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A identidade como obra coletiva em O Cortesão, de Baldassare Castiglion

Identity as a collective product in the Book of the Courtier , by Baldassare Castiglione

Resumos

Retomando alguns aspectos da tradição retórica, este artigo analisa a estrutura narrativa de um livro clássico das sociedades de corte -O Cortesão -, mostrando a dissimulação como um elemento-chave tanto para a automodelagem da identidade como para a sociabilidade no Renascimento. Desde a análise clássica de Norbert Elias os tratados de corte passaram a receber mais atenção da crítica sociológica. Entretanto, a dissimulação é normalmente relacionada, por essa crítica, com interesses ocultos, mas raramente com um critério moral e estético para a ação social. Essa é a perspectiva adotada neste artigo.

Sociabilidade renascentista; Identidade; Dissimulação; Baldassare Castiglione


Bringing some aspects of rhetoric tradition back into the sociological view of court societies, this article analyses the narrative structure of a classic book of court societies - The Book of The Courtier - to sustain dissimulation as a component of both renaissance self-fashioning and sociability. Since the Norbert Elias' classical analysis this kind of books has received a lot of attention from sociological criticism. However, dissimulation is usually related to hidden interests, but rarely to an aesthetic and moral judgement about social action, which is the perspective of this paper.

Renaissance sociability; Identity; Dissimulation; Baldassare Castiglione


ARTIGOS

A identidade como obra coletiva em O Cortesão, de Baldassare Castiglion* * Este artigo é uma versão revisada do segundo capítulo de minha dissertação de mestrado defendida em dezembro de 2005 no Iuperj. Agradeço aos professores Ricardo Benzaquen de Araújo (Iuperj) e Cicero Araújo (DCP-USP), assim como aos pareceristas anônimos, pelas críticas e sugestões a versões anteriores deste artigo.

Identity as a collective product in the Book of the Courtier , by Baldassare Castiglione

Valéria Paiva

Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Iuperj. E-mail: vpaiva@iuperj.br.

RESUMO

Retomando alguns aspectos da tradição retórica, este artigo analisa a estrutura narrativa de um livro clássico das sociedades de corte -O Cortesão -, mostrando a dissimulação como um elemento-chave tanto para a automodelagem da identidade como para a sociabilidade no Renascimento. Desde a análise clássica de Norbert Elias os tratados de corte passaram a receber mais atenção da crítica sociológica. Entretanto, a dissimulação é normalmente relacionada, por essa crítica, com interesses ocultos, mas raramente com um critério moral e estético para a ação social. Essa é a perspectiva adotada neste artigo.

Palavras-chave: Sociabilidade renascentista; Identidade; Dissimulação; Baldassare Castiglione.

ABSTRACT

Bringing some aspects of rhetoric tradition back into the sociological view of court societies, this article analyses the narrative structure of a classic book of court societies - The Book of The Courtier - to sustain dissimulation as a component of both renaissance self-fashioning and sociability. Since the Norbert Elias' classical analysis this kind of books has received a lot of attention from sociological criticism. However, dissimulation is usually related to hidden interests, but rarely to an aesthetic and moral judgement about social action, which is the perspective of this paper.

Keywords: Renaissance sociability; Identity; Dissimulation; Baldassare Castiglione.

Neste artigo procuramos compreender, através da análise da estrutura narrativa do clássico OCortesão (1528), de Baldassare Castiglione, o sentido ao mesmo tempo ideal e normativo da dissimulação tanto para a "modelagem da identidade" individual, como para a preservação da identidade coletiva da aristocracia como grupo social1 1 O termo "modelagem da identidade" é utilizado aqui emprestado de Greenblatt (1984), para dar uma forma conceitual à ideia de que, com o Renascimento, a percepção de que a identidade individual era construída adquiriu contornos institucionais (sobre esse tema, ver também Greene, 1968). Segundo Louis Marin, assiste-se nesse momento histórico (seu exemplo é Montaigne) ao surgimento do tema do reconhecimento de si que se somaria - e por fim o incorporaria - ao tema clássico, platônico, do conhecimento de si - simbolizado pelo preceito délfico do "conhece-te a ti mesmo". O tema do reconhecimento preserva o sentido clássico do conhecer-se a si mesmo como reconhecimento de ser aquele que desde sempre me é conhecido, mas aponta para um segundo sentido: o de se reconhecer na exploração das fronteiras, dos limites, desse lugar reservado ao próprio reconhecimento. Se, no primeiro caso, encontramos um ideal de cultivo, por meio da imitação, de uma herança e de um patrimônio comum relegados à humanidade letrada, no segundo encontramos um ideal de exploração de um "eu" que se torna "meu" no processo/percurso mesmo de exploração de lugares e limites desconhecidos (cf. Marin, 1999). .

Desde a publicação dos estudos hoje clássicos de Norbert Elias, sobre o processo civilizador e a racionalidade de corte, vem se consolidando cada vez mais nas ciências humanas um interesse na releitura dos tratados de comportamento considerados, até então, ou como simples manuais de etiqueta ou como formulações idealistas e utópicas, para a compreensão do modo de vida que caracterizou primeiro o Renascimento, depois o Barroco (cf. Pécora, 2001b). O próprio Norbert Elias, entretanto, não fornece muitas pistas para compreender a importância da dissimulação, seja para os atores que viveram o processo civilizador, seja para a formação da sociedade moderna. Uma única vez, em O Processo Civilizador, o tema da dissimulação aparece explicitamente, e sob uma lente positiva, como necessário à manutenção da vida em "sociedades pacificadas". Trata-se de uma conversa, relatada pelo autor, entre Eckermann e Goethe, em que Goethe censura o amigo por sua exigência de autenticidade na vida social, enfatizando o aspecto benéfico e humano da moderação dos afetos2 2 "Mas, nessa citação, ele [Goethe] fala com grande conhecimento como homem do mundo, como cortesão, com base em experiências que são estranhas a Eckermann. Ele entende a compulsão de abafar os próprios sentimentos, de suprimir simpatias e antipatias, compulsão inerente à vida cortesã e que frequentemente é interpretada por pessoas de situações sociais diferentes e, por conseguinte, com uma diferente estrutura afetiva, como sendo desonestidade ou insinceridade. E com um grau de consciência que o distingue como um relativo estranho a todos os grupos sociais, ele enfatiza o aspecto benéfico, humano, de sua moderação em afetos individuais. Seu comentário é um dos poucos pronunciamentos alemães dessa época a reconhecer algo do valor social da 'cortesia' e dizer alguma coisa positiva sobre a habilidade social" (Elias, 1994, p. 48). (cf. Elias, 1994, p. 48). Em A Sociedade de Corte,em que Elias se apoia principalmente nas Memórias de Saint-Simon para analisar o comportamento cortesão, a dissimulação costuma aparecer, por sua vez, associada a uma perspectiva moralista em que o decoro, como o ajuste prudente do homem às circunstâncias, contrasta com uma verdade psicológica nascente, cuja profundidade seria acentuada na personalidade romântica, e que viria a definir o sujeito nos séculos XIX e XX (cf. Elias, 2001; Pécora, 2001b).

No contexto do século XVI, no entanto, a dissimulação relaciona-se a um estilo, isto é, a uma forma ao mesmo tempo estética e moral através da qual os saberes e as virtudes eram atualizados em comportamentos socialmente valorizados. Diferente do que estamos acostumados a pensar hoje, o valor do conhecimento e das virtudes dependia então de sua representação para um público, e de seu reconhecimento e apreciação por um público. Estamos diante de um tipo de sociedade em que a visão se impunha como o órgão regulador do comportamento por excelência e em que a admiração do outro era a recompensa do comportamento bem-sucedido. Essa era a sociedade de corte. E fosse porque eram predominantes a linguagem falada e a linguagem corporal sobre a linguagem escrita, isto é, porque as relações sociais assumiam uma forma retórica; ou porque nesse tipo de sociedade não havia uma esfera privada contraposta à esfera pública, tal como viemos a conhecer, e todas as pessoas estavam constantemente em presença de um outro, o tipo de virtudes e o modo de sua realização eram exclusivos ao espaço público, dando-se através de ações dirigidas para um público, para serem observadas e admiradas por um público (cf. Elias, 2001; Habermas, 1984).

A separação entre o público e o privado tornou-se, no entanto, tão essencial a nossa sociedade que não conseguimos mais imaginar uma organização social destituída de uma esfera privada, quer dizer, "reduzida" a uma esfera pública. A consequência disso é a tendência em desconsiderar, no estudo das sociedades de corte, a dimensão ideal e normativa inscrita nessa busca coletiva por reconhecimento e admiração, operando como uma espécie de "hermenêutica do mal" que resume as aparências a determinações ou interesses ocultos (cf. Boltanski, 2000). Procuramos realizar neste artigo um esforço na direção contrária.

