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A justiça do trabalho

Labor law in Brazil

Resumos

O artigo tem por objetivo destacar a especificidade da Justiça do Trabalho, assim como algumas particularidades do perfil de seus magistrados. Nossas observações baseiam-se em resultados do projeto "História da justiça e dos direitos do trabalho no Brasil", voltado para a reconstituição da história da instituição principalmente por meio dos depoimentos de personagens centrais para sua construção e consolidação ao longo do tempo. Paralelamente, realizamos um abrangente survey em 2005 - "Perfil da magistratura do trabalho" -, enviando questionários para os cerca de 3 mil magistrados do trabalho do país, com a finalidade de traçar o perfil sociológico da categoria, assim como registrar suas percepções sobre a carreira e o papel desempenhado pela Justiça do Trabalho na sociedade brasileira. Nossas conclusões ressaltam a continuidade da forte marca antiliberal de proteção social pelo Estado, ainda presente na instituição e no ethos de seus operadores, e os desafios a serem enfrentados por eles perante a desigualdade social, o ambiente político democrático e as pressões econômicas do neoliberalismo.

Justiça do Trabalho; Juízes do trabalho; Direitos do trabalho; Direitos sociais; Legislação trabalhista


The paper looks to highlight the specific nature of Labor Justice in Brazil, as well as the particular social profile of labor judges. Our analysis is based on the results of the research project "A history of labor law and labor rights in Brazil,' focused on reconstructing the history of this legal institution, mainly through interviews with social actors who played a central role in its construction and consolidation. The extensive information obtained from the 'Labor judge profile' survey also allowed us to identify the sociological profile of the judges and record their opinions about their professional career and the role played by Labor Courts in Brazilian society. Our conclusions reveal the continuance of a strong anti-liberal logic of social protection by the State, still present in the institution and the ethos of its agents, and highlight the challenges these have to face in terms of social inequality, the democratic political order and neo-liberal economic pressures.

Labor Law; Labor Judges; Labor Rights; Social Rights; Labor Legislation


DOSSIÊ - SOCIOLOGIA DO JUDICIÁRIO

A justiça do trabalho

Labor law in Brazil

Regina Lucia M. Morel; Elina G. da Fonte Pessanha

RESUMO

O artigo tem por objetivo destacar a especificidade da Justiça do Trabalho, assim como algumas particularidades do perfil de seus magistrados. Nossas observações baseiam-se em resultados do projeto "História da justiça e dos direitos do trabalho no Brasil", voltado para a reconstituição da história da instituição principalmente por meio dos depoimentos de personagens centrais para sua construção e consolidação ao longo do tempo. Paralelamente, realizamos um abrangente survey em 2005 – "Perfil da magistratura do trabalho" –, enviando questionários para os cerca de 3 mil magistrados do trabalho do país, com a finalidade de traçar o perfil sociológico da categoria, assim como registrar suas percepções sobre a carreira e o papel desempenhado pela Justiça do Trabalho na sociedade brasileira. Nossas conclusões ressaltam a continuidade da forte marca antiliberal de proteção social pelo Estado, ainda presente na instituição e no ethos de seus operadores, e os desafios a serem enfrentados por eles perante a desigualdade social, o ambiente político democrático e as pressões econômicas do neoliberalismo.

Palavras-chave: Justiça do Trabalho; Juízes do trabalho; Direitos do trabalho; Direitos sociais; Legislação trabalhista.

ABSTRACT

The paper looks to highlight the specific nature of Labor Justice in Brazil, as well as the particular social profile of labor judges. Our analysis is based on the results of the research project "A history of labor law and labor rights in Brazil,' focused on reconstructing the history of this legal institution, mainly through interviews with social actors who played a central role in its construction and consolidation. The extensive information obtained from the 'Labor judge profile' survey also allowed us to identify the sociological profile of the judges and record their opinions about their professional career and the role played by Labor Courts in Brazilian society. Our conclusions reveal the continuance of a strong anti-liberal logic of social protection by the State, still present in the institution and the ethos of its agents, and highlight the challenges these have to face in terms of social inequality, the democratic political order and neo-liberal economic pressures.

Keywords: Labor Law; Labor Judges; Labor Rights; Social Rights; Labor Legislation.

Nas últimas décadas, cientistas sociais têm se debruçado sobre a relação entre o protagonismo do Poder Judiciário e a consolidação de regimes democráticos constitucionais, tanto no que diz respeito à mediação de conflitos como à proteção de direitos. Assim, pesquisas sobre as instituições e os atores do mundo jurídico somam-se a análises dos graus e das formas de acesso à justiça, da relação entre instituições judiciárias e democracia, do pluralismo normativo e das formas alternativas de resolução de conflitos, bem como da efetividade do direito na prevenção de conflitos.

Também no Brasil multiplicaram-se as pesquisas empíricas na área das ciências sociais sobre o mundo jurídico e sua relação com a sociedade, sobretudo após a democratização e a Constituição de 19881 1 Ver Morel e Pessanha (2006). . A Justiça do Trabalho, no entanto, tem sido pouco estudada pelo mundo acadêmico, lacuna surpreendente sobretudo se levarmos em conta a filiação trabalhista de nossa cidadania social.

Campo de lutas, alvo de disputa em torno de modelos diferenciados de sociedade e de institucionalização das relações capital/trabalho no Brasil, a Justiça do Trabalho foi, na última década, ameaçada sem sucesso por projetos de governo que previam transformações profundas ou mesmo sua extinção. Neste texto, pretendemos destacar a especificidade desse ramo da justiça, apontando para algumas particularidades do perfil de seus magistrados. Procuraremos também refletir sobre as perspectivas e os principais desafios enfrentados pelos magistrados do trabalho na atualidade. Nossas observações baseiam-se em resultados do projeto "História da justiça e dos direitos do trabalho no Brasil", pesquisa interinstitucional (CPDOC/FGV e IFCS-UFRJ), coordenada pelas autoras deste texto e pela professora Ângela Maria do Castro Gomes, desenvolvida com apoio do Pronex e de Edital Universal do CNPq. Numa primeira etapa, investimos na reconstituição da história por meio principalmente do depoimento de dois personagens centrais de sua construção, Arnaldo Sussekind e Evaristo de Moraes Filho2 2 Ver Castro Gomes, Pessanha e Morel (2004) e Morel, Castro Gomes e Pessanha (2007). . Em 2005, realizamos um abrangente survey – "Perfil da magistratura do trabalho" –, enviando questionários para mais de 3 mil magistrados do trabalho – entre ativos e inativos – do país3 3 O índice de respostas ao survey foi de 17%, embora em alguns estados, como Rio de Janeiro, tenha superado os 30% e, em São Paulo e Minas Gerais, os 20%. A amostra foi controlada a fim de garantir sua representatividade. Na fase de tabulação e análise dos dados quantitativos, contamos com a consultoria do professor Carlos Antonio Costa Ribeiro (UERJ/Iuperj). . A finalidade foi traçar o perfil sociológico dos juízes, assim como registrar suas percepções sobre a carreira e o papel desempenhado por sua instituição na sociedade brasileira.

