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O envelhecimento

Aging

Resumos

A partir da exposição, sob a forma de relato literário, do sentido social do processo de envelhecimento, o texto produz uma combinação inventiva entre ao menos três dimensões da questão: a juventude como adiamento das determinações sociais, a formação relacional da identidade com referência à introjeção de um papel social e o viés alienante indissociável do assentamento no mundo adulto. Valendo-se da alternância entre relato e análise e da remissão às circunstâncias do período em que foi escrito, o trabalho conserva seu frescor ao esboçar uma espécie de fenomenologia do vivido voltada ao peso específico da definição profissional no capitalismo moderno.

Envelhecimento; Juventude; Identidade; Tempo social; Alienação


Based on the literary exposition of the social meaning of the aging process, this innovative text combines a study of at least three dimensions of the topic: adolescence as a postponement of social functions, the relational formation of identity through the introjection of a social role, and the alienation indissociable with becoming part of the adult world. Alternating between descriptive account and analysis, while citing a series of contemporary events, the work maintains its freshness by sketching a phenomenology of the lived world, focusing on the specific meaning of professional careers under modern capitalism.

Aging; Adolescence; Identity; Social time; Alienation


HOMENAGEM A ANDRÉ GORZ

O envelhecimento

Aging

André Gorz

RESUMO

A partir da exposição, sob a forma de relato literário, do sentido social do processo de envelhecimento, o texto produz uma combinação inventiva entre ao menos três dimensões da questão: a juventude como adiamento das determinações sociais, a formação relacional da identidade com referência à introjeção de um papel social e o viés alienante indissociável do assentamento no mundo adulto. Valendo-se da alternância entre relato e análise e da remissão às circunstâncias do período em que foi escrito, o trabalho conserva seu frescor ao esboçar uma espécie de fenomenologia do vivido voltada ao peso específico da definição profissional no capitalismo moderno.

Palavras-chave: Envelhecimento; Juventude; Identidade; Tempo social; Alienação.

ABSTRACT

Based on the literary exposition of the social meaning of the aging process, this innovative text combines a study of at least three dimensions of the topic: adolescence as a postponement of social functions, the relational formation of identity through the introjection of a social role, and the alienation indissociable with becoming part of the adult world. Alternating between descriptive account and analysis, while citing a series of contemporary events, the work maintains its freshness by sketching a phenomenology of the lived world, focusing on the specific meaning of professional careers under modern capitalism.

Keywords: Aging; Adolescence; Identity; Social time; Alienation.

Um dia, um adolescente tardio descobre que o caminho que tomou ao acaso vai tornar-se irreversível. O portão está prestes a fechar-se atrás dele. Ele entra na idade em que não se recomeça mais, a idade em que se começa a envelhecer, em que é preciso aceitar ocupar na sociedade um lugar que nos fará existir como um Outro entre os Outros. Bem antes de ser um destino biológico, o envelhecimento é um destino social.

Esse fragmento, que se apresenta como um epílogo de O traidor, foi publicado em Les Temps Modernes de dezembro de 1961 e janeiro de 1962 com o título de "O envelhecimento". Quarenta anos mais tarde, a questão aí explorada de modo intransitivo permanece: "Como entrar nessa sociedade sem renunciar às possibilidades e aos desejos de que somos portadores?".

Ele desceu na estação Franklin Roosevelt e viu na plataforma um painel dizendo "Rejuvenesça teus rins". Quando, quatrocentos metros adiante, chegou ao prédio "La Flèche", o painel o acompanhava: ele sabia sua idade. Ele tinha 36 anos.

A experiência foi desagradável. Mobilizava retroativamente pilhas de pequenos pensamentos instantâneos a que ele não havia prestado atenção e que, à luz de sua descoberta, ganhavam um significado: ele tinha uma idade. Nem sempre fora assim. Por muito tempo, durante os anos mais importantes de sua vida (expressão que, escapando, o atordoou), ele não teve mesmo idade; recomeçava sem cessar, e os anos não contavam: ele não tinha mais idade aos 23 que aos 22, e não era indo para os 24 ou mesmo os 25 que passaria a ter. Agora isso mudara: 36 anos era já uma idade, 37 ainda mais: trata-se da idade em que (por força de anúncios como "procura-se homem entre 30 e 35 anos" ou "homem com menos de 35 anos" ou "especialista certificado, 35 anos") havia-se supostamente feito algo que nos determinasse e traçasse definitivamente um caminho a ser seguido. Numa palavra, se ele não havia feito nada, era já um fracassado, e se havia feito algo, era necessário insistir nisso sob pena de tornar-se um. De todo modo, seu passado prefigurava seu futuro.

Ora, o que o desagradava era precisamente o fato de que jamais visara suas atividades sob esse ângulo: não tinha nenhuma certeza de querer perpetuar a personagem pseudônima que há anos entregava artigos por encomenda e sob medida; entrara nessa atividade por acaso, facilidade e necessidade de ganhar seu pão (após dois dias de estágio numa companhia de seguros e na falta de oferta de livros para traduzir), jamais tivera a intenção de fazer disso a atividade de sua vida, e eis que esse caminho vicinal que tomara durante sua espera (de quê?, da vida que começasse de fato?) designava o homem que ele devia tornar-se. Sua vida estava prestes a soçobrar e a voltar-se contra ele como o ser que ele devia fazer perpetuar, daí por diante, até sua morte, porque ele era isso e nada além disso e não tinha mais chances de mudar. E mais, ainda que mudasse, a partir desse ponto a idade permaneceria. Ele tinha a idade em que envelhecemos: até os 30 anos, a rigor, acumulamos um pouco ao acaso; passando dos 30, é preciso que a acumulação renda; é o período em que se espera que o indivíduo social chegue à maturidade; passados 35 anos é preciso que ele amortize a dívida.

Isso parecia simples, mas não o era absolutamente. A idade havia caído sobre ele, que a via de fora como um conjunto de interditos, de limites, de obstáculos insuperáveis (ele não faria mais um curso de mecânico, ele não seria jamais piloto de carreira), e no entanto a evidência permanecia fugidia, a intuição impossível: não havia idade em parte alguma de si, assim como não havia evidência de que um dia deveria morrer. Um e outro, o envelhecimento e o fato de que era mortal, eram realidades ao mesmo tempo onipresentes, vindas dos quatro cantos do mundo social, e perfeitamente opacas à inteligência: eram escandalosas. ["Por que é preciso morrer?" "É assim mesmo", havia dito Maria. Ele gostaria de aceitar, como a cada vez que ela dava essa resposta idiota, não podendo admitir que ela ignorava a razão daquilo que afirmava nem, sobretudo, que ela aceitava ignorá-lo: como quando ele quis saber por que, se a terra é redonda, as coisas do outro lado não caem do céu; "porque a terra é um ímã", ela havia dito, "um ímã atrai"; ela lhe oferecera um; ele atraía os alfinetes e quando quis saber por que ela respondeu "porque é um ímã".] Os homens morrem porque são mortais, e eles são mortais porque morrem, isso não se sustentava e, quando ele escutava em suas orelhas o ruído de sua própria presença povoando a noite universal, nada anunciava que essa presença pudesse um dia ter fim.

