Acessibilidade / Reportar erro

Conflitos do outono de 2005 na França

The 2005 autumn riots in France

Resumos

As revoltas do outono de 2005 na França constituem, para além dos estragos cometidos (menos significativos do que se supõe), um verdadeiro acontecimento, já que cristalizaram problemas presentes mas ainda não percebidos, e geraram um limite temporal a partir do qual a sociedade muda o olhar sobre si mesma. Uma possível interpretação do acontecimento apresenta dois níveis. De um lado, as circunstâncias que o desencadearam estão ligadas, como qualquer revolta ocorrida nos últimos 25 anos, a violências policiais que desestabilizaram a precária economia moral dos meios populares. De outro lado, os fenômenos subjacentes envolvem uma forma particular de desigualdade que, durante muito tempo, a sociedade francesa se recusou a admitir: as discriminações raciais.

França; Revoltas; Discriminações raciais; Desigualdade social


The 2005 autumn riots in France may be considered a real event: it has given shape to issues not seen before as such yielding a time boundary which changed the way society regards itself. The suggested interpretation has two levels. On the one hand, the circumstances that have triggered off the events are related, as succeeds in any riots of the last 25 years, to police violence and the resulting unsettling in the precarious moral economy of the popular classes. On the other hand, the underlying phenomena are related to a particular form of inequality not acknowledge by French society: racial discriminations.

France; Riots; Racial discriminations; Social inequality


DOSSIÊ – SOCIOLOGIA DA DESIGUALDADE

Conflitos do outono de 2005 na França* * Este texto é a versão revisada de uma conferência pronunciada em 25 de janeiro de 2006 na École des Hautes Études en Sciences Sociales [EHESS], dentro de um ciclo intitulado "Pensar a crise das periferias". A versão filmada da conferência está disponível no site www.ehess.fr. Posteriormente, essa reflexão foi prolongada no quadro de uma obra coletiva: De la question sociale à la question raciale? Représenter la société française, sob a direção de Didier Fassin e Eric Fassin (2006).

The 2005 autumn riots in France

Didier Fassin

RESUMO

As revoltas do outono de 2005 na França constituem, para além dos estragos cometidos (menos significativos do que se supõe), um verdadeiro acontecimento, já que cristalizaram problemas presentes mas ainda não percebidos, e geraram um limite temporal a partir do qual a sociedade muda o olhar sobre si mesma. Uma possível interpretação do acontecimento apresenta dois níveis. De um lado, as circunstâncias que o desencadearam estão ligadas, como qualquer revolta ocorrida nos últimos 25 anos, a violências policiais que desestabilizaram a precária economia moral dos meios populares. De outro lado, os fenômenos subjacentes envolvem uma forma particular de desigualdade que, durante muito tempo, a sociedade francesa se recusou a admitir: as discriminações raciais.

Palavras-chave: França; Revoltas; Discriminações raciais; Desigualdade social.

ABSTRACT

The 2005 autumn riots in France may be considered a real event: it has given shape to issues not seen before as such yielding a time boundary which changed the way society regards itself. The suggested interpretation has two levels. On the one hand, the circumstances that have triggered off the events are related, as succeeds in any riots of the last 25 years, to police violence and the resulting unsettling in the precarious moral economy of the popular classes. On the other hand, the underlying phenomena are related to a particular form of inequality not acknowledge by French society: racial discriminations.

Keywords: France; Riots; Racial discriminations; Social inequality.

