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Culturas de classe

RESENHAS

Leonardo José Ostronoff

Mestrando do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo

Cláudio M. Batalha, Fernando T. da Silva e Alexandre Fortes (orgs.), Culturas de classe. Campinas, Unicamp, 2004, 438 pp.

Nos últimos anos, muitos estudos sobre o trabalho têm abordado as áreas culturais do "operariado". O livro Culturas de classe é uma mostra desse fenômeno, trazendo doze artigos que tratam da "cultura operária", todos baseados em pesquisas realizadas no período compreendido entre a segunda metade dos anos de 1980 e o início da década seguinte. Na apresentação do livro, os organizadores Cláudio M Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes enfatizam que a discussão sobre as "culturas de classe" remete à apreensão das diferentes formas pelas quais os operários organizam as suas experiências no sentido da constituição de uma identidade de classe. Ainda que o debate esteja inserido no campo da historiografia, essa é uma questão pertinente também à sociologia e à antropologia do trabalho. O aumento da importância dessa área cultural nos estudos do "operariado" tem aberto a possibilidade de avançar no conhecimento a respeito da vida dos trabalhadores, acentuando a diversidade no interior da classe operária e trazendo contribuições importantes para as pesquisas e análises referentes ao tema.

O livro divide-se em três partes. Na primeira delas, intitulada "Classe e cultura: um balanço conceitual e historiográfico", os historiadores ingleses Mike Savage e Neville Kirk discutem os conceitos de classe e cultura operária nos dias de hoje. Os autores contrapõem às abordagens que tomam a classe operária de forma homogênea, com base exclusivamente na análise dos processos de trabalho, a existência de diferenças internas no operariado, que remetem a aspectos culturais como gênero, lazer, religião etc. Se essas diferenças devem ser consideradas na agenda de pesquisas sobre o trabalho, isso não significa, porém, a desconsideração dos elementos integradores da classe. Savage e Kirk mostram justamente que as tendências "integradoras" e "desintegradoras" convivem.

A segunda parte do livro, sob o título "Sociabilidades, identidades e classe", é composta por três capítulos, cujo objetivo é mostrar como as festas, os símbolos, as práticas cotidianas e esportivas constroem a identidade de classe dos trabalhadores, e a ela estão intrinsecamente ligados. A preocupação dos autores é demonstrar que o trabalho não é o único espaço de sociabilidade que contribui na formação da identidade da classe operária. Os artigos de Michel Ralle, Cláudio Batalha e José Sérgio Leite Lopes, compreendendo o período de meados do século XIX aos anos de 1930, permitem a abordagem de aspectos fundamentais para a compreensão da classe operária, como o lazer, o preconceito de cor e de classe, a etnicidade e a elaboração dos símbolos que ajudam a definir a identidade e a unidade do operariado.

A terceira parte recebe o nome de "Culturas de ofício", e trata da construção de relações de identidade dos trabalhadores por meio de seus ofícios. Os dois artigos que compõem essa parte do livro deixam clara a existência de um conjunto de valores, práticas e julgamentos comuns aos trabalhadores de um mesmo ofício. Artur Vitorino, em seu artigo "Os sonhos dos tipógrafos na corte imperial brasileira", procura estabelecer uma configuração da identidade dos operários nos discursos dos tipógrafos das décadas de 1850 e 1860 na corte imperial brasileira. Essa identidade estaria relacionada a uma "missão" da qual os tipógrafos acreditavam ser portadores, que consistia em difundir, por meio da imprensa, o conhecimento geral para um grande número de pessoas, tanto no presente como no decorrer dos séculos.

O historiador Fernando Teixeira da Silva, em seu artigo "Valentia e cultura do trabalho na estiva de Santos", destaca um aspecto importante para a compreensão da identidade dos portuários ao relacioná-la às características consideradas necessárias para a eficiência nesse ofício, tidas como masculinas: virilidade e força. Nesse sentido, tornou-se comum a legitimação das lideranças a partir de práticas intimidadoras dos mais fortes sobre os mais fracos e do exercício da autoridade com uma política de favoritismos que provocava o surgimento de conflitos. Apesar disso, Teixeira da Silva conclui afirmando que agregação e desagregação conviveram, mas, por outro lado, apesar e por causa da diversidade, da divisão, da competição e dos conflitos, foram-se fortalecendo práticas integrativas que teriam criado as bases de uma cultura de solidariedade entre os estivadores.

A quartaparte do livro é intitulada de "Gênero, fábrica e política". Os dois artigos que a compõem, de Mirta Zaida Lobato e de Daniel James, têm em comum o fato de se concentrarem na análise das relações de trabalho na indústria frigorífica instalada na Argentina, especificamente na cidade de Berisso, e na organização sindical e lutas operárias.

