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O ornamento da massa: ensaios

RESENHAS

Luís Felipe Sobral

Mestrando em Antropologia Social - Unicamp e bolsista do CNPq

Siegfried Kracauer, O ornamento da massa: ensaios. Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo, Cosac Naify, 2009, 380 pp.

[...] e, além da aparência exterior, ele se distinguia também

dos demais viajantes por ser o único que não mirava apático

o vazio, mas se ocupava em traçar apontamentos e esboços que se relacionavam obviamente à sala onde ambos

estávamos sentados [...].

Sebald (2008)

Em 9 de junho de 1927, escreveu Siegfried Kracauer (1889-1966) em Die Frankfurter Zeitung: "O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície do que dos juízos da época sobre si mesma. Estes, enquanto expressão de tendências do tempo, não representam um testemunho conclusivo para a constituição conjunta da época. Aquelas, em razão de sua natureza inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo fundamental do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada sua interpretação. O conteúdo fundamental de uma época e os seus impulsos desprezados se iluminam reciprocamente" (p. 91).

Este fragmento serve de introdução ao ensaio homônimo ao título da presente coletânea; pode ser tomado como fio condutor de leitura desta: eis o que irei perseguir nesta resenha, pautando-me, para tan-to, em alguns leitores argutos de Kracauer.

Em 1921, abandonando a carreira de arquiteto, Kracauer passou a escrever para o Frankfurter Zeitung - prestigiado jornal da esquerda liberal burguesa -, no qual praticava o chamado feuilleton, gênero jornalístico oitocentista que, de fórum beletrista, transformou-se, em resposta às velozes mudanças sociais e culturais da modernidade, em um espaço para análises diagnósticas de fenômenos contemporâneos (cf. Levin, 1995, pp. 4-6). Ao longo de onze anos, Kracauer, de origem judaico-alemã, empreendeu a análise das diversas formas de cultura urbana - em Frankfurt, depois em Berlim - como testemunha e crítico da falência da República de Weimar (1919-1933) e da fatídica guinada à direita que resultou, para ele, na perda do emprego e no exílio parisiense - onde iria permanecer ainda até o início da guerra, momento em que emigrou definitivamente para os Estados Unidos, acompanhado da esposa (cf. Idem, pp. 6-8). O desejo de Kracauer em publicar um volume com seus ensaios do Frankfurter Zeitung remonta ao tempo em que ainda trabalhava no jornal; só foi satisfeito trinta anos depois, com uma coletânea em dois volumes editada pelo próprio autor (cf. Idem, pp. 10-13)1 1 . Das Ornament der Masse. Essays (1920-1931) e Strassen in Berlin und anderswo. Essays aus der Frankfurter Zeitung von 1925-1933, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1963 e 1964, respectivamente. .

O presente livro reúne 24 ensaios extraídos dos dois volumes, todos oriundos do período em que Kracauer escrevia para o Frankfurter Zeitung - apenas três deles não foram publicados pelo periódico. Tais peças compreendem a análise de um amplo con-junto de fenômenos da modernidade: a fotografia, os livros de sucesso, as obras de Kafka e Simmel, os estúdios cinematográficos nos arredores de Berlim, a viagem e a dança, as passagens - estas, objeto do livro que o amigo Walter Benjamin escrevia. Por meio de uma espécie de mergulho intelectual que não hesita em encarar o concreto, Kracauer faz uso da fragmentação característica da modernidade para acessar a realidade, como a entendia. No ensaio citado acima, por exemplo, a partir dos corpos das Tillergirls - companhia de revista britânica que fez turnê pela Europa -, de organização geométrica e movimento matemático, de forma que perdem seu caráter individual para dar lugar a uma massa ornamentada, assemelhando-se às fotografias aéreas de paisagens, ao que corresponde a ordenação regular da massa nas tribunas, o autor vislumbra o processo de racionalização do capitalismo: "O ornamento da massa é o reflexo estético da racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante" (p. 95). É assim que, na perspicaz capa dessa edição, reside a fotografia, tirada do alto, de um número musical - figura cuja forma, na devida distância dos olhos, aproxima-se de uma rosácea de catedral gótica.