O livro de Castiglione nos permite seguir essa direção por apresentar a dissimulação como critério moral e estético para a ação. Escrito nas primeiras décadas do século XVI, dele sobressai, ainda, a dupla característica que Elias identificou em O Processo Civilizador, nas obras de Erasmo e Della Casa3 3 Peter Burke e Carlo Ossola mostram o caráter exemplar que o livro assumiu, tornando-se referência para a composição de muitos outros tratados de mesmo tipo e servindo de base para a criação, já a partir de meados do século XVI, de catálogos prescritivos daquilo que se consolidaria cada vez mais como sendo "a" cultura e "a" língua cortesã - uma espécie de listagem do conteúdo que pautaria doravante as conversações e a sociabilidade da aristocracia de corte e depois, em um sentido mais amplo, da honnête gens (cf. Burke, 1997; Ossola, 1997). O clássico de Giovanni Della Casa, o Galateo, muito citado no volume I de O Processo Civilizador, pode, por exemplo, ser considerado em uma linha de continuidade direta com O Cortesão. . De um lado, o tema da dissimulação aparece sem o cerceamento e o controle moral típico aos séculos posteriores, quando a incorporação dos hábitos civilizados vai dotar certos comportamentos socialmente modelados de tamanha naturalidade que não será mais necessário falar sobre eles. É o que acontece, por exemplo, no processo de controle da maior parte das funções corporais. O mesmo se passa com a dissimulação, com a particularidade de que se assiste, a partir da experiência da Reforma protestante, mas especialmente nos últimos dois séculos, a uma crítica ao excesso de artifício no comportamento social, sem deixar de pressupô-lo em alguma medida. O que podemos observar em O Cortesão é, contudo, precisamente o processo anterior, de valorização da dissimulação no comportamento aristocrático. Por isso, de outro lado, é que o tratado de Castiglione permite entrever o sentido do processo civilizador. Para voltarmos a Goethe, não importa o que se diga, é necessário nos controlarmos e nos darmos bem com os outros se temos que viver em sociedade (cf. Elias, 1994, p. 37). Como fazer isso é, apesar da distância que nos separa, um dos temas centrais do livro de Castiglione.

Falar dessa distância nos adverte para a provável permanência da dissimulação como uma regra tácita de convivência social. Podemos perceber em um autor tão contemporâneo como Erving Goffman, por exemplo, a importância que a "autoapresentação" seguiu tendo nas sociedades modernas. Goffman destaca-se por explicitar, em seu livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, que o tecido social se mantém não somente por critérios de justiça, mas igualmente por aqueles de justeza, isto é, de uma adaptação sem atritos entre os atores sociais. Uma adaptação que, como o ideal de Castiglione, parece espontânea, mas de fato é construída. Seria em alguma medida anacrônico, no entanto, pensar a sociabilidade renascentista nos termos de Goffman, a partir da metáfora da representação teatral. A metáfora teatral implica o "bastidor" como um "coespaço" social do "palco" e indica uma cisão entre a identidade do ator e a identidade do personagem que dificilmente poderíamos identificar no estilo de representação renascentista (cf. Goffman, 1990, pp. 244-247).

A sensação de anacronismo produzida pela aproximação entre períodos históricos bastante distintos, sem as devidas mediações, obriga-nos a pensar que O Cortesão, como qualquer outro livro, tem uma história. E que essa história não deixa de ser o resultado de uma tradição que lhe era anterior e que, por sua vez, é incorporada em um processo de recepção ativa nos séculos seguintes à sua publicação. Na medida em que adotamos uma perspectiva hermenêutica, procurando desdobrar o significado que a dissimulação adquire especialmente em Castiglione, entender esse processo de recepção ultrapassa os objetivos propostos neste artigo. Vale a pena, no entanto, remeter pontualmente a algumas conclusões a que chega Peter Burke em seu livro As Fortunas d'O Cortesão, em que o autor busca mapear - através da análise de edições, traduções, imitações e modificações incluídas no texto original de Castiglione - o sentido atribuído ao livro por "comunidades de leitores" com características sociológicas distintas.

Durante o século XVI, O Cortesão teve em torno de sessenta edições em italiano e, além das traduções, pode-se identificar a circulação das edições em italiano nas demais cortes europeias - especialmente na Espanha, na França e na Inglaterra. Ao longo desse período, no entanto, o livro perde seu caráter aberto, devido ao seu formato de diálogo, como veremos, para se tornar um livro de consulta, com índices analíticos e notas dos principais assuntos e máximas. Depois do sucesso obtido no século anterior, no século XVII se observa um declínio, segundo Burke, do interesse pelo livro de Castiglione, que nunca mais teria a mesma recepção calorosa dos primeiros anos. O fortalecimento das monarquias absolutas aliado aos movimentos de Reforma e Contrarreforma contribuíram para uma crítica moral, de fundo religioso, à dissimulação. Por um lado, no contexto da Reforma, assiste-se a uma crítica da "cultura da representação" em prol de uma "cultura da sinceridade", posteriormente recuperada com o Movimento Romântico no século XIX (cf. Burke, 1997, p. 124). Por outro lado, se O Cortesão chegou a ser incluído no Index dos livros proibidos pela Inquisição, vê-se também o surgimento de uma literatura de corte em relação à qual os conselhos de Castiglione pareceriam não cínicos, mas excessivamente francos diante do poder absoluto dos príncipes. O pequeno tratado Da Dissimulação Honesta, do italiano Torquato Accetto, é um exemplo dessa literatura de secretários de príncipes que adquiriu importância ao longo do século XVII, em que a dissimulação adquire as cores sombrias do tacitismo e era justificada ao mesmo tempo em termos religiosos e políticos, como estratégia de sobrevivência nas cortes (cf. Míssio, 2004).

Apesar de O Cortesão não ter recebido nunca mais a mesma atenção como a que se seguiu à sua publicação, é interessante notar, por fim, o ressurgimento do interesse pelo livro no fim do século XVII e início do século XVIII, ligado à "aristocratização" dos burgueses ricos, o que nos daria pistas sobre a influência do modelo retratado por Castiglione nas sociedades modernas (cf. Burke, 1997, pp. 147-148). É especificamente sobre esse modelo que nos debruçamos a seguir.

O artigo está dividido da seguinte forma: na primeira parte ("O quadro"), apresentamos aquilo que serve de mote ao mesmo tempo para a composição do tratado e para o tipo de sociabilidade que o livro retrata: a conversação como um jogo. Na segunda parte ("A moldura"), procuramos qualificar melhor os constrangimentos estruturais da conversação - as regras do jogo, por assim dizer - que informam a representação coletiva e a apresentação individual de cada personagem. Na última parte ("O modelo"), mostramos o significado central que a dissimulação adquire para o modelo de cortesania proposto por Castiglione e para o tipo de sociabilidade de corte aqui apresentado.

O quadro

O tratado, como diz Castiglione no prólogo, foi escrito para seu amigo Alfonso Ariosto (primo de Ludovico Ariosto, autor de Orlando Furioso), que lhe havia pedido escrever sobre

[...] a forma de cortesania mais conveniente ao fidalgo que vive numa corte de príncipes, de tal maneira que possa e saiba servi-los em tudo o que seja razoável, conquistando as graças deles e os elogios dos outros; em suma, como deve ser aquele que mereça ser chamado de perfeito cortesão, para que nada lhe falte" ([1528]4 4 A data entre colchetes refere-se à edição original da obra e é indicada na primeira vez em que a obra é citada. Nas demais, indica-se somente a edição utilizada pelo autor (N.E.). 1997, p. 11, I, I)5 5 As citações de O Cortesão seguirão sempre esse mesmo padrão: como de costume, o ano da edição brasileira mais o número da página em que se encontra a citação, seguidos da indicação em algarismos romanos do livro e do capítulo da obra. .

Para que nada falte ao perfeito cortesão, uma variedade de temas relacionados com o saber viver de corte aparece e desaparece ao longo dos diálogos e dos livros que compõem o tratado, testemunhando a competência do autor em relação à cultura cortesã e humanística que lhe era familiar e às questões que então se impunham aos representantes "intelectuais" dessa cultura: entre outras, a importância da origem familiar nobre (livro I); o debate sobre a institucionalização e a legitimidade da língua vulgar (livro I); a enorme gama de ditos, facécias e motes que serviam às conversações mundanas (livro II); a questão feminina e a forma de amor conveniente aos cortesãos (livros III e IV); a relação entre o cortesão e o príncipe (livro II, mas principalmente livro IV). Entretanto, a importância da obra para a compreensão de um modelo Renascentista de sociabilidade - e da repercussão desse modelo no período das monarquias clássicas - está, com efeito, não somente relacionada com sua variedade de temas, mas também, e principalmente, com a forma como os temas se apresentam, de um lado, e o modo como são costurados uns aos outros em função do objetivo proposto, de outro.

O que Alcir Pécora afirma a propósito do tratado Da Dissimulação Honesta, do secretário italiano Torquato Accetto, vale ainda mais para a obra de Castiglione: pois também Castiglione conquista para o seu tratado "o mesmo estatuto, concomitantemente teórico e prático, do 'cânone' de Policleto, referido por Plínio: uma estátua particular de uma figura humana que fornecia, igualmente, o padrão de proporcionalidade perfeita para toda figura humana" (Pécora, 2001a, p. XII). Com o objetivo de forjar a figura do mais perfeito cortesão, o que vemos se construir ao longo dos diálogos e dos livros que compõem o livro é uma imagem verossímil da perfeita sociabilidade, representada em sua forma mais típica, a conversação. O "retrato de pintura" da corte de Urbino que sai das mãos de Castiglione é, em sentido metafórico, uma representação pictórica da sociabilidade também ela pensada como representação6 6 "E porque vós nem da senhora duquesa, nem dos outros que morreram, exceto do duque Iuliano e do cardeal de Santa Maria em Portico, tivestes notícia durante a vida deles, para que, até onde posso, tenhais alguma depois da morte, mando-vos este livro como um retrato de pintura da corte de Urbino, não da mão de Rafael ou de Michelangelo, mas de um reles pintor que somente sabe traçar as linhas principais, sem adornar a verdade com vagas cores ou fazer passar por arte da perspectiva aquilo que não o é" (Castiglione, 1997, p. 5, "Dedicatória"). . Compreendida não como desempenho de múltiplas funções sociais, mas como apresentação de si: um modo de ser e de estar com o outro através do qual os sujeitos modelam sua identidade individual. Resulta daí uma espécie de causalidade circular: o padrão de proporcionalidade perfeita, no caso a ideia - em seu sentido platônico, a imagem - do mais perfeito cortesão, é o produto final, mas ao mesmo tempo o pressuposto do modus operandi de sua produção. Se nos fosse possível imaginar esse "retrato de pintura", veríamos o salão oval luxuosamente ornado, cenário do livro e das soirées organizadas pela senhora duquesa Elisabetta Gonzaga com a ajuda de sua lieu-ténante e amiga Emilia Pia; veríamos os membros daquela corte - os seus personagens -, homens e mulheres, jovens e senhores, muito bem-vestidos, sentados em círculo de forma intercalada; poderíamos supor, pelos gestos das figuras, que estivessem em qualquer conversação amável típica a uma sociabilidade íntima e fraternal entre iguais; mas com certeza não veríamos representada nessa cena a figura do perfeito cortesão, cuja presença como modelo, invisível aos nossos olhos, se faria sentir, no entanto, para todas as outras figuras inegavelmente.

