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Entrevista com Enzo Faletto

MEMÓRIAS DO (SUB) DESENVOLVIMENTO

Entrevista com Enzo Faletto* * Realizada em Santiago do Chile, em fevereiro de 1998.

Por José Marcio Rego

Bem, professor Faletto, começo perguntando sobre a sua formação e por que o senhor escolheu as ciências sociais? Peço que faça um relato de sua trajetória.

Meus estudos secundários foram bastante informais, eu pertencia à categoria de "menino problema". Houve um período, quando eu tinha 14 ou 15 anos, em que quis me alistar na Legião Estrangeira, mas não consegui e entrei para a Escola Naval, que ficava mais perto que Puerto de Valparaiso, mas longe o suficiente da minha casa. Mas também aí não me adaptei e fui expulso, de maneira que só me restou começar a trabalhar. Meu pai tinha um armazém em Santiago, ou seja, na minha casa havia comida e castigos também [risos].

Terminei os estudos secundários como "aluno livre", ou seja, me apresentava no fim do ano e prestava exames sem ter seguido o curso regular, e alguns amigos me ajudavam nas disciplinas mais difíceis, como matemática, física, química. Assim concluí a minha educação secundária, ao mesmo tempo que trabalhava. Com isso, minha formação acabou adquirindo um pouco a característica, que depois se manteve em certo sentido, do autodidatismo, o que não significa que eu admire demais os autodidatas, porque eles têm o mesmo problema que eu: são dispersos, ou seja, não têm o rigor do pensamento formal...

Mas há vantagens também.

Sim, é uma abertura maior a outros tipos de leituras possíveis, a outro tipo de conhecimento, é um produto das inquietudes que vão surgindo. Depois, na universidade, ingressei no curso de história, que originalmente era o curso de Licenciatura em história e geografia, isso no ano de 1955...

O senhor tinha quantos anos em 1955?

Tinha 20 anos. Comecei a estudar Licenciatura em história, mas a verdade é que não tinha o menor interesse em pedagogia, algo que surgiu só depois. Meu interesse maior era em história.

Em 1957 veio ao Chile uma missão francesa para formar, no Instituto de Sociologia, um grupo de sociologia do trabalho, e vários dos sociólogos que dirigiam essa missão eram discípulos de Jean-Daniel Reynaud. Naquela época, o Instituto de Sociologia havia sido praticamente recém-criado, e a missão queria iniciar atividades de pesquisa nas áreas que se acreditava serem chaves naquele momento: sociologia agrária, sociologia do trabalho, sociologia industrial e temas similares, que envolvessem a opinião pública...

Não havia graduação nessa época?

Não, não existia, só havia o Instituto de Sociologia, que de fato recrutava seus alunos em outras áreas, como direito, história, filosofia, e os incorporava ao processo de pesquisa. O Instituto começou a funcionar desenvolvendo uma pesquisa sobre o tema da educação, e o sistema educacional no Chile foi analisado nesse processo. Eram selecionados os alunos que se posicionavam mais, que tinham maior interesse, e eles eram enviados ao estrangeiro, aos Estados Unidos, Inglaterra ou França, para obter uma titulação formal em sociologia. Esse convênio foi feito por Friedmann e incluía também a vinda ao Chile de três jovens investigadores. O primeiro deles foi Alain Touraine, que tinha 33 anos e havia feito recentemente um trabalho de investigação empírica com Reynaud, em fábricas da Renaut: um dos primeiros trabalhos importantes na área da sociologia, além dos do próprio Friedmann.

Como vocês perguntaram por minha história, vou contar algo que geralmente não conto. Eu era anarquista nessa época, fazia parte do que se chamava de juventude libertária [risos]. Um de meus amigos, Boris Falaja, outro desses jovens libertários, estudava filosofia e estava trabalhando no Instituto de Sociologia. Numa quinta-feira, no Centro Republicano Espanhol, ele me contou que estavam recrutando estudantes jovens para incorporar-se ao novo grupo de sociologia do trabalho. Na verdade, isso não me interessou muito, porque nessa época estava muito envolvido com história medieval, eu cursava o segundo ano de história e queria ser um medievalista, e tinha também certo interesse em estudar história da arte.

Assim, eu não tinha a menor curiosidade por sociologia do trabalho e, como bom anarquista, odiava qualquer assunto relacionado com o mundo da indústria. Mas meu amigo me disse que provavelmente a participação no grupo seria remunerada, ou seja, um espírito mercenário foi decisivo para a minha inclinação pela sociologia [risos]. Incorporei-me ao grupo durante um seminário dado por Touraine, cujo objetivo era dar início a uma pesquisa comparativa entre Lota, onde se localizavam as minas de carvão, e Huachipato, onde estavam as instalações de uma siderúrgica aberta recentemente, ou seja, uma indústria de ponta.

Ficava muito longe de Santiago, ou não?

Fica em Concepción, na parte sul do Chile, e Lota também fica próxima. A indústria siderúrgica instalou-se ali pela proximidade do carvão. No entanto, o carvão de Lota não servia para a siderurgia porque tinha baixo poder de injeção, mas, de qualquer maneira, havia uma espécie de plano de desenvolvimento industrial para essa zona. Então deveria ser feita uma pesquisa que englobasse esses dois extremos. A mineração do carvão era a indústria menos avançada, mais tradicional, e já desde essa época se sabia que o carvão estava condenado a desaparecer, por isso era necessário estudá-lo. Somente no ano passado fecharam definitivamente as mineradoras de carvão em Lota.

Bem, iniciamos então esse tipo de atividades, seminários etc., e comecei realmente a me interessar pela sociologia. Criei uma grande relação com Touraine, tanto no plano de sua capacidade intelectual como no plano pessoal, e isso foi algo que depois se prolongou no tempo. Ainda que pareça estranho, Touraine era relativamente tímido e, ainda que pareça mais estranho, eu também sou [risos], mas no fundo ele era uma pessoa de muita qualidade humana e sempre mostrou isso com suas idéias, com as relações que manteve com o Chile, com o Brasil.

Assim, a relação pessoal também influenciou bastante. Mas como me envolvi com o tema da sociologia, o que também me fez redefinir a minha relação com a história, abandonei a Licenciatura e continuei como "aluno acadêmico". Os alunos acadêmicos são aqueles que não fazem o curso de Licenciatura; eles escolhem uma temática dentro de história e fazem os estudos orientados exclusivamente para essa temática histórica, o método histórico e outros cursos. Fui então combinando essa formação em sociologia, que tínhamos por meio do processo de pesquisa – essa pesquisa ocorreu no ano de 1957, eu estava no terceiro ano –, com a minha relação com a história, até me formar: nessa época, meu título era "Graduado em Filosofia com concentração em História". Os títulos acadêmicos obtidos pelos alunos eram em filosofia, ainda que nunca houvéssemos cursado filosofia [risos], e continuei minha especialização em história americana. Mantive a história, mas me dediquei com muito mais intensidade à sociologia e ingressei no Instituto de Sociologia como assistente.

