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Bourdieu e a nova sociologia econômica

Pierre Bourdieu's contribution to the new economic sociology

Resumos

Este artigo objetiva analisar a sociologia do mercado de Pierre Bourdieu, a fim de avaliar os alcances e os limites do pensamento de um dos autores mais representativos da Nova Sociologia Econômica francesa Com base na leitura crítica de alguns textos selecionados, chegamos à conclusão de que se trata de uma análise genuinamente sociológica dos fenômenos econômicos, uma vez que o sociólogo francês aplica seu quadro analítico, articulado ao redor dos conceitos-chave de campo e habitus, à esfera econômica, mostrando que o mercado é o produto de uma construção social Além de destacar a gênese social das disposições econômicas e de caracterizar o mercado como um campo de lutas onde se enfrentam agentes dotados de recursos diferentes, Bourdieu insiste no papel do Estado na regulação desse mercado, mobilizando dessa maneira, ao mesmo tempo, uma sociologia do conhecimento e uma sociologia política na sua análise da esfera econômica. No entanto, apesar de uma reflexão pioneira em termos de crenças econômicas, a abordagem de Bourdieu apresenta uma série de limitações que dizem respeito, entre outras, a certa ambigüidade no que tange às motivações do agente econômico moderno e à delimitação da esfera econômica.

Mercado; Habitus; Campo econômico; Pierre Bourdieu; Sociologia Econômica


This article examines Pierre Bourdieu's sociology of the market, assessing both the scope and limits of the thinking of one of the most emblematic authors of the New French Economic Sociology. Following a critical reading of some of his key texts, the article argues that Bourdieu's work involves a genuinely sociological analysis of economic phenomena, insofar as he applies his analytic framework - structured around the key concepts of field and habitus - to the economic sphere, showing that the market is the product of a social construction. As well as highlighting the social genesis of economic dispositions and describing the market as a field of struggles where agents with different resources confront each other, Bourdieu insists on the role of the State in regulating this market. In analyzing the economic sphere, he makes use simultaneously of a sociology of knowledge and a political sociology. However, although a pioneering analysis of economic beliefs, Bourdieu's approach presents a series of limitations, including a certain ambiguity in relation to the motivations of modern economic agents and the delimitation of the economic sphere.

Market; Habitus; Economic Field; Pierre Bourdieu; Economic Sociology


ARTIGOS

Bourdieu e a nova sociologia econômica

Pierre Bourdieu's contribution to the new economic sociology

Cécile Raud

RESUMO

Este artigo objetiva analisar a sociologia do mercado de Pierre Bourdieu, a fim de avaliar os alcances e os limites do pensamento de um dos autores mais representativos da Nova Sociologia Econômica francesa Com base na leitura crítica de alguns textos selecionados, chegamos à conclusão de que se trata de uma análise genuinamente sociológica dos fenômenos econômicos, uma vez que o sociólogo francês aplica seu quadro analítico, articulado ao redor dos conceitos-chave de campo e habitus, à esfera econômica, mostrando que o mercado é o produto de uma construção social Além de destacar a gênese social das disposições econômicas e de caracterizar o mercado como um campo de lutas onde se enfrentam agentes dotados de recursos diferentes, Bourdieu insiste no papel do Estado na regulação desse mercado, mobilizando dessa maneira, ao mesmo tempo, uma sociologia do conhecimento e uma sociologia política na sua análise da esfera econômica. No entanto, apesar de uma reflexão pioneira em termos de crenças econômicas, a abordagem de Bourdieu apresenta uma série de limitações que dizem respeito, entre outras, a certa ambigüidade no que tange às motivações do agente econômico moderno e à delimitação da esfera econômica.

Palavras-chave: Mercado; Habitus; Campo econômico; Pierre Bourdieu; Sociologia Econômica.

ABSTRACT

This article examines Pierre Bourdieu's sociology of the market, assessing both the scope and limits of the thinking of one of the most emblematic authors of the New French Economic Sociology. Following a critical reading of some of his key texts, the article argues that Bourdieu's work involves a genuinely sociological analysis of economic phenomena, insofar as he applies his analytic framework – structured around the key concepts of field and habitus – to the economic sphere, showing that the market is the product of a social construction. As well as highlighting the social genesis of economic dispositions and describing the market as a field of struggles where agents with different resources confront each other, Bourdieu insists on the role of the State in regulating this market. In analyzing the economic sphere, he makes use simultaneously of a sociology of knowledge and a political sociology. However, although a pioneering analysis of economic beliefs, Bourdieu's approach presents a series of limitations, including a certain ambiguity in relation to the motivations of modern economic agents and the delimitation of the economic sphere.

Keywords: Market; Habitus; Economic Field; Pierre Bourdieu; Economic Sociology.

Introdução

De acordo com Swedberg (1991), existem três tradições principais em Sociologia Econômica: a tradição alemã de Wirtschaftssoziologie (1890-1930), a tradição francesa de sociologie économique (1890-1930) e a tradição norte-americana de economy and society (anos de 1950). No que diz respeito à tradição francesa, representada por autores como Émile Durkheim, Marcel Mauss, François Simiand ou Maurice Halbwachs, ela compartilharia com a tradição alemã uma ênfase no papel das instituições econômicas e na dimensão cultural e simbólica dos fenômenos econômicos, além da recomendação de que o método da sociologia econômica deveria ser comparativo e histórico. A principal diferença entre ambas as tradições residiria no lugar da Sociologia Econômica: para os sociólogos alemães, ela poderia complementar a teoria econômica, cuja legitimidade não está sendo questionada, enquanto para os franceses ela deveria substituir uma teoria econômica inútil, pois baseada em premissas irrealistas.

Igualmente, Steiner (1998) posiciona Bourdieu, como herdeiro de Durkheim e Veblen, no campo "crítico" da Sociologia Econômica, que pretende substituir a teoria econômica. Mais tarde, ele identifica em Auguste Comte, Émile Durkheim e Pierre Bourdieu uma "tradição francesa de crítica sociológica da economia política", fundamentada essencialmente em duas apreciações de ordem metodológica: a análise dos fatos econômicos independentemente dos outros fatos sociais e a natureza do homo oeconomicus (cf. Steiner, 2005). De maneira semelhante, Lebaron (2001) vê uma filiação entre Bourdieu, de um lado, e Simiand e Halbwachs, de outro, no que diz respeito ao projeto de substituir a ciência econômica por uma "economia sociológica". Ele argumenta nesse sentido, tentando mostrar as semelhanças nas reflexões epistemológicas e nas posições metodológicas desses três autores. De fato, todos criticam o caráter normativo e ideológico da ciência econômica, o que é, aliás, uma constante entre os sociólogos economistas franceses desde Émile Durkheim, no quadro de uma tradição iniciada por Auguste Comte.

Lebaron (2001) defende a tese de que Bourdieu superou seus ilustres mestres ao fundamentar sua crítica da ciência econômica na sociologia do conhecimento científico, o que lhe permite evidenciar que os erros científicos encontram seu princípio nos obstáculos sociais à aquisição do conhecimento (cf. Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 1968, apud Lebaron, 2001, p. 57). A "falácia escolástica" decorre então da posição particular ocupada pelo cientista no espaço social, levando-o a considerar como princípio das práticas dos agentes sociais suas próprias representações dessas práticas ou os modelos teóricos elaborados para explicá-las, ou seja, a "colocar seu pensamento pensando na cabeça dos agentes agindo" (Bourdieu, 2000, p. 19). As estruturas mentais dos cientistas são, assim, suscetíveis de contaminar-se pelas classificações sociais preexistentes, que funcionam como representações pré-formadas da realidade estudada (cf. Lebaron, 2001). Em particular, é o caso de certas categorias ou pressupostos implícitos da ciência econômica, como a noção de mercado, "mito inteligente", ou a visão do agente econômico (cf. Bourdieu, 2005, p. 20). Por isso Bourdieu defende a necessidade da ruptura epistemológica durkheimiana com relação às pré-noções de senso comum, e o esforço para elaborar uma sociologia econômica baseada em novos conceitos, como os de campo e habitus (cf. Bourdieu, 2000; 2005).

De acordo com Steiner (2005), a sociologia econômica proposta por Bourdieu, de maneira semelhante a Comte e Durkheim, caracteriza-se por levar em conta três dimensões esquecidas pela ciência econômica: histórica, social e política. De fato, no quadro do estruturalismo genético, Bourdieu afirma a necessidade de reconstruir a gênese das disposições econômicas do agente econômico, assim como a gênese do próprio campo econômico: "[...] tudo o que a ortodoxia econômica considera como um puro dado, a oferta, a demanda, o mercado, é produto de uma construção social, é um tipo de artefato histórico, do qual somente a história pode dar conta" (Bourdieu, 2005, p. 17). A respeito da dimensão social, podemos citar a preocupação com a análise das condições econômicas e sociais das disposições econômicas, ou, como diz Bourdieu (2000), da "gênese social dos sistemas de preferências". Finalmente, a dimensão política encontra-se presente nas reflexões a respeito das relações entre o campo econômico e o Estado, assim como na ênfase na questão da dominação e do poder. Além dessas dimensões, Steiner (2005) defende a idéia de que uma das características da sociologia econômica de Durkheim e de Bourdieu reside na sua sociologia do conhecimento econômico, por meio da análise das crenças econômicas1 1 Para Garcia-Parpet (2003), também, a principal contribuição de Bourdieu à Sociologia Econômica reside na sua reflexão a respeito das crenças econômicas, por meio do conceito de habitus. . Desenvolveremos essas diversas dimensões ao longo deste artigo.

Num texto posterior, Swedberg (2004, p. 12) aprofunda sua análise comparativa ao afirmar: "[...] a sociologia econômica francesa é muito original e também muito distinta da sociologia econômica norte-americana". Com relação a esta última, em particular, "a análise de Bourdieu é consideravelmente mais realista" devido à ênfase na questão dos interesses dos atores. Com base nisso, Swedberg (2003; 2004) advoga seguir a trilha iniciada por Weber e perpetuada por Bourdieu no sentido de atribuir devida importância aos interesses, sobretudo, na sociologia econômica, e relativizar assim o papel assumido pelas relações sociais2 2 Isso constitui uma referência explícita à análise estrutural, em particular de Mark Granovetter, que focaliza as redes de relações pessoais. No entanto, a análise em termos de rede não pode ser vista como inteiramente oposta a uma análise em termos de interesse (cf. Raud-Mattedi, 2005b). O próprio Swedberg (2003) reconhece a não-exclusividade dessas duas abordagens, uma vez que recomenda levar em conta ambas, com a justificativa de que os interesses são definidos e expressos por meio das relações sociais. . Essa abordagem é fundamental, segundo ele, pois permite explicar a origem dos conflitos, que só ocorrem por causa de um antagonismo de interesses.