Não é, então, simplesmente por acaso que, depois de percorridos os lugares-comuns da retórica (Dedicatória, Prólogo, Elogio ao lugar, ao Senhor, apresentação do cenário etc.), encontramos, no início da narração propriamente dita, o diálogo que determinará dali em diante toda a representação. Incumbida de dar início ao jogo que teria lugar naquela noite, Emilia Pia engenhosamente propõe um que "[...] consiste em que cada um proponha segundo a sua opinião um jogo ainda não realizado [...]"7 7 "Minha Senhora, uma vez que lhe agrada que seja eu a começar os jogos desta noite, não podendo sensatamente deixar de obedecer-lhe, decido propor um jogo pelo qual penso em receber pouca censura e menos cansaço; ele consiste em que cada um proponha segundo a sua opinião um jogo ainda não realizado [...]" (Castiglione, 1997, p. 18, I, VI). . O jogo escolhido, a saber, "modelar com palavras um perfeito cortesão", torna-se assim o resultado de um "metajogo" que impõe ao tratado sua própria chave hermenêutica (cf. Ossola, 1997). Por um lado, vários dos jogos propostos retornam ao longo do livro, considerados agora, no entanto, à luz do jogo escolhido (sendo o discurso de Bembo sobre a loucura do amor sublime, ao fim do tratado, um exemplo disso). Por outro lado, recria-se e impõe-se, através desse artifício, o espaço retórico -"fictício" - da palavra como o espaço propriamente reservado à formação e instrução do príncipe e do cortesão em sua relação com o príncipe8 8 Nas palavras de Carlo Ossola (1997, p. 69): "S'agissant de limites, la tradition en offrait cependant de plus nettes, car 'former par la parole un courtisan parfait' correspond, comme le notait Cian, à l'' oratione fingere' cicéronian; aussi, c'est bien dans l'espace fictif du discours que l' institutio' du prince prendra sa place, place autorisée davantage par le 'genre littéraire' que par l' histoire, et fondée sur un voeu conjuguant perfection du cortisan et formation du prince dans le cadre même des hypothèses rhétoriques du 'dire'" (Tratando-se de limites, a tradição oferecia no entanto [exemplares] mais claros, porque 'modelar com palavras um perfeito cortesão' corresponde, como o observava Cian, ao oratione fingere ciceroniano; por isto, é bem no espaço fictivo do discurso que a institutio do príncipe terá seu lugar, lugar autorizado mais pelo 'gênero literário' do que pela história e fundado sobre um voto (desejo, promessa) conjugando perfeição do cortesão e formação do príncipe no quadro mesmo das hipóteses retóricas do 'dizer'"). .

O fato de o jogo escolhido, "modelar com palavras um perfeito cortesão", ser ele mesmo o resultado de um jogo discursivo implica, assim, um espaço específico, aquele da palavra e do discurso, no interior do qual o processo de modelagem da identidade se desenrola: "former par la parole" significa necessariamente nesse contexto "former dans la parole". Mas uma segunda consequência tão ou mais importante ainda se põe: a de que, se se trata de modelar o mais perfeito cortesão narrativamente, a narrativa, isto é, o discurso mesmo, deve também ela se aproximar ao máximo do objetivo proposto: "former par la parole" e "dans la parole" significam igualmente, como afirma Ossola, "former à la perfection des paroles" (Ossola, 1997, p. 70).

A garantia de se atingir o objetivo proposto no jogo escolhido se vincula, com isso, à precondição que torna possível a escolha do próprio jogo, uma espécie de sociabilidade perfeita: e "se em algum lugar existam homens que mereçam ser chamados de bons cortesãos e que sabem julgar aquilo que compõe a perfeição da cortesania, com boas razões havemos de pensar que aqui estejam" (Castiglione, 1997, p. 25, I, XII). A imagem do cortesão, por mais ideal que pareça e seja, não provém nesse contexto de um idealismo descolado, digamos, das possibilidades de sua realização. Ao contrário, é somente porque e quando essas condições se tornaram muito difíceis de serem cumpridas, ou passaram a ter que ser artificialmente criadas, que o modelo de formação proposto por Castiglione se tingiu com as cores de um idealismo, com o sentido pejorativo a partir do qual o entendemos hoje: do irrealizável, do faltoso. Tal como está posta no livro, no entanto, a noção de ideal reflete antes uma dialética entre essência e aparência que se realiza nos termos próprios em que é concebida: com o objetivo de existir simplesmente enquanto Ideia.

É precisamente a forma de diálogo-conversação, que estrutura o tratado, o que garante a verossimilhança dessa representação. Diferente do modelo platônico-socrático, em que um interlocutor é responsável por conduzir a narrativa, as falas contraditórias e os diálogos aparentemente inconclusos se prestam, em O Cortesão, para a composição do quadro que se quer mostrar: o ideal pressuposto à conversação, e que ao mesmo tempo lhe transcende, impõe-se apesar e através de um contínuo contradizer-se, como uma espécie mesmo de pintura, cuja nitidez da imagem vai se delineando pouco a pouco no jogo de cores e de luzes e sombras que dão vida e profundidade aos traços de um desenho em branco e preto.

Contradizer não é, no livro, simplesmente uma espécie de resultado "natural", não intencionado, do jogo da sociabilidade. Ao contrário, trata-se de uma postura explicitamente posta como regra do jogo escolhido:

E me seja perdoado se eu, devendo contradizer, perguntasse; pois creio que isso me seja permitido, seguindo o exemplo do nosso dom Bernardo, o qual, por excesso de vontade em ser considerado um belo homem, contrariou as regras do nosso jogo, perguntando e não contradizendo. - Vede - disse a senhora duquesa - como de um só erro procedem vários outros (Idem, p. 39, I, XXIII).

Se as falas contraditórias dos diferentes personagens servem, da perspectiva da composição do tratado, para estabelecer uma correspondência entre aquilo que se pretende representar e o modo de representação, de uma perspectiva interna à representação a forma de diálogo inscreve o tratado em uma longa tradição, tributária da Antiguidade Filosófica, permitindo retratar um modelo de sociabilidade para o qual essa inscrição - como imersão em uma cultura comum à humanidade - era um valor. O caráter lúdico da sociabilidade que os diálogos refletem aponta um certo sentido de "celebração" que envolve, em seu modo de ser e de estar, homens e mulheres de espírito. Celebração indica, aqui, uma espécie de limite simbólico (desdobrando-se em limites espaciais e temporais) que, como uma atividade ritual, pontua a existência social desse grupo.

A noção de espírito ajuda a compreender o entrelaçamento sutil entre ser e parecer - ambos situados no mesmo plano, o da aparência - que marca a inscrição da sociabilidade renascentista na tradição antiga. Pois é essa qualidade abstrata da alma, definida posteriormente por Voltaire como "razão engenhosa", que permite, em um sentido forte, fazer renascer em outro contexto o que é visto como patrimônio comum da humanidade letrada (cf. Fumaroli, 1998, p. 286). Não se trata, assim, da mera repetição de lugares-comuns de um determinado repertório memoriável de obras e de pensamentos clássicos então socialmente valorizados e capazes de distinguir aqueles que o possuíam. Trata-se antes de uma verdadeira incorporação, no sentido de uma dupla apropriação, já que não somente a incorporação desse patrimônio pressupõe o espírito como qualidade da alma, mas também contribui para renová-lo e fortalecê-lo. Ou, para recuperarmos o ponto anterior, o espaço do discurso e da palavra se põe, para essa forma de sociabilidade, como o meio pelo qual as identidades se modelam e, ao mesmo tempo, como o espaço em que esse modelo é celebrado. Por isso, "modelar com palavras um perfeito cortesão" e modelá-lo no interior do espaço fictício do discurso concorrem para a reafirmação do discurso como o espaço por excelência a partir do qual a vida social é tecida. Essa é a chave hermenêutica inaugurada com o artifício literário do "metajogo" a partir do qual se inicia a narração.

Assim, a forma de diálogo-conversação com que Castiglione decide apresentar o seu ideal de cortesão se põe como essencial para a compreensão da importância de sua obra: é também um ideal de sociabilidade o que está sendo representado. Ou, seria possível dizer, trata-se também de um jogo ideal: "Então, quase todos os presentes [...] começaram a dizer que este era o mais belo jogo que se poderia realizar" (Castiglione, 1997, p. 25, I, XII).