Uma justiça especial

Nunca é demais lembrar que a implantação da Justiça do Trabalho em 1941, assim como a consolidação da legislação trabalhista em 1943, sucede um longo processo, iniciado antes mesmo da República, de lutas e conquistas de direitos por parte dos trabalhadores. Muitas vezes propostas pelos chamados reformadores sociais – partidários ou não –, as primeiras leis trabalhistas surgem de modo esparso, como as de proteção ao trabalho do menor, em 1891. De 1903 é a lei de sindicalização rural e de 1907, a lei que regulou a sindicalização de todas as profissões. O primeiro projeto de Código do Trabalho, de Maurício de Lacerda, tentativa malsucedida de reunir e sistematizar a legislação pertinente, é de 1917. Em 1918, Lacerda aprovou na Câmara o projeto do Departamento Nacional do Trabalho, órgão que acabou substituído pelo Conselho Nacional do Trabalho cinco anos depois. De 1919 é a lei sobre acidentes de trabalho. De 1923, a lei Eloy Chaves, que criou caixas de aposentadoria e pensões nas empresas de estradas de ferro, depois estendidas a outros setores. Em 1926, com a Reforma Constitucional, pela primeira vez passa a constar numa Constituição do país "como assunto expresso" a referência à legislação do trabalho. No plano propriamente jurídico, as primeiras funções específicas de "justiça do trabalho" no Brasil couberam aos tribunais rurais do estado de São Paulo, instituídos pelo então governador Washington Luiz, em 1922, para dirimir conflitos entre patrões e colonos, decorrentes principalmente dos efeitos da imigração e da presença de trabalhadores estrangeiros mais politizados (cf. Moraes Filho, 1982).

A Revolução de 1930 acelera o processo de regulação e de montagem de uma nova estrutura para gerir as relações trabalhistas. Já em 1930, cria-se o Ministério do Trabalho, cujo primeiro consultor jurídico, Evaristo de Moraes, redige, com Joaquim Pimenta, em 1931, o Decreto n. 19.770, que tinha por objetivo regular "a sindicalização das classes patronais e operárias". No mesmo ano instala-se o novo Departamento Nacional do Trabalho, junto ao qual, em 1932, passam a funcionar as Comissões Mistas de Conciliação e as Juntas de Conciliação e Julgamento4 4 As Comissões Mistas de Conciliação, incluindo seis representantes de trabalhadores e seis de patrões, tinham por finalidade tentar conciliar impasses coletivos; as Juntas de Conciliação e Julgamento (um representante dos trabalhadores, um dos patrões, um bacharel) tinham poderes para julgar as questões trabalhistas individuais. . A Constituição de 1934 finalmente institui a Justiça do Trabalho (título IV, art. 122) "para dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislação social". Assegura-se então o estatuto da pluralidade sindical e a completa autonomia dos sindicatos, vários direitos são regulados, como a jornada diária (oito horas), e são reconhecidas também as convenções coletivas. A composição dos tribunais de trabalho e das comissões de conciliação devia obedecer ao princípio de eleição paritária de representantes de patrões e empregados, com presidente indicado pelo governo.

Em 1936, um anteprojeto de organização da Justiça do Trabalho, elaborado por técnicos do Ministério do Trabalho, pelo seu consultor jurídico, Oliveira Viana, e pela Procuradoria do Trabalho, é encaminhado pelo presidente Getúlio Vargas ao Poder Legislativo, e o debate sobre essa proposta expõe um quadro de fortes disputas políticas e ideológicas em torno do caráter da instituição, tanto dos interesses conflitantes em jogo, como de adesões a seus pressupostos e objetivos.

Assim, de um lado, é possível caracterizar o modelo varguista de relações de trabalho, considerando que ele não só respondia a demandas sociais já existentes5 5 Ver, nesse sentido, os trabalhos de Moraes Filho (1978) e Castro Gomes (1994), críticos da tese da outorga. , mas também estava referido ao que pode ser entendido como um "consenso antiliberal", apoiado numa verdadeira concordância entre as correntes: socialistas, católicos e corporativistas, todos comprometidos, embora com objetivos e estratégias diferenciados, com a correção das desigualdades sociais da ordem capitalista por meio da ação do Estado6 6 Para a Igreja católica, a questão social era assunto de compromisso cristão para com os pobres. A encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, de 1931, reforçando os princípios da Rerum Novarum, de Leão XIII (1891), recomendava: ao capital, tratar os pobres de forma humanitária; aos trabalhadores, serem moderados; e ao Estado, promover a intervenção sob estatuto ético-moral e jurídico. Para os socialistas, a intervenção estatal era central para as reformas sociais, contra a dominação dos patrões sobre os trabalhadores e suas associações. Quanto aos corporativistas, que lideravam o processo, argumentavam que os conflitos entre empregadores e empregados não eram meramente de interesse privado "como no velho e morto liberalismo, mas que o Estado devia intervir neles, sob uma constituição onde a ordem econômica seja submetida à disciplina do Estado" (Morel e Pessanha, 2006). .

De outro lado, tem-se a forte reação liberal à proposta apresentada, de que é exemplar a atuação, como relator, do renomado advogado civilista paulista Waldemar Ferreira na Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional. Os liberais não queriam uma justiça federal – tão distante e acima dos interesses locais bem sedimentados. Não queriam também que os sindicatos funcionassem como pessoas jurídicas públicas, alegando que a vontade individual dos trabalhadores deveria prevalecer. Não aceitavam, na verdade, a existência de sujeitos e direitos coletivos, e não queriam uma Justiça do Trabalho com o que consideravam o poder de legislar: eram frontalmente contra o poder normativo. Somente após 1937, já no Estado Novo de Vargas, o conflito foi decidido, e com isso implantou-se o modelo de relações de trabalho que, embora com algumas e profundas alterações, está aí até hoje, e que tem na Justiça do Trabalho um de seus pontos de sustentação fundamentais.