Diante disso, pretendemos proceder a uma análise da sociologia econômica de Pierre Bourdieu, em particular de sua sociologia do mercado, para averiguar a existência das três dimensões "esquecidas pela teoria econômica" – histórica, social e política –, além da reflexão sobre as crenças econômicas, e verificar assim sua inserção na "tradição francesa da Sociologia Econômica". O segundo eixo que norteará esta reflexão consiste em indagar até que ponto Bourdieu consegue elaborar uma teoria alternativa à teoria econômica, tendo em vista sua ênfase na questão dos interesses dos agentes sociais. Para tanto, focalizaremos nossa análise essencialmente em dois textos de Bourdieu, que podem ser vistos como seu manifesto em Sociologia Econômica: o artigo Le champs économique, publicado em 1997, e o livro Les structures sociales de l'économie, publicado em 2000, ambos resultantes de uma exaustiva pesquisa empírica sobre o mercado da casa própria na França, e nos quais Bourdieu sistematiza os princípios de sua Sociologia Econômica. No entanto, não nos limitaremos a essas duas fontes, já que Bourdieu demonstrou ao longo de sua obra um interesse pelas questões econômicas, que se afirmou desde seus primeiros trabalhos, a respeito do processo de adaptação da população ao capitalismo na Argélia3 3 Ver, por exemplo, Travail et travailleurs en Algérie, publicado em 1963. , "e neles já podem ser encontradas as formas mais elaboradas de uma sociologia econômica" (Garcia-Parpet, 2003, p. 139). Seguindo a própria recomendação de Bourdieu, organizaremos nossa reflexão ao redor dos dois conceitos-chave, os de campo e de habitus. Antes disso, no entanto, iniciaremos pela análise das críticas direcionadas por Bourdieu à teoria econômica.

As críticas de Bourdieu à teoria econômica: imperialismo ou falta de ambição?

Entre as numerosas críticas de Bourdieu à teoria econômica, encontramos a crítica da metodologia, da noção de homo oeconomicus (pressuposto básico da Ciência Econômica, do ator econômico racional e interessado), do etnocentrismo e da visão a-histórica da ciência econômica, assim como uma denúncia da "ilusão escolástica"4 4 Bourdieu (2000, p. 22) identifica um último "princípio de distorsão "nas preocupações normativas de uma ciência aplicada, influenciada pelas demandas políticas. Ele critica assim o deslizamento ideológico da Ciência Econômica, que está cada vez mais se tornando uma "ciência de Estado", ponto em que se encontra novamente certa semelhança com as acusações de ideologia e abordagem normativa direcionadas por Durkheim (1984) à Economia Política. Mas não desenvolveremos esse tema no presente texto. , como já vimos. As críticas do homo oeconomicus são um dos argumentos recorrentes dos sociólogos economistas desde Comte. Bourdieu fala, a esse respeito, de "criação fictícia" (1963, p. 25), de "monstro antropológico" (2005, p. 46) ou de uma "antropologia imaginária" (Idem, p. 51). Reconhecendo sua dívida intelectual para com Durkheim e Veblen, ele caracteriza a teoria da ação racional como uma "epistemologia dedutivista", cujos axiomas são irrealistas, uma "filosofia intelectualista, que concebe os agentes como puras consciências sem história" e uma "visão atomística e descontinuísta" (Idem, pp. 51-52). Em particular, cobra da "filosofia individualista da microeconomia do agente" sua visão de atores "intercambiáveis e livres de qualquer pressão estrutural" (Idem, p. 16). Contra uma ciência etnocêntrica, que tende a "creditar universalmente os agentes da aptidão à conduta econômica racional", ele reivindica a necessidade de uma análise das "condições econômicas e culturais do acesso a essa aptidão" (2000, p. 16). Paralelamente, "contra a visão a-histórica da ciência econômica", ele afirma a importância de "reconstruir, de um lado, a gênese das disposições econômicas do agente econômico [...], e, do outro lado, a gênese do próprio campo econômico" (Idem, p. 16).

Retomando uma crítica elaborada por Durkheim já em 1895, Bourdieu denuncia um procedimento metodológico da ciência econômica, a abstração5 5 Tomando como ponto de partida a definição da economia política de Stuart Mill (1984), Émile Durkheim (1984) questiona se existe realmente uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe esse papel preponderante. . "A ciência que chamamos 'economia' se fundamenta numa abstração originária que consiste em dissociar uma categoria particular de práticas, ou uma dimensão particular de toda prática, da ordem social na qual toda prática humana está imersa" (2000, p. 11). Partindo desse pressuposto, e apesar de reconhecer que a autonomia da teoria econômica está em parte baseada na autonomia do próprio campo econômico, ponto com o qual concorda, Bourdieu (2000) defende seu projeto de elaborar uma teoria alternativa, baseada em novos conceitos (sobretudo os de habitus e de campo), que pretende reinserir o econômico no social. Ele advoga então tratar o fato econômico como um "fato social total", no sentido de Marcel Mauss, na medida em que "o mundo social está inteiramente presente em cada ação 'econômica'" (Idem, pp. 11 e 13). E ainda, utilizando uma expressão muito parecida com as análises da Nova Sociologia Econômica, especialmente com a noção de enraizamento cunhada por Polanyi (1980)6 6 Bourdieu (2000, p. 11), aliás, cita a noção de embeddedness de Karl Polanyi. e resgatada por Granovetter (1985), Bourdieu afirma, no quadro de mais uma crítica à ciência econômica, que "o cálculo estritamente utilitarista não pode dar conta completamente de práticas que permanecem imersas no não-econômico" (Idem, p. 21). Nesse sentido, a ciência econômica, tal como é praticada, não é legítima e deve ser substituída por uma sociologia econômica:

[...] a imersão da economia no social é tal que, por legítimas que sejam as abstrações realizadas para as necessidades da análise, é preciso ter claro que o verdadeiro objeto de uma verdadeira economia das práticas não é outra coisa, em última análise, senão a economia das condições de produção e de reprodução dos agentes e das instituições de produção e de reprodução econômica, cultural e social, isto é, o próprio objeto da sociologia na sua definição mais completa e mais geral (2000, pp. 25-26).

No entanto, nem sempre Bourdieu assumiu essa postura com relação aos pressupostos da ciência econômica.

Num dos primeiros textos em que tentou sistematizar suas reflexões a respeito das modalidades e dos condicionantes da ação social, ele afirmava que convém

[...] abandonar a dicotomia do econômico e do não-econômico que proíbe apreender a ciência das práticas "econômicas" como caso particular de uma ciência capaz de tratar todas as práticas, inclusive aquelas que se reivindicam desinteressadas ou gratuitas, portanto libertadas da "economia" como práticas econômicas, orientadas para a maximização do lucro material ou simbólico (Bourdieu, 1980a, p. 209).

Ele esboça, assim, os grandes traços de "uma teoria sociológica geral que não seria nada mais do que uma economia política generalizada" (Caillé, 1987, p. 130). De fato, para Bourdieu, a análise das ações econômicas deveria ser realizada pela sociologia – o que Durkheim (1975) já reivindicava –, não porque as ações econômicas seriam um tipo de ação social, mas porque todas as ações sociais obedeceriam à mesma lógica das ações econômicas (ponto com o qual Durkheim obviamente não poderia concordar).

A teoria das práticas propriamente econômicas é um caso particular de uma teoria geral da economia das práticas. Mesmo quando elas dão todas as aparências do desinteresse porque escapam à lógica do interesse "econômico" (no sentido restrito) e porque se orientam para alvos não materiais e dificilmente quantificáveis, como nas sociedades "pré-capitalistas" ou na esfera cultural das sociedades capitalistas, as práticas não cessam de obedecer a uma lógica econômica (Bourdieu, 1980a, p. 209).

Assim, "o que propõe Bourdieu não é pensar o econômico como um subconjunto da sociedade, mas, pelo contrário, conceitualizar a relação social como uma modalidade ampliada da relação econômica" (Caillé, 1987, p. 138). Caillé salienta assim que, paradoxalmente, a crítica de Bourdieu aos economistas consiste não numa utilização abusiva do modelo do homo oeconomicus, mas, pelo contrário, na sua utilização restrita a uma área específica da vida social. Também para Alexander "[...] Bourdieu estende a redução instrumental da ação – a prática como busca do lucro – a todos os âmbitos da vida social [...]. O problema da teoria econômica não reside afinal no fato de ela ser conceitualmente imperialista, mas, de forma paradoxal, de não ser ambiciosa o suficiente" (Alexander, 2000, p. 89). De fato, Bourdieu ironiza a incapacidade da teoria econômica de explicar outras formas da ação social que não seja a econômica, apesar de elas também serem orientadas pela busca do interesse.

Como ele não conhece outras espécies de interesse além daquele que o capitalismo produziu [...], o economismo não pode integrar em suas análises e menos ainda em seus cálculos nenhuma das formas do interesse "não-econômico": como se o cálculo econômico tivesse conseguido apropriar-se do terreno objetivamente entregue à lógica impiedosa do "interesse puro", como diz Marx, apenas deixando uma ilhota sagrada, milagrosamente poupada pela "água gelada do cálculo egoísta", asilo do que não tem preço, por excesso ou por falta (Bourdieu, 1980a, p. 192)7 7 O "imperialismo econômico" da sociologia de Bourdieu aparece de maneira nítida nesta análise das estratégias familiares, em que vários dos âmbitos da vida social podem ser analisados em termos de interesse, lucro, investimento, mercado e capital: "O sistema das estratégias de reprodução de uma unidade doméstica depende dos lucros diferenciais que ela pode esperar dos diferentes investimentos em função dos poderes efetivos sobre os diferentes mecanismos institucionalizados (mercado econômico, mercado escolar, mercado matrimonial), assegurados pelo volume e a estrutura de seu capital" (Bourdieu, 1994, p. 7). .

Assim, parece que Bourdieu assume uma postura ambígua com relação à ciência econômica. Retomaremos esse ponto no quadro da análise do habitus do ator econômico.

O mercado como campo de lutas

Bourdieu caracteriza o mercado como um "mito inteligente" e sublinha que, como já foi notado freqüentemente, "a noção de mercado quase nunca é definida, e menos ainda discutida" (2005, p. 20). Mas reconhece que essa ausência não é tão ilógica, devido à abstração progressiva da noção de mercado no decorrer da revolução marginalista: "Na verdade, essa acusação ritual não faz muito sentido, na medida em que, com a revolução marginalista, o mercado cessa de ser algo concreto para se tornar um conceito abstrato sem referência empírica" (Idem, p. 20). Rompendo com essa tradição, e no quadro da orientação atual da sociologia contemporânea, Bourdieu define o mercado como uma "construção social" (2005, p. 40): é o lugar de encontro entre a demanda e a oferta, ambas socialmente construídas.

Ilustrando a tendência da sociedade moderna à diferenciação, analisada por vários sociólogos desde Spencer, passando por Durkheim e Weber, Bourdieu reconhece a existência de uma esfera econômica, a "esfera das trocas de mercado", "o campo econômico como cosmo obedecendo a suas próprias leis", no seio do qual "o cálculo dos lucros individuais impôs-se como princípio de ação dominante" (2005, pp. 18-19). É interessante apontar novamente para certa ambigüidade de Bourdieu, que, de um lado, critica o procedimento abstrato da ciência econômica e advoga tratar o fato econômico como fato social total, como já vimos, e, de outro, reconhece a existência de uma esfera econômica autônoma, referindo-se à "[...] revolução ética, ao término da qual a economia pôde se constituir como tal, na objetividade de um universo separado, regido por suas próprias leis, as do cálculo interessado e da concorrência sem limites para o lucro" (Bourdieu, 2000, p. 18; grifo do autor). De fato, com sua noção de campo, ele subentende que a definição do fato econômico não é problemática. A idéia de diferenciação e de autonomização contida na noção de campo produz a ilusão da separação radical das diversas atividades sociais (cf. Lahire, 2001). No entanto, dizer que o fato econômico deve ser tratado como um fato social total é afirmar a dificuldade de delimitar os contornos do "econômico", ponto a respeito do qual Durkheim (1984) já debatia com John Stuart Mill e a economia política de maneira geral. "Desde os debates entre Comte e Mill em meados do século XIX, a definição de uma esfera econômica suscetível de ser estudada de uma maneira separada é um problema e constitui uma das razões fundamentais das tensões entre economistas e sociólogos" (Steiner, 2002, p. 45).