Ele nascera sem idade, aquém da imortalidade e da morte. A depender de si, teria antes pensado (sentado no banco de madeira do trem 58, olhando seus pés nos sapatos acinzentados de fundo de lã pendendo no vazio enquanto um senhor gordo, em frente, escondido atrás de seu jornal, deixava os seus repousarem pesadamente sobre o assoalho, parecia-lhe tão ridiculamente inconcebível que seus pés pudessem um dia atingir o assoalho e seu olhar decifrar os respingos negros) que existe a raça dos indivíduos nascidos grandes e aquela dos pequenos e que os pequenos, supondo (como lhe afirmaram) que pudessem tornar-se grandes, deveriam, para tanto, sofrer uma metamorfose radical (como a lagarta em borboleta?), tão radical que apagaria no grande a lembrança de sua medida comum com o pequeno.

Nada absolutamente nele indicava que pudesse crescer e esse processo de "crescimento" que evoca um misterioso "tornar-se Outro", cujo acabamento, talvez, se manifestasse um dia por uma brusca metamorfose, ficaria para ele no domínio do "eu disse". "Quando você for grande", dizia Maria, ou "você é muito pequeno para compreender", ou "você é muito grande agora para usar esses cachos", ou "logo você será um menino grande e irá à escola", ou ainda "quando estiver crescido, você partirá com outra mulher e me deixará sozinha". Assim, tais observações constantes e decididas o envenenavam com a ideia de sua relatividade e de que seu estatuto era provisório, portanto que aquilo que vivia não tinha importância e só contava o adulto que ele seria ("faço isso pelo teu bem, você me agradecerá quando for grande") e essa ideia o revoltava já que o adulto que ele seria não se anunciava em parte alguma como sua possibilidade, era um futuro que vinha deles apenas e lhes dava controle sobre ele, lhe conferia de imediato o ser-Outro opaco e ininteligível do grande potencialmente contido no pequeno e a que este último era alegremente sacrificado. [Essa opressão exercida cotidianamente sobre ele em nome do grande que ele seria ia tão longe que, revoltado e desesperado por não ser jamais considerado por si mesmo tal como existia presentemente, pôs-se a desejar não crescer jamais e a recusar, seja com raiva seja com indiferença, os alimentos oferecidos porque "é preciso comer para tornar-se grande e forte", e só aceitar sem dificuldade o mingau de sêmola e as sopas de farinha. Ele não queria tornar-se nem grande, nem forte, nem inteligente, nem maior e mais forte que o pequeno vizinho que roubava seus brinquedos; não queria ir nem à escola nem à igreja, nem em excursões, nem estar diante de pessoas que infalivelmente lhe diriam "quantos anos você tem? Ah, mas você é um menino grande" e "mostre o que você sabe fazer" - porque ele era pequeno e queria ser tratado como pequeno e estava cansado de ser para eles o inessencial em relação a um essencial que não tinha nada, absolutamente nada, a ver com ele.]

Vocês podem, se o coração pedir, tirar múltiplas conclusões dessas observações; considerar, por exemplo, que essa experiência precoce da opressão, obrigando-o à revolta desde a idade de dois ou três anos, provocou a tomada de consciência de sua subjetividade (e, mais precisamente, da inadequação e mesmo da oposição entre a subjetividade e a objetividade para outro) e essa reflexividade que permanece uma constante em sua vida. Mas esse não é precisamente meu objetivo. O que eu pretendo mostrar é que a idade - tanto o número de anos como a ideia de maturação, de envelhecimento, de vida e de morte sem os quais o desconto do número de anos não teria sentido - nos vem originalmente dos outros, que não temos idade para nós mesmos, mas apenas enquanto Outros, por referência tanto à longevidade média dos indivíduos de nossa sociedade (voltarei a isso) como às etapas e passagens iniciáticas para um estatuto novo que a sociedade institui sobre a base dessa longevidade média. Antes mesmo que ele soubesse contar, outros contavam os anos para ele [quando ele tinha três, vendo três velas sobre um incompreensível bolo, ele fez nas calças] em função de um destino pré-fabricado que queria que ele fosse à escola aos 6 anos e se preparasse para essa grave prova; e desde que entrasse na escola (mudo de terror ante a metamorfose que devia mudá-lo de bebê em escolar) soubesse que sua vida, a perder de vista, estava traçada e que ele estava acorrentado a um barco que, através de doze provas anuais sucessivas (doze, duas vezes mais anos que ele havia vivido até então!), devia levá-lo ao "certificado de maturidade" e daí...

Ele devia ter 7 anos quando, num domingo de primavera, seu pai o levou ("os dois homens") para um passeio de carro (um táxi cinza com assento quebrado que se arrastava ruidosamente) a fim de lhe falar pela primeira vez "da fábrica". A fábrica, disse o pai, tinha necessidade de um chefe jovem, e se ele fosse prudente e tivesse boas notas, aos 18 anos, quando tivesse passado por seus exames de "maturidade", compraria para ele um carro ("se tudo corresse bem") e faria dele o chefe de que a fábrica precisava enviando-o à escola superior de comércio. Ele já não gostava muito do pai, e quando o pai se pôs a desenvolver seus projetos deu-lhe a impressão que buscava corrompê-lo, que decididamente não tinha nenhuma afeição por ele tal como ele era, mas que queria, pelo chicote e pela cenoura, fabricar-lhe uma vida e uma identidade Outras, conformes a considerações e exigências perfeitamente estranhas à sua pessoa e que qualquer um poderia (nós nos ocuparíamos disso a golpes de carros e escolas de comércio) satisfazer. Mas ele não queria ser qualquer um. Queria que o amássemos por ele mesmo e não em função do Filho, do Chefe, do Herdeiro que se queria ver nele com uma revoltante indiferença por ele mesmo, e então ele se fechou num silêncio ofendido e disse a seu pai que ele preferia tornar-se médico ou explorador. "Não há o que fazer com esse garoto", disse o pai ao voltar, "ele é tapado. É preciso fazer entrar as coisas a pauladas." "Vamos, Jakob, temos todo tempo", disse Maria. "Você verá, ele vai mudar."

