletiva, se não se desenvolvesse uma política adequada para superar a distância entre ambos.

Além da visão sociológica, o livro vem marcado por qualidades literárias de tão elevado teor, que a penetração na sociedade e nos fatos estudados se opera com profundidade divinatória, revelando bruscamente, como de fato revelou, a complexidade dramática da sociedade brasileira à consciência algo adormecida dos seus intelectuais e políticos. Os sertões (1902) constituem um marco: a partir daí os estudiosos seriam levados irresistivelmente a intensificar o estudo da nossa sociedade de um ponto de vista sistemático, superando tanto as preocupações de ordem estritamente jurídica como as especulações demasiado acadêmicas. Euclides da Cunha impusera definitivamente a "realidade brasileira".

4 – Chegamos, assim, no período de formação, à terceira etapa ou aspecto, que engloba certas preocupações anteriores e anuncia outras, que virão a seguir. É o momento em que dominam as preocupações de elaborar, digamos, uma "teoria geral do Brasil" do ponto de vista da sua evolução social e das características organizatórias, com acentuada preferência pelos aspectos políticos. Os escritores e pensadores se prendem ainda, mais ou menos, às concepções evolucionistas, notando-se influência de Silvio Romero na adoção de vários pontos de vista da escola de Le Play.

O desejo de construir uma teoria geral do Brasil no plano social é um progresso, comparado às especulações teóricas que ficaram registradas; mas é de certa forma regresso, comparado à preocupação monográfica (teórica e aplicada) também referida. Assim vemos Oliveira Viana censurar em Euclides da Cunha o fato de haver ficado demasiado preso a um aspecto limitado da realidade nacional, em lugar de atirar-se a generalizações visando a todo o país. No entanto, Silvio Romero havia indicado a impossibilidade de atingir semelhante visão global sem "algumas centenas de monografias" – cuidado que não se teve em seguida.

Esta atitude metodológica se explica pela ideologia que norteava o trabalho destes homens, ainda aí seguidores de Silvio: o nacionalismo, o empenho de desvendar necessidades e características nacionais com o fim precípuo de servir ao progresso do país, em relação ao qual se verificava acentuado pessimismo no primeiro quartel deste século [XX], após as esperanças iniciais da República. No fundo, importava menos o cuidado da investigação ou o rigor da inferência do que a interpretação coerente do país no seu conjunto, para se apontarem remédios de ordem político-administrativa. A isso se chamou Sociologia entre nós, desde então quase até os nossos dias, não faltando quem ainda a conceba sob este aspecto, que correspondeu, realmente, a um decisivo momento na tomada de consciência ideológica da nossa sociedade.

Podemos apontar, da publicação de Os sertões (1902) a esse outro grande marco que foi Casa-grande & senzala (1933), três autores característicos da orientação definida: Manoel Bonfim, Alberto Tôrres e Oliveira Viana.

O primeiro, e menos importante, publicou em 1905 um livro que causou certo movimento, pró e contra, A América Latina, onde inaugura entre nós o que se poderia chamar sentimento de solidariedade continental nos estudos sociais. Embora declare separar-se dos que vêem na sociedade um organismo animal, acha que ela é um organismo vivo e se rege por leis próprias. No seu estudo, parece todavia pender irresistivelmente para o primeiro ponto de vista, aplicando com estreiteza analogias organicistas. O seu alvo é analisar as causas do atraso e mau funcionamento das instituições na América; para isso recorre ao método genético, à busca das origens do mal. Verdadeiro estudo patológico, o livro analisa o fenômeno do "parasitismo social", a situação parasitária das mães pátrias em relação às colônias, que manifestam, em conseqüência, fenômenos de atraso e confusão. Mais tarde, em várias obras, estudou a evolução social do Brasil, sempre preocupado com o fator biológico, mas mitigando o rigorismo inicial.

Em O Brasil na América (1929), por exemplo, se de um lado supervaloriza algo ingenuamente a contribuição racial e cultural do índio, traça de outro uma conceituação muito compreensiva do fenômeno da mestiçagem e sua função biológica e cultural no Brasil, combatendo com firmeza as tendências racistas de um Oliveira Viana.

Alberto Tôrres foi pensador de maior tomo e muito mais importância na história das nossas idéias. O seu objetivo imediato era a reforma constitucional e a regeneração administrativa, pois entendia que, num país sem povo consciente e portanto sem opinião pública formada, incumbiam ao Estado as tarefas fundamentais de organização e decisão. Uma reforma do Estado seria a chave, imaginando ele para tanto um Poder Coordenador algo fantástico e francamente inoperante, pelos mesmos motivos em que fundava a sua crítica.

Interessa, porém, à Sociologia notar que fundou as suas opiniões numa concepção coerente da sociedade brasileira. Partindo da função exercida na evolução social pela maior ou menor adaptação dos grupos humanos ao meio, combate a teoria da superioridade constitucional dos povos nórdicos europeus sobre os meridionais, de onde proviemos, bem como da inferioridade dos povos de cor, autóctones ou importados pela escravidão. As raças se ajustam diferentemente aos diferentes meios; o nosso é favorável aos povos mediterrâneos, devendo-se notar que os da Península Ibérica são mesclados largamente de sangue africano; é também evidentemente favorável ao africano e ao nosso índio; neste caso, os nórdicos é que seriam aqui mesologicamente inferiores. Tôrres conclui que temos, de modo geral, a população adequada e capaz para o nosso meio, não havendo razão para pessimismo racista.

No entanto, é contra a mestiçagem, entendendo que o cruzamento enfraquece as qualidades das raças originais, que deveriam ser mantidas lado a lado – raciocínio que mostra quanto de mecânico e utópico havia no seu pensamento, que recuou ante a realidade básica da nossa história no terreno étnico, como havia indicado Silvio Romero desde 1880, ao nos definir como povo caracterizado pela mestiçagem física ou espiritual.

As reflexões sobre a raça e o meio servem-lhe de introdução ao estudo do problema, para ele básico, de aproveitamento e organização dos bens proporcionados pela exploração dos recursos naturais. Neste passo é que se toca no fulcro do seu pensamento, podendo-se sentir a coerência, inédita entre nós, com que procura relacionar a vida dos grupos às necessidades gerais da sociedade nacional. A base onde assentam as formas organizatórias, culminadas pelo Estado, é a dinâmica dos grupos humanos, com suas características raciais, ajustados a determinado meio com certos recursos à sua disposição. Cabe ao estudioso analisar essa dinâmica complexa para extrair coerentemente as normas políticas.

Tal linha é nítida em Oliveira Viana, sem dúvida o mais eminente dessa fase, inspirado pelas indicações de Silvio Romero quanto à teoria sociológica da escola de Le Play e da antropossociologia de Ammon e Lapouge, mas discípulo direto e confessado de Alberto Tôrres na maneira de encarar o problema, para ele fundamental, da organização política, segundo as diretrizes apontadas.

Como para Alberto Tôrres, a preocupação de Oliveira Viana é sobretudo política, podendo-se considerar toda a sua longa obra como preparação do livro final sobre as nossas instituições políticas. Enquanto, porém, o mais velho se preocupava diretamente e desde logo com os problemas de aplicação prática, ele se dedicou mais acuradamente ao estudo da formação social, buscando nela as raízes para a doutrinação teórica no terreno da política e da administração.