Na verdade, Bourdieu parece se distanciar da ciência econômica na medida em que, ainda que reconheça a autonomização relativa da esfera econômica, também torna mais complexa sua análise com quatro dimensões sociológicas. Em primeiro lugar, ao mesmo tempo em que Bourdieu afirma que o campo econômico se distingue dos outros campos por uma busca aberta da "maximização do lucro material individual", ele reconhece, contra Gary Becker e toda a tradição do imperialismo econômico, que "a emergência de tal universo não implica de modo algum a extensão a todas as esferas da existência da lógica da troca mercantil" (Bourdieu, 2005, p. 22). De fato, o processo de diferenciação e de autonomização das esferas sociais acarreta uma "explosão da noção de interesse; há tantas formas de libido, tantos tipos de 'interesse', quanto há campos. Cada campo, ao se produzir, produz uma forma de interesse que, do ponto de vista de outro campo, pode parecer desinteresse (ou absurdo, falta de realismo, loucura etc.)" (Bourdieu, 1996, p. 149; grifo do autor). Swedberg (2003) lembra que Bourdieu critica os economistas por sua noção a-histórica de interesse e por generalizar a outras esferas sociais o interesse econômico8 8 Sobre esse ponto, ver também Convert (2003). . Nesse sentido, Bourdieu afirma se posicionar "nos antípodas do economicismo, que consiste em aplicar a todos os universos o nomos característico do campo econômico" (Bourdieu, 1996, p. 148; grifo do autor). A generalização abusiva de Gary Becker e autores afins do pressuposto do ator econômico calculador e interessado (pelo dinheiro) a outras esferas, além da esfera econômica, um empreendimento teórico no qual "nada mais escapa à explicação pelo agente maximizador", é portanto denunciada por Bourdieu como um exemplo típico de "falácia escolástica" (2005, p. 46)9 9 Apesar dessas afirmações veementes, não podemos esquecer a postura ambígua de Bourdieu a respeito da relação entre práticas econômicas e práticas sociais, como já salientado. . Segundo, ele lembra que "as trocas nunca são completamente reduzidas a sua dimensão econômica", ou seja, citando Durkheim (1995), "os contratos sempre têm cláusulas não-contratuais" (Bourdieu, 2005, p. 22). De fato, Durkheim, e todas as análises sociológicas do mercado depois dele, lembra que a viabilidade do contrato depende da existência de um fundo institucional composto pela Tradição, a Moral e o Direito (cf. Raud-Mattedi, 2005a). Terceiro, como veremos logo em seguida, os atores econômicos de Bourdieu não são iguais e intercambiáveis, como nos modelos econômicos, mas dotados de diferentes quantidades e formas de poder, e exercendo, ou sofrendo, dominação. Enfim, no quadro de uma análise de tipo weberiano, Bourdieu insiste na importância de considerar a emergência da esfera econômica como um fenômeno cultural, cuja gênese deve ser objeto de investigação.

Lembramos que o campo é um subsistema social, ou um espaço estruturado de posições, onde os diferentes agentes que ocupam as diversas posições lutam, tendo em vista a apropriação do capital específico ao campo e/ou a redefinição desse capital. Como o capital está distribuído de maneira desigual no seio do campo, existem dominantes e dominados. Dando continuidade à análise weberiana do mercado, segundo a qual "toda troca racionalmente orientada é a conclusão mediante um compromisso de uma prévia luta de interesses aberta ou latente" (Weber, 1991, p. 43)10 10 A respeito da sociologia weberiana do mercado, ver Raud-Mattedi (2005a). , Bourdieu define o campo econômico como um "campo de lutas"11 11 Esta definição é muito parecida com a metáfora do "mercado como política" de Fligstein (1996). , isto é, um "campo de ação socialmente construído onde se afrontam agentes dotados de recursos diferentes" (2005, p. 33)12 12 Lembrando a análise weberiana do dualismo ético e do mercado como conceito oposto ao de comunidade, Bourdieu conta que na Argélia de 1960 "as relações reduzidas à sua dimensão puramente 'econômica' são concebidas como relações de guerra, que só podem estabelecer-se entre estrangeiros" (2003, p. 80). E, nesse mercado, onde se enfrentam indivíduos movidos unicamente pela busca de seu interesse material, a incerteza com relação à qualidade do bem (burro ou boi, por exemplo) implica a mobilização das relações pessoais para reduzir o risco de oportunismo. Nesse caso, Bourdieu comprova resultados hoje amplamente estudados no quadro da análise estrutural (ver por exemplo DiMaggio e Louch, 1998; Granovetter, 1974; 1985). Pelo contrário, no seio da comunidade tradicional argeliana, Bourdieu (2003) mostra que as relações econômicas estão profundamente enraizadas nas relações sociais e caracterizadas pela reciprocidade, ou seja, pela lógica da dádiva, reencontrando assim fatos já observados por Polanyi (1980) e Mauss (2001) em outras sociedades tradicionais. . Essa dotação de recursos depende da quantidade e da qualidade do capital de cada agente:

A força ligada a um ator depende de seus diferentes recursos [...], isto é, mais precisamente, do volume e da estrutura do capital que ele possui, sob suas diferentes formas: capital financeiro, atual ou potencial, capital cultural [...], capital tecnológico, capital jurídico, capital organizacional [...], capital comercial e capital simbólico" (Idem, pp. 24-25).

Em função desses recursos, os agentes elaboram estratégias de ação, no âmbito dos limites impostos pela estrutura do campo, em particular pelo seu grau de concentração. Bourdieu rejeita, assim, a postura que consistiria em opor uma abordagem em termos de estrutura a uma abordagem em termos de estratégia: "Não é preciso escolher entre uma visão puramente estrutural e uma visão estratégica: as estratégias mais conscientemente elaboradas só podem se exercer nos limites e nas direções que lhes são atribuídos pelas pressões estruturais e pelo conhecimento, desigualmente distribuído, dessas pressões" (Idem, p. 28). Levar em conta a dotação diferencial de capital implica levar em conta a existência de relações de dominação no seio do campo econômico, ou seja, a existência de empresas dominantes e dominadas. Nesse sentido, Bourdieu rompe com a teoria econômica na qual só interagem atores iguais, ao menos nos modelos de concorrência pura e perfeita (cf. Boyer, 2003; Brochier, 1987), e tem o mérito de destacar a dimensão política do mercado.

Essa visão de uma oferta que "se apresenta como um espaço diferenciado e estruturado de empresas concorrentes, cujas estratégias dependem dos outros concorrentes" (2000, p. 37; grifo do autor), é muito parecida com a análise estrutural de Harrison White (1981), na qual a oferta não se constitui de um agregado de vendedores independentes, como na teoria econômica, mas de um conjunto de produtores que ficam se observando. Assim, o fato de que as empresas concorrentes não param de se espiar explica a elaboração quase simultânea de modelos semelhantes de residências em empresas que ocupam posições vizinhas no campo dos produtores (cf. Bourdieu, 2000). Mas Bourdieu afirma se distanciar das concepções tanto de Max Weber (1991)13 13 Weber (1991) via o mercado como o resultado de duas formas de interação social: a troca, simultaneamente orientada para o parceiro e para os concorrentes, e a competição (luta sobre os preços entre o cliente e o vendedor, e entre concorrentes, tanto vendedores como clientes). como de Harrison White. Ambos teriam o mérito de sublinhar a influência dos concorrentes na estratégia dos parceiros da troca, mas acabaram caindo numa visão interacionista, esquecendo as pressões inerentes à posição ocupada na estrutura do campo (cf. Bourdieu, 2005). Igualmente, Bourdieu criticava os estruturalistas, como Granovetter, que "apenas se desgrudam da visão benthamiana e do 'individualismo metodológico', para cair na visão interacionista" que ignora a pressão estrutural do campo (cf. Idem, p. 31). Ele reivindica então a herança de Simmel, ao considerar a competição no mercado um "conflito indireto", isto é, não dirigido diretamente contra o concorrente, mas mediatizado pelo campo (cf. Idem, p. 45). Ou seja, à visão interacionista, que pensa em termos de influência direta, é preciso opor uma visão estrutural, que leve em conta os "efeitos de campo" (Idem, p. 26; grifo do autor). É menos por meio de ações diretas do que do peso que elas detêm na estrutura do campo (peso que depende do volume e da estrutura do capital detido) que as empresas dominantes pressionam as empresas dominadas e influenciam suas estratégias14 14 Podemos sugerir que Bourdieu elabora uma sociologia relacional, no sentido de Emirbayer (1997), ao afirmar: "O peso associado a um agente depende de todos os outros pontos e das relações entre todos os pontos, isto é, de todo o espaço compreendido como uma constelação relacional" (2005, p. 24). . Os empresários não escolhem "livremente"; pelo contrário, suas decisões sofrem o peso de toda a estrutura do campo dos construtores. Além disso, as estratégias das empresas não dependem somente da posição ocupada na estrutura do campo, mas também da estrutura das posições de poder no seio da empresa15 15 De fato, Bourdieu (2000; 2005) refina sua análise, mostrando que a própria empresa funciona à maneira de um campo, sendo suas estratégias o resultado não da escolha individual de um indivíduo racional (o empresário ou o gerente), mas de lutas internas entre funcionários "detentores de diferentes espécies de capital cultural, com dominante financeira, técnica ou comercial" (2005, p. 43). De maneira parecida, em Fligstein (1990), encontramos uma análise do confronto interno entre diversas concepções de controle e a predominância sucessiva de cada uma delas, técnica, comercial ou financeira, ao longo do século XX. . No quadro dessa concepção de mercado, e retomando um resultado já identificado por Weber16 16 Os preços provêm de "[...] luta (luta de preços e de concorrência) e de compromisso entre interesses diversos que ocorrem no mercado" (Weber, 1991, p. 57). , o preço não é o fruto "automático, mecânico e instantâneo" de mecanismos concorrenciais, mas uma conseqüência das relações de poder existentes no campo da produção (cf. Idem, p. 29), ponto no qual Bourdieu rompe novamente com a teoria econômica prevalecente. As empresas dominantes têm, assim, o poder de determinar tanto os preços de compra como os preços de venda e, portanto, os lucros.