Não é muito freqüente as ciências sociais – institucional e profissionalmente – reagirem a um fato social que toma uma forma de acontecimento. Temos em geral uma espécie de reticência a tratar da atualidade, que preferimos deixar aos jornalistas, reclamando para nós mesmos a distância e a duração: distância do olhar científico, duração da pesquisa etnográfica ou sociológica. Sob esse aspecto, a antropologia é exemplar: muito poucos de seus trabalhos tratam de acontecimentos, a descrição prevalece sobre a narração, o presente do intemporal e das regularidades é mais aceito que o passado simples do relato e das peripécias. E, mesmo que o tempo seja o objeto de nossas pesquisas, esse tempo é o da mudança social, ou seja, das mutações profundas e das transformações estruturais. Não o do acontecimento, que tendemos a ver apenas como a espuma de mudanças sociais mais essenciais à nossa análise. Mas com os fatos que se produziram no final do mês de outubro e começo de novembro de 2005, e pela importância que adquiriram para a sociedade francesa – e mesmo para o mundo, pois foram mostrados espetacularmente pelos meios de comunicação em todo o mundo –, há uma certa reabilitação do acontecimento, não como uma realidade acessória entregue ao tratamento jornalístico, mas como uma realidade essencial, na medida em que revela fenômenos dissimulados ou ocultos. Esses conflitos podem, seguramente, ser compreendidos como uma prova de verdade.

Mas o que é um acontecimento? Ou, para dizer de outro modo: o que é que produz acontecimento nas violências urbanas que testemunhamos? Devemos aqui resistir ao fascínio das imagens de prédios em chamas, veículos queimados, jovens com máscara ninja e policiais de capacete que constituíram a iconografia mais difundida. De minha parte, realizando pesquisas junto a uma brigada anticriminal de Paris e circulando à noite com a polícia numa das duas regiões onde as estatísticas de violências eram as mais elevadas, pude apenas constatar o contraste entre o que alguns comentadores qualificavam de "guerra civil" e o que eu via, a saber, uma calma ordinária de periferia, pontuada, na maioria das vezes, por incêndios esporádicos cujos autores praticamente haviam desaparecido quando a polícia chegava no local e que só muito excepcionalmente ocasionavam confrontos, em geral sob a forma de veículos incendiados. Respondendo a uma de minhas perguntas sobre as violências observadas em seu distrito, o comissário principal de um dos supostos pontos quentes da cartografia dos conflitos que os meios de comunicação mostravam diariamente devolveu-me a pergunta: "De que violência está falando? Se são veículos incendiados, de fato o número é maior que de costume. Mas, se está falando de confrontos, praticamente nada aconteceu". O que me foi confirmado a seguir pelos policiais da brigada anticriminal, que são evidentemente, por sua missão, os primeiros no front das violências. Devemos assim nos interrogar sobre a produção midiática e política do acontecimento, e, é claro, sobre seus efeitos em termos de construção dos medos e, mais amplamente, de representações do mundo social e da relação com o outro interior, ao mesmo tempo próximo e distante, familiar e inquietante, novo avatar das "classes perigosas" de outrora.

Para voltar à questão inicial, o que produz acontecimento não é talvez o número de veículos queimados e policiais feridos – que, evidentemente, participam de sua realidade. O que produz acontecimento é a separação de dois estados do mundo social, entre um "antes" e um "depois". Se os conflitos urbanos do outono de 2005 constituem um acontecimento, é porque hoje não vemos mais a sociedade francesa exatamente da mesma forma, ou porque a sociedade francesa não se vê mais exatamente da mesma forma. No centro dessa mudança de olhar e dessa nova reflexão está a questão das discriminações raciais, de certo modo consagrada pelo discurso solene do presidente da República, que fez dela o ponto essencial de sua única intervenção televisada, mas que deu ensejo também a múltiplas matérias de jornalistas e a numerosos exercícios de introspecção. Claro que já se havia, antes, começado a falar de discriminações e a preocupar-se com elas. Houve trabalhos de sociólogos – de Philippe Bataille e Véronique De Rudder sobre o emprego, de Agnès Van Zanten sobre a escola e de Patrick Simon sobre a moradia. Houve relatórios oficiais, a começar pelo Alto Conselho para a Integração, em 1998, e mobilizações associativas, especialmente o Gisti. Já havia o Geld (Grupo de Estudo e de Luta contra as Discriminações), ao qual sucedeu a Halde (Alta Autoridade para a Luta contra as Discriminações e para o Emprego); as Codac (Comissões Departamentais de Acesso à Cidadania), transformadas em Copec (Comissões para a Promoção da Igualdade de Oportunidades e da Cidadania), supostamente encarregadas das queixas de pessoas que sofreram discriminações; o 114, número anônimo e gratuito pelo qual podiam ser ouvidas as vítimas e as testemunhas de discriminações raciais, e que aos poucos caiu em desuso; a lei que transferiu o encargo da prova, em matéria de discriminações, da vítima para o autor presumido, e a jurisprudência que passou a incluir a discriminação indireta, ou seja, estatisticamente estabelecida e independente de qualquer intencionalidade. É verdade: em menos de uma década passamos de um silêncio total a um reconhecimento oficial. Mas o tema permanecia relativamente confinado ao meio das ciências sociais e aos círculos político-administrativos. O que os livros dos pesquisadores e o trabalho das instituições se esforçavam por fazer emergir, alguns incêndios espetaculares e algumas violências relativamente contidas tornaram visível à grande massa: a questão das discriminações raciais, na medida em que representa um desafio ao modelo republicano, tornou-se central no espaço público – não importando o que se pense dela.