A coletânea é precedida por um ensaio de Miriam Hansen2 2 . Tal prefácio foi publicado originalmente em 1991 em New German Critique, Ithaca, 54, pp. 47-76, outono - número totalmente dedicado a Kracauer e que consiste em excelente introdução à obra do autor. Ver também Gertrude Koch, Siegfried Kracauer: An Introduction, Princeton, Princeton University Press, 2000. , no qual mapeia o que chama de duplo desabrigo - isto é, o espaço entre a farsa do mundo burguês e a alteridade da cidade moderna -, tensão denominada "extraterritorialidade" por Kracauer, como sua autodefinição intelectual, em carta a Theodor Adorno de 8 de novembro de 1963, indica a prefaciadora. Tal formulação identitária, mostrou Martin Jay (1986), abarcava até mesmo sua aparência física heteróclita e era tanto a fonte como o limite da produtividade do autor. Se é necessário considerar um exílio stricto sensu - no percurso Alemanha-França-Estados Unidos -, deve-se levar em conta, na medida exata, esse olhar para o passado que constrói um exílio identitário já na terra natal, pois, mesmo que se trate de ilusão biográfica, no sentido de Pierre Bourdieu (1986), ainda assim possui uma positividade. Hansen, atinada com tais evidências do exílio, busca delinear, em particular, a relação de Kracauer com a cultura de massa: ao longo do processo em que é construída como objeto, "a partir das perspectivas cruzadas de uma filosofia da história e da crítica da ideologia" (p. 10), estabelece-se a articulação entre crítica objetiva e experiência pessoal - evidente na frequente mudança de voz, em um mesmo ensaio, da terceira para a primeira pessoa do plural. Kracauer, diz ela, vê a modernidade como o zênite histórico da perda crescente de sentido da vida e, ao longo dos anos de feuilleton, opera uma mudança de enfoque teórico: da metafísica ao concreto.

O raciocínio de Kracauer que justifica essa guinada da metafísica à realidade empírica, aponta Thomas Levin (1995) na introdução da edição norte-americana, advoga que a forma estética é particularmente conveniente para expressar a verdade de um período histórico alienado e torná-la legível. Algumas linhas depois, Levin explicita o método analítico de Kracauer: "De acordo com sua metodologia, a qual nos faz lembrar a articulação proléptica de Morelli da lógica da parapráxis de Freud, é a própria insignificância de tais artefatos cotidianos que os per-mite servir como índices seguros ou sintomas de condições históricas específicas" (Idem, p. 15; tradução minha, grifos do autor) - e, em seguida, cita o excerto programático que abre esta resenha. Levin refere-se a Giovanni Morelli, colecionador de arte italiano que, em fins do século XIX, propunha um novo método na identificação da autoria pictórica: em vez de privilegiar os traços célebres dos pintores, alvo evidente das falsificações, deveria se ater aos negligenciáveis e, portanto, mais característicos, porque menos conscientes - e, assim, menos evidentes a olhos não treinados. Como se sabe, foi Carlo Ginzburg quem identificou, no final do Oitocentos, a emergência desse saber de origem antiquíssima denominado indiciário, que aproxima os signos pictóricos de Morelli aos sintomas de Freud e às pistas de Sherlock Holmes sob a máxima detetivesca: "Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la" (Ginzburg, 2002, p. 177). Assim, é sintomático que, durante os anos de transição para o concreto, isto é, de 1922 a 1925, Kracauer tenha escolhido o romance policial como assunto de um "tratado filosófico" (cf. Levin, 1995, pp. 14-16), do qual o ensaio "O saguão de hotel", na presente coletânea, é um capítulo3 3 . Der Detektiv-Roman. Ein philosofischer Traktat, publicado em Schriften I, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1971. . Não é à toa, igualmente, que se falou da afinidade entre O ornamento da massa e Minima moralia (cf. Idem, p. 3; Jay, 1986, p. 162), uma das obras que Ginzburg (2002, p. 178) elenca como indiciária devido ao fato de delinear os sintomas de uma sociedade enferma. Do mesmo modo, também sublinham-se os comentários precisos, publicados no site da editora, de Márcio Seligmann-Silva e Francisco Alambert - que caracterizam Kracauer, respectivamente, como capaz de "escandir os elementos sociais insuspeitos e inconscientes a partir dos fenômenos aparentemente mais banais" e como "arqueólogo ou detetive da verdade escondida" - e de Leopoldo Waizbort, que fala "da realidade revelada pela cultura de massas". Em suma, localiza-se O ornamento da massa no rol das obras ditas indiciárias.