Trabalhamos nessa pesquisa sobre Lota e Huachipato com Touraine, e numa pesquisa sobre atitudes operárias diante do campo. Tivemos que escolher entre nos dedicarmos a estudar Lota ou Huachipato; os anarquistas decidiram-se por Lota, felizmente, e a pesquisa consistiu primeiramente em conhecer o mundo das minas. O primeiro estudo foi sobre os grupos de supervisores, que no Chile eram chamados de mayordomos de mira, ou capatazes. A idéia era acompanhar esse capataz em suas atividades e anotá-las, mas no fundo se tratava de conhecer o mundo das minas, com o que me envolvi por quase três semanas, cerca de um mês. Nessa época eu era magro como um cachorro [risos].

Enfim, foi uma experiência importante da minha vida conhecer as minas de carvão. Nessa época havia inclusive superprodução de carvão, não havia saída de mercado, e as pessoas trabalhavam apenas quatro dias por semana, e só se pagava por esses quatro dias. Um salário que nessa época não era suficiente nem sequer para pagar a pensão em que moravam...

Era uma superexploração, então, não?

Sem dúvida. As condições nas minas eram economicamente deficitárias e o trabalho era brutal. As minas de carvão de Lota estão de frente para o mar e a uma profundidade de seiscentos metros. Há uma diferença de nível, e elas se estendiam cinco ou seis quilômetros sob o mar. As horas eram contadas a partir do momento em que se chegava ao local de trabalho, ou seja, no momento em que se começava a cortar o carvão, mas se demorava mais ou menos uma hora e meia para chegar ao local, e uma hora e meia para sair. Eram portanto onze horas de trabalho em péssimas condições, porque a extração de carvão era escassamente mecanizada, em muitos lugares ocorria inclusive a queda de pontes e explosões de gás; eu não vi nenhuma, mas os acidentes no interior das minas eram relativamente freqüentes.

O senhor desceu esses seiscentos metros durante o mês inteiro?

Sim, descia todos os dias, durante todo o mês, e tentei algumas vezes não só olhar, mas fazer algo com eles, o que também foi uma experiência interessante. Tínhamos que acompanhar esses capatazes e criamos um código para anotar o tipo de atividade que era desenvolvido e o tempo de duração. Era quase um estudo do tempo. Mas houve uma ocasião, lembro-me desses desafios, em que a tarefa que tínhamos que organizar era o transporte de um cabo de eletricidade: a cada cinco metros um operário colocava o cabo no ombro e todos saíam correndo pelos túneis, que obviamente não eram horizontais, eles têm uma inclinação de trinta graus.

Vi então que era ridículo andar com um caderno fazendo anotações e decidi pôr o cabo no ombro, e obviamente eu corria com o cabo no ombro, tentava correr, mas caía a cada cinco metros, não podia caminhar porque todos corriam e, se eu caminhasse, tudo cairia em cima de mim. Era um cabo longo, levado por todos juntos. Então, imagine: a escuridão do túnel – os mineiros levavam apenas uma lâmpada no capacete –, você correndo na escuridão e percebendo que um ia na sua frente e sentindo que outro vinha atrás, eu caía e chorava pela impotência de sentir-me fisicamente incapaz de fazer aquilo de outra maneira, mas acima de tudo pela raiva e tristeza. Creio que foi uma das experiências mais fortes que passei na minha vida.

Bem, depois dessa primeira parte de adestrar-se no conhecimento das minas por quase um mês, fizemos entrevistas com os operários sobre a atividade. Touraine participou todo o tempo. Ele organizou a pesquisa e iniciou todo o trabalho de campo que levou, por fim, à elaboração dos questionários. Depois de Touraine veio, por meio do convênio, Reynaud, com quem iniciamos a análise e sobretudo a primeira parte da sistematização e da organização dos dados. Daniel Reynaud também era uma excelente pessoa, também mantivemos muito boas relações, o que acentuava minha vinculação com o mundo da sociologia.

Daniel também era jovem?

Sim, Daniel também era jovem, mais ou menos da mesma idade que Touraine. Bem, nessa mesma época em que se formava a Escola de Sociologia da Universidade do Chile, surgiu também outra iniciativa, que foi a abertura da Flacso – Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Sua formação foi iniciativa daqueles que haviam começado com o que se chamou de sociologia científica na América Latina. Foi uma experiência levada a cabo por pessoas como Pablo González Casanova no México, Aldo Solari no Uruguai, Gino Germani na Argentina... Não sei se inclusive Florestan Fernandes não esteve encarregado do Instituto de Pesquisa da Flacso, no início, no Rio de Janeiro, porque depois ele foi morar nos Estados Unidos, e, claro, outras pessoas mais.

As escolas de sociologia na América Latina efetivaram-se e instituíram uma tradição no México, no Brasil, sem dúvida, e também na Argentina, mas não existiam em outros países latino-americanos. No entanto, havia muitas cátedras de sociologia em distintas faculdades, nas escolas de direito, às vezes nas de serviço social, nas de saúde pública. Fundamentalmente, elas estavam vinculadas mais ao direito, e também à arquitetura e urbanismo. Muita gente jovem era assistente nessas cátedras, que haviam sido montadas pelos primeiros e tradicionais sociólogos latino-americanos, que de fato não tinham uma formação rigorosa em sociologia mas demonstravam uma inquietação em relação à sociologia. É possível que eles tivessem feito algum tipo de curso, tivessem alguma experiência européia, mas não tinham uma formação rigorosa.

A sociologia estava se difundindo, portanto, por meio dessas cátedras. Então, a idéia foi formar uma escola latino-americana de sociologia com o objetivo de treinar essa gente, esses assistentes, para não ter que necessariamente enviá-los para fora da América Latina. A idéia já não era mais outorgar apenas uma formação em sociologia geral, mas iniciar processos reais de conhecimento de pesquisa na América Latina. Por isso se formou a Flacso, e seu primeiro diretor foi uma pessoa com a qual depois me relacionei muito, trabalhei com ele um longo tempo, José Medina Echavarría.

Ele era espanhol, havia participado do governo republicano espanhol, havia exercido funções no governo, uma das últimas como adido comercial. Depois imigrou para Porto Rico e para o México, onde contribuiu, junto com um grupo de republicanos espanhóis, para o desenvolvimento da editora Fondo de Cultura Económica. Como se sabe, foi ele quem iniciou a publicação dos clássicos da sociologia que foram traduzidos para o espanhol. Por exemplo, a primeira tradução para o espanhol que se fez de Economía y sociedad, a partir do alemão, foi a da Fondo, e foi uma das melhores traduções feitas.

Ele fez essa tradução, mas havia outros tradutores, claro, que também colaboraram, mas era ele que dirigia a coleção. Ele traduziu Weber, Manheim, e também escreveu um livro que teve muito impacto nesses anos, Sociología: teoría y técnica, que funcionou um pouco como difusor da sociologia contemporânea naquele momento, fins dos anos de 1940 e princípios dos de 1950.

No início dos anos de 1950 Echavarría tinha cerca de 40 anos?