A moldura

No capítulo IV do livro I, Castiglione nos introduz ao cenário em que se passará a ação representada, a conversação, estabelecendo seus limites tanto em termos espaciais como em termos temporais9 9 "Assim, eram todas as horas do dia divididas em honrados e agradáveis exercícios tanto do corpo quanto do espírito; mas, como o senhor duque continuamente, por causa da doença, ia dormir cedo, em geral todos iam para onde estivesse a senhora duquesa Elisabetta Gonzaga; e lá sempre se encontrava a senhora Emilia Pia, a qual, sendo dotada de tão viva engenhosidade e inteligência, como sabeis, parecia a mestra de todos, e cada um lhe pedia opinião e estímulos. Destarte, ali, leves conversações e honestas facécias eram ouvidas, e no rosto de cada um se via pintada uma jocosa hilaridade, de tal modo que se poderia chamar aquela casa de hotel da alegria [...]" (Castiglione, 1997, p. 16, I, IV). . O espaço em que se desenvolve a conversação se delimitava, de um lado, pelos aposentos privados do palácio e, de outro, pelos aposentos destinados ao exercício do poder e aos afazeres políticos (cf. Pons, 1991). Na rotina de atividades da corte, o tempo destinado a essa atividade era o tempo do otium, em oposição ao do negotium, o qual - por mais agradável que fosse - pressuporia, como pressupõe sempre, necessariamente um fim e um objetivo que ultrapassaria a simples criação e reafirmação dos laços sociais. O caráter noturno da conversação, como delimitação temporal do cenário da ação, adquire, no entanto, quando pensado em relação à delimitação espacial, um significado maior do que o que à primeira vista poderia parecer. Ele indica a ausência de um elemento essencial à estrutura da corte e da sociedade de corte de maneira mais ampla, pois o poder não se encontra aí representado. Se se tratasse somente de um momento de otium, mas diurno, provavelmente o excelentíssimo senhor Guid'Ubaldo, apesar dos males da gota, estaria presente, como o próprio Castiglione relata que ele o fazia. Mas a doença o impedia, no entanto, de participar precisamente dessas reuniões noturnas organizadas nos aposentos da senhora Elisabetta Gonzaga.

Com efeito, a conversação é, como uma forma pura de sociabilidade, o jogo social por excelência, posto que aí qualquer interesse ou preocupação que desvie a atenção da sociabilidade em si deve ser deixado de lado (cf. Simmel, 1971). Mas é um jogo cuja estrutura exige uma certa igualdade de condições entre seus participantes. Se, por um lado, a ausência do poder abre espaço para que seja modelado um cortesão cuja honra e dignidade são frutos não do servilismo, mas da qualidade e da independência de seu espírito, essa ausência se faz, por outro lado, necessária ao modelo de sociabilidade sustentado na obra.

Impõe-se assim, mais uma vez, mas agora em outro plano, a relação entre o ideal do perfeito cortesão e o ideal da perfeita sociabilidade. Trata-se, como é possível perceber, de um tipo de modelagem da identidade que depende de a conversação se desenrolar em um ambiente de equilíbrio e harmonia, que a presença do poder poderia pôr em risco. Se o poder fosse representado como uma vontade soberana que se destaca e se sobrepõe às demais vontades, ele teria como efeito romper essa espécie de corrente que, segundo Castiglione, era então capaz de unir a todos no mesmo sentimento comum10 10 "[...] e não creio que noutro lugar se apreciasse toda a doçura que deriva de uma querida e amada companhia, como ali aconteceu um dia; pois, à parte a honra que era para cada um de nós servir a um senhor como aquele que descrevi acima, nascia no ânimo de todos um imenso contentamento todas as vezes que nos reuníamos com a senhora duquesa; e parecia que esse contentamento criava uma corrente de amor que a tal ponto unia a todos, que jamais existiu concórdia de vontade ou amor cordial entre irmãos maior do que aquela que ali existia entre todos" (Castiglione, 1997, p. 16, I, IV). . Ao contrário, representada como está em O Cortesão, a vontade soberana simboliza e legitima, ao invés de deslegitimar, as vontades individuais que, em concordância umas com as outras, se entrelaçam de tal forma que se poderia dizer haver ali uma única e só vontade.

Nesse sentido, é interessante notar que o vocábulo conversação (conversatio) adquire no século XVI, com Castiglione e, depois, com Stefano Guazzo (autor do livro A Conversação Civil, de 1574), uma conotação que, mesmo incorporando a tradição retórica latina, de Cícero principalmente, e sendo influenciada pela teoria aristotélica, se apresenta com um novo sentido. Esse sentido está relacionado não somente com o cultivo da palavra e das letras e com o decoro relativo ao discurso, mas também com o estar junto e com o decoro necessário às relações sociais, aos gestos, às atitudes, aos olhares, às vestimentas, à postura de estar (sentir e se saber) imerso em um grupo seleto e homogêneo. Conversação, assim como muitas outras palavras que partilham do mesmo prefixo latino "cum-" (como conveniência, convívio, comércio, consonância etc.), assume nesse período uma significação sociológica de cooperação social que se caracteriza e poderia ser compreendida pela noção de harmonia musical, tomando a música como um modelo transcendental (cf. Fumaroli, 1998, p. 293).

É precisamente essa estética capaz de insinuar uma harmonia "preestabelecida", característica de um ideal de sociabilidade baseado na concórdia das vontades individuais, que encontramos em O Cortesão. Não sem razão, esse ideal, assim como o do cortesão, se revestiu para nós de um idealismo no sentido depreciativo desse termo. A própria conversação vai, ao longo dos séculos XVII e XVIII, perdendo o caráter naturalmente harmônico que a caracterizou típico-idealmente no período renascentista. Mantendo puramente sua configuração formal - determinada, por um lado, por uma espécie de "decoro forçado" e, por outro, pela repetição mecânica e não espirituosa dos lugares-comuns da antiguidade clássica -, a conversação se aproximará de um coquetismo literário, cujo fim o surgimento da literatura propriamente dita, isto é, da literatura escrita, ajudará a consolidar (cf. Idem).

Se a conversação adquiriu no século XVI um sentido sociológico distinto, para o que a instituição do próprio vocábulo em língua vulgar contribuiu, isso se deu a partir do acréscimo de uma nova camada de significado ao sermo ciceroniano, cujo estilo permaneceu, no entanto, para esse discurso, como modelo retórico11 11 Como afirma Fumaroli, o termo conversatio não existia no vocabulário ciceroniano, e os termos que lhe seriam mais ou menos equivalentes são sermo e colloquium (cf. 1998, p. 289). .Um modelo que estava de acordo com a "urbanidade" fraternal e amigável entre os pares da "boa sociedade" em seus momentos de convivência na corte destinados não ao convencimento, através de uma oratória eloquente, mas ao esclarecimento mútuo, mediante o diálogo. Como afirma Fumaroli:

O interlocutor do sermo ciceroniano, tal como aparece nos diálogos, é o orador do Fórum, em seus momentos de lazer. Ele não renuncia a sua auctoritas, a suas virtudes: a conversação do lazer ciceroniano é também ao redor da vida cívica e ativa, continuada por outros meios num retiro provisório. A palavra submete-se aí às mesmas regras de clareza, ao mesmo método retórico que consiste em procurar a sabedoria (verdade e felicidade) buscando apoio sobre a doxa, sobre os lugares-comuns que são a partilha de todos os homens e, em primeiro lugar, de todos os Romanos. A diferença entre eloquentia e sermo, em Cícero, não é de método, mas de condição de exercício: no primeiro, uma vida ativa e pública, a relação do orador com um grande auditório que ele quer conquistar; no segundo, uma vida contemplativa e privada, o otium, e a relação do interlocutor com seus pares que são seus amigos e que cooperam de boa vontade para o esclarecimento compartilhado, em estilo simples e natural, das questões de interesse genericamente humano (Idem, p. 290)12 12 "L'interlocuteur du sermo cicéronien, tel qu'il apparaît dans ses dialogues, est l'orateur du Forum, mais dans son loisir. Il n'y renonce pas à son auctoritas, à ses vertus: la conversation de loisir cicéronienne est encore de la vie civique et active, continuée par d'autres moyens dans une retraite provisoire. La parole y est soumise aux mêmes règles de clarté, à la même méthode rhétorique qui consiste à chercher la sagesse (verité et bonheur) en prenant appui sur la doxa, sur les lieux communs qui sont le partage de tout les hommes, et d'abord de tout les Romains. La différence entre eloquentia et sermo, chez Cicéron, n'est pas de méthode, mais de condition d'exercice: ici, une vie active et publique, le rapport de l' orateur à un large auditoire qu'il lui fait conquérir; là, une vie contemplative et privée, l' otium, et le rapport de l' interlocuteur avec ses pairs qui sont ses amis et qui coopèrent volontiers à l' éclaircissement en commun, en style simple et naturel, des questions d'intérêt généralement humain". .

O estilo simples e natural, também chamado de "aticismo ciceroniano", afasta-se de um maneirismo que "peca" pelo excesso de ornamento, mas se afasta igualmente do estilo simples, de matriz estoica, do "aticismo senequiano", que conheceu uma enorme repercussão no século XVII - principalmente na Espanha e nas regiões sob sua influência. Apesar de os dois estilos serem "simples", o "aticismo senequiano" caracteriza-se por uma brevidade, uma agudeza e uma obscuridade que em muito o distanciam da elegância harmoniosa, da clareza e da naturalidade típica ao modelo ciceroniano. O estilo simples de matriz estoica privilegia mais o movere que o delectare (ou melhor: privilegia o delectare em função do movere) e, entre as qualidades necessárias a todo bom orador, antes o entendimento, ao qual ele submete a memória, que o juízo, entendido como "bom gosto", uma disposição natural (um "não sei o quê") que permite que o orador se ponha de acordo com as circunstâncias, os assuntos, as pessoas. Como é o caso no aticismo ciceroniano.