Como em Fligstein (1996), o mercado de Bourdieu consiste num jogo temporariamente estabilizado, cujas regras são provisoriamente respeitadas. Nesse quadro, a dominação de uma empresa reside em essência na sua capacidade de impor às outras sua própria definição do jogo. "Ela constitui um ponto de referência obrigatório para seus concorrentes, que, façam o que fizerem, são intimados a tomar posição em relação a ela, ativa ou passivamente" (Bourdieu, 2005, p. 36). De um lado, Bourdieu insiste na dimensão estática do fenômeno da reprodução do campo, por meio das "barreiras à entrada" de novas empresas, estabelecidas pela distribuição desigual dos recursos, em particular em termos de economias de escala e de vantagens tecnológicas detidas pelas empresas dominantes (Idem, p. 27). De outro lado, Boyer defende outra interpretação da teoria de Bourdieu: "Enquanto uma leitura superficial sugere uma fatalidade da reprodução social, na verdade todo o esforço analítico orienta-se para a revelação dos fatores de mudança e de transformação" (Boyer, 2003, p. 69). O próprio Bourdieu evoca claramente a questão da mudança: "Visto que as forças do campo tendem a reforçar as posições dominantes, podemos nos perguntar como verdadeiras transformações das relações de força no seio do campo são possíveis" (2005, p. 38). As relações de transação entre produtores e clientes e as relações de concorrência internas ao campo econômico (em particular a existência de empresas dominantes e dominadas) constituem o princípio da dinâmica desse campo. De maneira específica, podem ser identificados cinco fatores de mudança do campo.

Em primeiro lugar, o campo é modificado pelas próprias empresas dominantes na medida em que sua posição só pode ser mantida por um esforço permanente de inovação. Geralmente, é a empresa dominante que toma a iniciativa no que diz respeito ao preço, aos novos produtos e às estratégias de distribuição e de promoção. Mas, "as mudanças no interior do campo são freqüentemente ligadas a mudanças nas relações com o exterior do campo" (Idem, p. 39). Assim, em segundo lugar, as empresas dominantes podem ser suplantadas em decorrência de uma inovação tecnológica que permite uma redução dos custos favorável às empresas dominadas, tipo de modificação em geral introduzido por novos atores, vindo "de outros subcampos" (Idem, p. 38). Em terceiro lugar, "às passagens de fronteira juntam-se as redefinições das fronteiras entre os campos" (Idem, p. 39). Pode acontecer, por exemplo, de um campo se dividir em subcampos especializados (como no caso da indústria aeronáutica), ou de um novo campo emergir da fusão entre várias indústrias, como no caso da informática e das telecomunicações. Em quarto lugar, Bourdieu cita vários fatores externos de mudança: "As transformações das fontes de abastecimento [...] e as mudanças na demanda determinadas por mudanças na demografia [...] ou nos estilos de vida" (Idem, p. 41). Finalmente, um fator fundamental de mudança reside nas interações do campo com o Estado17 17 . Percebe-se aqui que os consumidores representam um elemento muito passivo no modelo teórico de Bourdieu, na medida em que as empresas e o Estado desempenham um papel preponderante no processo de mudança. De maneira geral, Bourdieu (2000) empenha-se em mostrar como os consumidores são manipulados pelas empresas, em particular por meio da propaganda. .

A intervenção do Estado

Enquanto a abordagem estrutural da Nova Sociologia Econômica, em particular os trabalhos de Granovetter, não desenvolve uma análise muito aprofundada do papel do Estado na economia, a abordagem política, representada em particular pelas análises de Bourdieu e Fligstein, insiste na importância da atuação do Estado no processo de construção social do mercado (cf. Wanderley, 2002). De fato, Bourdieu enfatiza a relevância das relações entre o campo econômico e o campo político: "Dentre todas as características das sociedades nas quais a ordem econômica está 'imersa', a mais importante, para as sociedades contemporâneas, é a forma e a força de sua tradição estadista" (Bourdieu, 2000, p. 24). Essa importância se deve a uma autonomização simultânea do campo econômico e do campo político.

Mais do que para qualquer outro mercado, Bourdieu mostra que o Estado determina as regras de funcionamento do mercado da casa própria "por meio de toda uma regulamentação específica que se junta à infra-estrutura jurídica (direito de propriedade, direito comercial, direito do trabalho, direito dos contratos etc.) e à regulamentação geral (controle dos preços, enquadramento do crédito etc.)" (Idem, p. 116)18 18 Como no caso da empresa, Bourdieu (2000) analisa o funcionamento do "campo burocrático", mostrando em que medida as políticas adotadas são o resultado de lutas internas. . A intervenção do Estado no campo econômico exerce-se, portanto, essencialmente por meio do direito. Ademais, aparece mais uma vez a dimensão política e conflitual do mercado: "Entre todas as trocas com o exterior do campo, as mais importantes são as que se estabelecem com o Estado. A competição entre as empresas assume freqüentemente a forma de uma competição pelo poder sobre o poder do Estado [...] e pelas vantagens asseguradas pelas diferentes intervenções do Estado" (Bourdieu, 2005, pp. 39-40). Assim, o Estado influencia fortemente as relações de força existentes entre os agentes no campo econômico. As empresas dominadas tentam mobilizar seu capital social (suas redes de relações) para pressionar o Estado a modificar as regras do jogo num sentido que lhes seja mais favorável. O Estado participa também da construção da demanda por meio da produção dos sistemas de preferências individuais e da atribuição dos recursos necessários (orientação do crédito, ajudas fiscais etc.). Por exemplo, no caso do mercado da casa própria, mediante as ajudas direcionadas aos indivíduos, o Estado pode favorecer determinada categoria social e, portanto, determinado grupo de construtores. O Estado orienta também a demanda por intermédio das normas de qualidade impostas (por exemplo, as construções devem respeitar determinados padrões arquitetônicos regionais) e fiscalizadas por funcionários locais (cf. Bourdieu, 2000; 2005).

Bourdieu mostra, assim, que na década de 1960 começou a ser implantada na França uma política que visava a favorecer o acesso dos consumidores à casa própria. Uma série de medidas que afetavam o sistema bancário público e privado resultou num aumento significativo do financiamento para compra da casa própria, graças a uma redução das taxas de juros, a um alongamento dos prazos de reembolso e à redução do valor da entrada, entre outros. A pressão dos construtores, por intermédio do sindicato profissional, foi fundamental para que o Estado deixasse de investir diretamente (construindo conjuntos habitacionais públicos, cujos apartamentos são alugados por um preço subvencionado para as classes de baixa renda) e para que a moradia ingressasse na lógica do mercado. A implementação, em setembro de 1966, do mercado hipotecário favoreceu um financiamento bancário maciço da construção de casas, que beneficiou sobretudo as maiores empresas, cujos produtos padronizados, e com preços mais acessíveis, eram destinados às categorias sociais menos favorecidas. O ministro do Equipamento19 19 Equivalente ao Ministério das Cidades no Brasil. da época atendeu as reivindicações do sindicato patronal e estabeleceu como objetivo acelerar o afastamento do Estado e o ingresso da moradia na lógica do mercado, ao favorecer o acesso à propriedade privada (pelo desenvolvimento dos créditos imobiliários e a oferta de terrenos aos construtores), ao limitar a construção de grandes prédios (ofício de 30 de novembro de 1972) e ao encorajar a construção de casas (lançando notadamente em março de 1969 um concurso internacional da casa própria). A lei de 16 de julho de 1971, que reorganiza o conjunto das profissões do setor imobiliário, institui o "contrato de construção de casa própria", que assegura aos compradores um conjunto de garantias em relação aos construtores. Em conseqüência, as (grandes) empresas de construção, com base em catálogos (produtos padronizados), desenvolvem-se rapidamente ao longo dos anos de 1970 (Bourdieu, 2000)20 20 De certa maneira, o Estado parece atrelado aos interesses econômicos. .

Assim, para Bourdieu, o Estado não é somente encarregado de garantir a ordem e a confiança, e de regular os mercados e as empresas, como tradicionalmente se considera. Como no caso do mercado da casa própria, "ele contribui, às vezes de maneira extremamente decisiva, para a construção da demanda e da oferta" (Bourdieu, 2005, p. 41). Bourdieu apontou para o papel do Estado na "gênese social dos sistemas de preferências", ao mostrar que uma parte importante das categorias sociais que teriam respondido favoravelmente a uma política de incentivo à construção de moradias públicas destinadas à locação ingressou, em decorrência do crédito e das ajudas do governo, "na lógica da acumulação de patrimônio econômico" (2000, p. 53). Talvez uma das maiores contribuições de Bourdieu à Nova Sociologia Econômica resida nessa reflexão sobre os determinantes sociais do comportamento do agente econômico, que passa pela elaboração do conceito de habitus.

O agente econômico: habitus e crenças econômicas

Numa primeira aproximação, a contribuição de Bourdieu à reflexão sobre o agente econômico é dupla. De um lado, ele critica implicitamente o pressuposto da ciência econômica do "ator" isolado que toma suas decisões de maneira unilateral; de outro, mostra que, no processo de compra da casa própria (raciocínio que continuaria válido para muitos outros bens), não se pode fazer simplesmente um cálculo de custo e benefício, pois se trata de um ato amplamente simbólico que faz intervir outros valores além da pura maximização de uma utilidade econômica.

Bourdieu elaborou sua teoria da ação em reação tanto a uma visão encantada das condutas humanas – de acordo com a qual os agentes respeitariam cegamente normas e regras sociais – como à visão utilitarista – segundo a qual os interesses individuais seriam os únicos condicionantes do comportamento dos agentes. Seu postulado sociológico básico é o de que os agentes sociais não agem sem razão, ou seja, eles têm motivos para agir como agem. Nesse sentido, são "razoáveis", a não confundir com "racionais", o que significaria que são motivados por razões conscientes e que escolhem com base num cálculo racional de custo e benefício (cf. Bourdieu, 1996). Por ter condições sociais de exercício, a racionalidade é necessariamente limitada: "A razão (ou a racionalidade) é bounded, limitada, não somente, como crê Herbert Simon, porque o espírito humano é genericamente limitado (o que não é uma descoberta), mas porque é socialmente estruturado e, em conseqüência, confinado" (Bourdieu, 2005, pp. 47-48). Para entender o comportamento dos atores sociais, é preciso entender que eles atribuam importância, ou seja, interesse (illusio), a um jogo social, a seus objetivos estratégicos. Nesse sentido, a noção de interesse opõe-se tanto à de desinteresse como à de indiferença (ataraxia). Dizer que os atores sociais são interessados significa que eles acreditam nas regras do jogo social.

O habitus21 21 Garcia-Parpet (2003, p. 150) lembra que, se o conceito de habitus como "princípio gerador de estratégias, sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira intenção estratégica", está presente já nos primeiros textos, como Travail et travailleurs en Algérie (1963), é em Esquisse d'une théorie de la pratique (1972) e em Le sens pratique (1980) que Bourdieu desenvolverá "um conceito geral da ação, operando uma ruptura com a concepção estruturalista dos agentes, que faz deles simples suportes das estruturas ou executores de regras, e devolvendo-lhes uma 'espontaneidade condicionada'". , ou disposição incorporada, depende da posição do agente no espaço social e condiciona, de maneira inconsciente, sua visão de mundo e seu comportamento.

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente de fins e o domínio instantâneo das operações necessárias para atingi-los (Bourdieu, 1980a, p. 88).