A Constituição de 1937 mantém a Justiça do Trabalho, mas introduz mecanismos de enrijecimento da estrutura sindical e de seu controle, como a unicidade, o imposto compulsório, o enquadramento sindical. Regulada em 1939 e regulamentada em 1940, a Justiça do Trabalho inaugura-se finalmente em 1941. Coube a Francisco Barbosa de Resende, quinto presidente do Conselho Nacional do Trabalho, presidir a comissão especial incumbida de organizar e instalar a Justiça do Trabalho, o que ocorreu no dia 1º de maio de 1941, no campo de futebol do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, em ato público presidido por Getúlio Vargas.

Na estrutura do Ministério do Trabalho, como justiça administrativa, a Justiça do Trabalho ficou estruturada em três instâncias. Na base, as Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJs), que mantiveram o nome e a composição, com a diferença de que seu presidente passava a ser um juiz de direito ou bacharel nomeado pelo presidente da República para mandato de dois anos. Atuavam também os chamados juízes classistas, representantes de trabalhadores e patrões. Os "classistas "eram indicados pelos sindicatos, para mandatos também de dois anos7 7 A Emenda Constitucional n. 24, de dezembro de 1999, extinguiu os juízes classistas. . Em nível intermediário, os Conselhos Regionais do Trabalho, com a função de deliberar sobre recursos. E, em nível superior, o Conselho Nacional do Trabalho, integrado por dezenove membros nomeados pelo presidente da República para mandatos de dois anos, permitida a recondução, e assim distribuídos: quatro representantes de empregados, quatro de empregadores, quatro funcionários do Ministério do Trabalho e das instituições de seguro social, e sete pessoas de reconhecido saber, das quais quatro formadas em direito.

As 36 Juntas de Conciliação e Julgamento estavam distribuídas em oito regiões, onde funcionavam os Conselhos Regionais, a saber: 1ª Região, Rio de Janeiro; 2ª Região, São Paulo; 3ª, Belo Horizonte; 4ª, Porto Alegre; 5ª, Salvador; 6ª, Recife; 7ª, Fortaleza; 8ª, Belém. Para as várias regiões foram nomeados também procuradores regionais da Justiça do Trabalho.

É essa justiça, ainda com sua natureza jurídica pouco definida, que irá controlar, a partir de 1943, o cumprimento da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Apenas na Constituição de 1946 a Justiça do Trabalho torna-se efetivamente parte do Poder Judiciário, autônoma em relação ao Poder Executivo em todos os níveis, com competência específica, poder normativo e Ministério Público correspondente junto ao Ministério Público da União. A carreira de juiz do trabalho passava a seguir o modelo da carreira da magistratura em geral, sendo composta de três níveis: juiz presidente de vara, juiz do Tribunal Regional do Trabalho (desembargador) e ministro do Tribunal Superior do Trabalho. No entanto, como lembra Roberto Fragale, foi longo o caminho até que os juízes do trabalho construíssem uma identidade institucional e fossem aceitos como integrantes do Poder Judiciário8 8 O primeiro concurso público deu-se em 1959. . Também demorou décadas para que a equiparação dos vencimentos garantisse aos juízes do trabalho os mesmos direitos e prerrogativas dos demais membros do judiciário9 9 Segundo Fragale (2006), "a Justiça do Trabalho era a mais desprezada e relegada do sistema federal de justiça". .

Inserida no âmbito da Justiça Federal e, portanto, menos atrelada a interesses locais, a Justiça do Trabalho surge marcada pela natureza intervencionista e protecionista do Estado e, para isso, pretendia tutelar o trabalhador, definido como "economicamente mais fraco". Com esses objetivos, desde o início o processo trabalhista apresenta certas características mantidas até hoje, como a gratuidade de seus custos, a dispensa de advogados, a oralidade10 10 O processo do trabalho é eminentemente oral, isto é, nele prevalece a palavra "falada", ao contrário do processo civil, em que quase todas as pretensões são formuladas por petições escritas. Em razão desse princípio, o processo desenvolve-se principalmente na audiência, assegurando um contato estrito entre as partes e com o magistrado, fato fundamental para a imediatidade da decisão. e a maior informalidade. Os atos processuais mais relevantes são realizados na audiência, ao contrário do que ocorre no processo civil. Além disso, o processo trabalhista tem caráter conciliatório, isto é, o juiz deve envidar todos os esforços para conseguir fazer com que as partes conciliem antes da apresentação da defesa ou depois de encerrada a instrução.

As principais características da Justiça do Trabalho, com sua forte marca antiliberal de origem, permaneceram, e ela se mostrou capaz de sobreviver a várias mudanças político-institucionais. Assim, por exemplo, o regime autoritário de 1964 estrategicamente suspendeu alguns direitos importantes, como a estabilidade, e reforçou o uso dos aspectos repressivos já contidos na legislação vigente desde 1943. Apesar disso, há muitas indicações de que a Justiça do Trabalho, cuja estrutura permaneceu a mesma na Constituição de 1967 e não foi alterada pela Emenda Constitucional de 1969, representou, durante esse período autoritário, um dos poucos espaços de defesa de direitos sociais.

Na segunda metade da década de 1980, segmentos de trabalhadores organizados em torno do "novo sindicalismo" lideram uma fase de explosão de demandas trabalhistas, por meio de greves, negociação direta com o patronato, maior prioridade aos problemas nos locais de trabalho, organização de comissões de fábrica. Utilizando dados referentes à expansão das varas de trabalho, Adalberto Cardoso (2002) chamou a atenção para dois fatos: primeiro, cada pico de demandas foi acompanhado da criação de novas varas de trabalho, indicando que a estrutura da justiça trabalhista tem respondido à expansão das reclamações; segundo, o aumento considerável da procura da Justiça do Trabalho na década de 1990 pode ser visto como reação à precarização das condições de trabalho e às tentativas dos empregadores de burlar as normas legais no que diz respeito a direitos rescisórios. Ou seja, indiferentes a todas as críticas e opiniões desabonadoras à Justiça do Trabalho, os trabalhadores continuaram vendo nela um aliado na defesa de seus direitos. O confronto político expressou-se nesse período, sem contudo pôr inteiramente em xeque os velhos estatutos. Cresce também de modo significativo nesse momento o número de juízes e, segundo o princípio de interiorização dos serviços, novas varas possibilitam um acesso cada vez maior à Justiça do Trabalho11 11 Em 2006, elas alcançaram um total de 1.109 varas. .