Aproximadamente, sim, creio que mais ou menos. Bom, Don José Medina trabalhava na Cepal nessa época, e então o contactaram para exercer o cargo de diretor da Flacso, por meio do convênio feito entre as universidades latino-americanas e a Unesco. A Unesco patrocinou os dez primeiros anos.

Nessa época, eu me dedicava exclusivamente à sociologia. Agora me lembro do terceiro professor francês que veio para cá, com quem também mantive muito boas relações, Lucien Brams. Quando eu ainda estava estudando, ofereceram-me a possibilidade de ir para a França continuar os estudos mais ou menos regulares de sociologia, uma pós-graduação em sociologia. Mas a Flacso estava se formando também. Tomei decisões pessoais e não quis ir para a França, pois preferia ter a oportunidade de me incorporar à Flacso. O início desse trabalho ocorreu mais ou menos no ano de 1958, e os primeiros cursos começaram no ano seguinte, com um programa de pós-graduação em nível de mestrado com dois anos regulares de estudo.

Não havia ainda graduação, era pós-graduação...

Era só pós-graduação nessa época. Como eu havia me formado em história, fiz a pós-graduação na Flacso, quando conheci mais intimamente José Medina, que era seu diretor. Don José, que tinha formação espanhola, havia feito cursos com Ortega y Gasset. A formação inicial dele era em direito, bastante voltado para filosofia jurídica. Da mesma geração que Ortega y Gasset, ele escolheu ir para a Alemanha, obviamente antes da Segunda Guerra, mas, como ele mesmo contava, já quase no início do nazismo. Ele se formou em sociologia na Alemanha e daí surgiu sua admiração pelo mundo da sociologia alemã, por Weber, Marx etc. Mas sua formação em filosofia e direito lhe deu amplitude e uma enorme vocação que vinha do pensamento alemão, uma compreensão histórica da sociologia, tanto em Weber como em Manheim. Assim, ele não apenas cumpria sua função de palestrante, como também lecionava, tanto sociologia geral como sociologia da cultura. Dessa forma, de alguma maneira pude articular melhor o que era minha vocação pela história, meu interesse pela história, com uma formação em sociologia, que não era o campo apenas do que chamavam de sociologia do trabalho, mas uma visão mais ampla. Sobretudo, passei a me interessar muito mais por um lado que ficou adormecido durante algum tempo, que era a sociologia da cultura.

Terminei o curso na Flacso e continuei trabalhando por algum tempo no Instituto de Sociologia da Universidade do Chile. Ainda recém-saído da Flacso, comecei também a trabalhar lá como assistente. Também na Universidade do Chile, mas na Faculdade de Economia, abriu-se um centro de estudos sobre planejamento e, por meio de contato com amigos, vimos que essa era uma boa alternativa para iniciar um trabalho mais interdisciplinar, já que esse centro era formado fundamentalmente por economistas, mas também por sociólogos. Então comecei a trabalhar no Centro de Planejamento...

Isso foi em que ano, mais ou menos?

Mais ou menos na década de 1960, comecei a trabalhar nesse centro e iniciamos alguns tipos de pesquisa, para fazer uma reflexão sobre alternativas de planificação no Chile. Fiquei aí um ano, um ano e meio, talvez dois, e então José Medina, que havia voltado para a Cepal, mandou me chamar, porque a Cepal havia decidido, isso em 1962, realizar um informe social junto com o tradicional informe econômico, mas com uma projeção que ultrapassava o informe anual porque iria coincidir com a Conferência de Mar del Plata de 1962, que eu diria foi praticamente a conferência de lançamento da Aliança para o Progresso. Se a Aliança para o Progresso estava de alguma forma muito instrumentalizada pelos Estados Unidos, a Cepal, sem enfrentar-se com a temática que ali se desenvolvia, também quis ter uma perspectiva talvez mais própria, mais articulada com a mentalidade latino-americana nesse sentido. Então a Conferência de Mar del Plata de 1962 teria uma dimensão pautada pelos informes que ali seriam apresentados, mais ampla que os tradicionais informes anuais. A idéia estava surgindo na Cepal, e foi proposto a Don José que fizesse o informe social. Comecei então a trabalhar com ele na Cepal. O título do informe era "Desenvolvimento social na América Latina no pós-guerra", em que partíamos do ano de 1945, final da Segunda Guerra, no momento em que a maior parte dos países latino-americanos havia começado um processo de industrialização, e chegávamos aos anos de 1960 e às mudanças que se haviam produzido. Como disse, esse não era um informe sobre a conjuntura, mas uma tentativa de fornecer uma visão panorâmica da transformação social na América Latina.

Assim, incorporei-me a esse grupo de trabalho, formado por Don José Medina, por Luis Ratinoff, chileno, e eu. Havia muitas pessoas que estavam na Divisão de Desenvolvimento Social da Cepal, mas elas continuaram com suas funções normais, que nessa época incluíam fundamentalmente a problemática da política social, de moradia, saúde, educação...

O senhor passou a fazer formalmente parte da Cepal?

Sim, com relações contratuais que equivaliam a uma bolsa, e fizemos esse informe.

E continuava trabalhando na Universidade do Chile também?

Não. Mantive alguns vínculos fundamentalmente em termos de docência, primeiro na Escola Política e Administrativa, depois na Escola de Jornalismo, mas apenas dava aulas. De fato, dediquei muito mais tempo ao trabalho da Cepal. O informe, que depois publicaram na Argentina, teve bastante êxito e bastante difusão, porque pela primeira vez havia uma visão global da América Latina, de mudança, de transformação – a partir da Segunda Guerra Mundial até os anos de 1960 –, e o presente tentava dar conta da novidade da transformação latino-americana. Foi esse o tema que abordamos...

E envolvia todos os países latino-americanos?

Sim, todos. Mas, de um ponto de vista crítico atual, para nós a América Latina nessa época era México, Brasil, Argentina e Chile [risos], o restante era uma coisa pastosa [risos]. Essa visão, claro, era absurda, porque também eram países dos quais não se tinham maiores informações, ou não eram acessíveis.

Bem, o tema do qual partimos é quase um problema estritamente econômico. Estava colocada a questão do desenvolvimento, e o problema era saber o que acontece com um continente em que, nessa época, 60% da população ainda era rural e, no entanto, a economia rural tinha uma escassa incidência no processo de desenvolvimento. Então se poderia dizer que há uma estrutura social que parece ser dominante mas que, no entanto, apresenta condições de atraso, de pouca dinâmica, comparada com a economia do setor industrial, que havia surgido com força a partir da Segunda Guerra e aparecia como uma estrutura mais dinâmica, com problemas-chave como os de urbanização acelerada, transformação da estrutura social, surgimento de novos grupos que pareciam importantes – os grupos empresariais, os setores médios e, sem dúvida, os setores operários. Assim, tratamos de fornecer um panorama da estrutura agrária, da estrutura urbano-industrial, as características dos distintos grupos sociais, sua dinâmica etc. Pela primeira vez surgiu uma visão global da América Latina a partir de sua perspectiva social.