O habitus não depende somente da posição social do agente, de sua situação atual, mas também de sua trajetória pessoal. Ou seja, "o comportamento de cada agente é menos função de suas estratégias e seus cálculos explícitos do que de seu 'senso do jogo', adquirido ao longo de seu itinerário social" (Garcia-Parpet, 2003, p. 150). Isso explica a existência de diferenças entre habitus coletivos, de classe, e habitus individuais. Se Bourdieu reconhece a forte probabilidade de que diferentes indivíduos, "sendo o produto das mesmas condições objetivas, [sejam] dotados dos mesmos habitus", lembra, no entanto, que "o princípio das diferenças entre os habitus individuais reside na singularidade das trajetórias sociais" (Bourdieu, 1980a, pp. 100-101; grifo do autor).

Nesse quadro, quais são os princípios de ação do agente econômico na teoria de Bourdieu? De maneira coerente com sua teoria do campo, Bourdieu mostra que o agente econômico, ou seja, que atua no seio do campo econômico, procura a apropriação máxima do capital específico desse campo, isto é, o capital econômico: "O campo impõe para todos, mas com diversos graus de acordo com sua posição e suas capacidades econômicas, não somente os meios 'razoáveis', mas também os fins, isto é, o enriquecimento individual, da ação econômica" (2000, p. 20). Aparentemente, o agente econômico de Bourdieu agiria, portanto, como o "ator" da ciência econômica22 22 De fato, desde John Stuart Mill (1984), a economia política reconhece a existência de uma causa maior do comportamento humano num âmbito particular da sociedade (a esfera econômica): o desejo de riqueza, o que legitima a existência dessa ciência. . No entanto, se os fins são semelhantes, os meios diferem, pois Bourdieu critica a visão racional do "ator econômico", preferindo falar de agentes razoáveis, uma vez que, se o agente tem razões para agir, não se trata de um cálculo racional, como vimos. A noção de habitus parece próxima da noção de rotina, da ação tradicional. O próprio Bourdieu reconhece que ele "é, portanto, particularmente adaptado às circunstâncias comuns da existência, que [...] deixam pouco lugar à avaliação consciente e calculada das chances de lucro" (2005, p. 50). Ou seja, nas transações diárias, o agente econômico não se engaja continuamente num cálculo de custo e benefício, mas age como está acostumado a agir, e com razoável chance de êxito. No entanto, reduzir o habitus à noção de rotina empobrece o conceito, que remete também a um princípio gerador de invenções e improvisações (cf. Champagne e Christin, 2005).

De maneira mais concreta, no quadro de seu estudo do mercado da casa própria, Bourdieu (2000) analisa em que medida as preferências dos consumidores são função da posição ocupada no espaço social. Ele critica as pesquisas do INSEE23 23 IBGE francês. , que levam em conta diversas variáveis, mas deixam escapar variáveis explicativas importantes, como a trajetória social (pelo menos a profissão do pai) e o capital cultural ou técnico. Assim, com base em dados estatísticos, ele mostra que o comportamento do consumidor depende de vários fatores, como o peso relativo do capital econômico e do capital cultural, que é o princípio da constituição do sistema de preferências, mas também a trajetória social, a idade, a situação matrimonial, o número de filhos e o lugar de moradia (tamanho da cidade). Obviamente, a probabilidade de se tornar proprietário aumenta com a idade e depende do volume do capital econômico; no entanto, de maneira menos óbvia, a partir de um nível mínimo de capital econômico, a percentagem dos proprietários é mais elevada nas categorias sociais proporcionalmente mais ricas em capital econômico (76,8% dos empresários, 66,1% dos artesãos e 65% dos agricultores) do que nas categorias sociais proporcionalmente mais ricas em capital cultural (49,9% dos funcionários públicos, 49,7% dos professores e 37,2% nas profissões artísticas). Além disso, "a propensão a atribuir mais importância ao aspecto técnico e menos ao aspecto simbólico da casa cresce à medida que se desce na hierarquia social" (Idem, p. 47). Finalmente, rompendo mais uma vez com os pressupostos da microeconomia, Bourdieu argumenta que "[...] a decisão econômica não é a de um agente econômico isolado, mas a de um coletivo, grupo, família ou empresa, funcionando à maneira de um campo" (Bourdieu, 2005, p. 18)24 24 Para Hubert Brochier (1987), a identificação do sujeito da ação em Bourdieu nem sempre está clara. Muitas vezes, trata-se de um sujeito coletivo, como a família ou a empresa. De fato, de acordo com Bourdieu (1994, p. 11), "o 'sujeito' da maioria das estratégias de reprodução é a família agindo como uma espécie de sujeito coletivo e não como um simples agregado de indivíduos". . Não se pode, portanto, deduzir o funcionamento do mercado da hipótese de agentes isolados e intercambiáveis. É preciso analisar a realidade empírica e reconhecer a dimensão coletiva de muitos agentes sociais, além de sua posição na estrutura social.

Encontramos na análise de Bourdieu o mecanismo das mediações sociais, típicas do método sociológico de abordagem dos fenômenos econômicos25 25 Sobre a análise na Nova Sociologia Econômica das mediações sociais no funcionamento do mercado, ver Steiner (2006). . Ele insiste na necessidade de analisar a estrutura social específica, "oposta em tudo à noção a-histórica de mercado", para entender como "são efetuadas praticamente a coordenação e a agregação das opções individuais" (Idem, p. 30). Assim, o ajuste da oferta e da demanda não resulta da "agregação milagrosa" de inúmeras decisões tomadas por atores interessados e racionais, como no mito da "mão invisível" de Adam Smith, mas da "lógica da orquestração espontânea das práticas, baseada numa rede de homologias (entre os produtos, os vendedores, os compradores etc.)" e numa afinidade entre os habitus dos compradores e dos vendedores (cf. Bourdieu, 2000, pp. 97 e 98). Ou seja, retomando um modelo analítico que foi aplicado por exemplo ao estudo do campo literário ou religioso, Bourdieu afirma a existência de uma homologia entre as posições dos vendedores e dos clientes (dos bens religiosos, culturais ou econômicos): assim, os clientes dominados, ou seja, que fazem parte dos grupos sociais dominados, tenderiam "naturalmente", isto é, devido a seu habitus, a consumir os bens oferecidos por vendedores que fazem parte do mesmo universo social. As grandes empresas recrutam, assim, sua equipe comercial no seio dos grupos sociais que compõem sua clientela, como parte de sua estratégia de venda. Com efeito, a heterogeneidade das posições sociais molda os habitus e os estilos de vida, portanto as preferências dos consumidores: "Enquanto o economista tende a considerar como exógena a heterogeneidade das preferências e das competências dos indivíduos, a abordagem de Pierre Bourdieu interessa-se pelos fatores que determinam a distribuição das diversas formas de capital e por sua evolução no decorrer do tempo" (Boyer, 2003). Nesse sentido, a teoria de Bourdieu mobiliza uma lógica diferente daquela das escolhas racionais de "atores" isolados, na medida em que as disposições dos agentes sociais, e portanto suas decisões, são condicionadas por suas condições de existência, o que acarreta uma "redução do leque de escolhas" (Brochier, 1987, p. 102). Se as contribuições de Bourdieu à análise das mediações sociais dos fenômenos econômicos são indiscutíveis, alguns autores denunciam a existência de certo determinismo estrutural no seu modelo teórico. Para Alexander (2000), o uso do termo "homologia" simboliza essa falta de autonomia dos campos e sua determinação pela estrutura econômica. Os agentes sociais de Bourdieu, longe de mostrarem-se criativos, seriam "motivados por uma estrutura de disposições que traduz simplesmente as estruturas materiais no âmbito subjetivo" (Idem, p. 38). Dessa forma, "longe de constituir uma alternativa à explicação social estrutural, o habitus operacionaliza simplesmente esta última" (Idem, p. 41). De fato, a teoria de Bourdieu, apesar de querer reintroduzir a vontade dos atores sociais na sociologia, numa tentativa de superação da oposição entre objetivismo (o estruturalismo) e subjetivismo (a teoria da ação racional), parece recair em certo determinismo estrutural. Bourdieu afirma que é a posição de cada família "na estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital" que "orienta as estratégias (e que é o verdadeiro sujeito)" (Bourdieu, 1994, p. 11; grifo nosso).

Como salienta Boyer (2003), Bourdieu inova com relação à ciência econômica, ao não diferenciar os indivíduos somente pelo nível de renda, o que lhe permite explicar resultados inexplicados pelos economistas. Por outro lado, Favereau (2001) identifica a existência de uma mesma lógica espontânea na ciência econômica e na sociologia (econômica) de Bourdieu, e lamenta que a economia presente na sociologia de Bourdieu seja mais um complemento da economia ortodoxa do que um apoio da economia heterodoxa. Ele se esforça assim por mostrar que "o modelo da reprodução segundo Pierre Bourdieu e o modelo da coordenação segundo a atual ortodoxia econômica têm uma estrutura lógica idêntica, caracterizada por uma perfeita adequação dos esquemas de comportamentos individuais à fabricação da ordem coletiva" (Idem, pp. 279-280). Com efeito, no quadro do modelo analítico de Bourdieu, a maioria das instituições sociais, em particular a escola e a religião, desempenha a função de perpetuar e reproduzir a ordem social, ao assegurar a harmonia entre as disposições individuais e a realidade coletiva. A "lógica da orquestração espontânea das práticas" desemboca numa harmonia na esfera econômica muito parecida com a ordem econômica obtida graças à "mão invisível" (cf. Idem). Igualmente, para Alexander, a socialização em Bourdieu "não transmite valores que estejam em conflito com a experiência vivida; pelo contrário, ela produz valores que refletem imediatamente as estruturas hierárquicas da vida material" (Idem, p. 43). A adesão espontânea dos agentes sociais aos "ideais hegemônicos da classe econômica dominante" está na base dessa teoria da reprodução social (Idem, p. 44). Para Caillé, também, o habitus existe "para garantir a ausência de uma defasagem entre o real e o desejável" (Caillé, 1987, p. 121). De fato, o mecanismo de formação do habitus desemboca numa conseqüência que tem repercussões sociais fundamentais, isto é, a adequação das "esperanças subjetivas" às "chances objetivas" (Bourdieu, 1980a, p. 90), ou seja, a autolimitação aos projetos de vida "realistas", que funciona como um mecanismo de reprodução do campo (cf. Favereau, 2001). A análise dos projetos de vida dos trabalhadores argelinos leva Bourdieu a afirmar:

A mira do futuro depende estritamente, em sua forma, e em sua modalidade, das potencialidades objetivas que são definidas para cada indivíduo por seu estatuto social e por suas condições materiais de existência. O projeto mais individual nunca é senão um aspecto das esperanças estatísticas que estão associadas à classe (1979, p. 81).