É esse o pano de fundo do período de transição e do processo constituinte de 1988, época em que se registra o primeiro ensaio de atuação conjunta dos magistrados e das forças políticas de outros poderes. A nova Constituição não mudou a Justiça do Trabalho, mas estabeleceu que em cada unidade da federação haveria pelo menos um Tribunal Regional do Trabalho (TRT). O número de regiões do trabalho expandiu-se então de quinze para 24, cobrindo todos os estados da federação. O representante classista da 1ª instância (JCJs) passou também a ser identificado como juiz classista, e não mais como vogal.

Preconizando o "fim da era Vargas", o governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) investiu duramente contra o modelo tradicional de relações trabalhistas, chegando mesmo a propor a extinção da Justiça do Trabalho. Várias inovações legislativas foram sendo tentadas e, embora algumas terminassem de fato por flexibilizar formas de contratação e propiciar novos espaços de negociação trabalhista, a Justiça do Trabalho escapou ilesa, graças à firme reação das associações profissionais do setor jurídico e de sindicatos dos trabalhadores.

Recentemente, no entanto, a aprovação da chamada Reforma do Judiciário reforçou o papel da Justiça do Trabalho, ampliando sua competência sobre todas as relações trabalhistas12 12 A Emenda Constitucional n. 45 foi publicada em 8 de dezembro de 2004. . De fato, até a publicação da Emenda n. 45, a Justiça do Trabalho tinha por finalidade apenas apreciar os conflitos decorrentes das relações de emprego, isto é, aquelas relações formais, com "carteira assinada", regidas pela CLT. Pela nova redação do artigo 114 da Constituição, no entanto, compete à Justiça do Trabalho "processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho". Mas, por outro lado, a reforma reduziu sensivelmente o poder normativo da Justiça do Trabalho, isto é, a capacidade de estabelecer novas condições de trabalho, medida essa que veio no sentido de privilegiar a livre negociação entre as partes, dificultando a intervenção do Estado em conflitos coletivos.

Os magistrados do trabalho, entre a tradição e a mudança13 13 Análise bem mais completa dos dados aqui apresentados está em Castro Gomes, Pessanha e Morel (2007).

Os principais operadores da Justiça do Trabalho, atuantes em todo o território nacional, são hoje 2.719 juízes distribuídos nas três instâncias da carreira14 14 Nas últimas décadas tem havido um expressivo crescimento da categoria. De 1995 a 2003, por exemplo, a quantidade de juízes do trabalho cresceu 37,6%. Em 2003 eram 2.068 juízes no primeiro grau, distribuídos em 1.251 varas. Os desembargadores dos TRTs eram 440 e havia dezessete ministros no TST. Pela Reforma do Judiciário aprovada em dezembro de 2004 (Emenda Constitucional n. 45), esse número aumentou para 27 (dados do TST). . Desde a Constituição de 1946, a carreira de juiz do trabalho segue o modelo da carreira da magistratura em geral, sendo composta de três níveis: juiz presidente de vara, juiz do Tribunal Regional do Trabalho e ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Regulamentadas pela Lei Complementar da Magistratura (Loman), de 14 de março de 1979, e pela Constituição de 1988, as promoções obedecem aos critérios de antiguidade e merecimento15 15 A fim de tornar mais objetivo o critério de merecimento, a Constituição de 1988 determinou que os candidatos devem integrar a primeira quinta parte da lista de antiguidade quanto a esse critério. Aos tribunais caberia formar a lista com três nomes, considerando os critérios de segurança e presteza no exercício jurisdicional, além da freqüência a cursos de reconhecido aperfeiçoamento profissional. ; para os tribunais, os magistrados são nomeados pelo presidente da República, que escolhe a partir de uma lista tríplice. Antes de tornar-se titular de uma vara, o aprovado no concurso é nomeado juiz substituto e passa por um estágio probatório de dois anos para só então alcançar a vitaliciedade.

Como já identificado por outros estudos sobre magistrados, ocorreu recentemente no Brasil uma redefinição também do perfil social dos juízes do trabalho. Como o Gráfico 1 comprova, os juízes do trabalho são hoje mais jovens, já que, segundo dados do TST referentes a 2004, 50% deles têm menos de quarenta anos16 16 Pela Reforma do Judiciário, para serem aprovados nos concursos os candidatos devem comprovar três anos de atividade jurídica. . Isso significa que a formação universitária nos cursos de direito desses magistrados se deu no contexto político da democratização da sociedade brasileira e do debate que antecedeu a Constituição de 1988. Uma importante questão a ser analisada nas respostas ao survey é se se pode falar em perfis geracionais distintos entre os magistrados do trabalho, bem como se aqueles que se tornaram bacharéis no período de democratização têm percepções distintas sobre o papel social da categoria comparativamente aos mais velhos.


A par da juvenilização dos magistrados, tem-se registrado também a feminização acentuada da categoria: a participação das mulheres alcança 43% dos juízes de primeiro grau e 36,5% nos tribunais17 17 Esse aumento da participação feminina não se restringe à magistratura e é observado em todas as profissões jurídicas, ainda que Bonelli (2002) argumente que, apesar do crescimento do número de advogadas, elas se concentram nos ramos menos prestigiados do direito civil (família, direitos sociais, trabalhistas e pequenas causas). Também na magistratura do trabalho, o posto mais elevado da carreira, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, ainda é essencialmente masculino, embora se perceba alguma alteração mais recente. Antes da vigência da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, entre os dezessete ministros do TST havia apenas uma mulher, correspondendo a 5,9% do conjunto; hoje, entre as vinte vagas ocupadas, quatro são por mulheres (20%). . É isso que se pode observar no Gráfico 2, construído também com dados do TST, que permite visualizar uma série histórica de 1995 a 2003, corroborada pelos dados de nossa amostra de 2005.


Essa tendência de crescimento do número de juízas destaca-se ainda mais quando os dados de gênero da Justiça do Trabalho, colhidos pelo survey sobre o Perfil da Magistratura do Trabalho, são comparados com os obtidos por pesquisa encomendada pela Associação dos Magistrados do Brasil sobre os juízes de todos os ramos do judiciário, como se observa no Gráfico 318 18 Ver Sadek (2006). A comparação entre esses dados foi realizada, sob nossa supervisão, pelos bolsistas de Iniciação Científica do CNPq/ Pibic-UFRJ Luisa Pereira e Daniel Iliescu, e apresentada na Jornada de Iniciação Científica da UFRJ em 2006. .