O caráter cerimonial implicado por uma civilidade constantemente atuante em todo o conjunto da vida social faz com que a adaptação às aparências e às suas circunstâncias seja uma norma social válida para toda sociedade de corte entendida como um tipo. Trata-se de uma condição sine qua non de uma sociedade cuja estrutura de possibilidades de prestígio e poder se define pela performance pública, no convívio constante com os outros e aos olhos de outros. Isso significa que, independentemente do modelo retórico a que estejamos nos referindo, esse modelo se atualiza em um espaço regido pelo princípio da conveniência, isto é, pela adaptação. Entretanto, a conveniência ciceroniana tem um significado que modula essa adaptação em um sentido específico: estar de acordo com as pessoas, os lugares, os assuntos e as circunstâncias é, nesse contexto, se modelar e se relacionar com os outros e com o mundo a partir da convicção de que a linguagem, mas também a natureza, o corpo humano, as artes são dotados e compartilham de uma mesma racionalidade interna e orgânica. É estar de acordo com uma espécie de modelo exterior e superior que organiza o todo em sua multiplicidade e em sua constante variabilidade, dotando-o de ritmo e beleza: "Estas coisas têm tanta força pela harmonia de uma ordem composta de maneira tão determinante que, se fossem mudadas num ponto, não poderiam ficar juntas e levariam o mundo à ruína; têm ainda tanta beleza e graça que as inteligências humanas não podem imaginar coisa mais linda" (Castiglione, 1997, p. 323, IV, LVIII)13 13 "Eis o estado dessa grande máquina do mundo, a qual, para a saúde e conservação de toda coisa criada, foi produzida por Deus. O céu redondo, adornado com tantos lumes divinos, e no centro a terra circundada pelos elementos e sustentada por seu próprio peso; o sol, que girando ilumina tudo e, no inverno, se acerca do signo mais baixo, depois, pouco a pouco ascende do outro lado; a lua, que dele retira sua luz, conforme se aproxima ou se afasta; e as outras cinco estrelas que seguem o mesmo curso de maneiras diferentes. Estas coisas têm tanta força pela harmonia de uma ordem composta de maneira tão determinante que, se fossem mudadas num ponto, não poderiam ficar juntas e levariam o mundo à ruína; têm ainda tanta beleza e graça que as inteligências humanas não podem imaginar coisa mais linda. Pensai também na figura do homem, que pode ser considerado um pequeno mundo, no qual se vê cada parte do corpo ser composta necessariamente com arte e não ao acaso, e todo o conjunto resulta por fim belíssimo; a tal ponto que seria difícil julgar que utilidade ou graça possam dar ainda ao rosto e ao restante do corpo todos os membros, os olhos, o nariz, a boca, a orelha, os braços, o peito e as demais partes" (Castiglione, 1997, p. 323, IV, LVIII). .

Essa espécie de modelo exterior e superior pode certamente ser mais bem compreendida quando consideramos, com Cícero, que existe por trás das atividades humanas uma ideia perfeita - no sentido de plena, acabada - daquela atividade:

Eu coloco em princípio que não há nada, de nenhuma espécie, de tão belo que não seja inferior em beleza àquilo de que ele é apenas o reflexo, como o retrato de um rosto, àquilo que nem os olhos nem os ouvidos nem nenhum sentido podem perceber, e que nós não atingimos senão pela imaginação e pelo pensamento" (Cícero, apud Fumaroli, 2002, p. 55)14 14 "Je pose en principe qu'il n'y a rien, dans aucun genre, de si beau qui ne soit inférieur en beauté à ce dont il n'est que le reflet, comme le portrait d'un visage, à ce que ni les yeux ni les oreille ni aucun sens ne peuvent percevoir, et que nous n'embrassons que par l'imagination et la pensée". .

Tanto a figura do cortesão como a imagem da sociabilidade da qual ela se origina só adquirem sentido quando entendemos que a verdadeira perfeição não se encontra nelas mesmas, mas na ideia que elas refletem em ato: pois a perfeição consiste justamente em assinalar uma outra que a transcende "e que apenas se conhece como desejo" (Pécora, 2001b, p. 73). Ora, mas essa perfeição, que se conhece apenas como desejo, como vontade ou, como em vários momentos afirma Castiglione, como uso e costume, encontra uma única via para se realizar: quando, adaptando-se às circunstâncias, o sujeito se põe em harmonia com a variabilidade que existe no mundo, a partir de um juízo que ele é capaz de formar a respeito da ideia de alguma coisa. Nesse sentido, como foi afirmado anteriormente, trata-se de uma dialética entre essência e aparência que se realiza nos próprios termos em que é concebida ou, como afirmou Erwin Panofsky, esse é o círculo vicioso que está no coração da concepção clássica da arte: "O vaivém das ideias ao mundo natural e do mundo natural às ideias" (Panofsky, apud Pons, 1991, p. XIX)15 15 "Le 'va-et-vient des idées au monde naturel et du monde naturel aux idées'". .

É igualmente nesse contexto que a conversação tem lugar: os personagens do livro e dos diálogos são, também eles, representantes dessa variabilidade que poderíamos encontrar em todos os níveis das atividades e dos fenômenos humanos, e em cada ser humano em particular16 16 "Os oradores também tiveram sempre tanta diversidade entre si que toda época produziu e apreciou um tipo de oradores peculiar daquele período; os quais foram diferentes não só dos predecessores e sucessores, mas também entre si, como se garante foram Isócrates, Lísias, Ésquines e muitos outros entre os gregos, todos excelentes, mas similares cada um a si próprio. Entre os latinos, mais tarde, Carbone, Lélio, Cipião Africano, Galga, Sulpício, Cota, Graco, Marco Antônio, Crasso e tantos que seria demais nomear, todos bons e bem diferentes um do outro. De modo que aquele que pudesse considerar todos os oradores que existiram no mundo encontraria tantas maneiras de dizer quantos oradores houvesse" (Castiglione, 1997, p. 59, I, XXXVII, grifos meus). . Cada um dos personagens do livro tem um juízo próprio sobre como deve ser aquele a que se deva chamar de perfeito cortesão (cf. Castiglione, 1997, p. 27, I, XIII)17 17 "Todavia considero que cada coisa tem a sua perfeição, mesmo quando oculta, e que esta pode ser julgada com discursos razoáveis por quem dela souber. E porque, como disse, muitas vezes a verdade está escondida e não me vanglorio de ter tal conhecimento, não posso louvar senão aquele tipo de cortesão que mais aprecio e aprovar aquilo que me parece mais semelhante ao verdadeiro, segundo meu pouco juízo: o qual podereis adotar, caso vos pareça bom, ou permanecer com o vosso, se for diferente do meu. E nem insistirei em que o meu seja melhor que o vosso; pois não somente a vós pode parecer uma coisa e a mim outra, mas a mim próprio poderia parecer ora uma coisa, ora outra" (Castiglione, 1997, p. 27, I, XIII). . Mais: cada personagem é representativo da "profissão da cortesania" e, diferentes entre si, todos deixaram, no entanto, um nome gravado na história (cf. Pons, 1991, p. XIV). Com efeito, não há, como tradicionalmente nos diálogos platônicos, um personagem encarregado de conduzir os demais em direção à verdade; e também não se trata de oradores, diante de um auditório, buscando demonstrar algo para um público ou convencê-lo. A ideia do perfeito cortesão é construída pouco a pouco sobre um consentimento que emerge não da unanimidade das posições, mas através de um contínuo contradizer-se. Em ocasiões específicas, as contradições se resolvem com a autoridade de algum personagem particular capaz de exprimir o sentimento geral de um grupo que, no entanto, já se encontrava de antemão em harmonia. Muitas vezes, ainda, as contradições não se resolvem, mas mesmo assim segue-se adiante sob a ordem, seja da senhora duquesa, seja da senhora Emilia Pia, de não parar simplesmente o jogo sobre um único ponto, com o risco de aí se perderem e de não chegarem nunca ao objetivo proposto (cf. Castiglione, 1997, p. 61, I, XXXIX).

Quando se considera, de uma perspectiva interna à representação, a função que a contradição desempenha nos diálogos de O Cortesão, ressalta-se que se trata menos de uma contradição entre ideias - ainda que, com efeito, a conversação reflita um debate no plano das ideias - do que entre as pessoas "reais" que compartilhavam o ambiente mundano daquelas conversações noturnas18 18 Como afirma Alain Pons: "Et il (le jeu) n'y parviendra que collectivement, dans l'exercice de son activité principale, la conversation, avec sa oralité suppose de spontanéité, de contact direct et même d'affron- tement entre des personnes et non simplement entre des idées" (1991, p. XVI, grifos meus). . Isso ocorre porque as pessoas-personagens retratadas por Castiglione são dotadas de tamanha realidade que muito dificilmente se poderia dizer que elas estejam ali apenas para exercer seu papel mecanicamente, como marionetes em um teatro de palavras armado para nos fazer conhecer a vontade de um diretor abscôndito. Ao contrário, apresentadas com tanta vida, qualquer leitor é certamente capaz de senti-las como reais, de se afeiçoar a elas, de percebê-las individualmente - se não pela coerência de suas intervenções, por sua maneira individual de manifestar humor, por suas preocupações mundanas particulares, por seu jeito próprio de se apresentar. Nesse sentido elas representam a diversidade e a variabilidade que existe no mundo, pois eram e foram representadas como eram: realmente diferentes umas das outras, ainda que compartilhassem um mesmo ideal que todas procuravam encarnar.