O conceito de habitus permite entender por que o comportamento dos agentes econômicos pode revelar-se bem adequado às chances objetivas de êxito, sem ser no entanto o produto de um cálculo racional. "Quando o habitus é produto de condições objetivas parecidas com aquelas nas quais funciona, ele engendra condutas que são perfeitamente adaptadas a essas condições, sem ser o produto de uma busca consciente e intencional da adaptação"26 26 A eficiência prática do habitus pode ser comprovada a contrario pela análise das situações nas quais agem agentes dotados de um habitus constituído no quadro de condições sociais totalmente diferentes: "É o caso quando agentes formados numa economia pré-capitalista são confrontados, desarmados, às exigências de um cosmo capitalista; ou, ainda, quando pessoas idosas perpetuam, na maneira de Dom Quixote, disposições deslocadas; ou quando as disposições de um agente em ascensão ou em declínio na estrutura social estão em dissonância com a posição que ele ocupa" (Bourdieu, 2005, p. 54). (Bourdieu, 2005, pp. 53-54). Por ser "relativamente constante e durável", o habitus permite a elaboração de expectativas razoáveis a respeito do comportamento dos outros, baseadas no "postulado tácito de que os outros agirão de maneira responsável, e com o tipo de constância ou de fidelidade a si mesmos que está inscrito no caráter durável dos habitus" (Idem, pp. 49 e 55). Por isso, Bourdieu argumenta que sua teoria "permite explicar a verdade aparente" da teoria econômica, mas com base em outras hipóteses (cf. Idem, p. 55). Gostaríamos de apontar para a postura paradoxal de Bourdieu, que pretende ter mostrado "[...] que várias conquistas da Ciência Econômica, espécie de colosso com pés de argila, são perfeitamente compatíveis com uma filosofia do agente, da ação, do tempo e do mundo social completamente diferente daquela que produzem ou aceitam habitualmente a maior parte dos economistas" (Idem, p. 57). Ora, é justamente a confirmação na realidade do funcionamento do mercado com base no comportamento do homo oeconomicus que nos parece problemática. Os esforços de autores da Nova Sociologia Econômica, como Granovetter (1985), Fligstein (1996) ou Zelizer (1988), por exemplo, tendem a comprovar exatamente o contrário. Aliás, o próprio Bourdieu reconhece que "vários observadores alertados notadamente por economistas de clarividência (ou lucidez) especial, como Maurice Allais, constataram que existe uma defasagem sistemática entre os modelos teóricos e as práticas efetivas" (2000, p. 19). Além disso, se Bourdieu concorda com os economistas neoclássicos a respeito do comportamento do agente econômico, ele só se diferencia deles pela explicação, ou seja, pelas hipóteses. Nesse quadro, como comprovar a veracidade de sua teoria? Na ausência de dados empíricos para determinar a veracidade de uma das duas teorias e descartar a outra, a aceitação de um dos dois conjuntos de hipóteses só pode fundamentar-se num ato de fé, e não num raciocínio objetivo. Em última instância, Bourdieu acaba justificando a posteriori a legitimidade da teoria neoclássica, o que entra em contradição com o próprio objetivo declarado.

Falta inclusive indagar se a teoria de Pierre Bourdieu trabalha realmente com "uma filosofia do agente [...] completamente diferente daquela [...] dos economistas". De fato, muitos autores questionam sua utilização da noção de interesse.

Um agente interessado?

Aparentemente, o agente econômico de Bourdieu não parece muito diferente daquele da ciência econômica, tendo sido acusado de utilitarista por vários autores, sociólogos ou economistas heterodoxos, que concordam sobre sua inserção na "axiomática do interesse" ou numa "antropologia utilitarista" (cf. Alexander, 2000; Caillé, 1986; 1987; Brochier, 1987; Favereau, 2001). Para Alexander, apesar de Bourdieu ter introduzido a noção de habitus como alternativa ao pensamento utilitarista, ela é empregada de tal maneira que "demonstra a onipresença do utilitarismo" (Alexander, 2000, p. 85). Como já vimos, Bourdieu sustenta que toda ação social obedece ao cálculo econômico, pois está sempre orientada pela necessidade de "atingir com o menor custo os objetivos inscritos na lógica de um determinado campo" (Bourdieu, 1980a, p. 85). Caillé (1987) também salienta que os atores sociais de Bourdieu buscam sempre satisfazer seu interesse. Inclusive, atrás do desinteresse aparente da dádiva, escondem-se somente cálculo e interesse. Assim, Bourdieu afirma: "Os universos sociais nos quais o desinteresse é a norma oficial não são, sem dúvida, inteiramente regidos pelo desinteresse: por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis, camuflados" (1996, p. 152). Para que haja troca de dádivas, por exemplo entre os camponeses cabilas, "é preciso [...] que se possa ter interesse pelo desinteresse", ou seja, "que haja recompensas, lucros simbólicos, com freqüência conversíveis em lucros materiais" (Idem, p. 169)27 27 Além disso, a família, que poderia ser considerada o lugar por excelência do desinteresse e dos laços afetivos, assume na teoria de Bourdieu uma dimensão utilitarista: em vez de garantir a segurança afetiva de seus membros, "a unidade da família é feita por e para a acumulação e a transmissão" do patrimônio econômico, social e simbólico (1994, p. 11). . Pode-se perguntar se esse aspecto "utilitarista" caracterizava a obra inicial de Bourdieu ou se permanece nas reflexões mais atuais.

De fato, as reflexões de Bourdieu sobre o tema são ambíguas. De um lado, como vimos, ele explicita ter elaborado sua teoria da ação em reação à visão utilitarista que considera os interesses individuais como os únicos condicionantes do comportamento dos agentes sociais. E recusa a assimilação entre sua teoria e a teoria econômica, argumentando que sua concepção do interesse é muito diferente daquela dos economistas. É verdade que sua noção de interesse é muito ampla, não sendo somente material ou econômica no sentido estrito do termo, mas podendo assumir a forma de toda espécie de gratificações simbólicas (cf. Brochier, 1987). De outro lado, ele afirma a essência "interessada" da natureza humana, recorrendo à noção de libido. "Uma das tarefas da sociologia é a de determinar como o mundo social constitui a libido biológica, pulsão indiferenciada, em libido social, específica. [...] o trabalho de socialização da libido é, precisamente, o que transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos" (Bourdieu, 1996, p. 141; grifos do autor). No mesmo texto, recorrendo novamente à terminologia psicanalítica, ele aborda a questão do desinteresse e dos interesses econômicos:

As condutas de honra das sociedades aristocráticas ou pré-capitalistas têm como princípio uma economia de bens simbólicos fundada no recalque coletivo do interesse [...] que tende a produzir habitus "desinteressados", habitus antieconômicos, dispostos a recalcar os interesses, no sentido estrito do termo (isto é, a busca de lucros econômicos)" (Idem, p. 151)28 28 Ele afirma também que "a economia pré-capitalista apóia-se fundamentalmente em uma recusa do que nós consideramos como a economia" (1996, p. 172). Ora, só se pode recusar o que se conhece, ou o que é natural, espontâneo. Portanto, Bourdieu parece afirmar aqui a naturalidade do comportamento econômico moderno. .

De acordo com Caillé (1987, p. 139), nas sociedades tradicionais, o não-reconhecimento do capital econômico e o funcionamento da economia de acordo com a lógica da dádiva participam de uma "hipocrisia coletiva". Com efeito, elas se fundamentam "num conjunto de mecanismos que tende a limitar e a dissimular o jogo do interesse e do cálculo econômico" (Bourdieu, 1980a, p. 195). Num texto posterior, Bourdieu insiste na idéia de que, com a modernidade, a lógica econômica passou a impor-se como princípio dominante no campo econômico, "contra o recalque da disposição calculista" (2005, p. 19). Igualmente, no livro sobre o mercado da casa própria, ele se refere à "capacidade, provavelmente universal, de submeter as condutas à razão calculista" (Bourdieu, 2000, p. 17). Percebe-se, assim, que o utilitarismo dos agentes sociais de Bourdieu permanece presente nos textos mais recentes, que podem ser considerados seu manifesto em sociologia econômica.

Essas frases necessitam de alguns comentários. Em primeiro lugar, Bourdieu parece afirmar a natureza intrinsecamente interessada do ser humano, com um interesse particular pelos benefícios econômicos, sendo o comportamento desinteressado unicamente o resultado de um esforço da sociedade para conter essas pulsões biológicas.

A questão da possibilidade da virtude pode, portanto, ser remetida à questão das condições sociais de possibilidade em universos nos quais disposições duradouras de desinteresse podem constituir-se e, uma vez constituídas, encontrar condições objetivas de reforço constante, tornando-se o fundamento de uma prática permanente da virtude (Bourdieu, 1996, pp. 152-153).

Além disso, haveria uma tendência natural à busca dos lucros econômicos, e o habitus desinteressado seria o fruto de um recalque coletivo. Assim, no final do processo de autonomização do mercado,

[...] a economia doméstica passa a ser a exceção. [...] O espírito de cálculo, lá reiteradamente recalcado (ainda que a tentação do cálculo nunca estivesse ausente, entre os cabilas como alhures), afirma-se progressivamente, à medida que se desenvolvem as condições favoráveis a seu exercício e a sua afirmação pública (Idem, p. 174; grifo do autor).

Essas afirmações deixam o leitor perplexo a respeito da concepção de natureza humana em Bourdieu.

O mercado é diabólico?

Em segundo lugar, no âmbito mais específico da sociologia econômica, Bourdieu parece exagerar as diferenças entre as sociedades tradicionais, em que o desinteresse é estimulado, e a sociedade moderna, na qual os agentes sociais, sobretudo os agentes econômicos, agem de maneira unicamente interessada29 29 Como Wacquant (1997, p. 38) observou, Bourdieu segue a tradição durkheimiana ao fundamentar suas análises em "comparações binárias, entre sociedades ditas 'tradicionais' ou 'pré-capitalistas' e formações sociais 'altamente diferenciadas'". . No contexto de uma visão típica da sociologia clássica, ele afirma, assim, que "os valores da honra vão se desgastando à medida que as trocas monetárias se generalizam e, por meio delas, o espírito calculista" (Bourdieu, 1996, p. 152). Na sua análise da sociedade camponesa argelina, tende a contrastar sistematicamente, e de maneira talvez um pouco forçada, as disposições e as práticas do camponês tradicional e do agente econômico moderno: "A cautela do fellah, visão antecipada, antecipação pré-perceptiva, difere essencialmente da previsão racional do empresário capitalista" (Bourdieu, 1963, p. 27). Ou ainda, retomando a análise weberiana: "Um aspecto fundamental das sociedades modernas" reside na "tendência à 'racionalização' (formal) que afeta todos os aspectos da vida econômica" (Bourdieu, 1979, p. 16). Ora, as reflexões atuais, tanto da sociologia econômica como da economia heterodoxa, tendem justamente a ponderar essa visão idealizada do "ator" racional30 30 Neil Fligstein, por exemplo, critica os pressupostos do ator racional: "Os atores econômicos vivem em mundos escuros onde nunca é claro quais ações terão quais conseqüências". Nessas condições, "nenhum ator pode determinar quais comportamentos maximizarão os lucros" (1996, p. 659). O próprio Bourdieu reconhece mais tarde a inexistência desse "ator" econômico racional (2000; 2005). .