Do seu equipamento teórico, já referido, guardou sobretudo a importância dada ao fator racial e a idéia, de que nunca se desprendeu totalmente, apesar de protestos em contrário, de superioridade e inferioridade raciais. Assim, procura explicar certos traços estruturais, institucionais, e certas tendências na vida política brasileira pela diferença da capacidade dos grupos colonizadores – portugueses do Norte ou do Sul, louros ou morenos, com preponderância celta ou gótica. No terreno da pura fantasia, estabelece para a colônia uma estratificação social em que os senhores rurais de origem germânica ou céltica ocupam o pináculo, os morenos algarvios ou alentejanos o degrau médio, os mestiços e homens de cor a plebe rural...

Mas, fora tais deslizes que procurou corrigir em seguida, hauriu na influência leplayana certas inspirações que o conduziram a algumas das suas melhores realizações quanto ao método e à interpretação. Na sua obra, é notória neste sentido a importância dada ao meio físico como base imediata da vida econômica, que por sua vez determina de perto a organização da família, célula da sociedade. São clássicos os seus estudos sobre a família rural do Brasil-Colônia, que analisou como grupo multifuncional (isto é, desempenhando "função simplificadora"), centralizando toda a vida material e espiritual do país. Com esta base, passa ao estudo do particularismo político, o mandonismo das câmaras, que retoma a partir do velho João Francisco Lisboa e lhe parece condicionar a dinâmica da nossa vida política, entrecortada de tensões entre os poderes locais (com a sólida base econômico-social da família) e os poderes centrais, no seu esforço de unificação e, em seguida, progressiva racionalização administrativa.

Apesar das restrições, sobretudo metodológicas, que se podem opor, é sem dúvida imponente e fecunda a sua construção, culminada pela determinação de "tipos sociais", definidos segundo a base econômica, variando esta por sua vez conforme as condições regionais. O seu livro básico, Populações meridionais do Brasil (1919; 2º volume póstumo, 1952), estuda justamente os tipos humanos de Minas, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, ligados ao bandeirismo, ao pastoreio e à agricultura do café.

Com ele, atingimos o momento decisivo na formação da Sociologia brasileira, em que representa o divisor de águas entre a tendência para a "vista sintética", como dizia Silvio Romero, e a necessidade analítica de discriminar tipos sociais, de que Euclides fora o precursor. Os seus métodos, ainda ligados à primeira orientação, não lhe permitiriam passar convenientemente à segunda, sendo todavia de notar que é o primeiro a recorrer com regularidade à estatística e a tentar uma renovação da bibliografia, para além do evolucionismo e da escola de Le Play.

5 – Chegada a este ponto, a formação da Sociologia brasileira vai entrar numa etapa culminante, em que se preparam os elementos para sua definitiva constituição e consolidação. Tendo já consciência dos fatos essenciais da realidade brasileira que lhe competia estudar; tendo já elaborado alguns pontos de vista coerentes sobre o país; tendo firmado alguns critérios explicativos (como o recurso à História, o estudo da adaptação ao meio, a avaliação das etnias na formação social, o senso da complexidade cultural); tendo firmado esses e outros critérios, faltava-lhe dar o passo decisivo para se incorporar à nossa vida intelectual: enriquecimento e modernização da teoria, de um lado; opção decidida pelos métodos diretos de pesquisa empírica da realidade presente, de outro. Nesse sentido, era condição indispensável iniciar o seu ensino, sem o qual não haveria possibilidade de formar os sociólogos profissionais e, de maneira mais lata, quadros intelectuais tecnicamente preparados, livres dos caprichos do autodidatismo – que não convém vituperar, porque foi o grande recurso do nosso progresso mental; mas que em nossos dias vai perdendo campo, como etapa vencida pelas próprias exigências desse progresso.

Isto aconteceu devido à ação dos que estabeleceram a Sociologia como disciplina curricular e proporcionaram exposições sistemáticas dos seus princípios, na aula e no manual; e devido à influência que trouxeram aos estudos brasileiros as orientações modernas, superando as sugestões do século XIX, dentro das quais se moviam até então os estudiosos. Deixando para daqui a pouco o primeiro grupo, mencionemos agora este último, em que se destacam homens como Gilberto Freyre e Artur Ramos, aquele mais preso ao campo que nos interessa, este ao da Psicologia Social e da Antropologia de orientação psicológica.

Se Oliveira Viana é um fim da linha de "teoria geral do Brasil" sob um ponto de vista evolutivo, Gilberto Freyre, embora ligado a ela, é um começo, pela renovação dos métodos e a larga informação teórica em que se fundou. As suas obras são ainda tributárias da História; mas, como esta entre nós não se orientara decididamente para o estudo das estruturas e instituições, permanecendo, mesmo entre os melhores, como um levantamento de erudição, a sua obra apareceu desde logo, ao modo da dos predecessores que estudamos, como Sociologia – como a fórmula brasileira da investigação sociológica. Aliás, Gilberto Freyre é um espírito antiacadêmico por excelência, livre das injunções da compartimentação universitária, despreocupado em estar "fazendo sociologia" e interessado apenas em dar sentido e profundidade à sua análise da sociedade brasileira, circulando livremente da Antropologia Física e Social à Geografia Humana, à Economia, à Psicologia. Mas como se aparelhou de formação técnica sem renunciar aos pendores pela intuição artística, a sua obra é limpidamente elaborada e rica de sugestões, tendo significado um marco decisivo e inspirador não apenas para sociólogos e antropólogos, mas para geógrafos, higienistas, políticos, críticos, historiadores. Casa-grande & senzala (1933) é, pois, legitimamente, o eixo em torno do qual gira a evolução que estamos estudando, ao rever as orientações do passado segundo critérios que se abrem para o futuro da disciplina.

Formado numa quadra em que a Sociologia teórica estava decadente, Gilberto Freyre se orientou mais para a Antropologia, no que aliás correspondeu às tendências da nossa evolução sociológica. Graças aos conceitos modernos de cultura, adaptação, contato racial e cultural, distância social, mobilidade – hauridos em homens como Boas, Wissler, Sorokin, Bogardus –, bem como a um pendor decidido pela ecologia humana e os estudos de miscigenação, retomou, fundiu e transfigurou numa síntese original, como fazem os renovadores, temas que se esboçavam, dissociados e fragmentários, na pena dos nossos pré-sociólogos, desde o último quartel do século XIX: papel das etnias constitutivas, mestiçagem, escravidão, família patriarcal, mandonismo, variações regionais etc. Estabeleceu uma correlação amplamente fundamentada entre o regime de propriedade (latifúndio), o de trabalho (escravidão) e o sistema agrícola (monocultura), para sobre ele definir a estrutura e a função da família da camada dominante, como fulcro de toda a organização da sociedade colonial, único ponto de apoio a que se podiam referir as normas sociais nos séculos de formação. Delineou os tipos humanos da camada senhorial e da camada servil, completando-os em Sobrados e mocambos (1936) com os que se interpuseram entre ambas, no processo de mobilidade vertical que foi, ao longo do século XIX, atenuando as distâncias e esboçando os estratos intermédios.

Os dois livros mencionados constituem a sua maior contribuição à sociologia e à história social brasileira, devendo-se juntar a eles Nordeste (1937), espécie de digressão à margem do tema, onde se patenteia a sua acuidade ecológica e que é possivelmente o mais harmonioso dos três. É preciso notar que, inteiramente desligado de preconceitos acadêmicos, como ficou assinalado, utiliza uma linguagem viva e insinuante, mais literária que científica na sua estrutura, embora não no léxico, e que é nele um instrumento de interpretação pela riqueza das imagens, a sugestão dos longos períodos em que dá vida e graça ao esqueleto da erudição e da análise. Como em Euclides da Cunha, temos aqui uma obra cujas virtudes literárias estão no nível da capacidade científica.