Em comparação com os personagens modernos e em relação aos leitores modernos, os personagens de O Cortesão são reais, no entanto, em um sentido específico: como pessoas de um discurso retórico, simples e natural, mas não como personagens-indivíduos reconhecidos como tais a partir de uma existência internamente rica, produto de um desenvolvimento pessoal. No sentido em que consideramos hoje e que, segundo Erich Auerbach, a tradição hebraica comumente considerou, delas não se pode dizer que sejam reais, pois não têm, no mesmo sentido em que não o têm as personagens homéricas, profundidade (cf. 1976, pp. 4-5). Durante a representação, os personagens encontram-se o tempo todo, em atos e pensamentos, no mesmo cenário, isto é, no mesmo ambiente simbólico e no mesmo universo de ação. Estão situados sempre em um único plano, o da aparência: do discurso em palavras e em gestos. E em momento algum, a partir da hora em que se inicia a narração propriamente dita, eles se retiram ou nós, leitores, somos retirados por qualquer motivo desse cenário e desse plano - do tempo presente vivido em conjunto pelos personagens. Um presente passível de ser fixado em uma imagem, em um "retrato de pintura".

É precisamente nesse sentido que elas são sem profundidade. Mesmo as contradições não servem, aqui, para produzir rupturas e/ou dobras no plano narrativo, para instaurar um processo subjetivo perspectivista ensejando o surgimento de um segundo plano - não palpável, não acabado, não visível - que permitiria a emergência de cada personagem a partir de sua historicidade pessoal, de seus dramas e de suas felicidades. Antes, aliás, é função das contradições reunir as perspectivas diversas dos vários personagens sob o modelo ideal que está sendo coletivamente construído, permitindo o desenrolar do jogo.

O que Auerbach constata acerca da representação homérica da realidade pode, com algum cuidado, ser aplicado neste caso, pois também aqui encontramos um relato que parece ter como intenção atingir o leitor através de um encantamento sensorial em relação não a um personagem ou a uma ideia, mas a um modo de vida: "a alegria pela existência sensível é tudo para eles, e a sua mais alta intenção é apresentar-nos essa alegria" (Idem, p. 10). O relato "do mais belo jogo que se poderia realizar" é, como já foi apontado, a apresentação de uma forma específica de sociabilidade, baseada na concórdia das vontades individuais e na harmonia, e essa apresentação é igualmente um momento de celebração. Não há um jogo, como afirma Pons, mais bonito, mas também mais difícil do que este, o de apresentar a si mesmo: "la cour (se) parle", e o faz coletivamente (cf. Pons, 1991, p. XVII).

O modelo

A forma de diálogo-conversação mostra-se essencial, como vimos, para a compreensão do modelo de sociabilidade que está sendo representado no tratado, mas a contradição, como o modo pelo qual os diálogos e os diversos temas são costurados uns aos outros, é igualmente importante: ela é o artifício literário que garante o caráter coletivo da tarefa de "modelar com palavras um perfeito cortesão" e, assim fazendo, de a corte apresentar a si mesma. Trata-se muitas vezes, com efeito, de uma aparente contradição, pois a consonância da vontade e das opiniões já está de antemão dada. Ao contrário do que seria possível imaginar, o resultado desse contínuo contradizer-se não é, assim, produzir uma ruptura na narrativa, mas servir como uma espécie de elo entre as falas. Ao final, o que resta é um sentimento, uma determinada imagem com a qual seguimos em frente - nós com a leitura, eles com o jogo -, ao mesmo tempo em que se cria, com esse artifício, o efeito de naturalidade necessário a uma conversação urbana e íntima entre os pares de uma elite aristocrática que compartilhavam, também, o direito de discordar entre si, amigavelmente19 19 Para Carlo Ossola, a regra do "contradizer" que rege o jogo de "modelar com palavras o perfeito cortesão" se conjuga como uma espécie de filosofia da história, com que Castiglione abre o livro II, definindo para o cortesão um tipo de existência paradoxal, fundado em opostos, mas por isso mesmo de acordo com a própria ordem do cosmos (cf. Ossola, 1997, p. 100). Segundo Castiglione, alguns "gostariam que no mundo houvesse todos os bens, sem nenhum mal, o que é impossível, pois, sendo o mal contrário ao bem e o bem ao mal, é quase necessário pela oposição e por um certo contrapeso que um sustente e fortifique o outro e, faltando ou aumentando um deles, falte ou cresça o outro, porque nenhum contrário existe sem o seu oposto" (Castiglione, 1997, p. 86, II, II). .

A importância da contradição ultrapassa, no entanto, sua utilidade e beleza como artifício literário para revelar aquilo que definirá, em sua essência, o modelo de cortesania proposto por Castiglione: "dosar com graça suas atividades, gestos, hábitos, em suma, cada movimento" (1997, p. 39, I, XXIV). Se, da perspectiva da composição do tratado, ela é um elemento-chave do processo narrativo, cujo estilo permite apresentar como natural um modelo específico de sociabilidade e de conversação capaz de encantar e, com isso, produzir efeito de realidade, de uma perspectiva interna ao tratado a contradição torna-se ao mesmo tempo preceito normativo e critério, estético e moral, para a ação.

A graça é, para o ideal de cortesão apresentado no livro, uma espécie de adjetivo de todos os adjetivos, ou, como afirma Castiglione, o "condimento de todas as coisas, sem o qual todas as outras propriedades e boas condições se tornam de pouco valor" (Idem, p. 40, I, XXIV, grifos meus). E a fonte da graça encontra-se justamente na capacidade de, ao adaptar-se às circunstâncias, o cortesão ordenar a si mesmo de tal forma que o seu discurso, os seus movimentos, os seus gestos conjuguem ao mesmo tempo perfeição da técnica e naturalidade. Dissimulando o cuidado com tudo o que diz ou faz - através da simulação de uma certa displicência -, o cortesão alcança, no plano pessoal, a mesma harmonia e equilíbrio característico à ideia da perfeita sociabilidade, exibindo, também em relação ao próprio comportamento, esse triunfo da naturalidade que foi sempre capaz de distinguir a "verdadeira nobreza" (cf. Pécora, 2001b, p. 73).

Como afirma Alain Pons (1991), foi um grande mérito de Castiglione ter sido capaz, se não de definir, ao menos de enunciar as condições formais de manifestação da "graça", essa qualidade do comportamento que parece guardar - e provavelmente guarda - sempre algo - um "não sei o quê" - conceitualmente inapreensível:

Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de lado aqueles que nos astros encontraram uma regra universal, a qual me parece valer, quanto a isso, em todas as coisas humanas que se façam ou se digam mais que qualquer outra, a saber: evitar ao máximo, e como um áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez para dizer uma palavra nova, usar em cada coisa uma certa sprezzatura (displicência) que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar. É disso, creio eu, que deriva em boa parte a graça, pois das coisas raras e bem feitas cada um sabe as dificuldades, por isso nelas a facilidade provoca grande maravilha; e, ao contrário, esforçar-se, ou, como se diz, arrepelar-se, produz suma falta de graça e faz apreciar pouco qualquer coisa, por maior que ela seja. Porém, pode-se dizer que é arte verdadeira aquela que não parece ser arte; e em outra coisa não há que se esforçar, senão em escondê-la (Castiglione, 1997, p. 42, I, XXVI).

Ora, mas mesmo a condição formal para a manifestação da graça, vê-se, é também ela, no entanto, de difícil apreensão. Melhor: podendo ser entendida, é difícil de ser aplicada, pois não se trata de nenhuma operação mensurável ou calculável sobre o comportamento social capaz de assegurar de antemão o sucesso da ação. O par de opostos que caracteriza a condição paradoxal da sprezzatura - mostrar, esconder ou simular, dissimular - insinua necessariamente a contradição implícita à busca da perfeição sem esforço, com o risco constante de se desfazer em um comportamento desmedido ou afetado20 20 "Já que desejais que o diga, falarei ainda de nossos vícios. Não vos dais conta que isso, que em dom Roberto chamais de displicência, não passa de afetação? Porque, se vê claramente, ele faz esforços para mostrar não pensar nisso, e isso já é pensar demais; e, como supera certos limites medianos, tal displicência é afetada e cai mal" (Castiglione, 1997, p. 43, I, XXVII). . A contradição precisa, no entanto, manter-se - ou, como afirma Castiglione, é necessário "atingir determinados limites sem os superar" - e, ainda que disso resulte um equilíbrio precário, é precisamente daí que emerge o efeito natural almejado com essa representação (cf. Idem, p. 193, III, V).

Nesse sentido, a adaptação às circunstâncias se põe para a sociabilidade renascentista não somente como uma norma, a da conveniência, mas igualmente como um ideal: um ideal de equilíbrio entre representação e apresentação, de um ornamento - ou condimento, para usar o termo de Castiglione - usado com prudência e moderação sob o risco de cancelar o efeito de verdade da representação e, com isso, pôr a perder as qualidades pelo modo de apresentá-las, tornando pouco apreciável qualquer coisa que seja - por melhor que ela seja.

