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O legado de Oracy Nogueira ao estudo das relações raciais

CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA

O legado de Oracy Nogueira ao estudo das relações raciais

Márcia Lima

A seção Clássicos da Sociologia Brasileira brinda o leitor, neste número, com a reedição do texto "Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil", que se tornou referência obrigatória para os estudiosos do assunto. A versão aqui apresentada é a comunicação proferida pelo autor no Simpósio Etno-sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil, organizado por Florestan Fernandes no âmbito do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em agosto de 1954 em São Paulo. O referido texto foi publicado em 1955 nos Anais do Congresso.

Oracy Nogueira compõe uma geração de intelectuais cuja trajetória está fortemente vinculada ao processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil, o que inscreve sua obra numa galeria de estudos exemplares e pioneiros que contribuíram para o amadurecimento da prática da pesquisa social1 1 A respeito da trajetória intelectual de Oracy Nogueira, ver: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1998), "Apresentação", em Oracy Nogueira, Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga (São Paulo, Edusp, 1998). Em outro trabalho da mesma autora há um depoimento do próprio Oracy Nogueira: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1995), "Oracy Nogueira: esboço de uma trajetória intelectual", História, Ciência, Saúde-Manguinhos, 2 (2): 119-134, out., Rio de Janeiro. . Nos seus trabalhos, os aspectos metodológicos de suas pesquisas estão sempre bem delineados, o que permite ao leitor acompanhar todo o processo de construção do problema investigado2 2 Oracy Nogueira é autor de um livro sobre pesquisa em ciências sociais, Pesquisa social: introdução às suas técnicas (São Paulo, Editora Nacional/Edusp, 1964). .

Suas inquietações intelectuais apresentam como fio condutor o estigma e suas conseqüências sociais, percebidos a partir de diversos ângulos, mas com ênfase na observação das experiências cotidianas. Sua dissertação de mestrado, Vozes de Campos de Jordão: experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo, aborda esse problema, com base em pesquisa instigada por sua vivência pessoal. Mas sua principal temática de investigação é a questão racial. O texto aqui apresentado faz parte de uma série de estudos na qual é possível captar esse fio condutor. Além deste artigo, o autor publicou "Atitude desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor" e "As relações raciais em Itapetininga", e também Negro político, político negro, seu último trabalho. Todos eles versam sobre as distintas formas e situações sociais de manifestações de preconceito, aspecto que organiza o entendimento da questão racial brasileira.

"Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem" foi produzido na noite anterior à sua apresentação no Simpósio, o que demonstra uma rara capacidade intelectual. O autor toma como base os relatórios da sua pesquisa sobre Itapetininga e, devido ao exíguo tempo de que dispunha, organizou sua apresentação em forma de enunciados3 3 Ver, do autor, Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais (São Paulo, TA Queiroz, 1985). .

A construção analítica do texto e o esmero metodológico são pontos que merecem destaque. O primeiro aspecto, a distinção entre preconceito de marca (aparência) e preconceito de origem (ascendência), tem o intuito de qualificar a situação racial brasileira vis-à-vis a situação racial norte-americana. Tratava-se de estabelecer uma crítica às análises que diferenciavam o preconceito racial brasileiro do das demais sociedades (em especial a norte-americana) apenas em termos de intensidade, sem qualificá-lo. Essa abordagem significou uma grande contribuição ao tema na medida em que o autor, ao analisar o preconceito, além de reconhecê-lo, situa-o como um problema central nos estudos das relações raciais no Brasil. Sua perspectiva acerca da sociedade norte-americana foi construída durante sua estadia naquele país entre os anos de 1945 e 1947, na Universidade de Chicago, para a realização do doutorado. Ao longo do texto, ele fornece pequenos relatos de situações cotidianas que vivenciou nos Estados Unidos e cujo impacto proporcionou o insight para a criação do quadro de referência para entender a situação racial brasileira.

Quanto ao segundo aspecto, Oracy Nogueira sempre demonstrou em seus trabalhos uma preocupação com a abordagem metodológica. Neste texto, ele assinala veementemente que, por se tratar de um quadro de referência, os enunciados apresentados são de tipo ideal (no sentido proposto por Max Weber) e, portanto, são hipóteses a serem verificadas por meio de pesquisas. Nessa direção, o texto é uma proposta de análise, e não uma síntese de resultados, embora baseado em relatórios de pesquisa.

Qual a atualidade de Oracy Nogueira? Italo Calvino afirmou que "é clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível". Seria a nossa atualidade, em termos da situação racial, incompatível com a sociedade brasileira na qual Oracy Nogueira desenvolveu seus estudos? Com certeza, houve muitas mudanças, mas os enunciados de nosso autor mantiveram-se vigorosos para pensar o Brasil. Tomemos como referência as ações afirmativas, cujo impacto no debate público é incontestável. Em primeiro lugar, é no reconhecimento do preconceito racial como elemento central ao entendimento da situação racial brasileira, ponto defendido pelo autor, que se estabelece a discussão. Em segundo lugar, nas questões que constituem esse debate há muitas características comuns àquelas evidenciadas por Oracy Nogueira em seus enunciados. Dentre elas, as dificuldades no estabelecimento dos critérios de classificação dos grupos, a peculiaridade da forma de atuação do preconceito no Brasil e a complexa relação com o tema da classe. Mas não se pode deixar de destacar o incômodo que o início desse debate produziu (e ainda produz) na sociedade brasileira. Talvez o fenômeno possa ser compreendido num dos enunciados do autor, que versa sobre a etiqueta das relações raciais: "Não é de bom tom puxar o assunto da cor", pois, afinal de contas, "em casa de enforcado não se fala em corda".

Texto recebido em 10/4/2007 e aprovado em 10/4/2007.

Márcia Lima é professora do Departamento de Sociologia da USP. E-mail: m.rlima@uol.com.br.

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    A respeito da trajetória intelectual de Oracy Nogueira, ver: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1998), "Apresentação", em Oracy Nogueira,
    Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga (São Paulo, Edusp, 1998). Em outro trabalho da mesma autora há um depoimento do próprio Oracy Nogueira: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1995), "Oracy Nogueira: esboço de uma trajetória intelectual",
    História, Ciência, Saúde-Manguinhos, 2 (2): 119-134, out., Rio de Janeiro.
  • 2
    Oracy Nogueira é autor de um livro sobre pesquisa em ciências sociais,
    Pesquisa social: introdução às suas técnicas (São Paulo, Editora Nacional/Edusp, 1964).
  • 3
    Ver, do autor,
    Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais (São Paulo, TA Queiroz, 1985).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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