Numa palavra, sua idade, na época, só tinha realidade heterônoma: o fato de que lhe destinávamos uma certa vida - nós, quer dizer, a família que, no caso, exprimia apenas as exigências da fábrica, exigências que, por si mesmas, suscitavam um ciclo de estudos capaz de satisfazê-las - e que essa vida, pré-fabricada em função de exigências que a subordinavam como seu meio, o designava como um indivíduo geral, tanto um qualquer como Outro, que percorreria suas etapas: ele vencera a da escola primária há um ano, estava a três anos da entrada no secundário, a onze anos da universidade, a quinze anos da "vida profissional", e depois ele teria filhos, pensava-se, o mais cedo possível, porque preocupava muito a seu pai ter se casado aos 40 anos e ter de esperar até 65 anos sua substituição por seu filho. Sua idade, numa palavra, era uma dimensão de seu ser social, de seu ser-Outro.

A idade social, em seu meio, dominava tão exclusivamente as preocupações educativas que ele não suspeitava mesmo que pudesse ter uma idade fisiológica: uma maturação do organismo, seguida de um desabrochar, de um desgaste, de um declínio. [Eram coisas de que não se falava. Ele ignorou por mais de um ano o sentido dos sintomas da puberdade. E durante os dois anos que em seguida ele passou ainda com sua família, entre todos os adultos apenas o padre obeso encarregado do catecismo, tecendo um fio de saliva a cada vez que abria os lábios, abordou o tema para alertar contra "certas alegrias diabólicas da carne", "pecado mortal que obnubila o espírito, destrói as faculdades mentais e expõe ao risco de tornar-se permanentemente idiota". (Devo ter hesitado umas nove vezes, ele se dizia então. Como seria inteligente se não tivesse feito!)]

Assim, ele tinha o direito e mesmo o dever de ter uma idade social, mas não o de assumir a idade de seu corpo: as exigências deste, em seu meio, contrapunham-se às tarefas que a sociedade destinava aos adolescentes de sua idade: havia a necessidade de que, aos 13, 15 ou 16 anos, permanecesse, por uma boa meia dúzia de anos ainda, um filho submisso à autoridade dos pais, e a maturação sexual, que tornava possível relações autônomas com o outro, restritas à esfera da dominação parental, tornava-se a suprema desobediência, o Mal por excelência: a negação do estatuto infantil em que sua família esperava mantê-lo por muito tempo ainda. E não tenho plena certeza de que essa contradição entre a idade fisiológica e a idade social possa ser suprimida nas sociedades industriais: estas (e não apenas a sociedade burguesa) necessitam de ao menos dezesseis anos para formar cidadãos capazes de conduzir suas máquinas e administrar seus aparelhos. O prolongamento da escolaridade tem como reverso uma negação social da maturidade orgânica, ou, ao menos, das relações humanas cuja possibilidade existe virtualmente desde a aproximação da puberdade. Essa defasagem entre as possibilidades orgânicas e o estatuto social, que as condena a existir apenas no vazio, produz e define a adolescência. Ela não existiu em outras sociedades. Ela é a reserva feita a indivíduos que, por sua maturação orgânica, poderiam ser adultos, mas que, na ausência de maturação social, são mantidos sob tutela. Ele foi destes que viveram essa condição como uma grande infelicidade. Foi destes que dificilmente se recuperaram dessa alienação primeira e opressiva de sua vida afetiva e corporal.

Tudo isso indica já claramente que alguém não se torna adulto em virtude da idade, nem pelo desenvolvimento orgânico. De resto, o que quer dizer "ser adulto"? Era a questão que ele se colocava começando essa digressão, já que há dois anos, contra toda expectativa, ele sente que isso lhe aconteceu: o peso da idade se infunde nele; é uma aventura complexa. Ainda há cinco anos, ele não pensava que isso pudesse lhe acontecer nunca. Não existia idade até então: nem 20, nem 30, nem, em seguida, 35. Eram números abstratos, bons para os questionários e que não significavam nada: ele tinha aos 35 anos, como aos 22, segundo a esperança de vida desse continente, um futuro suficientemente vasto para que nenhum de seus projetos se chocasse com a possibilidade provável da morte como um limite demarcando o campo de seus empreendimentos. E então, mesmo com alguma falta de fôlego devida aos efeitos da nicotina, ele não observou uma maior resistência de seu corpo ou da matéria à ação física. Um só fato, a rigor, denotava um envelhecimento orgânico: o estreitamento da duração - parecia-lhe longo, há dez anos, subir cinco andares, andar quinhentos metros ou ir de metrô de Sèvres-Babylone a Concorde. Agora isso não conta mais; como se uma baixa geral do tônus - ou seja, da quantidade de energia que ele é capaz de gastar num lapso de tempo determinado - o tornasse menos impaciente diante dos tempos mortos dos trajetos ou do pedaço de açúcar (que ele não usava nunca), cuja dissolução é preciso esperar; numa palavra, é-lhe necessário um pouco mais de tempo agora para um mesmo trabalho, e, como ele suspeitara antes, esse retardamento orgânico o adequa ainda melhor ao ritmo do meio ambiente.

Mas o envelhecimento não é apenas isso; é, ainda, uma metamorfose social, bastante frágil, já que o que a condiciona pode desaparecer: a continuidade da vida após alguns anos. O essencial sem dúvida está aí. Se ele nunca teve idade antes, é porque sua vida permanecia indeterminada e informe. Ela não estava depositada em nenhuma realidade material que ele pudesse sentir como durável. O que ele havia feito podia ser desfeito e não o orientava em nenhum sentido determinado. Imponderável aos 32 anos como aos 22, ele pensava nos classificados de emprego: tradutor em Paris ou na Nova Caledônia, professor na Rodésia ou na Nova Zelândia, médico em domicílio, químico, redator científico... Tudo era possível e tudo se equivalia: a "profissão" era um ganha-pão que não podia fixá-lo nem fazê-lo romper e de que ele se desnudaria a cada noite ao reencontrar a única realidade que ele podia ter como sua: a das construções secretas que, sob o cone de luz recortado ante a noite universal, ele urdia sobre pacotes de folhas escurecidas. Realidade também imponderável, de que ele não ousava falar a ninguém (de medo, em parte, que desprezassem esse escritor inédito como um possível pretensioso, mas de medo também que lhe colassem uma etiqueta), que só tinha objetividade para ele (e constituía portanto a negação de toda objetividade social) e talvez jamais tivesse outra. Temos o costume de chamar de juventude essa condição relativamente indeterminada, em que o indivíduo ainda não inserido na prática social considera a sociedade um entrave contingente e crê poder construir sua vida contra ela ou à sua margem, segundo os desejos e os valores singulares que ele ignora ainda que estejam (pela mediação de sua educação e de sua família) condicionados pela Sociedade e pela História que ele recusa. Mas a juventude, como toda idade, nos vem de outro: dos adultos e dos velhos, daqueles que, percebendo que não refarão sua vida, que não mudarão mais, que as aquisições a defender ou a fazer crescer os tornam prisioneiros de sua objetividade e de suas exigências inertes, experimentam a "seriedade da existência" e tomam por "jovens" os que, não tendo ainda (ou não ainda no mesmo grau) interesses a defender, pretendem que uma vida se possa construir, e não se suportar como um destino. E nesse intento, ainda, experimentam uma impotência radical confirmada por inoperantes e a cada vez mais ruidosas revoltas. Essa "juventude" (Nizan e Sartre o disseram) é um produto burguês; não é uma idade natural. Mas, mesmo numa sociedade sem classes nem propriedade, subsiste algo da juventude, idade social: é que, encontrando diante de si, cristalizadas em exigências materiais e em tarefas, as ações das gerações precedentes, você não pode considerar com a mesma seriedade que elas os imperativos já petrificados que elas legaram.