Os conflitos das periferias, portanto, são um acontecimento no sentido de que estabelecem simbolicamente um antes e um depois na sociedade francesa contemporânea – o que a multiplicação dos comentários e das análises vem atestar. O confronto do modelo republicano e das discriminações raciais é agora um lugar-comum de nossa linguagem. As violências recentes, porém, não são o único elemento explicativo. Seria preciso também levar em conta a redescoberta da questão colonial relacionada à lei de fevereiro de 20051 1 Lei Ordinária 2005-102, sobre a igualdade de direitos e oportunidades (N.T.). , a reavaliação da história do tráfico de escravos, a reivindicação de uma memória da escravidão e a emergência de uma identidade negra por meio de uma mobilização associativa, elementos, todos esses, que suscitaram uma intensa polarização dos debates em torno das relações ambíguas da República com seu passado e seu presente. Sob esse aspecto, em vez de isolar os conflitos na gênese de uma "questão racial", caberia antes falar de configuração de acontecimentos, de um conjunto de fatos significativos para a sociedade francesa de hoje.

Um lugar-comum, no entanto, não é uma verdade sociológica. E assim devemos tornar a interrogá-lo com nossos instrumentos, isto é, à luz de nossas investigações. Antes de fazer isso, gostaria de voltar uma última vez ao acontecimento em si. Em sua maior parte, os comentários políticos e as análises das ciências sociais relacionaram os conflitos com as desigualdades de que são vítimas certos jovens em termos de emprego, de moradia e, mais globalmente, de futuro. Ou seja, estabeleceu-se naturalmente uma relação causal entre uma situação socioeconômica comprovada e uma manifestação violenta de frustração. Essa explicação me parece parcialmente inexata: ela não permite compreender realmente os fatos que se produziram. Os conflitos não resultam de maneira determinista de uma realidade do mercado de trabalho e das relações de produção. Conforme analisou o historiador britânico E. P. Thompson a propósito das rebeliões de camponeses ingleses no século XVIII, o que está em causa não é só uma questão de economia política, mas uma questão de economia moral: assim como em todos os conflitos urbanos no último quarto de século na França, a violência é consecutiva à morte de adolescentes ou de jovens no quadro de choques com a polícia, isto é, de perseguições ou de brutalidades. Da mesma forma que os camponeses ingleses do século XVIII, os jovens franceses dos bairros ditos em dificuldade aprenderam a tolerar um certo grau de discriminação, de exploração, de humilhação. Mas é a ruptura desse frágil equilíbrio dos valores que gera a violência: quando há morte de um ou, no caso presente, de dois deles – e com mais razão quando se trata de jovens que não haviam cometido delito algum, ou com mais razão, enfim, quando o luto da família e dos amigos não é reconhecido –, é então que a exasperação se produz, porque se foi longe demais. O intolerável é menos a desigualdade social ou a discriminação racial do que a desvalorização das vidas e a desqualificação dos mortos, que são, é verdade, a conseqüência das primeiras. É a negação radical de justiça levada ao extremo, o não respeito às regras do próprio jogo desigual, que constitui o fator desencadeador das violências, tanto hoje como ontem. É importante analisar isso, caso contrário não se compreende por quê – se apenas a economia política estivesse em causa – não haveria uma guerra civil permanente. Caso contrário não se compreende, sobretudo, que a questão levantada por esses acontecimentos é a do Estado como detentor do monopólio da violência legítima que, nesses bairros considerados difíceis, passa a empregar uma violência ilegítima de maneira ordinária.