Quantas pessoas estavam envolvidas?

Apenas nós três, eu, Don José e Ratinoff. Eu era o personagem de menor importância nessa época. Mas nós três, obviamente, elaboramos o informe com base em estudos feitos por outras pessoas, com informação sobre o México, sobre o Brasil... Ou seja, fizemos uma sistematização com base na informação. Também na Cepal surgiu a iniciativa de criar o Instituto Latino-Americano de Planejamento – Ilpes –, e Don José passou da Cepal para o Ilpes. Ainda que as duas coisas sempre tenham funcionado juntas, era difícil distinguir o que era Cepal e o que era Ilpes, mas a idéia era que o Instituto se dedicasse exclusivamente ao tema da planificação, e o fato é que ele foi vinculado à planificação social. No entanto, Don José não se preocupava tanto com o tema da planificação social, vinculado exclusivamente às perspectivas de políticas públicas – como saúde, moradia –, mas com uma análise da estrutura social da América Latina, sua dinâmica de transformação, sua dinâmica de campo etc. O Ilpes foi criado em 1963 não apenas com essa função, mas também com a de formar e preparar profissionais latino-americanos jovens no campo do planejamento, uma vez que, digamos, já havia sido lançada a política de planejamento na América Latina e começavam a se formar os centros e os institutos de planejamento, inclusive os ministérios de planejamento.

Bem, isso coincide com o golpe de 1964 no Brasil, mais ou menos na mesma época. Quando estávamos na Cepal, precisamente para essa Conferência de Mar del Plata de 1962, além desse informe, Don José havia promovido estudos sobre a formação de grupos empresariais na América Latina, estudos sobre os empresários, suas características, suas condutas etc. Lógico que nessa época havia um novo fator dinâmico dentro da sociedade latino-americana, que viria a ser os setores empresariais e industriais.

Foi encomendada então uma série de pesquisas sobre esse tema a distintas pessoas nos países que nos pareciam interessantes. Na Argentina esteve encarregado Eduardo Zalduendo; no Chile, Guillermo Briones; na Colômbia, não me lembro, mas era um americano; e, no Brasil, foi Fernando Henrique Cardoso, que já vinha trabalhando com o tema dos empresários naquele país. Ele antes fizera uma tese sobre o problema da escravatura, mas depois havia se direcionado para o tema dos empresários, a formação do empresariado, e ele fez um excelente trabalho sobre os empresários brasileiros. Don José interessou-se muito pela pesquisa de Fernando. Após o golpe, Fernando havia ficado "disponível" [risos] e se tratava de ampliar esse pequeno grupo de pessoas que formavam o Ilpes.

Echavarría conheceu Fernando Henrique em que ano?

Creio que em 1963, não tenho muita certeza, eles não tinham relações muito estreitas. Fernando conhecia Medina Echavarría, imagino, pelas referências acadêmicas, seus livros, ou o cargo na Fondo de Cultura. Provavelmente a relação de Don José era maior com Florestan, com Celso Furtado. Creio que tudo isso deve ter influído no interesse de Medina Echavarría em incorporar Fernando ao Ilpes. Então Fernando veio com Weffort, nessa época eles já eram muito amigos; Weffort era discípulo de Fernando, mas com uma diferença de idade muito pequena, e Weffort também foi incorporado.

Originalmente, Fernando ia continuar trabalhando no tema do empresariado e Weffort iniciou seu trabalho sobre populismo, e auxiliava Fernando nas tarefas tanto de docência, que tinham que começar a ser feitas, como de definição das áreas de investigação no Ilpes, isso em 1964. Fernando, quando saiu do Brasil, primeiro foi para a Argentina, depois esteve um tempo curto na França e depois foi para o Chile... Bem, não sei se foi assim, mas do meu ponto de vista Fernando chegou por esses antecedentes e por suas conexões, e então começou a desempenhar um papel de liderança intelectual...

Ele começou a liderar?

Sim, uma liderança intelectual, Fernando tem uma capacidade de contatar muito rapidamente com as pessoas, sem dúvida não apenas Fernando, mas um bando de brasileiros [risos], que também começaram a ter contato com organismos internacionais – Almino Afonso, Paulo de Tarso, Plínio de Arruda Sampaio, e havia outros mais, como Paulo Freire. Mas Fernando passou a estabelecer contatos com os economistas na Cepal, nessa época economistas jovens, que já tinham um papel importante, como Ricardo Cibotti, Hopenhayn e outros, além dos chilenos que depois desempenharam papéis políticos, como Pedro Vuscovic, Carlos Matus, Gonzalo Martner, e se armou um diálogo maior com os economistas no Ilpes...

Havia reuniões formais ou não?

No começo, Fernando supunha que ia continuar trabalhando no tema do empresariado, Weffort no tema do populismo, eu trabalhava com movimento operário, mas em torno do tema do planejamento teve início um diálogo maior com os economistas, uma discussão sobretudo com os economistas jovens que haviam se incorporado ao Ilpes...

Sim, mas os senhores tinham uma reunião formal, quinzenal?

Sim, começamos alguns seminários. Um seminário importante, que em parte é também origem do livro Dependência...1 1 Trata-se do livro Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica, primeiramente editado no México ( Dependencia y desarrollo en Ameìrica Latina; ensayo de interpretacioìn socioloìgica, Siglo XXI, 1969) e depois no Brasil, em 1970 (Rio de Janeiro, Zahar) [N. E.]. , foi o que se realizou na Cepal e do qual participaram Celso Furtado, Don José, Aníbal Pinto, que foi também outro personagem muito importante, e vários economistas mais, sobre o tema – algo que depois pareceu absurdo – da estagnação na América Latina. Comparando com a década de 1980, falar de estagnação nesses anos não tinha muito sentido, quando as taxas de crescimento eram de pelo menos 3% ou 4%.

Mas a realidade naquele momento era que os países que haviam iniciado primeiro seu processo de desenvolvimento industrial ou desenvolvimento urbano, sua modernização em sentido geral, como Uruguai, Argentina, Chile, o Brasil nem tanto, México, mostravam então certa tendência de diminuição da taxa de crescimento. E, como problema geral na América Latina, o que se via era que a capacidade de absorção, digamos, do setor industrial, setor dinâmico da economia, não era suficiente para incorporar o excedente que ia sendo gerado pelo atraso rural. Assim, as populações, digamos de origem uruguaia, que estavam se transferindo para o mundo urbano pelo processo de migração, expulsas do sistema agrário, não logravam incorporar-se ao mundo industrial...

Essa migração aparecia no gráfico?

Claro! Inclusive aquilo que em certo momento supus ser um período de transição – essa idéia de surgimento das favelas e de todos os problemas urbanos –, todo o mundo pensou que isso, apesar de ter um significado expressivo, era um fenômeno transitório, achavam que esses grupos seriam absorvidos em algum momento pelo desenvolvimento do setor industrial. Mas, como vemos, eles aí estão [risos], e se percebia que isso provinha de uma falta de dinamismo do setor industrial, sua incapacidade de absorção dessa mão-de-obra e certa tendência à estagnação do setor.