Contemporaneamente, isto é, no decênio de 1930, deu-se o fato mais importante para a formação da Sociologia, que foi, como dissemos, a sua emergência no ensino. Ressalta aí a atuação dos educadores, que vinham sentindo a sua necessidade para a formação profissional do professor primário e para a elaboração de uma teoria educacional adequada, sentindo logo a seguir a necessidade de estabelecer o seu ensino em nível superior. As reformas de Fernando de Azevedo no então Distrito Federal e em São Paulo (1927; 1933) incluem-na no currículo das Escolas Normais e cursos de aperfeiçoamento; a reforma federal de Francisco Campos (1931), nos cursos complementares. Na Escola Livre de Sociologia e Política e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade, ambas em São Paulo, bem como na Faculdade de Filosofia da Universidade do Distrito Federal, fundam-se em 1933, 1934 e 1935 os primeiros cursos superiores de Ciências Sociais, figurando ela entre as matérias.

Ligados às necessidades de ensino, surgem então vários manuais e compêndios que permitem a divulgação científica e a ação sobre público mais amplo, como os de Delgado de Carvalho, Fernando de Azevedo, V. de Miranda Reis; o primeiro orientado pelas teorias americanas e de acentuado intuito prático, o segundo filiando-se principalmente à influência de Durkheim, com nítida preocupação teórica, e o último combinando várias orientações, num sentido mais expositivo.

Estes acontecimentos se ligam às condições políticas e sociais que sucederam à revolução de 1930, exprimindo uma curiosidade acentuada de conhecer o país e, em sentido mais amplo, a sociedade moderna e os seus problemas. A expressão "realidade brasileira" é típica do momento, tornando-se verdadeiro lugar-comum a que recorriam indiscriminadamente jornalistas, políticos, escritores e estudiosos; havia no ambiente, além disso, uma solicitação intensa pelos estudos sociais, que se multiplicaram nos diferentes campos da história, da economia, da política, da educação, concorrendo para criar uma atmosfera de receptividade e expectativa em torno da Sociologia.

Notamos então incremento nos estudos sobre o negro e o índio, com sentido descritivo ou acentuada tendência para as explicações psicológicas, nos de folclore, nos de política, notando-se em todos eles uma espécie de decantação com a passagem (que marca todo o esforço do decênio) do ponto de vista sociológico para a ciência da Sociologia, da exposição didática para a pesquisa, da divulgação para a construção. Neste processo, foram parte magna, podemos dizer decisiva, os professores universitários, estrangeiros ou naturalizados, que constituem a primeira equipe, no Brasil, de estudiosos especificamente preparados para os estudos sociológicos e antropológicos: Horace Davies, Samuel Lowrie, Claude Lévi-Strauss, Paul Arbousse Bastide, Emilio Willems, Herbert Baldus, Jacques Lambert, Roger Bastide, Donald Pierson – americanos, franceses, alemães que nos vieram trazer a cultura universitária no setor das ciências sociais. Dentre os brasileiros que trabalham no mesmo movimento, destaca-se Fernando de Azevedo, que, passando dos estudos de educação para a Sociologia, ensinou-a e organizou as suas atividades, em São Paulo, primeiro no ensino médio, depois no superior, sem interrupção desde 1931, sendo desde a sua fundação, em 1947, o Chefe do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de São Paulo, onde se agrupam numerosos especialistas em cooperação didática e científica.

A sua obra sociológica principia com o decênio de 1930, após uma atividade intensa de escritor, voltado sobretudo para o humanismo clássico, a educação e a crítica, que o foram fazendo lentamente preocupar-se com a importância do fator social na cultura didática e científica.

A sua principal contribuição teórica se encontra em Sociologia educacional (1940), onde procura dar a esta disciplina uma fundamentação sociológica coerente, escapando às tendências demasiado pragmáticas dos americanos no sentido de uma "sociologia aplicada à educação", que melhor se diria pedagogia sociológica. Trata-se neste livro de inverter de algum modo a posição, considerando a educação como um dos campos de investigação sociológica, armada de um sistema de conceitos, procurando definir o processo educacional no que tem de socialização, para, em seguida, estudá-lo em conexão com as instituições sociais, tanto as genéricas, como a família e o Estado, quanto as específicas, como a escola. Surge assim a necessidade de analisar a emergência dos papéis sociais ligados a ele, a partir dos tipos primitivos de transmissão da experiência cultural. Para isto, Fernando de Azevedo desenvolve as sugestões apontadas por Durkheim, utilizando os dados da Antropologia moderna e a sua própria experiência.

Na linha já tradicional da Sociologia brasileira, produziu uma obra de interpretação global da nossa cultura espiritual, Cultura brasileira (1943), e um estudo do elemento político na sociedade que se desenvolveu com base na economia do açúcar, Canaviais e engenhos na vida política do Brasil (1948). O primeiro constitui um levantamento exaustivo da nossa vida intelectual e artística, que analisa num enquadramento fecundo, referindo-a primeiro às condições de formação histórico-social, para completá-la em seguida pelo estudo dos mecanismos de transmissão, que garantem no tempo a vida das conquistas espirituais. Era inédita, entre nós, a maneira por que entrosa na vida cultural a educação, que aparece em sua função histórica e social, intimamente solidária à vida do país.

Em Canaviais e engenhos, encara a relação dos fatos políticos com os demais aspectos da vida social, como de interconexão, isto é, como aquele sistema de normas que estabelece as condições de funcionamento das outras normas sociais, vinculando uns aos outros os diferentes elementos da organização. Sem desprezar, antes apontando devidamente o papel dos fatores mesológicos, separa-se da tradição brasileira em tais estudos pela superação das análises étnicas e o interesse direto pelos fenômenos estruturais, estudando a dinâmica das camadas e dos tipos de vida na formação da sociedade em estudo. Sobre esta análise, elabora finalmente o papel das ideologias.

Emílio Willems, radicado desde muito moço no Brasil, aqui realizou toda a sua obra e pertence de fato e direito à nossa Sociologia. Os seus primeiros estudos foram no campo da Sociologia Educacional, em que efetuou pesquisas, notadamente sobre o papel de peneiramento exercido pela educação em São Paulo. Influenciado pela teoria americana dos contatos raciais e culturais, estudou sob este prisma a colonização alemã do Sul do Brasil em Assimilação e Populações marginais (1940), retomando o tema com maior amplitude e renovado equipamento teórico em A aculturação dos alemães no Brasil (1946), onde aplica, de maneira coerente e sistemática, os modernos conceitos da antropologia cultural americana. Baseado em pesquisa de campo (sobretudo observação participante) e levantamento de material impresso (notadamente coleções de jornais), estudou o desenvolvimento de instituições, tipos de conduta e manifestações ideológicas que exprimem a acomodação dos imigrantes ao novo meio, dando lugar a uma cultura marginal teuto-brasileira, presa entre sentimentos de fidelidade à terra de origem e amor à terra nova, para se resolver afinal numa situação ambivalente que encontra expressão mais típica no "patriotismo local" – espécie de racionalização elaborada como mecanismo adaptativo. Noutros trabalhos, estudou vários aspectos da aculturação dos japoneses.