De fato, os policiais e seus superiores, quando interrogados, justificam com freqüência o uso da força como uma necessidade diante da perda de autoridade generalizada, a dos pais, dos professores, das instituições, da própria polícia. Convém certamente inverter essa relação causal: é o uso injustificado e desproporcional da força – ao mesmo tempo brutalidade física e violência simbólica – que mina a autoridade do Estado e de suas instituições, pois esta é precisamente o que se impõe por si sem recurso à força. Num processo por violências policiais a que assisti no ano passado (violências contra dois homens, um turco e outro antilhano, ambos sem ligação com o caso no qual cerca de trinta policiais intervieram), os próprios acusados relataram à audiência que, no momento de lançarem sua expedição punitiva num bairro, seu comandante os estimulara, dizendo: "Perdemos a guerra da Argélia, não vamos recomeçar. Desta vez, nada de prisioneiros...". Percebe-se quanto, numa cena como essa, a autoridade do Estado vê-se prejudicada e quanto o passado colonial subjaz às discriminações raciais. Portanto, é a relação concreta com o Estado que está no princípio dos conflitos urbanos recentes.

Dito isso, convém voltar, no entanto, ao que torna tais fatos possíveis. Se a relação com a força política constitui o fator desencadeador, devemos então nos interrogar sobre quais são suas condições de possibilidade. É aqui que a questão das discriminações raciais obriga a pensar com novo interesse as questões mais antigas colocadas às ciências sociais pelas disparidades econômicas e pela segregação residencial: à classe e ao bairro como elementos que estruturam as desigualdades, estudados por Stéphane Beaud e Michel Pialoux, cumpre agora acrescentar a atribuição étnico-racial. Fazer uma leitura étnico-racial dos conflitos recentes envolve, com certeza, problemas delicados, pois essa é precisamente a maneira pela qual os conflitos foram qualificados, e portanto desqualificados, por comentadores como Alain Finkelkraut, que fala de "pogroms anti-republicanos" praticados por jovens "negros e árabes". Minha intenção é completamente outra, como terão compreendido. Não quero dizer que a revolta é étnico-racial, mas sim, ao contrário, que é um protesto contra a atribuição étnico-racial imposta a certas populações, e contra as discriminações que daí decorrem. Como outros já disseram, Emmanuel Todd, por exemplo, para ficar no registro de intelectuais não específicos, ela é um protesto republicano, portanto.

As discriminações oferecem aqui um instrumento conceitual e jurídico para pensar uma realidade evidentemente antiga à qual não se dava nome, mas que existia de fato. Podemos lembrar que uma discriminação é um tratamento desfavorável ligado ao uso de um critério ilegítimo – aqui em função da origem da pessoa, da cor de sua pele, da consonância de seu patrônimo, da sua suposta religião. É essencial compreender que a discriminação, que é uma ruptura da igualdade de direito entre as pessoas, não é o racismo. Embora os dois sejam facilmente associados, existe um racismo sem discriminação, o do empregador que tem preconceitos contra africanos, mas que os contrata porque aprecia sua coragem e sua docilidade, assim como existem discriminações sem racismo, as do artesão que não recruta um aprendiz árabe por temer a reação de seus clientes. As agências de emprego aprenderam a decodificar essas formas múltiplas de associação entre discriminações e racismo nas ofertas que lhes apresentam os empregadores, como observou o sociólogo Olivier Noël: uns exigem os BBR (bleu-blanc-rouge2 2 Azul-branco-vermelho, as cores da bandeira francesa (N.T.). ), isto é, que não sejam "pessoas de cor"; outros, ao contrário, precisam dos CLD (crève-la-dalle3 3 Algo como "quebra-pedras" (N.T.). ), isto é, pessoas "dispostas ao serviço pesado", ou seja, dos países do Sul.