Continuamos trabalhando sobre os temas anteriores, mas já aí surgiu a necessidade de nos preocuparmos com uma perspectiva sociológica para explicar esse fenômeno, uma vez que o ponto de vista estritamente econômico não podia fornecer explicações. Todas as condições econômicas para um desenvolvimento auto-sustentado pareciam estar dadas, portanto a questão era analisar por que esse desenvolvimento auto-sustentado apresentava tal tendência à estagnação, sobretudo nos setores que iniciaram o processo de desenvolvimento. Surgiu então a necessidade de uma preocupação com a perspectiva sociológica dos problemas de desenvolvimento na América Latina, o que se articulou, digamos, com a necessidade de combinar o enfoque econômico com o enfoque sociológico, e com uma perspectiva não conjuntural, mas histórica, mais estrutural.

Bem, com certeza tenho que falar um pouco sobre o tema da dependência. Trabalhando, surgiu o tema da dependência: uma de minhas brincadeiras é dizer que a inclusão da dependência foi um acidente [risos]...

É uma piada...

Sim, uma das minhas brincadeiras era que o título "dependência e desenvolvimento" foi um acidente. Isso porque o título que queríamos pôr era "decadência e desenvolvimento", mas uma secretária se equivocou e em vez de "decadência" escreveu "dependência" [risos].

Bem, obviamente não existia apenas a necessidade de um diálogo mais integrado entre economistas, sociólogos etc., mas também era preciso uma discussão sobre o que seriam os esquemas de interpretação do processo de desenvolvimento na América Latina, com certeza numa perspectiva propriamente sociológica; uma discussão sobre o esquema que sempre imperou e que se sustentara na contraposição entre sociedade tradicional e sociedade moderna, nos conflitos da passagem de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna, na velha idéia de sociedade; e também, sobre a perspectiva dos economistas, a idéia de subdesenvolvimento e desenvolvimento, características de subdesenvolvimento, a transição de um para o outro.

Surgiu também a necessidade de revisar a teoria. Nessa época, o âmbito da economia estava fortemente impactado pela teoria de Rostow e pela idéia de etapas. Surgiu daí a necessidade de diálogo e, em certa medida, a idéia de escrever esse livro sobre dependência e desenvolvimento.

Onde surgiu essa idéia?

Em um hotel em Buenos Aires. Eu, Fernando e Weffort tínhamos ido para lá para estabelecer contato com amigos argentinos, a fim de iniciar alguns estudos sobre grupos empresariais argentinos e aprofundar um pouco o que havia sido feito...

Que ano e que hotel eram, se lembra?

Isso deve ter sido em 1965, creio que era o Hotel Richmond, ou algo assim, não me lembro direito, mas era perto da rua Tucumán e da rua Florida, no centro, e era uma tarde de calor [risos]. Então, de repente, surgiu o tema: analisando a história argentina, comparando-a com a história do Brasil, com a história do Chile, grande parte dos momentos de transformação política interna estavam muito vinculados a formas de redefinição do modo de relacionar-se com o exterior. No caso da Argentina, o problema com a Inglaterra, a questão do peronismo, o enfrentamento de todos à vinculação com a Inglaterra, e o tipo de relacionamento com os Estados Unidos. Mas inclusive politicamente isso se redefine, e então nos surgiu pela primera vez a ligação entre a mudança política interna e o tipo de relacionamento com o exterior, e nos entusiasmamos com isso. Conversávamos no quarto de hotel e fazia calor. O calor parece que promove uma espécie de aparição de idéias [risos]... Obviamente encampamos essa idéia. Depois Fernando começou a trabalhá-la com muito mais detalhes e nos entusiasmamos. Bem, trabalhamos juntos com Fernando até o ano em que ele voltou ao Brasil, 1968. Fiquei um ano mais no Ilpes, ou seja, fiquei lá de 1963 a 1969, isso depois de sete anos na Cepal, e começava a sentir-me um pouco "sueco" em meu próprio país [risos]. O mundo dos organismos internacionais, apesar da riqueza que significa o contato com outras pessoas, com outras experiências, com informações sobre outros países etc., constitui-se também numa espécie de ilha em relação ao país no qual a pessoa vive, o que se torna muito mais agudo quando se é desse país. Havia, claro, as relações de amizade, continuavam sendo meus amigos da Universidade, meus amigos da política, eu já me havia incorporado ao Partido Socialista. Sempre fui um boêmio, circulava pelas noites e madrugadas facilmente, tinha uma vida desse tipo. Mas sentia que ficaria nisso o resto da minha vida ou deveria procurar uma relação mais real, digamos, com meu país. Intelectualmente, havia me vinculado muito a Fernando, a Weffort, e à família de Fernando, éramos muito amigos de Ruth, inclusive fizemos outros trabalhos intelectuais que foram importantes...

O senhor trabalhou com Ruth Cardoso?

Sim. Ruth estabeleceu-se aqui, era docente na Universidade e foi de certo modo a difusora de Lévi-Strauss no Chile. Ela havia feito cursos na França com Lévi-Strauss e vinha muito entusiasmada com esse convênio que fizemos. Ela dirigiu um seminário sobre o Pensamento selvagem de Lévi-Strauss e sobre os livros anteriores, como Totem e tabu, sobre o totemismo etc. Eu tinha também uma relação muito pessoal, familiar, com os filhos e filhas de Fernando. Eles eram muito pequenos, Paulo tinha 10 anos, creio... Bem, então, como eu era muito amigo de Ruth, tínhamos reuniões e depois, quando trabalhávamos no livro Dependência e desenvolvimento, nos juntávamos à noite em sua casa. E era fácil escrever o livro: davam-me duas garrafas de vinho para que eu falasse, ou seja, como brincava Ruth, "Faletto fala e Fernando pensa" [risos]... e isso até tarde [risos]...

E quase todo dia...

Durante o dia estávamos no Ilpes. Mas à tarde nos juntávamos e, sim, com bastante freqüência. Bem, na verdade Fernando voltou para o Brasil em 1968; Weffort também. Don José, com quem eu também mantinha uma relação estreita, já estava pensando em voltar para a Espanha. Então decidi que estava na hora de tocar a vida no Chile...

Quanto ao tema do marxismo, Fernando Henrique era bom nisso, não?

Sim. Eu, entretanto, sempre disse que eu não era um bom teórico [risos].

Teoria marxista... mas Weber o senhor estudou muito, e bem, não?

Weber, sim... mas fui inventor de teorias, sem ser um analista rigoroso de teorias [risos]...

A formação teórica de Fernando Henrique em Weber é boa também, não?

Sim, é boa. O que nos parecia era que, em situações como a da América Latina, a aplicação da análise marxista muitas vezes era uma transposição de estruturas, ou de reflexões sobre estruturas sociais, para a América Latina. Não tinham correspondência nem como processo histórico, nem como estrutura; assim, trasladava-se certo tipo de esquema para situações às quais os esquemas não correspondiam, e portanto havia... uma loucura histórica, inclusive para pensar a dimensão mais estritamente política, por exemplo as coisas de Régis Debray. Como não há proletariado, e se não há proletariado operário industrial o problema se torna difícil, então terá que haver outros que substituam o proletariado; podem ser os camponeses, podem ser os marginais, mas Marx nunca fez a teoria da revolução campesina, nem a teoria da revolução dos marginais [risos].