Em Cunha, tradição e transição numa cultura rural do Brasil (1947) e Buzios Island (1952), este em colaboração com Gioconda Mussolini, inicia o estudo dos agrupamentos caboclos, utilizando os métodos, inéditos entre nós, das pesquisas de comunidade. Nestes e noutros trabalhos orientou-se decididamente para a investigação empírica, esforçando-se por fazer a Sociologia entrar na fase de pesquisa direta da realidade presente. Estas diretrizes fecundas, que tiveram influência decisiva nas novas gerações de sociólogos, foram por ele ampliadas através da sua atividade docente e da revista Sociologia, que fundou em 1939 com Antenor Romano Barreto e ainda continua em plena atividade, a primeira e por muito tempo única publicação especializada no ramo.

Atividade de certo modo paralela, inspirada em fontes por vezes as mesmas, desempenhou e vem desempenhando Donald Pierson, sociólogo americano radicado no Brasil desde 1935, com poucas interrupções. Da sua intensa atividade destaquemos os dois livros principais: Negroes in Brazil (1942; tradução de 1945: Brancos e pretos na Bahia) e Cruz das almas, a Brazilian Vil1age (1953), este em colaboração com vários discípulos. O primeiro livro é fruto de uma pesquisa de dois anos na Bahia, segundo as orientações teóricas da "escola de Chicago", a que se filia o autor, notadamente no que tange aos conceitos de contatos raciais e culturais. Para ele (e dos seus estudos locais generaliza para o Brasil), não há entre nós preconceito racial propriamente dito, como se verifica nos Estados Unidos (a preocupação comparativa é permanente no livro, servindo de base para orientar várias conclusões). Embora haja discriminação de cor, ela é condicionada em grande parte pela posição social segundo um esquema de classes, em que a mobilidade é possível e constante; não do tipo casta, em que tende a se perpetuar segundo a origem étnica. Daí o seu otimismo quanto à nossa democracia racial e a fórmula "preconceito de classe não de casta".

Cruz das almas é baseado em pesquisa intensiva numa pequena vila do interior, levada a cabo com espírito diverso do que presidiu à elaboração de Cunha e mais próximo do roteiro de Buzios Island. Seguindo a linha das monografias etnográficas de comunidade, procede ao levantamento descritivo dos diversos aspectos da cultura material, crenças, trabalho, organização social, sem esquecer os dados prévios de natureza geográfica. É sem dúvida o primeiro levantamento exaustivo de uma comunidade cabocla, embora num sentido mais informativo que interpretativo. Em numerosos artigos, Pierson vem completando, nesse sentido, a publicação inicial. Mencionemos ainda que lhe foi confiado o levantamento sociocultural do vale do São Francisco pela respectiva Comissão, tendo ele organizado o trabalho de uma equipe.

Bem diferente da dos dois sociólogos indicados foi a ação de Roger Bastide, que aqui ensinou e pesquisou de 1937 a 1954. Espírito menos sistemático e mais inquieto, deu sobretudo um exemplo de tolerância teórica e liberdade crítica, utilizando pontos de vista da Sociologia francesa, alemã e americana, da Antropologia americana e inglesa, da tradicional "etnografia" francesa, da psicanálise e da filosofia social. Preocupado principalmente em "interpretar", desenvolveu em seus discípulos a confiança nos fatores individuais do pesquisador, fundamentados todavia pelo rigor da posição teórica. A sua preocupação fundamental foram sempre os estudos afro-brasileiros, a que vem consagrando trabalhos de vária natureza, com preferência pelos fenômenos mágico-religiosos, nos quais lhe interessam sobretudo a análise e compreensão dos cultos: Estudos afro-brasileiros (3 séries, 1946, 1951, 1953); A poesia afro-brasileira (1943); Imagens do nordeste místico em branco e preto (1945); Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo (1955), importante pesquisa dirigida por ele e Florestan Fernandes, com a colaboração de outros especialistas.

Além dos estudos sobre o negro brasileiro, Bastide trabalhou e encaminhou discípulos em sociologia da arte, campo também de sua predileção (Arte e sociedade, 1945), psicologia social (Sociologia e psicanálise, 1948), não contando uma intensa atividade de crítica literária e da arte, para a qual trouxe a contribuição da sua cultura científica e filosófica.

Jacques Lambert, de estada curta entre nós, orientou os seus trabalhos no rumo da demografia (Problèmes demographiques contemporains, 1. Les faits [1944], em colaboração com L. A. Costa Pinto), publicando mais tarde, na linha das "teorias do Brasil", que hoje parece ser preferida sobretudo pelos estrangeiros, uma síntese excelente, Le Brésil: structures sociales et institutions politiques (1953), a que se podem juntar outras, da mesma natureza, de mais dois professores franceses que ensinaram aqui: Les trois âges du Brésil, de Charles Morazé (1954), e Le Brésil, de Pierre Monbeig (1954). Numa linha algo diversa, de documentação e pesquisa mais acurada, temos Brazil, its people and institutions (1947), de T. Lynn-Smith, também residente alguns anos entre nós.

Tendências atuais

Diante do exposto, compreende-se melhor em que sentido foi dito, a princípio, que a Sociologia só se constituiu realmente entre nós, como atividade ampla, reconhecida e produtiva, contando com pessoal mais ou menos numeroso e devidamente especializado, depois de 1940. Essa data é em parte convencional e aproximativa, pois não apenas os sociólogos da "fase transitória" trabalhavam e continuam trabalhando no sentido que se apontará aqui, e que foram eles a estabelecer, como vários sociólogos jovens prolongam orientações do período inicial; ela marca, todavia, perspectivas novas que mostram a consolidação da sociologia como ciência e profissão, diferenciada das disciplinas afins. Conseqüentemente, a produção muda de aspecto, constituindo-se cada vez mais de estudos empíricos metodicamente conduzidos ou teorias empiricamente fundamentadas.

Esse progresso pode ser verificado em três vias: 1) na organização do trabalho sociológico; 2) no novo espírito que o preside; 3) nas obras realizadas.

1) Quanto à organização, as atividades sociológicas devem ser consideradas sob três aspectos: (a) ensino; (b) pesquisa; (c) divulgação.

(a) Vimos que o ensino se desenvolveu depois de 1930, mas só no decênio seguinte as escolas superiores passaram a fornecer de maneira ponderável professores e pesquisadores para abastecer os cursos técnicos, as faculdades, os serviços de investigação no setor social, que então se estabeleceram. A situação é particularmente favorável no estado de São Paulo, cujo ensino oficial é bastante desenvolvido, exigindo-se dos professores concurso de títulos e provas, e onde, no grau superior, existe o regime de tempo integral. Uma comparação entre os programas de há vinte anos e agora, mostra como aumentou em complexidade e coerência o currículo dos cursos superiores de sociologia, superada a etapa inicial, de teor demasiado geral, apoiada sobretudo no estudo das teorias e da história da sociologia.

(b) No setor da pesquisa é que o avanço foi mais sensível, surgindo as primeiras verbas a ela destinadas, esboçando-se o trabalho das equipes, criando-se a mentalidade empírica, elaborando-se os primeiros planos metódicos de investigação. Nesse sentido, foi decisiva a influência das novas condições sociais, impondo aos governos e às organizações privadas um conhecimento racional da realidade em vista das necessidades cada vez maiores de planejamento e orientação racional das suas atividades. Para sistematizar o assunto, podemos distinguir quatro tipos de pesquisa que se vêm processando no Brasil: (1) pesquisas individuais, de finalidade acadêmica ou outra qualquer; (2) pesquisas didáticas, visando ao treinamento de alunos, isoladamente ou em grupos; (3) pesquisas em equipe, com finalidade científica; (4) pesquisas em equipe com finalidade prática.