As discriminações raciais não são certamente novas: os imigrados e os estrangeiros foram suas vítimas ao longo de todo o século XX. Com freqüência eles consentiram, tendo interiorizado mais ou menos essa ilegitimidade. O fato novo, porém, é que hoje elas envolvem em massa franceses nascidos na França, que não compreendem que não sejam tratados como o restante dos franceses nascidos na França e que constatam que essa diferença de tratamento está ligada a preconceitos comuns sobre uma origem na qual são encerrados. Nesse ponto, aqueles de meus colegas historiadores que continuam a pensar a situação atual em termos de imigração e a qualificar as formas contemporâneas de rejeição do outro em termos de "xenofobia" não perceberam essa mudança essencial, juntando-se assim, involuntariamente, aos responsáveis políticos que associaram conflitos e imigração. Claro que a xenofobia permanece, acentua-se mesmo sob alguns aspectos, mas os conflitos em questão dizem respeito basicamente a franceses autóctones vítimas de racismo e de discriminações.

Como compreender então a persistência e talvez o agravamento das discriminações raciais num país que há dois séculos constrói-se sobre uma ideologia um pouco apressadamente qualificada de republicana? Ideologia fundada num tríplice princípio de igualdade, universalismo e assimilação, cada um desses três elementos parecendo padecer com as discriminações raciais, na medida em que estas são uma desigualdade de fato oposta a uma igualdade de direito, uma redução identitária que nega o universalismo e um fracasso do trabalho de assimilação. Contrariamente ao que se pensou por muito tempo, não se trata de um acidente da história, mas sim de uma contradição que sempre esteve presente na República. Caberia então percebê-la por meio do conjunto do que se pode chamar, em vez de uma política da imigração relacionada a questões de cidadania, uma política da alteridade constitutiva da construção da nação. Uma política que poderia ser seguida – e hoje isso se compreende melhor graças ao trabalho dos historiadores e dos antropólogos – até o período colonial, com aquele encontro insólito entre a República francesa e seus indígenas, que ela procurou tratar simultaneamente, segundo a fórmula de Hannah Arendt, como irmãos e como súditos, assimilando-os ao mesmo tempo que os separava.

Hoje, a dialética da integração e da discriminação é, com certeza, uma herança dessa história, no núcleo do próprio Estado. Nas cerimônias de naturalização que foram instituídas para dar mais solenidade, e às vezes mais calor, ao ato de entrega do documento às pessoas que obtêm a nacionalidade francesa – cerimônias sobre as quais realizei observações durante vários meses –, o representante do Estado opera o duplo gesto em que, de um lado, pronuncia o ingresso dessas pessoas na comunidade nacional, acompanhado de um diaporama sobre a história e os valores da França, e, de outro, relembra-lhes em seu discurso que elas são diferentes, não exatamente iguais e, com certeza, suspeitas de não conhecerem os valores republicanos, insistindo no trabalho que terão de realizar daí em diante sobre si mesmas para se tornarem dignas do que ele qualifica de "favor que vos concede a República".