Se a conversação pode, em certo sentido, ser considerada a tradução do estilo simples e natural ciceroniano, adequado ao sermo e ao colloquium, em um modelo de sociabilidade, o vocábulo novo criado por Castiglione se põe como a tradução desse estilo para o plano do comportamento - para o que diz respeito à modelagem da identidade individual. Também nesse ponto, como afirma Alain Pons, a retórica antiga "abriu os olhos de Castilgione": em Orador, referindo-se ao estilo simplesou ático, Cícero escreve que "Existe também certa negligência diligente. Com efeito, como se diz de algumas mulheres que elas são sem 'trato', e a quem isso vai muito bem, assim, esse estilo simples agrada mesmo sem ser 'cuidado'. Nos dois casos, faz-se alguma coisa para ter mais graça, mas sem que esse esforço apareça" (Cícero, apud Pons, 1991, p. XXIII)21 21 "Il y a aussi une certaine négligence diligente. En effet, comme on dit de certaines femmes qu'elles sont sans apprêt, à qui cela va bien, ainsi ce style simple plaît même sans être 'peigné': on fait quelque chose dans les deux cas pour avoir plus grâce ( qui sit venustius), mais sans que cela paraisse". . Uma explicação que o próprio Castiglione recupera em O Cortesão:

Haveis alguma vez observado que, seja indo pelas ruas à igreja ou noutro lugar, seja brincando ou por outra causa, acontece que uma mulher tanta roupa retira que o pé ou um pedaço da perna acaba mostrando sem se dar conta? Não vos parece que exibe uma enorme graça, se nisso se vê uma certa disposição feminina, elegante e rebuscada em seus laçarotes de veludo e meias limpas? Certamente isso a mim agrada muito, e creio que a vós todos, porque cada um considera que a elegância, em parte tão oculta e raras vezes vista, seja naquela mulher mais natural e própria do que forçada, e que ela não pense obter com isso nenhum elogio (1997, p. 63, I, XL).

O termo sprezzatura em certo sentido encobre e aponta o que há de paradoxal nessa exigência - estética e moral - de conjugar displicência e diligência. Contido na ambiguidade da própria palavra graça, que indica tanto o caráter agradável de seu portador, como sua exigência implícita por reconhecimento, o caráter paradoxal da sprezzatura reflete-se igualmente na forma de sociabilidade em que o cortesão se instrui e no interior da qual vive. Com efeito, a ameaça da afetação não é exclusiva ao comportamento cortesão, pois atinge com igual intensidade também a sociabilidade, cuja possibilidade de sucumbir ao excesso de artifício, a uma aparência desprovida de substância, vai ser cada vez mais constante quanto mais a nobreza perder sua função de classe e se pôr à mercê dos monarcas absolutos. Mas então nem a existência individual, nem a coletiva vão mais se fundar sobre o paradoxo fundamental característico da sprezzatura, ainda que, ou sobretudo então, o modelo de Castiglione seja adotado como critério de distinção social nas cortes (cf. Ossola, 1997; Lichtenstein, 1994).

Em relação à sociabilidade, a manutenção desse equilíbrio precário entre parecer e ser - entre parecer não dar importância para o que há de mais importante -é assegurada pelo caráter lúdico que envolve a conversação como celebração de um certo modo de vida. O artifício do "metajogo" com que Castiglione inicia a narração propriamente dita desvela, enfim, toda a sua importância. Na medida em que o discurso se põe como o "espaço" por excelência em que são tecidas as relações sociais, o caráter lúdico da conversação adquire um significado simbólico em relação ao que, de uma forma geral, abrange esse modo de vida como um todo: uma dignidade que parece se originar de uma certa displicência com a vida e que é coroada com honra pela morte. Ao mesmo tempo, o artifício do "metajogo" nos alerta, tudo considerado, para um ponto essencial no que diz respeito à relação entre esse modelo de sociabilidade e o tipo de modelagem da identidade que ele enseja: a necessidade, seja pela celebração, seja pelo elogio que se origina com a graça, de um constante reconhecimento que opera não somente em favor da distribuição de prestígio e poder, mas, em um sentido mais fundamental, na constituição das identidades coletiva e individual.

Ao escolhermos privilegiar a estrutura narrativa, nossa intenção foi trazer à tona o tema da dissimulação no interior de um contexto específico de sociabilidade, o de corte, e com isso mostrar que, nesse contexto, ela importa tanto para a modelagem das identidades individuais, quanto para a preservação da identidade coletiva da aristocracia como grupo social. A dissimulação liga-se à necessidade de reconhecimento que orienta, em um ambiente de corte, a performance dos atores sociais. O que O Cortesão permite perceber, no entanto, é que essa performance se encontra, no período renascentista, intimamente ligada a um ideal, ao mesmo tempo estético e moral, de equilíbrio. Esse ideal de equilíbrio, que se alcança com a dissimulação do esforço necessário à representação adequada (e não afetada) da naturalidade, põe-se como uma espécie de "terceira margem" entre natureza e artifício, e com isso se afasta dos critérios de verdade (e, em contrapartida, de fingimento) com que a arte da dissimulação tende a ser usualmente, e muitas vezes exclusivamente, compreendida.

Isso, por um lado. Por outro, podemos pensar o Renascimento, seguindo Norbert Elias, como um momento de inflexão no processo civilizador, em que as bases desse processo vêm à tona de forma explícita, antes de serem incorporadas como uma espécie de "segunda natureza" pelos atores sociais e se tornarem invisíveis. No que se refere à contenção e ao controle das funções corporais no comportamento social, por exemplo, percebe-se que, do século XVI ao século XVIII, muitos temas antes tratados pelos manuais de etiquetas e de comportamento desaparecem ou persistem somente pontualmente (cf. Elias, 1994, p. 141). A estabilização social acompanhada pela institucionalização de hábitos civilizados torna desconfortável e embaraçosa a referência, antes natural, a determinadas maneiras de (não) agir em público. O tema da dissimulação parece ter seguido um caminho paralelo, contribuindo - agora no plano simbólico - para o controle dos impulsos e a racionalização das condutas individuais. O Cortesão de Castiglione é um exemplo de como, em um momento do processo civilizador, a dissimulação foi não só um requisito, mas um valor para os membros da aristocracia como grupo social. A crítica à dissimulação como fingimento no século XVII, posteriormente recuperada pelo Movimento Romântico, antes que negar, nos estimula a pensar em seu processo de naturalização e nas razões que ainda tornam embaraçoso admitir que ela é parte necessária da vida nas sociedades civilizadas.

Texto recebido em 14/5/2007 e aprovado em 25/8/2008.