A isso chamamos "conflito de gerações". Porque ele vivia numa sociedade ainda marcada pelo malthusianismo do período entre guerras, viveu esse conflito como uma impotência particular: a França (e mesmo a Europa do oeste) era um país de velhos. E as gerações jovens, muito minoritárias, deviam sofrer na opressão, na impotência, como um ser-menor, sua ausência de ligação às tarefas, às exigências, às normas que os velhos haviam depositado na matéria e consideravam sua propriedade. A inércia do mundo, sustentada por uma práxis já petrificada e rotineira, pesava mais que os projetos dos recém-chegados: eles não tinham chance de remodelar esse mundo à sua imagem. Eles estavam destinados a viver como estrangeiros, sob tutela; sua inadaptação, sua disponibilidade, em vez de ser uma força potencial, fazia figura de leveza vagamente suspeita que era preciso perdoar fingindo uma seriedade aplicada. E a juventude, no fundo, é talvez essencialmente isso: o fato, para uma geração, de apreender sua idade jovem como um ser-menor, de encontrar todos os postos ocupados por muito tempo ainda pelos velhos e saber-se impotente para impor seus próprios projetos à orientação congelada que os antigos imprimiram à História. Então esses projetos, vividos como irrealizáveis após um momento de vã revolta, se paralisam nela. "Vocês ainda são jovens", lhes dizemos. "Não têm ainda a minha experiência. Quando tiverem a minha idade, vocês verão...". Mas eles não terão jamais essa idade: à diferença da geração precedente que criou em parte as estruturas que agora gere, eles não tiveram a oportunidade de criar: estavam destinados, desde o nascimento, a ser os gestores de uma herança; foram jovens aplicados e tristes, se casaram na hora certa, vestiram cedo o uniforme da respeitabilidade e da ambição hierárquica para se fazer perdoar sua juventude: os Chaban-Delmas, os Chalandon, os Debré, os Edgar Faure, os jovens anciões da SFIO e do PC pertencem a essa geração.

Mas isso pode mudar rapidamente, e por volta de 1965 mudou na Argélia, em Cuba, no Japão: a curva demográfica, que preestabelecia há 35 anos que a juventude é o destino que os velhos te farão sofrer, anuncia que amanhã a juventude será o destino imposto pelos jovens aos velhos. Isso não significa que necessariamente a estrutura social deva mudar de forma radical só por esse fato, mas representa um tônus diferente para todas as mudanças potenciais e para a luta de classes. Mas esse não é o meu tema. Queria mostrar apenas que a juventude, vivida como uma opressão particular nessa sociedade pós-malthusiana, pode parar de conhecer-se como tal: quando, em Cuba, em certas nações da África (amanhã talvez na Argélia, no Japão, na Turquia, no Brasil), os rapazes de 20 a 30 anos, relativamente majoritários, conquistem o poder e imponham à sociedade seus projetos (quaisquer que sejam, de resto), eles cessarão de se pensar jovens: eles são os agentes que definem as normas, as perspectivas, as tarefas, eles são os que avançam e não os retardatários, e mesmo que percam para si mesmos toda noção de sua idade (e dos direitos ou deveres que essa idade lhes conferia enquanto Outros), os Outros, agora, são os não jovens: a qualidade de velho (a idade) lhes pertence como a raça vem aos oprimidos pelo opressor: como sua dimensão de alteridade vivida. A situação se reverte: a "maturidade" se pensa como impotência e declínio diante da soberania vitoriosa da "juventude" que, por seu turno, não se pensa; é doravante a transparência da ação. E se a vaga demográfica conserva ou aumenta sua amplitude, os dirigentes de 30 anos aprenderão sua velhice das normas estabelecidas por aqueles de 25 anos ou menos.

E tudo que ele acaba de dizer mais acima sobre sua juventude encontra-se relativizado: era uma situação de imponderabilidade, de disponibilidade, de irresponsabilidade, para ele, por volta de 1950. Nessa data, na Europa, ser jovem era isso: saber que os mais velhos comandavam o mundo e que, a menos que abraçasse suas perspectivas (e mesmo que o fizesse), você não contava. Era invejar da geração mais velha a chance de ter feito a Resistência e ter acreditado poder reconstruir o mundo, e era saber que se nasceu tarde demais; era certamente saber que a geração mais velha havia perdido sua chance e que, ali onde ela falhara, não se teria chance de vencer; era, a seguir, entender-se como uma geração para nada: formada e impregnada pela ideologia dos mais velhos, não tinha tido parte em suas vitórias provisórias nem em sua falência; nascidos tarde demais em relação a eles, era-se nascido cedo demais em relação à geração que, em seguida, a partir de 1965, lançaria talvez forças novas na contenda; de um modo ou de outro era reconhecer o estado das coisas dadas como impossível de modificação; era saber-se destinado a um papel de gestor, não de inventor. Ele foi jovem porque as circunstâncias sociais e históricas lhe retiraram todo controle sobre o dado e, reduzindo-o à impotência, provocava-o a negar em retorno um mundo que o negava: era a tal ponto o mundo dos outros (produzido por eles, mantido por eles) que ele não concebia mesmo que seus problemas pudessem se colocar diante dele; contestava de uma só vez os dados dos problemas, os termos em que eram postos e as soluções tentadas; ele os achava tão aberrantes e inúteis (Pacto Atlântico, guerra da Coréia, rearmamento alemão, macarthismo, guerra da Indochina etc.) quanto os sempiternos cuidados de seu pai com os negócios, vendo em todos antes de tudo a deformação de uma realidade plurívoca e elástica pelas estruturas mentais e os interesses esclerosados de gerações imbecis. Nenhuma ação que pudesse reconhecer como sua ou decidir por si era possível no mundo deles (salvo, a rigor, alguns assassinatos políticos cujas armas ele polira em seus sonhos), nenhuma profissão ou função o estimulava, toda atividade redundava em alienação num Outro pré-fabricado pela inércia dos interesses e dos aparelhos em vigor.