Como se pode observar, os dados para a justiça em geral indicam uma presença proporcionalmente bem menor de mulheres entre seus quadros.

Outra tendência registrada por nossa amostra refere-se à mobilidade social dos juízes em relação a seus pais, e revela que os magistrados vêm de diferentes estratos da sociedade brasileira. Um primeiro conjunto de informações refere-se à escolaridade de pais e mães dos juízes.

O que se pode observar é que mais de 40% dos pais e mães dos juízes ouvidos não concluíram o 9º ano do Ensino Fundamental, e mais de 8% dos pais e 6% das mães não têm nenhuma série completa. No outro extremo do quadro, pouco mais de 30% dos pais e menos de 20% das mães têm instrução superior.

Outro conjunto de informações remete à ocupação dos pais dos magistrados. Os dados estão classificados por cinco grupos ocupacionais, e no primeiro grupo foram destacadas as profissões de juiz e advogado.

A análise desses dados mostra, em princípio, a distribuição bastante equilibrada da ocupação dos pais dos juízes, principalmente se agrupadas em três níveis diferenciados em termos de renda e capital social, quando os percentuais aparecem sempre em torno dos 30%. Merece destaque, nesse sentido, o número de juízes com pais nos níveis considerados mais baixos de ocupação, que teriam realizado um esforço maior de mobilidade social.

Ainda que os dados de nossa amostra demonstrem, portanto, uma relativa abertura social da carreira em termos de idade, gênero e origem social, eles expressam também que a barreira da cor continua sendo um fator determinante de exclusão em nossa sociedade: 86% dos magistrados do trabalho se declara de cor branca, em contraponto a apenas cerca de 10,8% de cor parda e 1,2% de cor preta.

Ao ingressarem na carreira, os juízes do trabalho passam por um processo importante de socialização, em parte nas Escolas de Magistratura e em parte on the job, sob rígido controle dos respectivos Tribunais Regionais. Essa socialização é complementada por forte adesão a um associativismo ativo e profundamente comprometido com a instituição e seus princípios. As respostas ao survey comprovaram o alto grau de associativismo dos juízes do trabalho: como se pode observar no Gráfico 6, mais de 98% deles são filiados à Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho)19 19 A associação nacional da categoria foi criada em 1976, a partir da articulação de entidades estaduais já existentes, e sua primeira diretoria foi eleita em 1978. , porcentagem que certamente a maioria das associações de classe e sindicatos invejariam, mesmo considerando-se que tal filiação é hoje quase uma prática cultural obrigatória20 20 Em muitos estados, a visita à sede das Amatras pelos recém-concursados, acompanhada do convite para que se associem, é um importante rito de iniciação na profissão. .


Esse associativismo tem refletido crescentemente as aspirações de democratização interna da carreira, como também de uma maior intervenção "externa", como tão bem se revelou na luta da instituição contra o trabalho análogo ao escravo.

Em relação à carreira, os juízes opinaram sobre se gostariam de manter as regras de mobilidade definidas por lei e utilizadas atualmente – alternando entre uma promoção por merecimento e outra por antiguidade –, ou se prefeririam que fossem adotados novos critérios. Houve algumas divergências e, para efeito de ilustração, parte dessas informações processadas foi aqui agrupada em três grandes regiões do país (Norte/Centro-Oeste, Sudeste/Sul e Nordeste), com destaque também para três estados da região Sudeste/Sul: Rio de Janeiro (1ª região trabalhista), Rio Grande do Sul (4ª) e São Paulo – este compreendendo as regiões trabalhistas de São Paulo (2ª) e Campinas (15ª)21 21 Trabalhamos, em princípio, com a hipótese de que essa diferenciação pode, de um lado, refletir os efeitos da expansão ou estagnação econômica sobre o maior ou menor dinamismo dos processos sociais locais; de outro, expressaria também certa "cultura cívica" envolvendo a qualidade das demandas dos movimentos sociais, o alcance das articulações entre eles e deles com o Estado, o caráter da tradição jurídica, entre outros aspectos (cf. Putnam, 1996). .

No que se refere à primeira promoção possível da carreira, de juiz substituto para juiz titular de uma vara trabalhista, os juízes que atuam no Norte/Centro-Oeste e no Nordeste manifestaram-se preferencialmente pelo critério de antiguidade (respectivamente, 44% e 38% por região). Já os juízes do Sudeste/Sul preferem que se mantenha a promoção nos moldes em que ela ocorre atualmente (46%).

Quanto à promoção para os Tribunais Regionais do Trabalho, os juízes do Norte/Centro-Oeste (36%) e Nordeste (34%) preferem o critério de antiguidade, seguido pelo critério de merecimento (33% e 28%, respectivamente). No Sudeste/Sul, entretanto, os juízes optam pela promoção por merecimento22 22 Nas entrevistas, os juízes destacavam, porém, que a promoção por merecimento deveria ocorrer com base em critérios objetivos que envolvessem a avaliação do desempenho do juiz, a educação pós-graduada, cursos realizados etc. (35%), contra 25% pelo critério de antiguidade e 24% pelo sistema atual de alternância. Destaque-se igualmente que, embora como opção menos votada, a possibilidade de que o conjunto de juízes de 1º grau eleja aqueles a serem promovidos para os TRTs aparece com quase 15% das preferências do Norte/Centro-Oeste e do Nordeste, e 12,5% do Sudeste/Sul.

Já quanto à indicação dos ministros do TST, os juízes de todas as regiões concentram sua escolha no critério de eleição pela totalidade dos juízes (Nordeste, 62%; Norte/Centro-Oeste, 61%; Sudeste/Sul, 58%). A segunda opção, no caso do Sudeste/Sul (pouco mais de 30%) e do Nordeste (25%), é pela preservação do sistema atual, enquanto no Norte/Centro-Oeste (20%) prefere-se a eleição pelos próprios ministros.

O ambiente "externo", por sua vez, nem sempre é receptivo à ação da Justiça do Trabalho. Reconhecida pelos estratos populares, conforme demonstram algumas pesquisas (cf. Grynspan, 1999), como um dos espaços possíveis de exercício da cidadania em nosso país, esse ramo da justiça foi e continua sendo alvo das pressões liberais pela supressão de seu poder de intervenção a favor dos socialmente mais fracos, função que a maioria dos próprios juízes (52%) reconhece como especialmente relevante para o equilíbrio entre capital e trabalho, como demonstra o Gráfico 10.