Enquanto Lobato trabalha a atuação dos militantes operários comunistas e sua luta pela organização de base dos trabalhadores em frigoríficos daquela região, James discute o papel da mulher trabalhadora na família, na fábrica, no sindicato e na política utilizando a história de vida de doña María. Essa opção metodológica permitiu a esse autor uma interessante discussão a respeito das possibilidades e dos limites do recurso à história oral pela historiografia, vendo nela não um obstáculo à objetividade científica, mas uma forma de dar voz aos sem voz, recuperando a dimensão subjetiva na narrativa histórica. A leitura que James faz dessa história de vida apreende não só a dimensão de classe, mas principalmente a de gênero, ao mostrar as ambivalências e as contradições que marcam a vida de trabalho e de militância de mulheres que, em sua vulnerabilidade, desafiam o poder e a autoridade masculina. Os dois artigos demonstram que a classe operária não é composta apenas de homens, mas também de mulheres que fizeram e fazem parte do movimento operário. É possível destacar uma relação entre o artigo de Teixeira, presente na terceira parte, e os artigos dessa quarta parte. Tanto na estiva de Santos quanto nos frigoríficos de Berisso, há a valorização das características tidas como masculinas enquanto critérios de qualidade e eficiência no trabalho, bem como de legitimidade, de constituição de líderes e de mitos.

A última parte do livro, "Migrações, etnicidade e cultura fabril", é composta por três artigos que enfocam a relação entre classe, etnicidade e participação política na formação de identidade do operariado. A etnicidade favoreceria a identificação prévia de contingentes de trabalhadores originários das mesmas regiões, sendo a base da construção de laços de solidariedade e da criação de coletivos.

O primeiro artigo é de Alexandre Fortes, "Os outros polacos". O termo "polaco" diz respeito não somente aos descendentes de poloneses, mas aos grupos oriundos do Leste europeu como um todo, ou seja, ucranianos, bielo-russos etc. Analisando esses grupos de imigrantes em Porto Alegre, o autor demonstra os elementos simbólicos da formação da classe trabalhadora naquela região. A luta pela sobrevivência e pela melhor inserção em sua nova terra teria feito com que esses grupos de trabalhadores se deparassem com a necessidade de assumir uma posição em relação às disputas políticas internacionais e, com base nelas, realizar diferentes políticas de aliança. Para Fortes, a vivência política dos polacos teria deixado um acúmulo de experiências que depois seria usado para constituir lideranças comunitárias, organizadores políticos de base e sindicalistas.

No artigo "Migração nordestina e experiências operárias (São Miguel Paulista nos anos 1950)", que tem como referência o bairro de São Miguel, conhecido reduto nordestino da cidade de São Paulo, e a Nitroquímica, fábrica instalada naquela localidade, cujo quadro de funcionários era formado principalmente pela mão-de-obra desses imigrantes nordestinos, Paulo Fontes mostra que as redes de sociabilidade típicas do Nordeste continuaram valendo em São Paulo. O autor não considera o campo econômico como o único fator de explicação para as migrações, mas afirma que os migrantes possuíam e elaboravam diferentes estratégias que contribuíam para a constituição do processo migratório. O estabelecimento de redes sociais possibilitou a elaboração de uma solidariedade com base não na classe social, mas alicerçada em relações pessoais. Segundo o autor, essa unidade foi decisiva para a formação de lideranças e para legitimar a ação sindical na região no período entre 1945 e 1964. Fontes conclui seu artigo afirmando que essas redes de relações sociais e os valores culturais comuns reforçaram a identidade de trabalhadores migrantes.

O último capítulo, "Zé Brasil foi ser peão: sobre a dignidade do trabalhador não qualificado na fábrica automobilística", de Antonio Luigi Negro, trata dos operários originários do trabalho rural que foram incorporados à indústria automobilística. Zé Brasil é uma referência a um personagem de Monteiro Lobato desenhado no pós-guerra para defender a reforma agrária. Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, esses trabalhadores rurais, grande parte deles formada de migrantes nordestinos sem nenhum conhecimento anterior do trabalho fabril, afirmam-se como os novos personagens do movimento operário, necessitando romper, contudo, com os preconceitos que sofriam por parte dos demais operários e até mesmo por parte dos estudos a seu respeito. Negro traça em seu artigo a trajetória desses trabalhadores construtores de automóveis que estão na origem do "novo sindicalismo" e do desenvolvimento econômico da região do ABC, mostrando o seu duro aprendizado fabril, a sociabilidade operária e a construção de seus pontos de vista, fundamentais para a elaboração da identidade de "peão".

Culturas de classe representa uma importante contribuição para os estudos do trabalho, fornecendo ao leitor textos a respeito da cultura operária construídos a partir de sólidas pesquisas e com análises consistentes. Essa obra constitui um estímulo e uma abertura para novos estudos sobre a diversidade de expressão cultural dos operários, na medida em que incentiva olhar os trabalhadores não apenas no interior do processo do trabalho, mas levando em conta o bairro onde moram, a sociabilidade externa à fábrica, suas redes de amizade familiares e de convivência, suas histórias de migração, suas formas de lazer, e tornando explícito como essas questões constituem uma cultura operária e interferem na formação da classe e também conferem possibilidades aos trabalhadores de se organizarem para a ação política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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