Envelhecer era portanto isso: ver organizar-se uma sequência de eventos e de experiências nessa nebulosa já presa, irremediavelmente, numa forma imprevista, a que chamamos uma vida.

Há coisas que eu não faria mais, não viveria mais a febre das primeiras descobertas e a fé em que tudo pode ser balançado pelas margens e recomeçado de novo, o essencial (tentá-lo, querer lográ-lo sem ser desviado ou tornado prudente pelas derrotas recentes, sem levar em conta os conselhos de sabedoria, sem estar marcado diretamente pelo que se deu antes) não serei mais eu que farei: dizer-se tudo isso é envelhecer. E se ele se diz isso, não é por algum resto de masoquismo, é porque ele é dito assim pelos outros: não é em sua cabeça que se gerou a ideia de envelhecimento, como um fantasma que se pode conjurar, mas fora, no mundo que se faz sob seus olhos ela nasceu e é de fora que ela toma posse dele como um pensamento sem sujeito que o pensa no nível do ser e que ele se limita a denotar bem ou mal esperando que outros (o que não vai demorar) a formulem contra si. Tenho já uma vida que se arrasta nas coisas fora como um ser-fora e perdida para mim mesmo, de que já não sou o senhor, já que, através dos que se servirão dela como um trampolim, um contraponto ou uma matéria indiferente em vista de seus próprios fins, esta vida, que se confunde mais e mais com sua época, apagando-se nessa noite anônima, cessa de me pertencer, torna-se a caducidade de projetos de que não serei mais o autor e que não me produzirá mais do que eu não os produzi, e fará de mim pouco a pouco um Outro.

O envelhecimento é a experiência de não sermos mais daqueles que têm todo o futuro e o tempo para si; é o fato de que, em relação à tua verdade, haverá um depois; e que o que nos separa da verdade que será vivida após a nossa é um excedente de condicionamento (o fato de que temos já lembranças demais e referências históricas demais, o fato de que as tentativas novas nos evocam as antigas, o fato de que cremos saber que "o mundo não foi criado em um dia" e que aqueles que pretendem refazê-lo imediatamente "se iludem"). Pois, retroativamente, parece agora que a juventude é um condicionamento menor e uma determinação menor do futuro pelo passado; uma inércia menor a mover. Uma menor relatividade do presente, vivida na medida mesma em que não tivemos, na idade adulta, a experiência de que a verdade do presente será, ulteriormente evocada, histórica e transitória, que a relatividade de que se encontrarão afetados retrospectivamente os presentes passados transporta necessariamente, prospectivamente, os presentes presentes e futuros.

E que, aos 36 anos, ele não pode mais acreditar com a mesma exclusiva intensidade naquilo que quer como podia dez anos antes; a mediação histórica não é mais uma ideia abstrata, mas a certeza comprovada de que existe uma exterioridade passada em sua vida e um ser em instância de exterioridade na interioridade do presente. Ele não pôde chegar aos 36 anos sem que se insinuasse na certeza transparente do presente saber (mesmo que defeituosamente) que esse presente se converteu (e se converte, e se converterá, em Outro); e esse saber "histórico-genético" já o separa das gerações mais jovens. Há cinco anos, ele ainda era a testemunha acusadora que tomava os mais velhos como responsáveis por tudo e que, não tendo parte em nada, inocentava-se na revolta. Hoje, os garotos dez anos mais jovens apresentam diante dele a mesma atitude: tenha ele parte em algo ou não, a seus olhos, simplesmente graças à idade, ele é responsável pelo presente e pelo passado pelo que fez ou omitiu-se; ele é parte, objetivamente, desses velhos por cujas falhas estão os jovens onde estão, e se esses velhos, para ele, são os Outros, ele não se sairá tão bem: ele é um desses Outros velhos, queira ou não. E não só objetivamente: também pelo fato, sobretudo, de começar a "compreender" muito bem. O essencial do envelhecimento está talvez aí: aos 16 anos, aos 20 anos, recebe-se o real de boca aberta, como um choque. Descobre-se com escândalo as putrefações, as necroses, as servidões na alma dos pais, a extorsão mundial do Cartel do Petróleo, a diplomacia bananeira da United Fruit, a bandidagem organizada da Lemaire-Audoire, a futilidade do poder e as ignomínias das carreiras. Ele não precisa buscar muito longe: do porquê disso tudo, está se lixando: é a monstruosidade do fato que conta e, quanto menos se saiba de sua história, mais, em sua nudez, ele fere. Sente-se o gosto de estripar os escroques, de ser morto na Guatemala, de dinamitar o planeta. É necessário apenas apressar-se, pois se não o fizer de imediato, o hábito nos anestesiará. Pode-se conservar o humor vingativo por cinco ou dez anos; quando, depois, nada tiver mudado, quando as revoltas forem repisadas e narrados muitas vezes os escândalos, chega o momento em que se mede a impotência e se responde ao caçula que, vermelho de cólera, descobre por sua vez o monopólio das Messageries Maritimes, as fraudes no SMIG ou a alta do bife enquanto o boi aumenta de produção: "O que você quer que o governo faça? Para mudar alguma coisa, é preciso antes fazer a revolução". E por meio dessa resposta você se descobre velho: você sabe, e você mediu a inércia das estruturas, das estratificações, dos aparelhos, das práticas cristalizadas, dos milhões de quadragenários e quinquagenários nascidos nesse lixo e cujas profissões e relações sociais estão gravadas na matéria e sustentadas por objetos coletivos que eles nunca controlaram. Você conhece a impotência dos indivíduos e a solidão do Inumano que se nutre dos atos alienados e os aduba como prêmio por seu consentimento em omitir-se. Você sabe como tudo isso veio a ser, por quais deslizamentos, engrenagens, processos chegamos e permanecemos lá sem que ninguém em particular pudesse ser tido como contando (quando todos deveriam sê-lo), cada um tendo deixado de agir por si mesmo para regrar sua conduta segundo as possibilidades que lhe são designadas enquanto Outro. Numa palavra, o mundo e a História, no nível em que você chegou, é racional até em sua inumanidade, e você poderia explicar os encadeamentos e os condicionamentos pelos quais um imbecil limitado foi levado no fio da agulha a se proclamar Massu. Agora você está perdido: vendo o que é como a resultante de um processo em curso e vindo de longe, pode ainda gritar protestos, mas a convicção não está mais lá; teus gritos são álibis. Se eles convencem, é porque enganam, pela magia do verbo, sob a tepidez que te ganha. Você já viveu tempo demais para crer realmente nas vinganças purificadoras, na possibilidade de refazer o mundo com ideias ou sentimentos. Sabe que cada indivíduo só tem poder sobre o mundo através dos instrumentos que o campo social lhe fornece e que esses instrumentos, mesmo quando ele os remaneja para seu próprio uso, desenham como um destino o sentido e os limites insuperáveis de sua ação. Você acha a juventude idealista e você se lembra: é porque você também, nessa idade, não dispunha de nenhum meio de ação que podia (sob pena de submeter-se à impotência) contestar tudo, absolutamente: isto é, na gratuidade mais pura. Agora você sabe que a contestação é prática sob pena de ser nula, e que é necessário esperar mais da lógica das coisas do que das ideias dos homens. Fazemos o que podemos. A cumplicidade com os agentes do crime insinuou-se em você: antes de mais nada, você ganha convenientemente tua vida, você tem, com mais de 35 anos, uma carreira, uma família, ou as duas, para defender, o escândalo, para si individualmente, não é mais um obstáculo, você sabe que não se morre disso e de certo modo vive-se disso. Então o que quer que diga, você o diz por um resto de ponto de honra, em memória de tua juventude morta, medindo no mesmo passo tua estagnação: não é mais você que vai atiçar o fogo, você servirá melhor de caução e de encorajamento para a ação que, unicamente, pode conduzir até o fim aqueles que, ainda não habituados pela ocupação e pela idade ao apodrecimento ambiente, e vítimas designadas do mundo que você legou, recusam de forma radical as mutilações porque, justamente, eles ainda não as sofreram nem tiraram vantagem delas.