Isso não significa, entretanto, que os juízes desconheçam os desafios postos pelos graduais avanços da democracia brasileira, nem pelas mudanças que, globalmente, continuam pressionando a reestruturação da produção capitalista e exigindo a reorganização do mundo do trabalho. Os magistrados consultados por nossa pesquisa admitem que muitos ajustes se fazem necessários, embora divirjam constantemente quanto às formas e aos ritmos dessas transformações.

Em nosso survey procuramos registrar também as percepções dos juízes sobre temas referentes ao papel e ao desempenho da Justiça do Trabalho, bem como questões em pauta por força da Reforma do Judiciário e das possíveis reformas sindical e trabalhista.

Assim, pode-se perceber que os juízes estão primeiramente preocupados em aprimorar o funcionamento da justiça e ampliar o acesso a ela. Apóiam, na sua grande maioria, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, introduzida pela Reforma do Judiciário, que propicia estender sua ação, antes restrita às relações de emprego, a todas as relações de trabalho. Com isso, sinalizam seu interesse em atingir o trabalho informal e outras relações igualmente, ou ainda mais, precárias de trabalho.

No campo especificamente dos direitos coletivos, o item da Reforma do Judiciário que exige a concordância das duas partes envolvidas no conflito trabalhista (representadas pelos sindicatos de patrões e de trabalhadores) para a instauração de dissídios junto à Justiça do Trabalho – numa clara tentativa de dificultar o acesso a ela – foi apreciado predominantemente de forma negativa pelos magistrados.

Observe-se que as respostas variaram de 65% no Nordeste a 54% no Sudeste/Sul. Quanto aos estados, deve-se ressaltar que, embora as opiniões desfavoráveis também prevaleçam, o destaque vai para o Rio Grande do Sul (62%), também o menos tolerante (6%) diante da possível inconstitucionalidade do item restritivo23 23 O Sistema de Acompanhamento das Contratações Coletivas – SACC, do Dieese, registra que mesmo com a Emenda n. 45 e a exigência do acordo entre as partes em conflito para a instauração do dissídio coletivo na Justiça do Trabalho, alguns tribunais têm admitido a instauração unilateral do dissídio, alegando "concordância tácita" se não há manifestação declarada de uma das partes (cf. Dieese, 2006). De toda forma, constata-se que a taxa de intervenção da Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos caiu vertiginosamente de 1993 a 2005, graças "a um processo de crescente rejeição do judiciário trabalhista a julgar o mérito dos dissídios coletivos" ( Idem, p. 13), mesmo na 4 ª Região (Rio Grande do Sul), onde a taxa de "judicialização dos conflitos" alcançou 92,3% em 1993-1994. .

No que se refere, por outro lado, às medidas processuais adotadas para agilização das causas já existentes e efetividade do processo trabalhista, as opiniões são mais convergentes24 24 Todos os juízes ouvidos, nas diversas circunstâncias, avaliam que é na fase da execução da sentença, ou seja, no momento em que ela deve efetivar-se concretamente, que reside o "nó" da eficácia dos processos da Justiça do Trabalho. . Mais de 70% dos magistrados ouvidos indicam a chamada penhora on-line25 25 A penhora on-line permite, em parceria com o Banco Central, o bloqueio imediato pelo juiz dos recursos bancários da parte executada, para assegurar o cumprimento da sentença e o rápido pagamento dos valores devidos. Outras medidas bastante votadas referem-se à concentração de atos processuais e à oralidade; à antecipação de tutela (que corresponde à liminar da justiça comum); à implementação de ações coletivas, ou seja, ações civis públicas do Ministério Público do Trabalho, nas varas. Além disso, há o procedimento sumaríssimo, para causas envolvendo menores recursos financeiros. como a medida de maior importância entre as introduzidas recentemente.

Do mesmo modo, sobre outros procedimentos que os juízes gostariam de ver implementados para melhorar o desempenho da Justiça do Trabalho em termos processuais, o Gráfico 14 mostra a convergência de suas opiniões.


Como se pode observar, a preocupação em limitar os graus de recursos aos tribunais superiores é manifestada por 80% dos juízes, desejosos não só de maior celeridade na execução das sentenças (73% das respostas) como favoráveis à súmula impeditiva de recursos (mais de 50% das respostas), neste último caso em contraponto à opção pela súmula vinculante, indicada por apenas 11% dos juízes ouvidos26 26 A finalidade das súmulas é a indicação de casos em que não cabem recursos para os tribunais superiores em virtude da recorrência das decisões destes no mesmo sentido, garantindo assim processos mais rápidos. Já existem súmulas do TST, mas há projetos para aperfeiçoá-las e introduzi-las desde a 1 º instância, quando o juiz já impediria os recursos. A grande diferença é que a súmula vinculante, reunindo decisões dos tribunais, deve ser seguida pelos juízes, o que não ocorreria com a súmula impeditiva de recursos. .

A oportunidade de discutir a proposta de reforma sindical do Fórum Nacional do Trabalho, por sua vez, permitiu explicitar que os juízes, apesar de tudo, sinalizam para a necessidade de construção de um cenário trabalhista com maior autonomia dos atores envolvidos nos conflitos. Nesse sentido, merecem destaque as opiniões dos juízes sobre dois temas importantes, indicadores de maior ou menor autonomia do movimento sindical em relação à tutela do Estado. Perguntados sobre a propriedade da cobrança do imposto sindical, menos de 20% dos juízes a defendem. Quanto à pluralidade sindical, mais de 80% dos juízes a defendem.

Tal postura não esconde, entretanto, a preocupação, claramente indicada, com a preservação de um espaço significativo para o exercício do direito do trabalho e a ação da justiça. Como também se pode ver no Quadro 15, a manutenção do poder normativo da Justiça do Trabalho é amplamente defendida pelos juízes, alcançando mais de 60% das respostas.

Essa posição se reforça, finalmente, diante dos desafios postos à Justiça do Trabalho, pelo estímulo formalizado – tanto na Reforma do Judiciário como na proposta de reforma sindical – à negociação coletiva entre os agentes do capital e do trabalho. Perguntados sobre a possível prevalência dos resultados da negociação coletiva (o "negociado") sobre o estabelecido na legislação trabalhista (o "legislado"), os juízes revelaram mais uma vez uma convergência de posições (quase 70% das respostas). Para eles, a liberdade preconizada no campo das relações trabalhistas não deve prescindir da presença da Justiça do Trabalho e de seus juízes, guardiões atentos na defesa dos direitos.