De maneira geral, Bourdieu parece diabolizar a lógica mercantil que "tende a reduzir qualquer coisa ao estado de mercadoria comprável e a destruir todos os valores" (Bourdieu, 2005, p. 22). Ele inclusive utiliza a dicotomia cara a Durkheim de sagrado e profano: "O mercado é o lugar do cálculo ou até da astúcia diabólica, de transgressão diabólica do sagrado. Ao contrário de tudo o que é exigido pela economia de bens simbólicos, aí um gato é chamado de gato, o interesse de interesse, o lucro de lucro" (Bourdieu, 1996, p. 173). De acordo com a classificação de Zelizer (1988; 1992), Bourdieu adequar-se-ia ao modelo do "mercado ilimitado", que congrega autores que compartilham a visão de um mercado todo poderoso e destrutivo. Estas são as principais premissas desse "revisionismo moral": 1) há uma predominância do mercado na sociedade moderna; 2) existe uma dicotomia entre o mercado visto como relação monetária, independente de qualquer valor, e os valores não materiais, sagrados, sociais e pessoais; 3) o mercado é visto como uma força expansionista e destruidora dos laços sociais; 4) a intrusão do mercado nos âmbitos pessoal, social e moral da vida leva à degradação/dissolução dos mesmos; e 5) a "proteção" dos valores não-econômicos só é possível por meio de um processo de isolamento. Bourdieu situa-se, assim, numa tradição que se inicia no século XIX e que carrega uma visão pessimista do processo de modernização, cuja expressão se encontra em particular nas obras de Marx, Weber e Simmel. Entre os autores contemporâneos, Zelizer cita Richard Titmuss, cuja comparação internacional dos sistemas de coleta de sangue para transfusão acaba concluindo que os sistemas comerciais, baseados na doação retribuída, não somente são menos eficazes do que a doação voluntária (gratuita), como também representam um perigo para a ordem social. Ora, Titmuss é justamente um dos autores mobilizados por Bourdieu (2005) para sustentar sua própria argumentação.

Zelizer critica os autores defensores do modelo do mercado ilimitado por estarem próximos dos economistas clássicos, ao reconhecer "as possibilidades de expansão ilimitada do mercado, ignorando suas limitações estruturais, culturais e sociais" (1992, p. 6). Rejeitando a autonomização e a diabolização do mercado apontadas por esse modelo, Zelizer recusa a dicotomia entre processos econômicos e forças socioculturais para afirmar que os processos econômicos deveriam ser vistos como "uma categoria especial de relações sociais", como a religião ou o parentesco (1988, p. 619). Em seu modelo dos "mercados múltiplos", a autora esforça-se para mostrar como a cultura e as relações sociais se apropriam das relações econômicas e as moldam. "As relações sociais e os valores não se submetem passivamente a um mercado potente e homogeneizador", mas são "as diferentes formas de relações sociais que determinam mercados múltiplos ao criar de maneira dinâmica novos modos de troca e repartição" (Zelizer, 1992, p. 24). Não pretendemos desenvolver neste artigo as análises de Zelizer, que são mobilizadas apenas para sugerir em que direção, frutífera, uma sociologia econômica pode orientar suas reflexões.

As crenças econômicas

No entanto, a análise de Bourdieu não pára por aí, e ele oferece uma reflexão extremamente interessante em termos de crenças econômicas. Mostra, já em 1963, que "a conduta econômica supõe um conjunto de valores sociais que a orienta", em particular "a existência de um sistema determinado de atitudes diante do mundo e do tempo"31 31 Bourdieu leva em conta não só as condições culturais, mas também econômicas, do acesso à conduta racional. Assim, conseguiu comprovar empiricamente que "abaixo de certo patamar de segurança econômica, assegurada pela estabilidade do emprego e a possessão de um mínimo de rendas regulares, os agentes econômicos não podem conceber nem realizar a maioria das condutas que supõem um esforço para apreender o futuro, como a poupança ou o crédito" (2003, p. 85). (Bourdieu, 1963, pp. 24 e 25). Ele retoma essa idéia na sua análise do mercado da casa própria, ao afirmar que as disposições do agente econômico moderno – como as necessidades, as preferências, a propensão ao trabalho assalariado, à poupança, ao investimento ou ao crédito, por exemplo –, longe de serem naturais e universais, são social e historicamente construídas. Com efeito, elas são o "produto de toda uma história coletiva, que deve ser sempre reproduzida nas histórias individuais" (2005, p. 19). O universo econômico é, como qualquer outro campo, um "universo de crença"32 32 Frédéric Lebaron, aluno de Bourdieu, dá continuidade a essas reflexões ao analisar o papel político da teoria econômica e seu estatuto de "substituto laicizado da fé religiosa" (2000, p. 7). , ou seja, os agentes devem acreditar no jogo, eles devem ter a certeza de que vale a pena jogar e devem aprender e legitimar as regras do jogo (Idem, p. 17). A análise das transformações das práticas econômicas no meio rural argelino na década de 1960 permitiu a Bourdieu tomar consciência de que se tratava menos de um processo de adaptação do que de "conversão" a um novo "sistema de crenças"33 33 Ele faz referência, por exemplo, ao esforço que devem realizar os camponeses para abandonar uma visão da "atividade como ocupação social socialmente reconhecida, independentemente de qualquer sanção material" (2003, p. 83; grifo do autor), e lembra a reflexão de Weber (1987) a respeito do trabalho realizado como "vocação": "Um tal estado de espírito não é um produto da natureza. Não pode ser suscitado unicamente por altos ou baixos salários. É o resultado de um longo processo de educação". (2003, pp. 82 e 83; grifo do autor). Como em Weber, encontramos em Bourdieu a convicção de que é a sociedade que legitima os fins e os meios dos agentes econômicos: "O sistema econômico em via de racionalização tende a moldar os sujeitos conforme suas expectativas e suas exigências" (1963, p. 25). Por exemplo, Bourdieu lembra que o interesse por certos tipos de bens não é inato, mas é dado socialmente: assim, o uso social da casa própria supõe uma "longa tradição de sedentariedade. [...] Ele é solidário a uma visão conservadora do mundo, que valoriza todas as formas de enraizamento" (2000, p. 36). Além disso, as revistas femininas e dedicadas à casa "moldam as expectativas em termos de moradia, ao dar como exemplo sua arte de viver" (Idem, p. 113). No caso da casa própria, a dimensão simbólica desempenha um papel fundamental. Trata-se de um investimento não somente econômico, mas também social e afetivo que encerra um "projeto de reprodução biológico e social" (Idem, p. 36). A forte ligação existente entre os projetos de "construir uma casa" e "construir uma família" revela-se na fraca percentagem de solteiros proprietários de casa. "A casa é indissociável do lar como grupo social durável e do projeto coletivo de perpetuá-lo" (Idem, p. 34). Aliás, esse componente emocional da casa, "produto da coesão afetiva que reforça a coesão afetiva" (Idem, p. 35), não passou despercebido e é um elemento fortemente valorizado nas propagandas34 34 Essa particularidade da casa própria (investimento financeiramente pesado e simbolicamente forte) inviabiliza talvez uma generalização das reflexões de Bourdieu aos outros setores da economia. .

A essas "representações espontâneas", que decorrem do próprio funcionamento da atividade econômica, devem ser acrescentadas as "representações construídas" por uma instituição (como o sistema escolar) ou por organizações (onde operam os peritos) encarregadas de difundir o saber econômico junto aos produtores e aos consumidores (cf. Steiner, 2005). No seio das instituições, Bourdieu (2000) distingue entre as estruturas objetivas (administrativas, notadamente) e as estruturas cognitivas, e as disposições que as primeiras contribuíram para produzir. Ele alude, assim, ao processo de legitimação da teoria econômica levado adiante por vários agentes e instituições, e denuncia, em particular, a difusão do pensamento neoliberal por instituições internacionais como o Banco Mundial ou o FMI. E, no caso específico da casa própria, mostra que a emergência da lógica de mercado nessa área resultou de uma luta interna ao Estado entre altos funcionários de diversos ministérios, em que prevaleceu o discurso fundamentado num cálculo de custo e benefício. O rigor dos modelos econométricos assimilados por alguns funcionários no decorrer de sua formação acadêmica forneceu a autoridade necessária para legitimar o discurso reformador.

Devemos finalmente levar em conta o que Bourdieu chamou de "efeitos de teoria", ao mostrar que a difusão das teorias econômicas no conjunto da população, por meio da profissionalização dos economistas e dos debates suscitados por seus modelos, constitui um elemento fundamental para entender a implementação e a difusão da lógica mercantil (cf. Garcia-Parpet, 2003). Ou seja, como Durkheim (1984) ou Polanyi (1980) tinham rapidamente apontado antes dele, a divulgação da "descoberta" das leis de funcionamento do mercado, apresentadas como possuidoras da veracidade e da necessidade dos fenômenos naturais, participou da aproximação cada vez maior do comportamento dos agentes econômicos com os pressupostos do homo oeconomicus e da elaboração dos arranjos institucionais que permitem o funcionamento do mercado.

À medida que evolui, a organização econômica tende a impor-se como um sistema quase autônomo que espera e exige do indivíduo um certo tipo de prática e de disposições econômicas: adquirido e assimilado insensivelmente por meio da educação implícita e explícita, o espírito de cálculo e de previsão tende desse modo a aparecer como incontestável porque a "racionalização" é a atmosfera da qual se alimenta (Bourdieu, 1979, p. 15).

Considerações finais

Bourdieu conseguiu elaborar uma sociologia econômica apta a substituir a ciência econômica, sobretudo no que tange ao pressuposto do "ator" econômico interessado? De um lado, a sociologia econômica de Bourdieu inova ao levar em conta três dimensões esquecidas pela ciência econômica, como bem apontou Steiner (2005). Em primeiro lugar, a dimensão política está presente na reflexão a respeito dos agentes econômicos desiguais, das barreiras à entrada de novas empresas no mercado e das relações de poder presentes no campo econômico (o mercado como campo de lutas), bem como na análise do papel do Estado na construção da oferta e da demanda, e de sua influência sobre as relações de poder existentes entre os agentes econômicos. Essas lutas de poder e a intervenção do Estado constituem os principais fatores de mudança no campo econômico. Em seguida, as reflexões sobre as diferenças existentes entre sociedades tradicionais e sociedade moderna, assim como a caracterização do universo econômico como universo de crença, lentamente construído e legitimado por um conjunto de valores sociais, evidenciam a dimensão histórica. Finalmente, a dimensão social pode ser encontrada na análise das condições econômicas e sociais das disposições econômicas e na reflexão sobre a decisão econômica, vista não como a de um agente isolado, mas como a de um agente coletivo, família ou empresa, funcionando à maneira de um campo. Trata-se de uma análise genuinamente sociológica dos fenômenos econômicos, uma vez que o sociólogo francês aplica seu quadro analítico, articulado ao redor dos conceitos-chave de campo e habitus, à esfera econômica, o que lhe permite revelar aspectos ignorados pela ciência econômica. Nesse sentido, pode-se considerar Bourdieu como pertencente à tradição francesa da sociologia econômica, ao mesmo tempo em que compartilha com os autores da Nova Sociologia Econômica a análise do mercado em termos de construção social.