Trasladar a conceitualização de Marx sobre o proletariado para a conduta do campesino ou do marginal me parecia coisa de louco. Discutíamos então, com Fernando, a temática marxista, uma discussão no plano teórico. Inclusive na discussão que se fazia nesse momento – lembro de um livro que me influenciou bastante, de Lucio Coletti, Dialética do abstrato e dialética do concreto2 2 Trata-se, na verdade, do livro de Evald Ilyenkov, La dialettica dell'astratto e del concreto nel Capitale di Marx (Milão, Feltrinelli, 1961), cuja introdução é feita por Lucio Coletti (N. E.). –, já havia aí, digamos, uma ruptura dentro da versão ortodoxa.

Eu, por meu lado, havia sido bastante influenciado por Lukács, pelo enfoque histórico, no qual também há uma ruptura com o esquema de Trotsky, de Lênin, e de alguma maneira com a versão não de Mao, mas com o modo de reflexão de Lênin. A versão de Lênin também tem que enfrentar o problema da revolução russa, as condições da revolução russa, que são distintas do que se supõe no esquema marxista tradicional. Daí, inclusive, a atração pela teoria do imperialismo, em uma versão muito mais leninista, mas sem uma reflexão sobre o que isso significava, como dificuldade de pensamento, diante da teoria de Marx. Assim, ao declarar-se marxistas, os que estavam lutando eram no fundo leninistas, e sem levar em conta o problema da relação entre Lênin e Marx.

Tanto no caso de Fernando como no meu, não havia leitura leninista. Creio que éramos mais sensíveis à dimensão do histórico, ou seja, à compreensão do processo histórico, o que, obviamente, nos vinculava bastante a certa leitura historicizante, digamos de Marx, leitura que depois voltou a ser feita por alguns, com a difusão de Gramsci. Nessa época, salvo pelo grupo dos gramscianos argentinos, Portantiero, Aristóbal etc., Gramsci não era muito difundido na América Latina. Mesmo as versões de Gramsci que se difundiam eram também uma espécie de gramsci-leninismo, o intelectual orgânico. Eu diria então que dessa perspectiva...

O senhor disse que sofreu uma grande influência de Echavarría em sua formação. Echavarría chegou também a influenciar Fernando Henrique, ou não?

Sim, eu diria que sim, sobretudo no sentido intelectual. A figura de Don José é a de um intelectual de formação européia, mas também de uma pessoa com uma enorme qualidade pessoal, o carinho com que tratava as pessoas... Ele tinha uma inquietação intelectual muito ampla. Então os diálogos com ele eram como aulas, ele tinha uma relação muito boa com Fernando. Eu era mais discípulo dele, então nas quintas-feiras à tarde tirávamos um uísque irlandês da gaveta e nos reuníamos [risos]... Um dos temas que nós dois sabíamos que o divertia era a chatice monacal [risos], e muitos outros temas que surgiam nesse momento, mais as anedotas de sua própria vida, isso daria outro livro [risos]. Don José sempre pensou em escrever suas memórias sobre a Cepal...

Ele morreu em que ano?

Morreu em 1983, com 80 anos mais ou menos.

E saiu um livro em sua homenagem?

Sim, foi publicado pelo Instituto de Cooperação Ibero-Americana, organizado por Adolfo Gurrieri. Quando Fernando chegou ao Ilpes, começou a ampliar-se o grupo de pessoas que estavam ali. Graças a Fernando, foi incorporada gente como Adolfo Gurrieri, um argentino, Vilmar Faria, Edelberto Torres Ribas, guatemalteco, que eram pessoas que vinham da Flacso, que tinham grande qualidade intelectual e que foram incorporadas ao trabalho desses novos grupos que se haviam formado. Com isso ampliamos muito a dimensão de conhecimento de outros países latino-americanos, a capacidade de investigação. E algumas pessoas se incorporaram com muita força, como José Luis Reyna, do México. Essa amplitude maior de pessoas foi bastante importante em meu diálogo, em minha relação com eles. E também para Fernando. A importância que isso teve para Fernando, para Weffort, para Vilmar... o mundo brasileiro sempre tinha como referência o próprio Brasil ou o mundo europeu, e muito pouca referência ao mundo latino-americano. O exílio dessas pessoas no Chile as colocou em contato com a dimensão latino-americana. Para eles o conhecimento da América Latina surgiu a partir daí, o que foi muito bom. Para nós também foi um momento de contato com outros latino-americanos, não apenas por meio da leitura, mas de estudar o personagem com vida própria, e portanto seu conhecimento vivencial da América Latina foi muito importante. Por isso, todos eles foram muito importantes.

Não havia disputa intelectual de Cardoso com Echavarría?

Não, muito pelo contrário, havia uma enorme relação de afinidade e contato. Don José, nesse momento, começou a delegar a função de direção, inclusive direção intelectual, a Fernando. Ele claramente achou que Fernando podia não apenas ver como também cumprir essa função. Sempre notei que Echavarría nunca gostou da função de diretor, mas ele também mantinha um forte diálogo. Em 1969, Fernando já havia ido, inclusive estavam próximas as eleições de 1970, e eu senti a necessidade de sair.

Em 1970, quando Allende foi eleito?

Sim. Agora, o esquisito é que eu não achava que Allende ia ganhar. Bem, então, em 1969, decidi sair do Ilpes, as eleições de 1970 estavam próximas e devo confessar que não saí pensando que Allende ia ganhar, simplesmente decidi me incorporar à vida chilena, o que significou outra dimensão de minha relação com a política. Sempre tive interesse pela política, muitos amigos metidos em política, muitas discussões com eles, mas nunca uma participação ativa na política como tal.

Então envolvi-me de novo com a sociologia, sempre havia mantido algum tipo de docência em sociologia do desenvolvimento, e a partir daí me dediquei em tempo integral a essa tarefa. Foi fundamentalmente aí que comecei a fazer docência. Dava um curso sobre Weber e outro sobre sociologia do desenvolvimento latino-americano, e tentávamos desenvolver algum tipo de pesquisa, uma vez que as condições para fazer pesquisa na Universidade eram difíceis, sem orçamento...

Até hoje, mas atualmente é pior ainda [risos]...

Sim, mas também era um mundo "quente e agitado". O maio de 1968 na França rapidamente teve repercussões no mundo universitário latino-americano...

E aqui mais, com a fermentação política que havia.

Com o fermento político, o movimento da juventude, o que havia significado a revolução cubana etc., coisas que todo o mundo sabe e conhece. A situação era agitada dentro do mundo universitário, com muitos movimentos estudantis, tentativas de reforma, necessidade de reforma universitária etc. Estávamos muito mais absorvidos pelos problemas de condução da Universidade, pela reforma universitária, que era a possibilidade real de nos dedicarmos à pesquisa. Inclusive, se tentávamos escrever algo, já não havia secretária que batesse o que havíamos escrito à máquina, porque também estavam envolvidas no processo da revolução, e ninguém mais gostava de máquinas [risos], o que era pior... e assim foi...