Considerações finais

Pode-se dizer que, a despeito da heterogeneidade marcante da origem social dos juízes do trabalho, o vigoroso associativismo da categoria tem contribuído para consolidar uma identidade coletiva, disseminando valores e linguagem em comum, partilhados por eles. A Anamatra é hoje reconhecida como porta-voz importante do coletivo de juízes do trabalho na relação com o TST e o Conselho Nacional da Justiça do Trabalho, bem como com os demais poderes. Sediada em Brasília, desenvolveu uma rede estruturada nacionalmente, compreendendo as 24 Amatras regionais, e mantém diálogo permanente com associações semelhantes, especialmente com a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT). Em 2000, alterou-se seu estatuto para que se convertesse numa entidade nacional de classe, o que permite a ela ajuizar Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) e, assim, contestar decisões dos tribunais superiores. Em 2004, num gesto de forte impacto simbólico, o Conselho de Representantes da Anamatra decidiu pela desvinculação da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Tal decisão, que não foi unânime27 27 Das 24 Amatras, sete decidiram permanecer ligadas à AMB. , visou certamente a reforçar o movimento de diferenciação e afirmação de uma identidade própria de "juiz do trabalho", distinta dos demais juízes.

Os dados apresentados mostram como as opiniões dos juízes convergem sobre várias questões relevantes. Preocupados em resguardar a função social da Justiça do Trabalho, os magistrados defendem a ampliação do acesso a ela, a manutenção de suas características particulares e as medidas que agilizem o processo e a execução das sentenças.

As questões relativas à carreira deixam alguns vestígios de dissenso: nas diferentes regiões, os juízes divergem sobre os critérios vigentes de promoção de cargos. Mas quase todos defendem a eleição pelo conjunto da magistratura como a melhor forma de escolha dos dirigentes dos tribunais, numa clara indicação de que a maioria dos respondentes, os juízes de varas, aspira a ampliar seu poder de intervenção sobre a orientação dos tribunais superiores.

Foi igualmente possível observar que, embora divergindo quanto às mudanças propostas ou em curso, por força de reformas presentes na atual agenda política, os juízes fatalmente aproximam suas opiniões no que se refere à defesa da legislação e ao papel de sua instituição nesse sentido. Assim, embora se diferenciem regionalmente quanto a temas polêmicos da Reforma do Judiciário – como no caso da ampliação da competência e das novas regras para a instauração do dissídio coletivo – ou da proposta de reforma sindical – por exemplo os itens sobre imposto e unicidade sindical –, os magistrados adiantam sua posição quase unificada contra as perspectivas de uma reforma trabalhista mais radical, em que a prevalência dos direitos definidos pela legislação trabalhista possa ser suplantada pelos resultados da negociação coletiva.

Por tudo isso talvez se possa afirmar, afinal, que a Justiça do Trabalho e seus operadores vivem um período de bastante tensão em relação aos desafios externos, quanto ao seu desempenho e à redefinição de sua função social, diante das reincidentes pressões e efetivos avanços da lógica liberal, e aos vários desafios internos, relacionados a demandas de maior autonomia e participação por parte de sua base socialmente diferenciada e politicamente competitiva.

Redefinindo os papéis dos atores envolvidos no conflito trabalhista, bem como as regras do jogo, as reformas recentes afetam direta ou indiretamente a Justiça do Trabalho. Assim, se de um lado a Reforma do Judiciário ampliou sua capacidade de atuação, de outro, as reformas sindical e trabalhista poderão colocar em questão os limites daquela. O maior ou menor papel concedido ao Estado e mais especificamente à justiça, o lugar atribuído à lei na hierarquia das normas sociais, o papel das instituições na configuração do mercado de trabalho e direitos de cidadania, o reconhecimento dos sindicatos como órgãos de representação legítima de interesses coletivos continuam se apresentando como dimensões centrais dessa disputa.

Texto recebido e aprovado em 27/9/2007.

Regina Lucia M. Morel é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: regina.morel@terra.com.br.

Elina G. da Fonte Pessanha é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: elina.pessanha@terra.com.br.