No entanto, apesar dessas contribuições fundamentais, parece subsistir certa ambigüidade a respeito do caráter inato ou adquirido do "espírito calculista" no agente econômico de Bourdieu, assim como a respeito da existência de uma esfera econômica distinta, obedecendo a uma lógica própria. Do nosso ponto de vista, Bourdieu tende a exagerar as diferenças existentes entre economia tradicional, baseada na lógica da reciprocidade e em valores éticos como a honra e a lealdade, e economia moderna, baseada no cálculo e na busca do interesse individual. Nesse sentido, ao denunciar os efeitos sociais e morais negativos do mercado, ele parece diabolizar a lógica mercantil, o que vai na contramão dos esforços atuais dos autores da Nova Sociologia Econômica.

Texto recebido em 16/2/2006 e aprovado em 4/12/2006.

Cécile Raud é professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: cecile@cfh.ufsc.br.

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  • 1
    Para Garcia-Parpet (2003), também, a principal contribuição de Bourdieu à Sociologia Econômica reside na sua reflexão a respeito das crenças econômicas, por meio do conceito de
    habitus.
  • 2
    Isso constitui uma referência explícita à análise estrutural, em particular de Mark Granovetter, que focaliza as redes de relações pessoais. No entanto, a análise em termos de rede não pode ser vista como inteiramente oposta a uma análise em termos de interesse (cf. Raud-Mattedi, 2005b). O próprio Swedberg (2003) reconhece a não-exclusividade dessas duas abordagens, uma vez que recomenda levar em conta ambas, com a justificativa de que os interesses são definidos e expressos por meio das relações sociais.
  • 3
    Ver, por exemplo,
    Travail et travailleurs en Algérie, publicado em 1963.
  • 4
    Bourdieu (2000, p. 22) identifica um último "princípio de distorsão "nas preocupações normativas de uma ciência aplicada, influenciada pelas demandas políticas. Ele critica assim o deslizamento ideológico da Ciência Econômica, que está cada vez mais se tornando uma "ciência de Estado", ponto em que se encontra novamente certa semelhança com as acusações de ideologia e abordagem normativa direcionadas por Durkheim (1984) à Economia Política. Mas não desenvolveremos esse tema no presente texto.
  • 5
    Tomando como ponto de partida a definição da economia política de Stuart Mill (1984), Émile Durkheim (1984) questiona se existe realmente uma esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe esse papel preponderante.
  • 6
    Bourdieu (2000, p. 11), aliás, cita a noção de
    embeddedness de Karl Polanyi.
  • 7
    O "imperialismo econômico" da sociologia de Bourdieu aparece de maneira nítida nesta análise das estratégias familiares, em que vários dos âmbitos da vida social podem ser analisados em termos de interesse, lucro, investimento, mercado e capital: "O sistema das estratégias de reprodução de uma unidade doméstica depende dos lucros diferenciais que ela pode esperar dos diferentes investimentos em função dos poderes efetivos sobre os diferentes mecanismos institucionalizados (mercado econômico, mercado escolar, mercado matrimonial), assegurados pelo volume e a estrutura de seu capital" (Bourdieu, 1994, p. 7).
  • 8
    Sobre esse ponto, ver também Convert (2003).
  • 9
    Apesar dessas afirmações veementes, não podemos esquecer a postura ambígua de Bourdieu a respeito da relação entre práticas econômicas e práticas sociais, como já salientado.
  • 10
    A respeito da sociologia weberiana do mercado, ver Raud-Mattedi (2005a).
  • 11
    Esta definição é muito parecida com a metáfora do "mercado como política" de Fligstein (1996).
  • 12
    Lembrando a análise weberiana do dualismo ético e do mercado como conceito oposto ao de comunidade, Bourdieu conta que na Argélia de 1960 "as relações reduzidas à sua dimensão puramente 'econômica' são concebidas como relações de guerra, que só podem estabelecer-se entre estrangeiros" (2003, p. 80). E, nesse mercado, onde se enfrentam indivíduos movidos unicamente pela busca de seu interesse material, a incerteza com relação à qualidade do bem (burro ou boi, por exemplo) implica a mobilização das relações pessoais para reduzir o risco de oportunismo. Nesse caso, Bourdieu comprova resultados hoje amplamente estudados no quadro da análise estrutural (ver por exemplo DiMaggio e Louch, 1998; Granovetter, 1974; 1985). Pelo contrário, no seio da comunidade tradicional argeliana, Bourdieu (2003) mostra que as relações econômicas estão profundamente enraizadas nas relações sociais e caracterizadas pela reciprocidade, ou seja, pela lógica da dádiva, reencontrando assim fatos já observados por Polanyi (1980) e Mauss (2001) em outras sociedades tradicionais.
  • 13
    Weber (1991) via o mercado como o resultado de duas formas de interação social: a troca, simultaneamente orientada para o parceiro e para os concorrentes, e a competição (luta sobre os preços entre o cliente e o vendedor, e entre concorrentes, tanto vendedores como clientes).
  • 14
    Podemos sugerir que Bourdieu elabora uma sociologia relacional, no sentido de Emirbayer (1997), ao afirmar: "O peso associado a um agente depende de todos os outros pontos e das relações entre todos os pontos, isto é, de todo o espaço compreendido como uma constelação relacional" (2005, p. 24).
  • 15
    De fato, Bourdieu (2000; 2005) refina sua análise, mostrando que a própria empresa funciona à maneira de um campo, sendo suas estratégias o resultado não da escolha individual de um indivíduo racional (o empresário ou o gerente), mas de lutas internas entre funcionários "detentores de diferentes espécies de capital cultural, com dominante financeira, técnica ou comercial" (2005, p. 43). De maneira parecida, em Fligstein (1990), encontramos uma análise do confronto interno entre diversas concepções de controle e a predominância sucessiva de cada uma delas, técnica, comercial ou financeira, ao longo do século XX.
  • 16
    Os preços provêm de "[...] luta (luta de preços e de concorrência) e de compromisso entre interesses diversos que ocorrem no mercado" (Weber, 1991, p. 57).
  • 17
    . Percebe-se aqui que os consumidores representam um elemento muito passivo no modelo teórico de Bourdieu, na medida em que as empresas e o Estado desempenham um papel preponderante no processo de mudança. De maneira geral, Bourdieu (2000) empenha-se em mostrar como os consumidores são manipulados pelas empresas, em particular por meio da propaganda.
  • 18
    Como no caso da empresa, Bourdieu (2000) analisa o funcionamento do "campo burocrático", mostrando em que medida as políticas adotadas são o resultado de lutas internas.
  • 19
    Equivalente ao Ministério das Cidades no Brasil.
  • 20
    De certa maneira, o Estado parece atrelado aos interesses econômicos.
  • 21
    Garcia-Parpet (2003, p. 150) lembra que, se o conceito de
    habitus como "princípio gerador de estratégias, sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira intenção estratégica", está presente já nos primeiros textos, como
    Travail et travailleurs en Algérie (1963), é em
    Esquisse d'une théorie de la pratique (1972) e em
    Le sens pratique (1980) que Bourdieu desenvolverá "um conceito geral da ação, operando uma ruptura com a concepção estruturalista dos agentes, que faz deles simples suportes das estruturas ou executores de regras, e devolvendo-lhes uma 'espontaneidade condicionada'".
  • 22
    De fato, desde John Stuart Mill (1984), a economia política reconhece a existência de uma causa maior do comportamento humano num âmbito particular da sociedade (a esfera econômica): o desejo de riqueza, o que legitima a existência dessa ciência.
  • 23
    IBGE francês.
  • 24
    Para Hubert Brochier (1987), a identificação do sujeito da ação em Bourdieu nem sempre está clara. Muitas vezes, trata-se de um sujeito coletivo, como a família ou a empresa. De fato, de acordo com Bourdieu (1994, p. 11), "o 'sujeito' da maioria das estratégias de reprodução é a família agindo como uma espécie de sujeito coletivo e não como um simples agregado de indivíduos".
  • 25
    Sobre a análise na Nova Sociologia Econômica das mediações sociais no funcionamento do mercado, ver Steiner (2006).
  • 26
    A eficiência prática do
    habitus pode ser comprovada
    a contrario pela análise das situações nas quais agem agentes dotados de um
    habitus constituído no quadro de condições sociais totalmente diferentes: "É o caso quando agentes formados numa economia pré-capitalista são confrontados, desarmados, às exigências de um cosmo capitalista; ou, ainda, quando pessoas idosas perpetuam, na maneira de Dom Quixote, disposições deslocadas; ou quando as disposições de um agente em ascensão ou em declínio na estrutura social estão em dissonância com a posição que ele ocupa" (Bourdieu, 2005, p. 54).
  • 27
    Além disso, a família, que poderia ser considerada o lugar por excelência do desinteresse e dos laços afetivos, assume na teoria de Bourdieu uma dimensão utilitarista: em vez de garantir a segurança afetiva de seus membros, "a unidade da família é feita por e para a acumulação e a transmissão" do patrimônio econômico, social e simbólico (1994, p. 11).
  • 28
    Ele afirma também que "a economia pré-capitalista apóia-se fundamentalmente em uma recusa do que nós consideramos como a economia" (1996, p. 172). Ora, só se pode recusar o que se conhece, ou o que é natural, espontâneo. Portanto, Bourdieu parece afirmar aqui a naturalidade do comportamento econômico moderno.
  • 29
    Como Wacquant (1997, p. 38) observou, Bourdieu segue a tradição durkheimiana ao fundamentar suas análises em "comparações binárias, entre sociedades ditas 'tradicionais' ou 'pré-capitalistas' e formações sociais 'altamente diferenciadas'".
  • 30
    Neil Fligstein, por exemplo, critica os pressupostos do ator racional: "Os atores econômicos vivem em mundos escuros onde nunca é claro quais ações terão quais conseqüências". Nessas condições, "nenhum ator pode determinar quais comportamentos maximizarão os lucros" (1996, p. 659). O próprio Bourdieu reconhece mais tarde a inexistência desse "ator" econômico racional (2000; 2005).
  • 31
    Bourdieu leva em conta não só as condições culturais, mas também econômicas, do acesso à conduta racional. Assim, conseguiu comprovar empiricamente que "abaixo de certo patamar de segurança econômica, assegurada pela estabilidade do emprego e a possessão de um mínimo de rendas regulares, os agentes econômicos não podem conceber nem realizar a maioria das condutas que supõem um esforço para apreender o futuro, como a poupança ou o crédito" (2003, p. 85).
  • 32
    Frédéric Lebaron, aluno de Bourdieu, dá continuidade a essas reflexões ao analisar o papel político da teoria econômica e seu estatuto de "substituto laicizado da fé religiosa" (2000, p. 7).
  • 33
    Ele faz referência, por exemplo, ao esforço que devem realizar os camponeses para abandonar uma visão da "atividade como
    ocupação social socialmente reconhecida, independentemente de qualquer sanção material" (2003, p. 83; grifo do autor), e lembra a reflexão de Weber (1987) a respeito do trabalho realizado como "vocação": "Um tal estado de espírito não é um produto da natureza. Não pode ser suscitado unicamente por altos ou baixos salários. É o resultado de um longo processo de educação".
  • 34
    Essa particularidade da casa própria (investimento financeiramente pesado e simbolicamente forte) inviabiliza talvez uma generalização das reflexões de Bourdieu aos outros setores da economia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Nov 2007

    Histórico

    • Aceito
      04 Dez 2006
    • Recebido
      16 Fev 2006
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