Em 1970, com o triunfo de Allende, o início da União Popular, eu me mantive dentro do mundo universitário, numa situação de certo conflito. Minha intenção era voltar à vida universitária, mas a vida universitária já estava profundamente alterada, modificada por todos os lados. E, com a minha vocação de transformar-me numa espécie de "professor alemão" [risos], dedicava-me ao mundo da universidade, o que era bastante difícil. Tinha boas relações com os estudantes, mas um forte setor estudantil me via como um "amarelo". "Amarelos" eram aqueles que não eram vermelhos, ou seja, é a esquerda, mas amarela [risos], reformistas, socialdemocratas.

Mas as relações pessoais eram boas. A vida universitária estava muito agitada pelo contexto político, por todas as coisas que aí se produziam, demagogia por parte dos alunos, demagogia por parte dos professores, que também queriam entrar no mundo revolucionário, então o mundo acadêmico mesmo não funcionava muito. No ano de 1973, decidi afastar-me um pouco do universo estritamente universitário e voltar à Flacso como professor. Pedi licença da Universidade por seis meses e fui para a Flacso, em tempo integral, para estudar história social da América Latina.

A Flacso continuava apenas com pós-graduação?

Sim, somente com pós-graduação e para alunos latino-americanos. Então me dediquei totalmente ao trabalho.

Na Universidade do Chile, o senhor dava aulas para alunos de graduação e de pós-graduação?

Na Universidade do Chile, para graduação, não havia pós-graduação. Na Flacso estavam José Serra, Airton Fausto e outros mais.

O senhor conheceu Serra em 1973?

Não, em 1970; o conheci antes porque Serra era muito amigo de Aníbal Pinto, mas nos tornamos muito amigos depois. Bem, eu estava na Flacso quando aconteceu o golpe. Expulsaram-me da Universidade, como era óbvio, mas a Flacso, como organismo latino-americano, não foi totalmente tocada. Inclusive isso foi uma vantagem num determinado momento, porque o restante dos organismos internacionais se sentia ameaçado pela situação chilena e muitas reflexões surgiram nesse momento, se deviam deixar o Chile, se se mudavam para outro lugar etc., e decidiram talvez em parte utilizar a Flacso como teste: se os militares intervissem nela, sairíamos. Era quase como a antecipação do que podia tornar-se uma intervenção. Mas os "milicos" perceberam isso e não a invadiram, e assim a mantivemos, tentamos nos manter dessa forma. Eu não fui preso, mas tive que visitar um Conselho de Guerra, tive que prestar declarações, e tive sorte. Dentro das minhas atividades políticas circunstanciais nos anos de 1970, em contato com o Partido Socialista, havia feito um seminário em minha casa com oficiais dos carabineiros, que são os policiais, a quem tentávamos meter as novas idéias na cabeça. Quando aconteceu o golpe, prenderam todos esses oficiais. Depois me encontrei com um deles na rua, e ele me contou que o prenderam e depois o soltaram, mas que quando o prenderam, soltaram o "mais fácil", e o "mais fácil" era eu [risos]... Ou seja, me acusou, o maldito [risos].

Então o acusaram. E haviam batido no oficial, ou não?

Não. Eles estavam julgando esses oficiais e tive sorte porque fui preso pelos carabineiros. Era um processo conjunto, dos carabineiros e da FACH, que é a Força Aérea do Chile. Se tivesse sido preso pelo pessoal da Força Aérea, quem sabe o que poderia ter acontecido comigo [risos]. Mas muitos desses carabineiros estavam envolvidos com a política do Allende. As coisas entre os carabineiros têm uma dimensão um pouco diferente, inclusive pelas suas características de tradição social. Eles se protegeram um pouco mais entre eles mesmos. Como eu tive a sorte de estar envolvido com eles, não deram prosseguimento à coisa.

Sim, porque era uma época terrível, poderiam até tê-lo matado, as pessoas eram mortas na rua sem mais...

Sim. E como eu pertencia à Flacso, era também membro de um organismo internacional, e o secretário internacional da Flacso, Ricardo Lagos, o atual candidato a presidente, me acompanhou. Porque eu tinha duas alternativas: ou me interrogavam sozinho no edifício da Flacso ou me interrogavam na Escola Superior de Carabineiros acompanhado, nesse caso, pelo secretário geral da Flacso, e decidimos por isso.

Uma curiosidade: Lagos pode se sair bem nas eleições?

Sim, pode... Não há reeleição e Lagos é candidato. O que acontece é que ele tenta impulsionar a Concertação, mas há os socialistas, o Partido pela Democracia e a democracia cristã, além dos radicais dos partidos pequenos. Até aqui a aliança política da Concertação apresentou um candidato. É feita antes uma espécie de eleição interna, primária, e aí elegem um candidato...

A Concertação tem um nome, Ricardo Lagos, e os democrata-cristãos?

Falta os democrata-cristãos nomearem seu candidato.

Os democrata-cristãos são mais fortes?

Neste momento a popularidade de Ricardo Lagos é muito mais alta que a de qualquer outro candidato da Concertação.

Quem poderia sair candidato se não Ricardo?

Talvez alguém de dentro da democracia cristã, que neste momento está mais ou menos equiparada com os que apóiam a candidatura de Lagos.

E quem seria?

Há vários nomes. Um deles pode ser o Gabriel Valdés, que tem uma longa trajetória política, foi ministro das Relações Exteriores de Eduardo Frei Montalva e presidente do Senado, senador etc. Outro possível é Andrés Saldivar, que também foi ministro de Frei Montalva e atualmente é senador, e possivelmente será o presidente do Senado.

Quando serão as eleições?

No final de 1999 e já estão em campanha desde agora [risos]...

É no final de 1999 e já está tudo pensado. E a definição do candidato da Concertação?

Em meados de 1998, mais ou menos.

Mas o candidato da Concertação provavelmente ajudou o atual presidente da República.

O que acontece é que houve mudanças muito importantes na conjuntura política chilena nas últimas eleições. Um dos fenômenos mais importantes é o grau de abstenção eleitoral. Mais de um milhão de pessoas se absteve, e outro milhão e meio de jovens não se inscreveram, se abstêm, e os que estão inscritos não votam, mas há alguns que não estão inscritos.

São dois milhões e meio para um total eleitoral de...