Encontra-se aí o significado essencial que tem hoje "ser jovem": é não ter nada a perder e ser para si mesmo apenas indefinidas possibilidades a realizar; é não ter propriedade, nem aquisições, nem interesses a defender - pois, supondo que os tenhamos, somos velhos precoces, herdeiros ou sucessores do destino pré-fabricado pelo legado dos antepassados - e, como consequência, não ter outro ponto de vista sobre o mundo que o de suas próprias exigências; é não ter feito ainda o suficiente para aceitar como uma verdade da experiência que não fazemos jamais o que queremos e que não quisemos jamais o que fizemos. Também a "integração" não chega por alguma aceitação contratual da ordem estabelecida ou da fundação social reconhecida: ela vem pela ação. Ela chega pelo fato de que você não tem hoje eficácia, poder, realidade objetiva a não ser aceitando que os teus atos, inscrevendo-se no ser, articulando-se com o campo social e sendo predefinidos por ele, te dotam, externamente, de um ser inerte obediente às leis e às forças da matéria trabalhadas por Outros e te dando o significado de Outro entre Outros. Você só tem poder, direito e posicionamento na medida em que, assumindo o Ser-Outro, aceita agir sobre os Outros pelo peso da alteridade inerte que teus atos passados representaram no meio do mundo.

Estar integrado é finalmente isso: considerar como essencial o Outro pelo qual você tem controle sobre os Outros, é retomar nas condutas livres as relações inertes entretidas, como coisa humana, com os outros homens-coisa do campo social. É ser designado, pela objetividade dos atos passados, como qualquer um (o Gorz, o Boqueteau) que, uma vez nomeado, vem a teu encontro como um certo Outro através do olhar do interlocutor que embaralha uma lembrança fugidia ("Ah, aquele lá"), como um certo Outro irretratável que vai mediar com sua inércia o diálogo que vai nascer e, à distância, tornar opaca a reciprocidade de duas transparências. ("Eu te conheço, você é aquele que...", que, revestido de prestígios ou de abominações que representam para alguém essa qualidade social, é de pronto apreendido como um homem dissimulado e posto na impossibilidade de dialogar de rosto descoberto com um próximo inteiramente nu.) Você diria que é assim desde sempre e que os homens, jovens ou velhos, se encaram mascarados, que essa máscara, como sua roupa, é a socialização - isto é, a transformação pela atividade inerte do campo social em coisa Outra - dos teus atos mais singulares, e que salvo entre próximos e íntimos só conta e só entra em relações nas trocas entre indivíduos o "indivíduo social", isto é, esse Outro que designa seus atos não tal como os produziu, mas tal como foram retidos e alterados pelo campo de alteridade comum (o domínio social).

No entanto, ele foi por muito tempo mais jovem que os outros: ele não tinha recebido de nascimento qualquer identidade identificável (apressando-se, de resto, em demolir os condicionamentos parentais) e teve a chance bastante rara de refazer constantemente, numa idade em que outros já são "homens", a experiência de que tornar-se adulto é produzir, por mimetismo, mutilação e violência, um certo Outro que todos reconhecem porque também já são Outros, a partir de um indivíduo singular que não tinha vocação para tornar-se nem precisamente isso nem precisamente aquilo.

"Isso não é nada, meu caro, isso ou outra coisa, o essencial está alhures." Ele se dizia isso enquanto aprendia as receitas deles, essa receita que chamamos de ocupação, que consiste em fabricar prontamente e com um interesse fingido objetos já predeterminados pela atividade anterior de Outros, objetos que esperam seu homem nas ferramentas dispostas para tal uso, por seus comandantes, ajudantes e contramestres, todos personagens que tiram seu poder temível do fato de que, representantes oprimidos eles mesmos do Outro, se limitam a transmitir a opressão. ("As pessoas", dizia Leguille, "se lixam em saber... Não queremos saber o que madame Beauvoir conta em Os mandarins, mas sim que ela usava um pulôver verde e um chapéu rosa." "As pessoas", dizia Ange, "querem que lhes falemos de Machin; todo mundo fala dele, nós queremos ler um texto sobre isso.") Ele fabricava desenvoltamente objetos úteis, com um método que rapidamente fazia funcionar.

Ele tinha uma profissão, oh surpresa!, isto é, um saber prático vendável, ou seja, um valor de mercado. Ele podia, contra toda expectativa, ser útil aos Outros (a seus fins Outros e detestáveis) ao ponto de, manifestando a necessidade que tinham dele, lhe oferecer dinheiro. A despeito do desprezo e das prevenções recíprocas, na relação de forças e na luta que dominava o sistema, ele às vezes se saía bem.