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  • SADEK, Maria Tereza. (2006), Magistrados: uma imagem em movimento Rio de Janeiro, Editora FGV.
  • 1
    Ver Morel e Pessanha (2006).
  • 2
    Ver Castro Gomes, Pessanha e Morel (2004) e Morel, Castro Gomes e Pessanha (2007).
  • 3
    O índice de respostas ao
    survey foi de 17%, embora em alguns estados, como Rio de Janeiro, tenha superado os 30% e, em São Paulo e Minas Gerais, os 20%. A amostra foi controlada a fim de garantir sua representatividade. Na fase de tabulação e análise dos dados quantitativos, contamos com a consultoria do professor Carlos Antonio Costa Ribeiro (UERJ/Iuperj).
  • 4
    As Comissões Mistas de Conciliação, incluindo seis representantes de trabalhadores e seis de patrões, tinham por finalidade tentar conciliar impasses coletivos; as Juntas de Conciliação e Julgamento (um representante dos trabalhadores, um dos patrões, um bacharel) tinham poderes para julgar as questões trabalhistas individuais.
  • 5
    Ver, nesse sentido, os trabalhos de Moraes Filho (1978) e Castro Gomes (1994), críticos da tese da outorga.
  • 6
    Para a Igreja católica, a questão social era assunto de compromisso cristão para com os pobres. A encíclica
    Quadragesimo Anno, de Pio XI, de 1931, reforçando os princípios da
    Rerum Novarum, de Leão XIII (1891), recomendava: ao capital, tratar os pobres de forma humanitária; aos trabalhadores, serem moderados; e ao Estado, promover a intervenção sob estatuto ético-moral e jurídico. Para os socialistas, a intervenção estatal era central para as reformas sociais, contra a dominação dos patrões sobre os trabalhadores e suas associações. Quanto aos corporativistas, que lideravam o processo, argumentavam que os conflitos entre empregadores e empregados não eram meramente de interesse privado "como no velho e morto liberalismo, mas que o Estado devia intervir neles, sob uma constituição onde a ordem econômica seja submetida à disciplina do Estado" (Morel e Pessanha, 2006).
  • 7
    A Emenda Constitucional n. 24, de dezembro de 1999, extinguiu os juízes classistas.
  • 8
    O primeiro concurso público deu-se em 1959.
  • 9
    Segundo Fragale (2006), "a Justiça do Trabalho era a mais desprezada e relegada do sistema federal de justiça".
  • 10
    O processo do trabalho é eminentemente oral, isto é, nele prevalece a palavra "falada", ao contrário do processo civil, em que quase todas as pretensões são formuladas por petições escritas. Em razão desse princípio, o processo desenvolve-se principalmente na audiência, assegurando um contato estrito entre as partes e com o magistrado, fato fundamental para a imediatidade da decisão.
  • 11
    Em 2006, elas alcançaram um total de 1.109 varas.
  • 12
    A Emenda Constitucional n. 45 foi publicada em 8 de dezembro de 2004.
  • 13
    Análise bem mais completa dos dados aqui apresentados está em Castro Gomes, Pessanha e Morel (2007).
  • 14
    Nas últimas décadas tem havido um expressivo crescimento da categoria. De 1995 a 2003, por exemplo, a quantidade de juízes do trabalho cresceu 37,6%. Em 2003 eram 2.068 juízes no primeiro grau, distribuídos em 1.251 varas. Os desembargadores dos TRTs eram 440 e havia dezessete ministros no TST. Pela Reforma do Judiciário aprovada em dezembro de 2004 (Emenda Constitucional n. 45), esse número aumentou para 27 (dados do TST).
  • 15
    A fim de tornar mais objetivo o critério de merecimento, a Constituição de 1988 determinou que os candidatos devem integrar a primeira quinta parte da lista de antiguidade quanto a esse critério. Aos tribunais caberia formar a lista com três nomes, considerando os critérios de segurança e presteza no exercício jurisdicional, além da freqüência a cursos de reconhecido aperfeiçoamento profissional.
  • 16
    Pela Reforma do Judiciário, para serem aprovados nos concursos os candidatos devem comprovar três anos de atividade jurídica.
  • 17
    Esse aumento da participação feminina não se restringe à magistratura e é observado em todas as profissões jurídicas, ainda que Bonelli (2002) argumente que, apesar do crescimento do número de advogadas, elas se concentram nos ramos menos prestigiados do direito civil (família, direitos sociais, trabalhistas e pequenas causas). Também na magistratura do trabalho, o posto mais elevado da carreira, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, ainda é essencialmente masculino, embora se perceba alguma alteração mais recente. Antes da vigência da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, entre os dezessete ministros do TST havia apenas uma mulher, correspondendo a 5,9% do conjunto; hoje, entre as vinte vagas ocupadas, quatro são por mulheres (20%).
  • 18
    Ver Sadek (2006). A comparação entre esses dados foi realizada, sob nossa supervisão, pelos bolsistas de Iniciação Científica do CNPq/ Pibic-UFRJ Luisa Pereira e Daniel Iliescu, e apresentada na Jornada de Iniciação Científica da UFRJ em 2006.
  • 19
    A associação nacional da categoria foi criada em 1976, a partir da articulação de entidades estaduais já existentes, e sua primeira diretoria foi eleita em 1978.
  • 20
    Em muitos estados, a visita à sede das Amatras pelos recém-concursados, acompanhada do convite para que se associem, é um importante rito de iniciação na profissão.
  • 21
    Trabalhamos, em princípio, com a hipótese de que essa diferenciação pode, de um lado, refletir os efeitos da expansão ou estagnação econômica sobre o maior ou menor dinamismo dos processos sociais locais; de outro, expressaria também certa "cultura cívica" envolvendo a qualidade das demandas dos movimentos sociais, o alcance das articulações entre eles e deles com o Estado, o caráter da tradição jurídica, entre outros aspectos (cf. Putnam, 1996).
  • 22
    Nas entrevistas, os juízes destacavam, porém, que a promoção por merecimento deveria ocorrer com base em critérios objetivos que envolvessem a avaliação do desempenho do juiz, a educação pós-graduada, cursos realizados etc.
  • 23
    O Sistema de Acompanhamento das Contratações Coletivas – SACC, do Dieese, registra que mesmo com a Emenda n. 45 e a exigência do acordo entre as partes em conflito para a instauração do dissídio coletivo na Justiça do Trabalho, alguns tribunais têm admitido a instauração unilateral do dissídio, alegando "concordância tácita" se não há manifestação declarada de uma das partes (cf. Dieese, 2006). De toda forma, constata-se que a taxa de intervenção da Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos caiu vertiginosamente de 1993 a 2005, graças "a um processo de crescente rejeição do judiciário trabalhista a julgar o mérito dos dissídios coletivos" (
    Idem, p. 13), mesmo na 4
    ª Região (Rio Grande do Sul), onde a taxa de "judicialização dos conflitos" alcançou 92,3% em 1993-1994.
  • 24
    Todos os juízes ouvidos, nas diversas circunstâncias, avaliam que é na fase da execução da sentença, ou seja, no momento em que ela deve efetivar-se concretamente, que reside o "nó" da eficácia dos processos da Justiça do Trabalho.
  • 25
    A penhora
    on-line permite, em parceria com o Banco Central, o bloqueio imediato pelo juiz dos recursos bancários da parte executada, para assegurar o cumprimento da sentença e o rápido pagamento dos valores devidos. Outras medidas bastante votadas referem-se à concentração de atos processuais e à oralidade; à antecipação de tutela (que corresponde à liminar da justiça comum); à implementação de ações coletivas, ou seja, ações civis públicas do Ministério Público do Trabalho, nas varas. Além disso, há o procedimento sumaríssimo, para causas envolvendo menores recursos financeiros.
  • 26
    A finalidade das súmulas é a indicação de casos em que não cabem recursos para os tribunais superiores em virtude da recorrência das decisões destes no mesmo sentido, garantindo assim processos mais rápidos. Já existem súmulas do TST, mas há projetos para aperfeiçoá-las e introduzi-las desde a 1
    º instância, quando o juiz já impediria os recursos. A grande diferença é que a súmula vinculante, reunindo decisões dos tribunais, deve ser seguida pelos juízes, o que não ocorreria com a súmula impeditiva de recursos.
  • 27
    Das 24 Amatras, sete decidiram permanecer ligadas à AMB.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Nov 2007

    Histórico

    • Recebido
      27 Set 2007
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