E cerca de um milhão e meio ou mais de votos brancos e nulos, ou seja, são quatro milhões de pessoas que não se inscreveram, ou que não votaram, ou que votaram em branco ou nulo. De um total de cerca de oito milhões de eleitores, quase a metade não votou. Isso significou uma queda na votação de quase todos os partidos em termos absolutos. As variações percentuais não foram muito grandes, salvo este ano, que caiu 5%, mas os outros mais ou menos se mantiveram em termos percentuais. Mas, se se compara o número de votantes nas eleições anteriores com a atual, quase todos perdem em número de votantes e de modo muito significativo. O único que se manteve igual em termos eleitorais, ainda que com muito poucos votos, foi o Partido Comunista. E ganhou força o grupo mais à direita, a URJ; mas também muito pouco. Isso aproximou um pouco a votação da direita à votação da Concertação. Entretanto, esse setor flutuante, que rejeita a política, pode ser capturado por uma ação de direita. Enfim, a situação está muito confusa.

Bem, o senhor falava que Lagos o acompanhou...

Me acompanhou, e isso até parece piada...

O senhor ainda mantém relação com Lagos?

Muito pouca. Fomos muito amigos, mas quando meus amigos se metem muito na política e no poder, e se vão, meu lado de "anarquista velho" se manifesta [risos] e já não quero mais saber...

Mas não está de relações cortadas com ele?

Não, sempre mantenho boas relações pessoais, mas esses distanciamentos acontecem, existem preocupações relacionadas com a política e você tem que começar a se preocupar com isso. Como dizia um velho amigo, "Quien se mete a la taclana, tiene que aguantar que le peñisquen el culo"3 3 O sentido da expressão seria: "Quem quer dar uma de corista, tem que agüentar que lhe belisquem o traseiro" (N. T.). .

Taclanas são dançarinas?

Sim [risos]... Então, esse distanciamento é um ofício. Bem, chegamos ali e, um pouco para marcar o clima de distensão, o senhor que presidia o Conselho de Guerra estava com seu revólver e disse: "Senhor Lagos, havíamos pensado, antes disso, é claro, que o senhor podia ser professor na Escola Superior de Carabineiros, mas ficamos sabendo que ia ser embaixador na União Soviética. Por isso, então, não vamos convidá-lo".

Toda essa conversa era muito delicada, eram cerca de quatro ou cinco carabineiros, e um coronel que presidia. Havia um que não ia com a minha cara, ou seja, me olhava torto. Outro que tinha um estilo de classe média – a classe média chilena tem inclusive um estilo físico mais mestiço, mais gordinho, mais moreno. Eles me olhavam e pensavam que eu devia ser mais radical [risos]. Outro, que tinha cara de pícaro, me perguntava coisas em voz baixa, se eu sabia de fulano de tal, e eu sabia que o haviam matado pouco tempo antes, mas dizia que não conhecia seu paradeiro. Mas, de certo modo, a mensagem dele era que já sabia de tudo [risos]...

Bem, aí me perguntaram se eu sabia que eles eram oficiais de carabineiros, e eu lhes contei a verdade, disse-lhes: "Quando me propuseram isso, me disseram que era gente das forças armadas. O senhor sabe, eu fui cadete deles, e se alguém me pede para fazer um seminário, para mim está muito bem, eu sempre estava disposto a fazê-lo e fiz, mas não sabia que eram oficiais de carabineiros; até o dia em que caiu um cubo de gelo do meu copo e eu vi que todos usavam meias verdes [risos]. Aí então percebi que eram oficiais de carabineiros". Eu lhes disse isso e nem sequer deram risada. Bem, depois começou o depoimento e eu disse que politicamente era anarquista, como um amigo meu, sapateiro. Os anarquistas continuavam sendo velhos sapateiros, artesãos, tipógrafos, mas esse amigo sapateiro anarquista não concorda com nada disso, e eu também não [risos].

Ah, então foi o anarquismo que salvou o senhor [risos]!

E depois um amigo espanhol me disse: "Você declarou que era anarquista e por isso se salvou, mas na Espanha te enforcam!" [risos]. E depois me perguntaram que características tinha o seminário. Bem... Por fim, me salvei. Ninguém sabia o que ia acontecer, mas decidi que não ia sair do país, que havia custado muito a meu pai chegar com uma mala e um salame e eu não ia voltar para a Itália com uma mala e um salame [risos]. Isso seria o fracasso de uma família inteira e não podia ser [risos]...

Seu pai chegou ao Chile em que ano?

Em 1924, depois da Primeira Guerra.

E sua mãe é chilena ou italiana?

Minha mãe nasceu no Chile e ainda pequena voltou para a Itália. Também é filha de italianos. Nasceu no Chile, depois da Primeira Guerra, voltou para a Itália e depois voltou para o Chile.

Então o senhor é italiano também?

Sim, ítalo-chileno [risos]. Bem, então decidi que não ia embora. Mas, quando aconteceu o golpe, lembrei-me de uma coisa que Don José Medina havia me contado sobre sua experiência na Guerra Civil Espanhola. Ele me contou que quando a guerra começou, em 1936, a primeira missão que teve foi voar num desses aviões de pano, de tecido, ou seja, antigos aviões de guerra, para preparar o exílio para os intelectuais, pois sabiam que eles viriam, ou pelo menos se presumia fortemente, e o exílio dos intelectuais tinha que ser preparado.

A verdade é que os que puderam ficar ficaram, procurando manter uma linha de pensamento. Obviamente, todas as universidades sofreram intervenção. Mas onde era possível, os poucos que puderam ficar, nós procuramos manter uma linha de pensamento, uma forma de atividade intelectual, e tratar de contribuir também com os outros que eram perseguidos para que tivessem oportunidade de ir para o exílio e manter uma atividade intelectual. Aí quem desempenhou um papel muito importante, quase nos primeiros dias do golpe, foi Touraine, obtendo bolsas para que as pessoas saíssem da cadeia.

Texto recebido em 1/7/2003 e aprovado em 1/7/2003.

Tradução de Cecília Ramos

Revisão técnica de Nadya Araujo Guimarães

Transcrição de Gabriel Galipolo

Enzo Falleto, sociólogo chileno, foi professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais e pesquisador da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e do Instituto Latino-americano de Pesquisa Econômica e Social (Ilpes), sendo autor, entre outros trabalhos, do livro Dependencia e desenvolvimento na America Latina, em co-autoria com Fernando Henrique Cardoso, obra seminal no campo dos estudos latino-americanos.

José Marcio Rego é professor de Metodologia do curso de doutorado da Escola de Economia da FGV-SP e professor titular do Departamento de Economia da FEA-PUC. E-mail: josemrego@fgvsp.br.

  • *
    Realizada em Santiago do Chile, em fevereiro de 1998.
  • 1
    Trata-se do livro
    Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica, primeiramente editado no México (
    Dependencia y desarrollo en Ameìrica Latina; ensayo de interpretacioìn socioloìgica, Siglo XXI, 1969) e depois no Brasil, em 1970 (Rio de Janeiro, Zahar) [N. E.].
  • 2
    Trata-se, na verdade, do livro de Evald Ilyenkov,
    La dialettica dell'astratto e del concreto nel Capitale di Marx (Milão, Feltrinelli, 1961), cuja introdução é feita por Lucio Coletti (N. E.).
  • 3
    O sentido da expressão seria: "Quem quer dar uma de corista, tem que agüentar que lhe belisquem o traseiro" (N. T.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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