No primeiro caso, temos a maioria dos trabalhos de sociólogos de carreira, ligados a instituições de ensino e pesquisa, ou dos estudiosos isolados em centros de pouca ou nenhuma organização do trabalho científico. Tem sido até agora a pedra de toque para a qualificação do especialista e já produziu resultados apreciáveis em poucos anos de florescimento. No segundo caso, temos atividades geralmente confinadas ao âmbito acadêmico, resultando em trabalhos individuais ou de grupos de estudantes mais ou menos capazes, trabalhando sob orientação, geralmente com finalidade de treinamento, mas podendo em certos casos produzir resultados dignos de publicação. Generaliza-se, contudo, cada vez mais, a tendência de associar o aluno aos trabalhos do terceiro e quarto tipo, em que um planejamento adequado e a finalidade extradidática permitem não só maior aproveitamento dos esforços como verdadeira iniciação profissional.

O terceiro caso, em fase inicial, é por exemplo o da pesquisa sobre preconceito de cor, realizada há alguns anos sob os auspícios da Unesco em vários pontos do país. Por último, temos investigações de caráter prático, sem prejuízo do método científico, visando a contribuir para a análise de uma situação ou de um problema, que se pretende enfrentar próxima ou remotamente. Sirva de exemplo o levantamento sócio-cultural do vale do São Francisco, realizado como parte do plano de recuperação e valorização daquela vasta área; ou a investigação dos níveis de vida em todo o país, por iniciativa do Governo Federal; ou, ainda, a atividade do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais no sentido da melhoria da instrução e seu ajuste satisfatório às necessidades atuais do país.

Há neste último setor, por vezes, tendência para sair da Sociologia, com recurso a critérios que se aproximam dos da "pesquisa social", isto é, a pesquisa a curto prazo norteada por finalidade prática imediata, com interesse apenas incidental pelos aspectos teóricos. Mas a sua importância é grande para o progresso científico, visto como não só apela cada vez mais para os especialistas, como vai levando as instituições públicas e privadas de administração, produção, comércio, etc., a prever um setor de investigação dos níveis de vida, poder aquisitivo, habitação, sociabilidade, opinião, atitudes coletivas, etc.

(c) A divulgação do trabalho sociológico encontra ainda certas dificuldades, estando abaixo do volume e teor da produção científica. Cresce todavia a possibilidade de publicar livros especializados, embora quase não haja subvenções públicas e particulares neste sentido. As entidades oficiais que editam, distribuem mal. A revista especializada de tiragem regular é Sociologia, mas algumas outras recebem trabalhos sociológicos, entre os de Antropologia, folclore, serviços públicos, etc.: Revista do Museu Paulista, Revista de Antropologia, Revista do Arquivo, Revista de Administração, em São Paulo. Cabe notar ainda a Revista Pernambucana de Sociologia e as publicações da Universidade de Minas Gerais.

A vida associativa é muito fraca e o intercâmbio se dá em base pessoal. A Sociedade Brasileira de Sociologia, em que se transformou a antiga Sociedade Paulista de Sociologia, realizou um Congresso em 1954 na cidade de São Paulo e publicou em seguida os respectivos anais. A própria troca de publicações é limitada e, a não ser no Rio e São Paulo, os estudiosos dependem do acaso das relações para se porem a par do movimento sociológico no país. É mais fácil conhecer a marcha das pesquisas e publicações nos Estados Unidos e na Europa do que no Brasil – e o presente artigo, escrito por um sociólogo de São Paulo, certamente apresenta lacunas neste sentido.

2) Devemos agora indicar brevemente o espírito que vem presidindo a este desenvolvimento, de que é ao mesmo tempo condição e conseqüência.

Talvez se pudesse resumir dizendo que, no panorama da nossa história intelectual, o advento relativamente recente de uma sociologia científica se deu na medida em que os estudos sociais conseguiram, aqui, superar a mentalidade literária a que se haviam até então ligado indissoluvelmente. A literatura foi entre nós uma espécie de matriz, de solo comum, que, por mais tempo que em outros países, alimentou os estudos sobre a sociedade, dando-lhes viabilidade numa cultura intelectualmente pouco diferenciada. Os brasileiros que lidaram até os nossos dias com as ciências do homem fizeram-no em grande parte como escritores – com atitude mental, linguagem, métodos mais adequados à criação literária (no sentido amplo) do que ao objeto de estudo que escolhiam.

Nos últimos vinte anos, porém, temos visto surgir, cada vez mais, jovens que, ao se interessarem pelo estudo da vida social, fazem-no despreocupados de qualquer intenção estética, visando a abordar com espírito exclusivamente científico, ou pelo menos técnico, as suas disciplinas, encaradas agora como especialidades destacadas do tratamento literário. As obras mais significativas do pensamento pré-sociológico se haviam situado, no Brasil, em terreno dúbio, onde a precisão se disfarçava sob as sugestões artísticas, ou o rigor da observação era substituído por generalizações de cunho intuitivo e técnica retórica. A restrição atual da soberania literária indica uma delimitação de esferas que é verdadeiro índice de maturidade cultural e garante a autonomia de cada uma das ciências humanas.

Todavia, as condições segundo as quais se desenvolveu a Sociologia no Brasil convergem para lhe dar certas características próprias, num sentido de maior sincretismo, ou se quiserem, maior indiferenciação que noutros lugares. Assim, é bastante largo o seu âmbito de compreensão, englobando atividades que, noutros países, seriam rotuladas de história social, etnologia, antropologia cultural, folclore, política. Sincretismo que pode parecer indevido e talvez o seja em certa medida, mas corresponde a características da nossa evolução mental e necessidades ainda sentidas de compreensão da nossa realidade. Ela só tem sido prejudicial na medida em que não cria ambiente favorável para o desenvolvimento pleno das pesquisas sobre as sociedades urbanas e seus aspectos próprios, com técnicas quantitativas e recursos à estatística, a via preferencial por que deve entrar a Sociologia moderna, depois que os estudos de caráter descritivo, de tonalidade qualitativa, foram incorporados pela Antropologia. Mas, por outro lado, permite ao espírito e aos métodos sociológicos estenderem-se por vários setores que lhe estariam vedados em países de especialização acadêmica mais estrita, enriquecendo o conhecimento da realidade e facultando maior plenitude à personalidade dos estudiosos. A atual tendência para a convergência das ciências humanas encontra mesmo, no Brasil, terreno favorável, dadas estas condições da nossa evolução intelectual.

3) Pela falta de recuo e conseqüente dificuldade em avaliar as contribuições, não é fácil uma apreciação compreensiva da obra dos sociólogos brasileiros cuja atividade como grupo principia pouco antes de 1940 e dá fruto nos dois últimos decênios. Há atualmente no Brasil pelo menos meio cento em produção ativa, contando-se por centenas os pesquisadores, técnicos e professores, mais ou menos especializados. Na relação abaixo, figuram os que, exercendo a Sociologia ou, em alguns casos, a Antropologia como atividade profissional, já apresentam obra definida, salvo raras exceções já publicada sob a forma de livro, e que ordenaremos (sem preocupação de um quadro exaustivo de nomes e orientações) pelos tópicos seguintes: (a) teoria; (b) sociedades primitivas; (c) grupos afro-americanos; (d) sociedades rústicas; (e) aculturação de imigrantes; (f) fenômenos de urbanização; (g) "sociologias especiais".

(a) Embora muitos sociólogos tenham registrado em prefácios ou artigos os seus pontos de vista e posições teóricas, poucos publicaram, até agora, livros consagrados a problemas gerais de teoria, propriamente ditos. Merecem ser citados Mário Lins, Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes.