Sabemos que a invocação desse modelo republicano foi o principal obstáculo ao reconhecimento da existência de discriminações raciais até o final dos anos de 1990. Nomeá-las e avaliá-las era, por uma espécie de performatividade do discurso, fazê-las existir no espaço público e, por acréscimo, estigmatizar ainda mais os que eram suas vítimas. Era preferível, pois, silenciá-las e trabalhar discretamente para uma melhor integração daquelas e daqueles que continuavam a ser vistos como estrangeiros, quando eram com freqüência franceses, ou como imigrados, quando geralmente haviam nascido na França. Quanto menos se falasse deles, melhor as coisas andariam. E a denegação das discriminações raciais pelos que eram seus autores ou observadores podia mesmo encontrar um eco na recusa das próprias vítimas, que preferiam fazer-se esquecer. É esse pano de fundo de ocultação sob pretexto de benevolência, em uns, e de silêncio marcado de culpabilidade, em outros, que continua ainda operando nesse duplo movimento pelo qual mesmo os que se encarregaram de lutar contra as discriminações nas prefeituras e nas comunas, nas empresas e nos tribunais, não se convenceram totalmente da razão de ser de sua ação. Como compreender ainda hoje essa recusa, no momento em que parece haver enfim um reconhecimento do fenômeno?

Primeira explicação: para muitos é difícil nomear o que constatam e mesmo aqueles de quem falam. Hesita-se em dizer discriminações, há repugnância em qualificá-las de raciais. Mistura-se com freqüência "estrangeiros", "imigrados" e "franceses nascidos na França" que, por falta de palavras, são designados então como "oriundos da imigração". Diz-se "jovens", como os empregadores que declaram que não os querem em sua empresa, para não dizer "pessoas de cor". Diz-se "magrebinos"4 4 Natural do Magreb, África do Norte (N.T.). , como por ocasião dos conflitos de Perpignan em maio de 2005, para nomear pessoas com essa origem que têm nacionalidade francesa. Todos se lembram do próprio presidente da República, denunciando com vigor, em 14 de julho de 2004, os atos racistas e anti-semitas, e acrescentando: "Muitos judeus, muçulmanos e mesmo franceses são vítimas de intoleráveis violências". As palavras traem assim nossas dificuldades de pensar essas situações. Há uma necessidade urgente, portanto, de clarificar nossa linguagem, isto é, de clarificar também nosso pensamento.

Segunda explicação: muitos desconhecem a realidade do que são as discriminações raciais e o arsenal de que dispõem para combatê-las, mesmo que faça parte de sua missão lutar contra esse tipo de desigualdade. Muitas vezes elas são reduzidas aos simples atos ou palavras explicitamente racistas, não se levando então em conta a maior parte das situações de discriminação de fato, sejam elas diretas ou indiretas. Contudo, muitos fatos que os atores descrevem, e que eles não consideram como procedendo realmente de discriminações, incluem-se nessa definição. Mas, ainda que elas sejam reconhecidas como tais, ignora-se com freqüência os instrumentos disponíveis para combatê-las. Essa constatação foi feita pela missão de inspeção da Igas (Inspeção Geral dos Assuntos Sociais) e da IGS (Inspeção Geral dos Serviços): as comissões de defesa da cidadania, não obstante serem pedras angulares da política, conhecem geralmente muito mal os dispositivos institucionais e as disposições legislativas. Com isso, o recurso ao direito por processos penais ou civis, ou mesmo por meio de negociações com os produtores de discriminação para obter uma forma de reparação às vítimas, é raramente utilizado. Em realidade, a renúncia a recorrer ao direito, que é a forma mais ordinária de tratamento das queixas e dos sinais de discriminação, está ligada tanto ao desconhecimento desse direito como, talvez ainda mais entre os que o conhecem, a um evitamento. Prefere-se não mais enviar certos jovens a certos empregadores a denunciar suas práticas, e isso, pensa-se, no interesse dos próprios jovens. Prefere-se não utilizar num tribunal o argumento do caráter racista de uma violência, porque se sabe que há o risco de os juízes não concordarem. Assim, as pessoas se privam muitas vezes do direito porque não crêem completamente em sua força nem em seus efeitos, pelo menos no curto prazo.