  • Auerbach, Erich. (1976), Mimeses: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental São Paulo, Perspectiva.
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  • *
    Este artigo é uma versão revisada do segundo capítulo de minha dissertação de mestrado defendida em dezembro de 2005 no Iuperj. Agradeço aos professores Ricardo Benzaquen de Araújo (Iuperj) e Cicero Araújo (DCP-USP), assim como aos pareceristas anônimos, pelas críticas e sugestões a versões anteriores deste artigo.
  • 1
    O termo "modelagem da identidade" é utilizado aqui emprestado de Greenblatt (1984), para dar uma forma conceitual à ideia de que, com o Renascimento, a percepção de que a identidade individual era construída adquiriu contornos institucionais (sobre esse tema, ver também Greene, 1968). Segundo Louis Marin, assiste-se nesse momento histórico (seu exemplo é Montaigne) ao surgimento do tema do reconhecimento de si que se somaria - e por fim o incorporaria - ao tema clássico, platônico, do conhecimento de si - simbolizado pelo preceito délfico do "conhece-te a ti mesmo". O tema do reconhecimento preserva o sentido clássico do conhecer-se a si mesmo como reconhecimento de ser aquele que desde sempre me é conhecido, mas aponta para um segundo sentido: o de se reconhecer na exploração das fronteiras, dos limites, desse lugar reservado ao próprio reconhecimento. Se, no primeiro caso, encontramos um ideal de cultivo, por meio da imitação, de uma herança e de um patrimônio comum relegados à humanidade letrada, no segundo encontramos um ideal de exploração de um "eu" que se torna "meu" no processo/percurso mesmo de exploração de lugares e limites desconhecidos (cf. Marin, 1999).
  • 2
    "Mas, nessa citação, ele [Goethe] fala com grande conhecimento como homem do mundo, como cortesão, com base em experiências que são estranhas a Eckermann. Ele entende a compulsão de abafar os próprios sentimentos, de suprimir simpatias e antipatias, compulsão inerente à vida cortesã e que frequentemente é interpretada por pessoas de situações sociais diferentes e, por conseguinte, com uma diferente estrutura afetiva, como sendo desonestidade ou insinceridade. E com um grau de consciência que o distingue como um relativo estranho a todos os grupos sociais, ele enfatiza o aspecto benéfico, humano, de sua moderação em afetos individuais. Seu comentário é um dos poucos pronunciamentos alemães dessa época a reconhecer algo do valor social da 'cortesia' e dizer alguma coisa positiva sobre a habilidade social" (Elias, 1994, p. 48).
  • 3
    Peter Burke e Carlo Ossola mostram o caráter exemplar que o livro assumiu, tornando-se referência para a composição de muitos outros tratados de mesmo tipo e servindo de base para a criação, já a partir de meados do século XVI, de catálogos prescritivos daquilo que se consolidaria cada vez mais como sendo "a" cultura e "a" língua cortesã - uma espécie de listagem do conteúdo que pautaria doravante as conversações e a sociabilidade da aristocracia de corte e depois, em um sentido mais amplo, da
    honnête gens (cf. Burke, 1997; Ossola, 1997). O clássico de Giovanni Della Casa, o
    Galateo, muito citado no volume I de
    O Processo Civilizador, pode, por exemplo, ser considerado em uma linha de continuidade direta com
    O Cortesão.
  • 4
    A data entre colchetes refere-se à edição original da obra e é indicada na primeira vez em que a obra é citada. Nas demais, indica-se somente a edição utilizada pelo autor (N.E.).
  • 5
    As citações de
    O Cortesão seguirão sempre esse mesmo padrão: como de costume, o ano da edição brasileira mais o número da página em que se encontra a citação, seguidos da indicação em algarismos romanos do livro e do capítulo da obra.
  • 6
    "E porque vós nem da senhora duquesa, nem dos outros que morreram, exceto do duque Iuliano e do cardeal de Santa Maria em Portico, tivestes notícia durante a vida deles, para que, até onde posso, tenhais alguma depois da morte, mando-vos este livro como um retrato de pintura da corte de Urbino, não da mão de Rafael ou de Michelangelo, mas de um reles pintor que somente sabe traçar as linhas principais, sem adornar a verdade com vagas cores ou fazer passar por arte da perspectiva aquilo que não o é" (Castiglione, 1997, p. 5, "Dedicatória").
  • 7
    "Minha Senhora, uma vez que lhe agrada que seja eu a começar os jogos desta noite, não podendo sensatamente deixar de obedecer-lhe, decido propor um jogo pelo qual penso em receber pouca censura e menos cansaço; ele consiste em que cada um proponha segundo a sua opinião um jogo ainda não realizado [...]" (Castiglione, 1997, p. 18, I, VI).
  • 8
    Nas palavras de Carlo Ossola (1997, p. 69): "S'agissant de limites, la tradition en offrait cependant de plus nettes, car 'former par la parole un courtisan parfait' correspond, comme le notait Cian, à l''
    oratione fingere' cicéronian; aussi, c'est bien dans l'espace fictif du discours que l'
    institutio' du prince prendra sa place, place autorisée davantage par le 'genre littéraire' que par l' histoire, et fondée sur un voeu conjuguant perfection du cortisan et formation du prince dans le cadre même des hypothèses rhétoriques du 'dire'" (Tratando-se de limites, a tradição oferecia no entanto [exemplares] mais claros, porque 'modelar com palavras um perfeito cortesão' corresponde, como o observava Cian, ao
    oratione fingere ciceroniano; por isto, é bem no espaço fictivo do discurso que a
    institutio do príncipe terá seu lugar, lugar autorizado mais pelo 'gênero literário' do que pela história e fundado sobre um voto (desejo, promessa) conjugando perfeição do cortesão e formação do príncipe no quadro mesmo das hipóteses retóricas do 'dizer'").
  • 9
    "Assim, eram todas as horas do dia divididas em honrados e agradáveis exercícios tanto do corpo quanto do espírito; mas, como o senhor duque continuamente, por causa da doença, ia dormir cedo, em geral todos iam para onde estivesse a senhora duquesa Elisabetta Gonzaga; e lá sempre se encontrava a senhora Emilia Pia, a qual, sendo dotada de tão viva engenhosidade e inteligência, como sabeis, parecia a mestra de todos, e cada um lhe pedia opinião e estímulos. Destarte, ali, leves conversações e honestas facécias eram ouvidas, e no rosto de cada um se via pintada uma jocosa hilaridade, de tal modo que se poderia chamar aquela casa de hotel da alegria [...]" (Castiglione, 1997, p. 16, I, IV).
  • 10
    "[...] e não creio que noutro lugar se apreciasse toda a doçura que deriva de uma querida e amada companhia, como ali aconteceu um dia; pois, à parte a honra que era para cada um de nós servir a um senhor como aquele que descrevi acima, nascia no ânimo de todos um imenso contentamento todas as vezes que nos reuníamos com a senhora duquesa; e parecia que esse contentamento criava uma corrente de amor que a tal ponto unia a todos, que jamais existiu concórdia de vontade ou amor cordial entre irmãos maior do que aquela que ali existia entre todos" (Castiglione, 1997, p. 16, I, IV).
  • 11
    Como afirma Fumaroli, o termo
    conversatio não existia no vocabulário ciceroniano, e os termos que lhe seriam mais ou menos equivalentes são
    sermo e
    colloquium (cf. 1998, p. 289).
  • 12
    "L'interlocuteur du
    sermo cicéronien, tel qu'il apparaît dans ses dialogues, est l'orateur du Forum, mais dans son loisir. Il n'y renonce pas à son
    auctoritas, à ses vertus: la conversation de loisir cicéronienne est encore de la vie civique et active, continuée par d'autres moyens dans une retraite provisoire. La parole y est soumise aux mêmes règles de clarté, à la même méthode rhétorique qui consiste à chercher la sagesse (verité et bonheur) en prenant appui sur la
    doxa, sur les lieux communs qui sont le partage de tout les hommes, et d'abord de tout les Romains. La différence entre
    eloquentia et
    sermo, chez Cicéron, n'est pas de méthode, mais de condition d'exercice: ici, une vie active et publique, le rapport de l' orateur à un large auditoire qu'il lui fait conquérir; là, une vie contemplative et privée, l'
    otium, et le rapport de l' interlocuteur avec ses pairs qui sont ses amis et qui coopèrent volontiers à l' éclaircissement en commun, en style simple et naturel, des questions d'intérêt généralement humain".
  • 13
    "Eis o estado dessa grande máquina do mundo, a qual, para a saúde e conservação de toda coisa criada, foi produzida por Deus. O céu redondo, adornado com tantos lumes divinos, e no centro a terra circundada pelos elementos e sustentada por seu próprio peso; o sol, que girando ilumina tudo e, no inverno, se acerca do signo mais baixo, depois, pouco a pouco ascende do outro lado; a lua, que dele retira sua luz, conforme se aproxima ou se afasta; e as outras cinco estrelas que seguem o mesmo curso de maneiras diferentes. Estas coisas têm tanta força pela harmonia de uma ordem composta de maneira tão determinante que, se fossem mudadas num ponto, não poderiam ficar juntas e levariam o mundo à ruína; têm ainda tanta beleza e graça que as inteligências humanas não podem imaginar coisa mais linda. Pensai também na figura do homem, que pode ser considerado um pequeno mundo, no qual se vê cada parte do corpo ser composta necessariamente com arte e não ao acaso, e todo o conjunto resulta por fim belíssimo; a tal ponto que seria difícil julgar que utilidade ou graça possam dar ainda ao rosto e ao restante do corpo todos os membros, os olhos, o nariz, a boca, a orelha, os braços, o peito e as demais partes" (Castiglione, 1997, p. 323, IV, LVIII).
  • 14
    "Je pose en principe qu'il n'y a rien, dans aucun genre, de si beau qui ne soit inférieur en beauté à ce dont il n'est que le reflet, comme le portrait d'un visage, à ce que ni les yeux ni les oreille ni aucun sens ne peuvent percevoir, et que nous n'embrassons que par l'imagination et la pensée".
  • 15
    "Le 'va-et-vient des idées au monde naturel et du monde naturel aux idées'".
  • 16
    "Os oradores também tiveram sempre tanta diversidade entre si que toda época produziu e apreciou um tipo de oradores peculiar daquele período; os quais foram diferentes não só dos predecessores e sucessores, mas também entre si, como se garante foram Isócrates, Lísias, Ésquines e muitos outros entre os gregos, todos excelentes,
    mas similares cada um a si próprio. Entre os latinos, mais tarde, Carbone, Lélio, Cipião Africano, Galga, Sulpício, Cota, Graco, Marco Antônio, Crasso e tantos que seria demais nomear, todos bons e bem diferentes um do outro.
    De modo que aquele que pudesse considerar todos os oradores que existiram no mundo encontraria tantas maneiras de dizer quantos oradores houvesse" (Castiglione, 1997, p. 59, I, XXXVII, grifos meus).
  • 17
    "Todavia considero que cada coisa tem a sua perfeição, mesmo quando oculta, e que esta pode ser julgada com discursos razoáveis por quem dela souber. E porque, como disse, muitas vezes a verdade está escondida e não me vanglorio de ter tal conhecimento, não posso louvar senão aquele tipo de cortesão que mais aprecio e aprovar aquilo que me parece mais semelhante ao verdadeiro, segundo meu pouco juízo: o qual podereis adotar, caso vos pareça bom, ou permanecer com o vosso, se for diferente do meu. E nem insistirei em que o meu seja melhor que o vosso; pois não somente a vós pode parecer uma coisa e a mim outra, mas a mim próprio poderia parecer ora uma coisa, ora outra" (Castiglione, 1997, p. 27, I, XIII).
  • 18
    Como afirma Alain Pons: "Et il (le jeu) n'y parviendra que collectivement, dans l'exercice de son activité principale, la conversation, avec sa oralité suppose de spontanéité, de contact direct
    et même d'affron- tement entre des personnes et non simplement entre des idées" (1991, p. XVI, grifos meus).
  • 19
    Para Carlo Ossola, a regra do "contradizer" que rege o jogo de "modelar com palavras o perfeito cortesão" se conjuga como uma espécie de filosofia da história, com que Castiglione abre o livro II, definindo para
    o cortesão um tipo de existência paradoxal, fundado em opostos, mas por isso mesmo de acordo com a própria ordem do cosmos (cf. Ossola, 1997, p. 100). Segundo Castiglione, alguns "gostariam que no mundo houvesse todos os bens, sem nenhum mal, o que é impossível, pois, sendo o mal contrário ao bem e o bem ao mal, é quase necessário pela oposição e por um certo contrapeso que um sustente e fortifique o outro e, faltando ou aumentando um deles, falte ou cresça o outro, porque nenhum contrário existe sem o seu oposto" (Castiglione, 1997, p. 86, II, II).
  • 20
    "Já que desejais que o diga, falarei ainda de nossos vícios. Não vos dais conta que isso, que em dom Roberto chamais de displicência, não passa de afetação? Porque, se vê claramente, ele faz esforços para mostrar não pensar nisso, e isso já é pensar demais; e, como supera certos limites medianos, tal displicência é afetada e cai mal" (Castiglione, 1997, p. 43, I, XXVII).
  • 21
    "Il y a aussi une certaine négligence diligente. En effet, comme on dit de certaines femmes qu'elles sont sans apprêt, à qui cela va bien, ainsi ce style simple plaît même sans être 'peigné': on fait quelque chose dans les deux cas pour avoir plus grâce (
    qui sit venustius), mais sans que cela paraisse".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      25 Ago 2008
    • Recebido
      14 Maio 2007
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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