Assim como nas primeiras etapas da evolução da nossa Sociologia os estudiosos procuraram elaborar teorias fundadas numa aplicação mais ou menos rigorosa de conceitos tomados às ciências biológicas, Mário Lins, trilhando uma senda já aberta por Pontes de Miranda com menos força sistemática no campo do Direito, procura aproveitar no mesmo sentido certos princípios da física moderna. Em Espaço-tempo e Relações Sociais (1940), deseja dar à Sociologia conceitos compatíveis ao rigor das ciências exatas, na medida em que tal é possível nas ciências do homem. Os conceitos de espaço e tempo, relação e mobilidade, são tratados em função das modernas teorias físicas, levando também em conta Pareto, Simmel, Von Wiese e Sorokin. Rejeita, porém, a separação formalista entre forma e conteúdo, além de registrar as dificuldades de estender esquemas físicos aos fatos sociais tomados na sua complexidade. Em A transformação da lógica conceptual da sociologia (1947), procura rever as suas bases conceituais à luz das novas teorias, fundadas na física moderna. A finalidade é garantir-lhe não apenas um rigor interpretativo coerente com o pensamento científico, mas preparar a sua aplicação adequada à realidade. Os novos conceitos de causalidade são estudados como garantia de afinidade entre a explicação sociológica e a das ciências físicas.

Guerreiro Ramos principiou por divulgar entre nós as teorias modernas sobre organização racional do trabalho (A sociologia industrial, 1951), ao mesmo tempo em que se dedicava aos problemas sociais brasileiros, que o levaram à preocupação acentuada com a velha "teoria geral do Brasil". O seu ponto de vista é que o trabalho sociológico se vem perdendo em investigações de detalhe, empreendidas segundo métodos tomados de empréstimo aos estrangeiros, inadequados à nossa realidade, gerando em conseqüência falsos problemas, que desviam o sociólogo da sua verdadeira finalidade. Esta consiste precipuamente em construir uma interpretação geral do país, que sirva de ponto de partida aos estudos diretamente ligados aos problemas imediatos. No debate de tais idéias, Guerreiro Ramos ainda apresenta de comum com os seus predecessores o método polêmico e a apaixonada tomada de posição, à maneira de um Silvio Romero (Cartilha do aprendiz sociólogo, 1955).

A obra teórica de Florestan Fernandes compreende, além de quase uma dezena de artigos menores, três livros: A análise funcionalista da guerra: possibilidades de aplicação à sociedade tupinambá (1949), Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia (1953), Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia (1954). Apresentam, como traço geral, a característica de sucederem a intensa atividade científica, que permitiu ao autor, ao contrário de vários teóricos, a familiaridade com a matéria e o senso prático dos problemas.

O primeiro livro é uma investigação acurada sobre as possibilidades de estabelecer o conhecimento sistemático das sociedades primitivas por meio da análise das fontes primárias de caráter não-cientifico (pré-científico), no caso os cronistas e viajantes dos séculos XVI e XVII sobre os tupinambás. É uma discussão exaustiva, em que o autor demonstra a validade do método funcionalista na reconstrução do passado e na sistematização de aspectos doutro modo não coordenáveis para uma interpretação coerente.

No Ensaio, são abordados alguns tópicos de maior importância para a Sociologia moderna. O ponto de partida é o conceito de função, que o autor, conforme algumas tendências atuais, aplica metodicamente ao trabalho sociológico, quando vinha sendo utilizado sobretudo pelos antropólogos. O método de que se trata aqui não deve ser confundido com o destes, mas engloba-o de certo modo, num sentido mais amplo e compreensivo. Trata-se em última análise de reconceituar o método "positivo" de algumas tendências tradicionais da sociologia "realista", renovado pela perspectiva atual. É o método que pressupõe uma precedência lógica do "todo" na interpretação dos aspectos particulares da vida social, interessando-se não por interpretar o significado do comportamento dos agentes (método de compreensão), nem por aferi-lo ao condicionamento de determinado fator (método dialético, v. g.), mas por determinar o papel dos fatos sociais na integração de determinado sistema. O autor funda-se na análise da contribuição de três estudiosos que lhe parecem representar, a títulos diversos, a orientação estudada: Durkheim, Radcliffe-Brown, Merton. Coloca-se, porém, não numa atitude genérica em face da explicação sociológica, mas num ponto de vista delimitado, procurando determinar posições adequadas ao tratamento de situações empíricas definidas.

Esta delimitação é logicamente aprofundada nos Apontamentos, onde toma posição por uma sociologia empírica, baseada no acúmulo metódico de dados segundo diretrizes hipotéticas definidas, a fim de fornecer base para as operações indutivas, que analisa em suas várias modalidades, tanto sob o aspecto quantitativo como sob o qualitativo. As contribuições de Durkheim, Weber e Marx são estudadas, neste sentido, à luz das orientações mais modernas da metodologia das ciências. A posição do autor é compreensiva e despida de dogmatismo, norteada pela convicção, já manifesta no trabalho anterior, de que a Sociologia só marchará para formas mais rigorosas de explicação se persistir na análise de situações delimitadas por meio dos processos empíricos. Julgada no conjunto a contribuição metodológica de Florestan Fernandes, e aferida ao sentido da nossa evolução sociológica, vemos que representa a grande expressão teórica do processo pelo qual vimos passando de uma Sociologia global para uma Sociologia com objeto definido, de um método evolutivo e comparativo para formas mais rigorosas de indução. Representa o sinal de que realizamos no Brasil, por vários modos, a marcha geral da Sociologia à busca de caráter científico: restrição de campo, definição de objeto, determinação de método.

(b) Nos estudos sobre as sociedades primitivas é freqüentemente difícil distinguir os que dependem de outras disciplinas e os que cabem na Sociologia, a despeito de os autores os enquadrarem ou não sob a sua égide. No Brasil, constituem terreno bastante palmilhado, visto como a Etnografia foi entre nós, bem cedo, um dos ramos prediletos dos que se interessavam pelo estudo das sociedades. Deixando de lado trabalhos baseados na descrição e na interpretação de aspectos puramente culturais, mencionemos apenas os que dedicam atenção sobretudo aos aspectos organizatórios, à função social dos traços, apresentados com referência ao contexto. Neste sentido podemos mencionar a atividade de Egon Schaden, Gioconda Mussolini, Lucila Herrmann, Florestan Fernandes, Fernando Altenfelder Silva.

A Egon Schaden devemos principalmente dois livros, Ensaio etno-sociológico sobre a mitologia heróica de algumas tribos indígenas do Brasil (1945) e Aspectos fundamentais da cultura guarani (1954). Aquele constitui porventura a primeira contribuição brasileira ao estudo dos mitos segundo as teorias modernas, interessadas menos na análise etiológica ou comparativa que na determinação do significado funcional. No segundo, sobrelevam preocupações de ordem mais estritamente antropológica, centralizadas pelo problema da aculturação, que o autor focaliza em vários setores, mostrando particularmente a importância das representações religiosas na integração do grupo e seu contato com as comunidades luso-brasileiras. "É no sistema religioso que, apesar das grandes diferenças de um subgrupo para outro, a cultura guarani encontra a expressão máxima de sua unidade fundamental. E é na religião que os mecanismos de defesa e as condições de resistência cultural aparecem de maneira mais manifesta." Daí a importância do estudo sobre o mito do Paraíso, a "terra sem males", para compreender os mecanismos de frustração coletiva e sua conseqüência nas relações intra e intergrupais.