Terceira e última explicação: muitos não estão inteiramente convencidos da realidade das discriminações. Claro, estão prontos a admiti-las em suas formas extremas, mais brutais, explícitas. Mas também consideram muitas vezes que as pessoas que se dizem vítimas tendem a cair na "vitimização", ou, ao contrário, justificam os que produzem discriminações porque eles têm, explicam, boas razões de fazê-lo. A desqualificação das vítimas em nome da vitimização e a justificação das discriminações em nome de sua racionalidade constituem, portanto, dois elementos importantes de normalização dessas práticas. Não discutirei o segundo elemento, para o qual toda uma corrente de estudos econômicos traz importantes luzes. Sublinharei apenas, a propósito do primeiro, que nada permite pensar que o reconhecimento recente das discriminações raciais no espaço público francês suscitou vocações vitimárias. Muito pelo contrário, a maioria daquelas e daqueles que foram objeto dessa forma de desigualdade quase não se queixaram, sobretudo por considerarem muito elevado o custo simbólico de admitirem-se discriminados pelo que são. Assim, antes de nos inquietarmos com o risco de vitimização, convém procurar responder às vítimas depois de ouvi-las e principalmente reconhecer os seus direitos, isto é, adotar uma verdadeira política do reconhecimento.

De resto, os próprios analistas, entre os quais os pesquisadores em ciências sociais, utilizam-se dessas lógicas da recusa, especialmente quando comentam fenômenos e políticas para combatê-los. Convém estar atento a essa retórica que visa, no fim de contas, menos a justificar o não fazer nada do que mostrar os riscos que haveria em fazer alguma coisa. Daquilo que chamou uma retórica reacionária, Albert Hirschman descreveu três modalidades principais, que ele estudou a propósito da resistência dos conservadores à extensão dos direitos civis, políticos e sociais desde o século XVIII, mas que seria fácil de retomar a propósito das reticências diante de uma política de luta contra as discriminações nas sociedades contemporâneas (a palavra reacionário deve ser entendida aqui para além de um simples posicionamento no espectro clássico, direita-esquerda, da representação política, mas sim como uma postura de reação ao que muda). Os três argumentos são em geral tanto mais eficazes quanto se apresentam em benefício mesmo daquilo que demolem. A tese do efeito perverso consiste em dizer que a luta política arrisca-se a produzir resultados contrários ao que se busca. A tese do esforço vão afirma que o que se empreende terá conseqüências mínimas e superficiais, ou mesmo nulas, em relação ao caráter estrutural dos problemas em causa. A tese do jogo perigoso sugere, enfim, que a ação buscada, mesmo se é desejável, induzirá mudanças bem mais graves do que aquilo que se pretende.

Essas três modalidades descrevem formas retóricas puras. Com muita freqüência, os argumentos inscrevem-se em discursos híbridos que misturam as três e outras mais. Poderíamos reler os argumentos opostos à discriminação positiva em função dessa tipologia: ela tem efeitos perversos, pois obriga a categorizar as pessoas, retomando os critérios que se quer combater; ela é um esforço vão, em relação aos problemas de desemprego, moradia, rendimentos, que são as verdadeiras questões; ela é um jogo perigoso, pois produz indivíduos desqualificados pelo simples fato de terem sido escolhidos segundo esses critérios. A esse tríptico retórico, dever-se-ia seguramente acrescentar um quarto elemento, específico ao contexto francês: o espantalho da sociedade norte-americana e de seu comunitarismo.