Numa palavra, ele estava socializado, integrado por sua profissão (ou seja, por uma atividade determinada na alteridade e exigida pelos Outros enquanto também servidores definidos na alteridade pelas exigências inertes da maquinaria), do único modo pelo qual essa sociedade pode integrar um homem: transformando-o num Outro que - representante de outros Outros e de um desses objetos coletivos (fábrica, jornal, banco, igreja, propriedades capitalizáveis e produtivas de interesse sob todas as formas) que reinam sobre os homens e lhes designam uma função pretensamente útil - extrai de sua própria alteridade os direitos e poderes: o sujeito de direito, em essência, é o porta-voz do Outro, e da necessidade de que ele se faz instrumento; é porque ele não age e não comanda nunca em nome próprio, mas em nome da Coisa que o ultrapassa e governa de fora sua ação, que sua palavra é implacável e indiscutível como a Coisa mesma. Todos executam, ninguém é o inventor da tarefa. Em poucos anos, ele adquiriu um número considerável de direitos e de poderes (a título provisório e revogável, pouco importa), incluindo aqueles que dão dinheiro. E o dinheiro integra, talvez mais ainda que a profissão.

Ele viveu essa experiência como a de uma queda: entrou no mundo dos privilégios, davam-lhe direitos, refrigeradores, roupas, táxis, os automóveis eram de fato para ele, para ele os homens trabalhavam duro na sujeira e na fadiga, designando-o como o beneficiário de fato de suas penas. Tudo que existia (as mercadorias, os vistos, os países, as viagens) estava lá para ele também, o mundo, em vez de proporcionar a ubiquidade de sua exclusão, se lhe oferecia, ele não tinha meio de recusá-lo. Numa palavra, ele valia por seu preço numa folha de pagamento e por sua trajetória no mercado profissional: aí estava o que ele era, objetivamente, fora de si mesmo; aí seu valor social, seu interesse, sua segurança (na medida em que seu ser tinha a permanência do sistema que o determinava), seu direito. Ele entrava por essa via na coletividade dos consumidores para os quais todas as riquezas são produzidas, exibidas, publicizadas, e dos proprietários que, contra as pressões e as ameaças do social, protegem-se construindo seu universo privado de "bens" - com os materiais sociais que o mundo burguês lhes propõe para esse tipo de construção. Ora, estar integrado nessa coletividade é (para nós "clientes", automobilistas, proprietários, compradores virtuais) estar integrado à civilização envolvente, é mesmo a única maneira de estar integrado nela. E a categoria social mais radicalmente excluída e portanto voltada a contestar essa civilização mais radicalmente, que pousa sobre ela um olhar exterior e exteriorizante, porque não participa do processo produtivo nem por seu trabalho nem por seus ganhos; porque não tem de fato ou de direito qualquer renda, previdência ou título de propriedade sobre as riquezas sociais, ainda que tenha uma tarefa social (que a sociedade, aqui, recusa-se a assumir), é a massa difusa dos sem-profissão, dos sem-salário, dos sem-teto, dos sem-futuro previsível, dos sem-interesse, dos sem-família, e particularmente desses emigrados do interior que são os estudantes pobres. São eles, porque ele tinha sido um deles, que lhe serviam de referência; e também porque os operários eram mais ricos do que ele. Como estes, ele vira a sociedade pelo avesso. A renda fixa o fez vê-la do seu ângulo: um lugar de consumidor e de produtor fora-lhe reservado desde então; ele seria aquilo que tivesse.

O envelhecimento foi talvez antes de tudo essa "integração": a produção e ao mesmo tempo a mutilação de si mesmo como Outro, objeto a uma só vez de orgulho ("tornei-me isso a partir do nada e os controlei") e de revolta ("eles me reduziram a isso, eles me controlaram"), e de uma resignação envergonhada que diz: "É assim para todos, é preciso passar por isso ou morrer de fome contemplando o Azul".

Ele realiza o aspecto de covardia, isto é, de livre escolha, que implica a afirmação dessa evidência. Pois é verdade que a perseverança em sua atividade é também confortável. De saída porque, controlando o dinheiro, você é formalmente senhor de si: você torna-se por si mesmo, interiorizando seus regulamentos, o Outro que, ao longo de toda aprendizagem, a tirania dos chefes te ensinou a imitar. Você não precisa mais obedecer suas ordens; você as instalou em si, nenhuma voz estrangeira dita mais tua conduta, você está adestrado: a autocensura substituiu a censura, a alteridade requerida tornou-se hábito, e quando você abre a boca ou aciona a máquina de escrever a palavra do Outro nasce de ti sem esforço. Você não é mais oprimido; oprime-se a si mesmo. E, num sentido, ganha com a mudança: estando suficientemente mutilado para conduzir-se como Outro com desenvoltura, faz a economia de extenuantes revoltas. Se mudasse de atividade ou mesmo (a sociedade permanecendo constante) de jornal, tudo recomeçaria; você não seria mais livre. Há portanto essa desenvoltura na constrição tornada familiar e como que íntima, e há outra coisa ainda: "teu futuro está garantido". Aqui, teu trabalho responde a uma demanda solvível, você se adaptou à produção mercantil para a qual existe um mercado, você tem uma cota e como que uma cotação na bolsa. Redator (ou engenheiro, ou vendedor, ou tradutor...) "confirmado": tuas capacidades não estão mais sob dúvida, você já provou que, indivíduo singular, sempre um pouco inquietante e imprevisível, poderia, a despeito de tua singularidade e de "Deus sabe" que exigências subversivas, produzir esses objetos cosméticos e artificiais que, em nossas sociedades de consumo uniformizantes, devem atenciosamente esconder sob seu verniz sem respingos o suor, o cansaço, a sujeira do trabalho, as asperezas, as resistências, as usuras da matéria, a fim de refletir no consumidor fascinado e enganado (à maneira dos manequins, dos Belmondos, dos cenários de Chabrol, da TimeMagazine, da Elle, das engenhocas aerodinâmicas e cromadas) o universo mítico e fetichizado da abundância: ou seja, o universo arquifalso da elegância sem risco em que as mercadorias eclodem instantaneamente e por magia graças apenas ao gesto desenvolto de puxar uma nota de uma carteira, em que o dinheiro é o caminho mais curto entre a necessidade e o gozo, em que a riqueza é poder de compra e raridade de produtos, raridade de numerário. Confirmado: está provado que, o que quer que você seja (isso só diz respeito a você, melhor que ninguém saiba), você sabe ser a personagem ficcional que a Maquinaria exige - ser significa produzir o ato requisitado sem esforço visível como consequência da sua "natureza", com a facilidade das peças lubrificadas. Homem confirmado, Outro que não homem, homem conforme ao Outro, com essa "qualidade" que chamam de "conformidade dinâmica": não aquela, passiva, da matéria informe, mas a do "chefe" que a rejunta e que "personaliza" seu ser-Outro como se fosse o Outro-em-pessoa. Sabendo que você tem, em sua ocupação, uma cotação, uma reputação estabelecida, um valor em capital (o que não exclui que esse valor, no caso, seja frágil: sua reputação, como a das prostitutas, dos atores, dos criadores de moda, deve-se ao encontro fortuito das suas capacidades próprias com as normas impessoais de uma moda caprichosa), uma carreira abre-se para você: o passado responde pelo futuro, e como o comerciante, o médico, o industrial, o arquiteto estabelecidos, você passará os anos que te restam a gerar teu fundo ou teu capital de experiência, teu interesse. O passado apodera-se do futuro, os atos realizados petrificam a liberdade que os realizou e lhe prometem, como prêmio de sua subordinação ao ser, uma segurança de renda. Desde que você não mude de nome, de atividade, de país, o passado daqui para frente qualifica o presente e, não importa o que você tenha, o determina. É em função do passado que se apreciam teus atos e por meio dele que se os avaliam. E você se encontra desde então nessa posição abjeta de ter, por tuas conquistas e por estar no lugar,direitos, precedências, privilégios: porque teu nome é conhecido e tua assinatura vendável (e também porque tua antiguidade na profissão te vale credores, fidelidades, solidariedades de idade), teu produto, com a mesma qualidade ou até com menos qualidade, terá prioridade sobre aquele dos trabalhadores mais jovens. E porque insensivelmente tua estátua se adestra e, vivo, você sente já a naftalina, o bálsamo, a honra, a urina do velho e do cadáver em que tudo, daí por diante, te transforma, tornando-o "parecido consigo mesmo", você se põe a sonhar com as grandes catástrofes (revoluções, guerras, crises, mortes dos próximos, longa doença na pior das hipóteses) que cobririam o passado de escombros e te devolveriam a si mesmo, à liberdade fresca das origens, jovem novamente, isto é, pobre e raso.