A Gioconda Mussolini, voltada sobretudo para os estudos de cultura cabocla, devemos Os meios de defesa contra a moléstia e a morte em duas tribos brasileiras: Kaingang de Duque de Caxias e Bororó Oriental (1946). É uma espécie de "sociologia da doença", em que a autora estuda (sobre material tomado às obras de Jules Henry, Colbacchini e Albisetti) a gênese, o conceito e a função da doença e da morte em duas culturas preocupadas com tais problemas, mostrando o papel da integração social, da concepção de vida, bem como os efeitos da doença na definição de status, na expressão grupal etc.

Sobre o rico material colhido pelo malogrado missionário beneditino dom Mauro Wirth, Lucila Herrmann escreveu A organização social dos Vapidiana do território do Rio Branco (1946), analisada a partir dos grupos dialetais, residência e ciclo de vida, passando em seguida às associações por parentesco, território, convivência ou comemoração, para finalizar com as formas de controle político, onde aborda mais de perto problemas de mudança cultural.

Florestan Fernandes publicou em 1949 Organização social dos Tupinambá e em 1952 A função social da guerra na sociedade tupinambá, baseados numa verdadeira reavaliação analítica do material constituído pelas crônicas e relatos dos séculos XVI, XVII e XVIII. No primeiro, procede à reconstrução da organização social dos Tupinambá, combinando à exegese textual os recursos metodológicos da Sociologia moderna. Sob este ponto de vista, pode-se dizer que o trabalho apresenta duas contribuições básicas: renovação das técnicas de leitura e compreensão dos cronistas, e aplicação do método funcionalista à sistematização dos dados assim reunidos. Mediatamente resulta em renovação dos pontos de vista até aqui expendidos sobre a organização dos indígenas estudados, e a afirmação das possibilidades da Sociologia moderna na reconstrução de sistemas sociais não satisfatoriamente explicados pelo tratamento histórico ou etnográfico.

O segundo livro acentua ainda mais as possibilidades funcionalistas apresentadas no anterior, segundo a combinação aguda do que se poderia chamar o "senso da função" com o "senso da estrutura", característico de vários trabalhos da antropologia social inglesa. O autor mostra, neste sentido, após exaustiva análise contextual, como a guerra e a vindita desempenhavam, na sociedade tupinambá, função integradora, mercê das implicações mágico-religiosas, econômicas etc., que traziam certa satisfação necessária ao equilíbrio da personalidade e das relações grupais.

Em Mudança social dos Terena (1951), Fernando Altenfelder Silva analisa o papel, nesse fenômeno que estudou in loco, da troca de meio geográfico, contato com as populações mato-grossenses, catequese, novos meios de vida, que influíram decididamente no sentido da destribalização. Os atuais Terena são católicos ou protestantes, bilíngües, integrados na economia latifundiária, praticando danças e folguedos da cultura cabocla embora conservem práticas mágico-religiosas e a consciência étnica – o que não permite considerá-los assimilados.

(c) O estudo dos grupos afro-brasileiros, ou afro-americanos em sentido mais amplo, processou-se, na maioria, à margem de preocupações sociológicas, tendendo à psicologia, história, folclore, antropologia cultural, setores em que constitui objeto de uma produção abundante, e não raro de boa qualidade, sob a influência de Artur Ramos (herdeiro, ele próprio, da tradição de Nina Rodrigues), Gilberto Freyre e outros.

Num sentido mais próximo à Sociologia, ou se enquadrando inteiramente nela, destaquemos Otávio da Costa Eduardo, Ruy Coelho, Tales de Azevedo, L. A. da Costa Pinto e a publicação coletiva Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, sob a direção de Roger Bastide e Florestan Fernandes.

Em The negro in Northern Brazil (1948), diz Otávio da Costa Eduardo que o negro das comunidades maranhenses, rurais e urbanas, ajustou-se bem à situação aculturativa. Conservando traços da cultura de origem, adotando outros do meio em que vive, alcança uma síntese que garante o equilíbrio da sua personalidade, visto como tem nítida consciência dos aspectos conflituais da cultura que desenvolveu. Não se registra, assim, ambivalência ou tensão psíquica, embora os negros da cidade revelem maior índice de insegurança. Para atingir o objetivo, o autor estudou os meios de vida, organização da família, religião, ritual da morte.

Em The black Carib of Honduras (1954), Ruy Coelho, discípulo de Herskovits, como Otávio Eduardo, estuda a aculturação desse grupo centro-americano através da organização social, função econômica da família, papel do sobrenatural, para concluir pela existência de notável unidade cultural, a partir da fusão dos três elementos étnicos originais: africano, europeu, indígena. Esta homogeneidade é devida, do ponto de vista histórico, à falta de um grupo africano compacto da mesma origem que pudesse predominar no processo; ao crescimento pela inclusão de indivíduos nos grupos; à pressão do colonizador europeu, levando à união para sobrevivência. Do ponto de vista institucional, à flexibilidade da estrutura social e cultural da África Ocidental; à reinterpretação, atuando sobre elementos das três origens. Do ponto de vista psicológico, à importância conferida à iniciativa individual, permitindo a adoção harmoniosa dos elementos culturais.

Enquanto estes trabalhos se enquadram melhor nos moldes antropológicos e visam a fornecer elementos para o estudo dos grupos negros "em si", os seguintes são feitos conforme ponto de vista sociológico e estudam a posição dos negros e mestiços no conjunto da vida social.

Em Les élites de couleur dans une ville brésilienne (1953, o original brasileiro foi publicado em 1955), Tales de Azevedo investiga a ascensão social dos elementos de cor na Bahia, chegando a conclusões sensivelmente análogas às de Pierson: ausência de discriminação violenta; ascensão possível mediante o êxito pessoal; conceito convencional de brancura sancionando a posição adquirida.

Já em O negro no Rio de Janeiro (1953), L. A. da Costa Pinto se coloca em posição diversa. Estudando a situação racial do ponto de vista demográfico, estrutural, ecológico, cultural e psicossocial, toma como pedra de toque da realidade presente a análise subseqüente dos movimentos sociais do negro, para concluir pela existência de uma situação de tensão acentuada, própria de uma sociedade em mudança. Verifica a existência de um forte preconceito de cor, que, embora pouco contundente enquanto se tratou da admissão parcimoniosa de indivíduos isolados às camadas superiores, tende a agravar-se na medida em que os grupos de cor principiam, como tais, a tentar a escalada. Distingue a posição das elites de cor, que tendem a forjar ideologias ambivalentes para justificar ou proporcionar a sua incorporação aos estratos médios e superiores da sociedade, e a posição da massa, ainda à margem de tais preocupações, que, segundo o autor, não exprime os seus reais interesses, ao contrário do que proclamam os líderes. Dadas as condições atuais da sociedade brasileira, há, em resumo, "uma questão racial em processo de agravamento".

Na referida publicação coletiva, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira e as psicólogas Virginia Leone Bicudo e Aniela Meyer Ginsberg, auxiliados por numerosa equipe de pesquisadores, procederam a estudos que se podem considerar os mais rigorosos na matéria. Enquanto Oracy Nogueira analisou a situação num município do interior, os dois primeiros se restringiram à capital de São Paulo, procurando distinguir os aspectos estruturais dos aspectos raciais no comportamento em relação ao homem de cor.