Longe de mim a idéia de fazer da discriminação positiva, ou melhor, das ações que visam a restabelecer uma igualdade de fato, a solução para combater as discriminações raciais – muito embora, no ensino superior e na pesquisa científica, eu esteja certo de que ela teria alguns efeitos benéficos. Sem desconhecer suas contradições e suas dificuldades, creio que ela é um instrumento, entre outros, com um valor simbólico forte, e que provavelmente teria um efeito de desvelamento de nossas práticas e de impulso a nossas reformas. Mas nas periferias onde trabalho e vivo, para os adolescentes e os jovens junto aos quais faço pesquisas e que são amigos de meus filhos, sei o quanto as discriminações raciais estão ligadas às desigualdades econômicas e à segregação residencial, e o quanto os três fenômenos a serem combatidos dependeriam de verdadeiras políticas de justiça social, das quais não constatamos hoje sequer o início. Precisamos deixar de pensar como incompatíveis os dois modelos que fundam a justiça: o da desigualdade que exige a redistribuição e o da alteridade que exige o reconhecimento.

Muitos comentadores falaram, a propósito dos conflitos recentes, de "revolta sem voz", de "violência sem discurso político"; parece-me, pelo contrário, que alguma coisa foi dita de nossa sociedade e que muitos ouviram. Momento raro, por certo, numa época marcada pela anestesia política. Não deixemos, pois, que se percam os efeitos desse momento precioso em que o mundo social voltou a ser mais inteligível para nós, e em que o intolerável de algumas desigualdades voltou a nos afetar.

Tradução de Paulo Neves

Didier Fassin é professor de Sociologia na Universidade Paris Nord e de Antropologia na EHESS de Paris. Diretor do CRESP, Centre de Recherche sur la Santé, le Social et le Politique. E-mail: dfassin@ehess.fr.

  • BATAILLE, Phillippe. (1997), Le racisme au travail Paris, La Découverte.
  • BEAUD, Stéphane & PIALOUX, Michel. (2003), Violences urbaines, violence sociale Paris, Fayard.
  • DE RUDDER, Véronique; POIRET, Christian & VOURC'H, François. (2000), L'inégalité raciste: l'universalité républicaine à l'épreuve Paris, Presses universitaires de France.
  • FASSIN, Didier. (2001), "The biopolitics of otherness. Undocumented foreigners and racial discrimination in the French public debate". Anthropology Today, 17 (1): 3-7.
  • _____. (2002), "L'invention française de la discrimination". Revue Fançaise de Science Politique, 52 (4): 403-423.
  • FASSIN, Didier & FASSIN, Eric. (2006), De la question sociale à la question raciale? Représenter la société française Paris, La Découverte.
  • HIRSCHMAN, Albert. (1991), The rhetoric of reaction Harvard, Harvard University Press.
  • NOËL, Olivier. (2006), "Idéologie raciste et production de systèmes discriminatoires dans le champ de l'apprentissage". Travailler, 16.
  • PAYET, Jean-Paul & VAN ZANTEN, Agnès. (1996), "L'école, les enfants de l'immigration et des minorités ethniques". Revue Fançaise de Pédagogie, 117: 87-149.
  • SIMON, Patrick. (1998), "La discrimination: contexte institutionnel et perception par les immigrés". Hommes et Migrations, 1211: 49-67.
  • THOMPSON, E. P. (1980), The making of the English working class 1Ş edição 1963. Londres, Penguin Books.
  • *
    Este texto é a versão revisada de uma conferência pronunciada em 25 de janeiro de 2006 na École des Hautes Études en Sciences Sociales [EHESS], dentro de um ciclo intitulado "Pensar a crise das periferias". A versão filmada da conferência está disponível no
    site
    www.ehess.fr. Posteriormente, essa reflexão foi prolongada no quadro de uma obra coletiva:
    De la question sociale à la question raciale? Représenter la société française, sob a direção de Didier Fassin e Eric Fassin (2006).
  • 1
    Lei Ordinária 2005-102, sobre a igualdade de direitos e oportunidades (N.T.).
  • 2
    Azul-branco-vermelho, as cores da bandeira francesa (N.T.).
  • 3
    Algo como "quebra-pedras" (N.T.).
  • 4
    Natural do Magreb, África do Norte (N.T.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2006
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: temposoc@edu.usp.br