E no entanto não se trata de covardia, embora a covardia e a escolha do conforto venham como significações objetivas sobrequalificar uma conduta que a razão prática ordena: a saber, que a partir de um certo momento a iniciativa de um homem conhece seus limites: suas coordenadas, suas fidelidades, suas ferramentas estão à disposição, ele as manejará talvez, mas não as substituirá jamais por outras mais novas (ele não terá jamais uma segunda adolescência: os novos períodos formadores serão vividos partindo dos antigos, como seu alargamento ou negação. Não haverá mais primeira vez, começo de história); o novo daí em diante será produzido sobre a base do antigo; o constituído imporá ao constituinte suas estruturas. O campo de ação está definido, e define suas tarefas. Mais vale agora fixar-se nele. É preciso continuar ou decidir que nada tem sentido. "Este é teu domínio; você não terá outro." A evidência do envelhecimento está aí. Ele não fora feito nem para essa atividade nem para nenhuma outra, nem para tornar-se esse homem nem nenhum dos outros possíveis. Ele teria gostado de ser também e ao mesmo tempo agrônomo, geólogo, médico, montador de rede de alta tensão, pescador, navegador (todas profissões itinerantes).

Ele não será mais nada disso. De início (porque haverá um após) porque existe uma lei da ação que só evitamos evitando a própria ação: a saber, que para agir é preciso fazer-se inerte. Para mover a matéria das coisas, é preciso deixar seu peso assentar. O braço que fende a lenha deve equilibrar seu peso e o pensamento, por mais especulativo que seja, imitar o movimento da matéria, ponderar suas inércias e submeter-se a elas fazendo delas leis. Há uma paciência do finito; imitando a matéria que trabalha, o agente deve perseverar nesse trabalho até embrutecer-se e aceitar perder-se em proveito do resultado. (Preferir a si ante qualquer resultado é a atitude do diletante. É o que ele foi até aqui. É contra si que ele reivindica.) Seu Fazer está destinado a voltar ao Ser; seu êxito será esse fracasso. Os resultados são detestáveis, e ainda mais os dos que (aventureiros, santos, estetas) seriam preferíveis. É preciso amar-se muito pouco para agir, renunciar imediatamente a coincidir com esse Ser em quem o resultado congela no fim a ação que o produziu. É apenas no começo (de uma vida, de um empreendimento, de um casal...) que os fins determinam os meios a inventar, que o projeto configura o mundo à imagem de um objetivo que é ausência. Na medida em que se avança, os meios forjados perpetuam na inércia de sua matéria a finalidade primeira (e frequentemente já morta) de teus atos passados: no começo você era senhor soberano fazendo surgir o nada de uma obra a fazer lá onde não havia nada além de caos de materiais brutos, você forçava a matéria a imitar o homem. Depois, os fins arruinados no agenciamento da inércia te lançam um olhar de pedra e, contribuindo por inércia para o objetivo projetado, a matéria impõe seus fins como sua própria lei e determina o homem, limita-o a imitá-la. O fim da casa, do romance, do casal não é mais que o preenchimento de vazios deixados pela atividade passada, e esse preenchimento (o último toque dado no quadro, o último capítulo do romance), se requer ainda tua liberdade, já a petrifica: não é mais ela que determina presentemente a natureza das tarefas; ela mesma é requisitada pelo que fez antes: teus atos anteriores prefiguram os que devem vir a seguir. Tua liberdade passada vem a teu encontro, de fora, com a necessidade de um destino. Você se torna o servidor do agente soberano que foi um dia.

O resultado se faz a esse preço. É preciso aceitar estar terminado: estar aqui e em nenhuma outra parte alhures, fazer isso e não outra coisa, agora e não jamais ou sempre; aqui apenas, isso apenas, agora apenas - ter essa vida apenas.

Tradução de Fernando Antonio Pinheiro Filho

André Gorz, filósofo existencialista e jornalista, nasceu na Áustria em fevereiro 1923 e se naturalizou francês em 1954. Foi editor de política da revista Les Temps Modernes durante a década de 1960 e editor de economia do hebdomadário Le NouvelObservateur, do qual foi também um dos fundadores. É autor de diversos livros, entre os quais se destacam Adeus ao proletariado, Metamorfoses do trabalho, O imaterial e Carta a D. História de um amor. André Gorz suicidou-se em setembro de 2007, junto com sua mulher Dorine.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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