(d) Os agrupamentos rústicos são constituídos por indivíduos de origem portuguesa, negra ou indígena, puros ou em grau variado de mestiçagem, ocupando-se de agricultura rudimentar e vivendo tradicionalmente em áreas rurais com maior ou menor aproximação social e cultural dos centros urbanos. Constituem a maior parte da população brasileira e têm sido objeto de numerosos estudos, por parte de americanos e brasileiros, sobretudo com recurso às monografias de comunidade, iniciadas aqui, como vimos, por Willems e Pierson. No entanto, são relativamente recentes e muitas ainda não estão publicadas. Citam-se as de Otávio da Costa Eduardo, Alceu Maynard de Araújo, Levi Cruz e Alfonso Trujillo Ferrari sobre grupos do vale do São Francisco; a de Azis Simão e Frank Goldman sobre Itanhaém; a de Gioconda Mussolini sobre a ilha de São Sebastião; a de Antonio Candido sobre Bofete etc. Fora da técnica de estudo de comunidade, que predomina mais ou menos modificada nos referidos estudos, citemos o de Maria Isaura Pereira de Queirós sobre o movimento messiânico do Contestado, e o de Carlo Castaldi, Eunice Ribeiro e Carolina Martuscelli sobre a crise mística do Catulé. Sobre os aspectos tanto rurais como urbanos de um município populoso, mencione-se a monografia de Oracy Nogueira sobre Itapetininga, nas mesmas condições. Eduardo Galvão publicou, em 1955, Santos e visagens, onde estuda a vida religiosa de uma comunidade do Baixo Amazonas.

(e) Os estudos de aculturação vêm sendo também levados a efeito, embora em menor escala, sem todavia terem aparecido em livro pesquisas neste campo, cuja atração sobre os sociólogos pode ser comprovada por numerosos artigos de revista e pesquisas em andamento, como a de Florestan Fernandes sobre os sírios, as de Vicente Unzer de Almeida e Hiroshi Saito sobre os japoneses, sem falar de publicações de caráter geral, como as de Manuel Diegues Júnior (Estudos de relações de cultura no Brasil, 1955; Etnias e culturas do Brasil, 1956).

(f) Já registramos a lacuna da nossa Sociologia no que se refere ao estudo das cidades e fenômenos específicos da urbanização contemporânea, e que pode ser explicada por vários fatores, inclusive a orientação antropológica dos estudiosos. Eles existem, todavia, embora abrangendo aspectos parciais, com resultados apresentados sob a forma de artigos e relatórios. Alguns sociólogos se dedicaram a eles de preferência, como Lucila Herrmann, Mário Wagner Vieira da Cunha, Vicente Unzer de Almeida.

À primeira devemos vários estudos de ecologia da cidade de São Paulo, um alentado sobre A estrutura social de Guaratinguetá num período de trezentos anos (1948) e outro sobre Flutuações e mobilidade da mão-de-obra fabril em São Paulo (1948).

Mário Wagner estudou o processo de racionalização burocrática na indústria paulista em A burocratização das empresas industriais (1951). O fenômeno capital da migração para as cidades foi objeto de um estudo rigoroso de Vicente Unzer de Almeida e Otávio Teixeira Mendes Sobrinho, Migração rural-urbana (1951). Vários outros aspectos da vida urbana vêm sendo estudados por sociólogos, economistas, geógrafos, muitas vezes com finalidade imediata de auxiliar a solução de problemas, como as pesquisas do grupo de Economia e Humanismo sobre habitação e nível de vida, a investigação de Costa Pinto sobre o Balconista (1954) etc.

(g) Sob a velha e, para o caso, bem cômoda rubrica de "sociologias especiais", podemos incluir, em rápida menção, certos estudos e estudiosos que não couberem nas anteriores, colocando-se porventura melhor, nalguns casos marginais, em outras ciências humanas. É o caso dos estudos de política, seja do ponto de vista teórico, como os de Lourival Gomes Machado e Orlando de M. Carvalho, seja do ponto de vista da evolução das relações e instituições, como os de Vitor Nunes Leal e Maria Isaura Pereira de Queirós sobre o coronelismo e sua relação com a vida política, ou o de Costa Pinto sobre as lutas de família. É o caso dos estudos de sociologia eleitoral de Orlando Carvalho e Azis Simão, o de A. L. Machado Neto sobre sociologia do conhecimento, ou o de Gláucio Veiga sobre sociologia educacional. É o caso do estudo de Oracy Nogueira sobre as experiências psíquicas e sociais do tuberculoso (Vozes de Campos do Jordão, 1947), ou o de vários outros sobre aspectos sociais, culturais e função social do folclore, de Florestan Fernandes, Gioconda Mussolini, Antônio Rubbo Müller. São, ainda, os trabalhos de sociologia econômica de José de Faria Tavares e Júlio Barbosa, o de José Artur Rios sobre as técnicas de ação nos grupos, ou os densos estudos demográficos de José Francisco de Camargo.

Conclusão

Uma observação, antes de finalizar. No esboço anterior salientaram-se, depois de 1930, como ficou dito, os estudiosos que se consideram e são considerados sociólogos (em alguns casos, antropólogos), formando um conjunto profissional e científico. Mas, dado o caráter sincrético da nossa Sociologia, há outros estudiosos rotulados como historiadores, geógrafos, juristas etc., que produzem obras sensivelmente análogas às menos técnicas (no sentido específico) dentre as referidas, que superam muitas vezes em importância. Basta mencionar a contribuição teórica de Carlos Campos sobre Filosofia e sociologia do direito (1940) ou a obra de Caio Prado Júnior sobre a Formação do Brasil contemporâneo (1942), para não falar na de Sérgio Buarque de Holanda, seja na linha tradicional das interpretações gerais do Brasil (Raízes do Brasil, 1936), seja na análise das técnicas de ajustamento do colonizador ao meio (Monções, 1945; Índios e mamelucos na expansão paulista, 1949).

Feita a ressalva, podemos dizer que, partindo das discussões genéricas, da divulgação e das "teorias gerais do Brasil", a Sociologia se configurou afinal entre nós como disciplina caracterizada, embora sincrética, praticada cada vez mais por especialistas. Hoje é possível a formação adequada do sociólogo entre nós, devido à organização do ensino, relativa densidade do meio científico e solicitação crescente da sociedade, em fase de grande progresso técnico e conseqüente racionalização nos setores administrativo, assistencial e de planejamento. É fora de dúvida que a sociologia brasileira já existe como bloco, o que se verifica pela posição internacional que vem adquirindo aos poucos. Até aqui, projetava-se fora do país este ou aquele sociólogo, destacado como exceção graças ao mérito pessoal; hoje, sem prejuízo disso, é a nossa sociologia que começa a projetar-se em conjunto.

Este artigo foi publicado originalmente em 1959 na Enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, Delta S.A., pp. 2216-32) (N. E.).

Antonio Candido é professor-emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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    Redigido em 1956, este texto foi publicado em 1959 na
    Enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, Delta S.A., pp. 2216-2232; 2ª ed. 1964, tomo IV, pp. 2107-2123). Tendo aceito o encargo de coordenar o setor de Ciências Sociais, Fernando de Azevedo me convidou para elaborá-lo, ao mesmo tempo que convidava Florestan Fernandes para o básico, "Sociologia". Meio século depois, o seu interesse é apenas o de um "documento de época". Por isso concordei que fosse reproduzido, com todo o inevitável desgaste do tempo. Não me preocupei em corrigir erros eventuais, mas há um, talvez o maior, que me incomoda: a avaliação deficiente da obra de Manoel Bonfim, cuja importância e verdadeiro significado só mais tarde compreendi. (Ver, por exemplo, o artigo "Radicalismos", texto de uma palestra de 1988 publicada em 1990 na revista
    Estudos Avançados, v. 4, n. 8, e recolhido no meu livro
    Vários escritos, cuja 4ª edição, pela Editora Ouro sobre Azul, Rio de Janeiro, é de 2004.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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