Sem embargo, é o próprio Ginzburg quem fornece a próxima pista, em um ensaio recente no qual investiga a relação que Kracauer estabelece entre um modelo cognoscitivo cinematográfico e a história. O ponto de partida de Ginzburg é o olhar retrospectivo de Kracauer na introdução de seu livro póstumo sobre a história (cf. Kracauer, [1969] 1995a, pp. 3-16), na qual vislumbra coerência em sua obra, dissertando sobre a continuidade involuntária entre esse último trabalho e o ensaio "A fotografia", de 1927, publicado nessa coletânea. Na parte final de seu texto, Ginzburg, a partir de uma analogia entre Flaubert e o fotógrafo - estabelecida por um leitor contemporâneo do escritor francês -, identifica temas semelhantes em A educação sentimental e no livro de Kracauer: em particular, o entrelaçamento de micro e macro-história e a rejeição da filosofia da história (cf. Ginzburg, 2007, p. 244). Ora, no momento de aproximar, quanto à "sucessão de sensações visuais e auditivas, ritmadas por frases breves, quebradas como fotogramas" (Idem, p. 246), um trecho da Histoire de France, de Michelet, a morte de Dussardier em A educação sentimental e Kracauer, o historiador italiano executa uma operação metonímica na qual um excerto do manual de direção cinematográfica de Vsevolod Pudovkin, citado em dois momentos por Kracauer (cf. [1960] 1997, p. 51; 1995a, p. 122), faz as vezes deste que, por seu turno, faz as de Flaubert. Em vez de transcrever Pudovkin aqui, adiciono mais uma camada a essa estrutura metonímica, citando um trecho muito flaubertiano do artigo de 1926 que abre esta coletânea, e no qual Kracauer segue com primor as instruções do cineasta russo, que, ao lado de Eisenstein, desenvolveu a teoria do contraponto audiovisual: "Um garoto mata um touro. A frase de uma gramática escolar é representada em uma elipse amarela, na qual o sol ferve. Olha-se para a oval a partir das tribunas e árvores, em que os nativos pendem como bananas azuis. O touro brame estúpido pela arena. Diante da praga delirante, o garoto está só" (p. 51).

De fato, o que permite a aproximação morfológica, via Ginzburg, entre Kracauer e Flaubert é a história: a despeito de se localizar em dois momentos distintos da modernidade, compartilham o interesse por um modelo cognoscitivo pautado na fragmentação da experiência urbana. Entre os dois, contudo, há o cinema, que sedimenta esse modelo e corresponde a vivências sociais particulares. Em "Culto da distração", publicado no Frankfurter Zeitung em 4 de março de 1926, Kracauer descreve a opulência palaciana dos cineteatros berlinenses, onde o espetáculo não se limita ao filme, mas compreende a totalidade da experiência, como "um caleidoscópio ótico e acústico" (p. 344). Se, nessa cultura da distração, de um lado, os sentidos das massas são excitados a ponto de impedir a reflexão, de outro, o espetáculo é incapaz de se furtar a indicar a desordem da sociedade, pois é parte intrínseca desta; tal tensão estrutural se alimenta da urgência de mudança: "Frequentemente pelas ruas de Berlim se é surpreendido pela ideia de que tudo venha um dia, improvisadamente, rachar no meio" (p. 347). Depara-se, mais uma vez - a partir de um indício extraído da vivência urbana -, com a relação entre uma forma cognoscitiva e uma visão da história destituída de um princípio geral que a organizaria.

É certo que, tão somente em sua articulação dos fenômenos modernos nos termos amplos de uma cultura visual, este livro justifica seu lugar na coleção em curso. No entanto, uma vez que se tenha em vista a tese do volume que inaugura esta coleção - ou seja, de que "a modernidade pode ser melhor compreendida como inerentemente cinematográfica" (Charney e Schwartz, 2004, p. 18) -, vê-se, enfim, o esboço de uma dupla convergência: os dois livros compartilham argumentos afins e a mesma série editorial.

Assim, por sua interpretação do mundo a partir da superfície, na descrição benfeita dos detalhes por vezes os mais medíocres, em suma, por sua atenção perspicaz para o concreto, O ornamento da massa exige, portanto, que se afirme que Kracauer ia ao cinema, lia Kafka e os livros de sucesso, assistia à apresentação das Tillergirls, ia à tourada e à dança, e assim por diante - e tudo isso presume, necessariamente, a vivência urbana que lhe deu ensejo.

Notas

  • BOURDIEU, Pierre. (1986), "L'illusion biographique". Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 62-63, pp. 69-72, jun. Paris.
  • CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (2004), "Introdução". In: _____ (orgs.), O cinema e a invenção da vida moderna São Paulo, Cosac Naify, pp. 17-29.
  • GINZBURG, Carlo. (2002), "Sinais: raízes de um paradigma indiciário". In: _____, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história São Paulo, Companhia das Letras, pp. 143-179.
  • _______. (2007), "Detalhes, primeiros planos, microanálise: à margem de um livro de Siegfried Kracauer". In: _____, O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício São Paulo, Companhia das Letras, pp. 231-248.
  • JAY, Martin. (1986), "The extraterritorial life of Siegfried Kracauer". In: _____, Permanent exiles. Essays on the intellectual migration from Germany to America Nova York, Columbia University Press, pp. 152-197.
  • KRACAUER, Siegfried. (1995a), History: the last things before the last 1Ş edição 1969. Princeton, Markus Wiener Publishers.
  • _______. (1995b), The mass ornament: Weimar essays Cambridge, Harvard University Press.
  • _______. (1997), Theory of film: the redemption of physical reality 1Ş edição 1960. Princeton, Princeton University Press.
  • LEVIN, Thomas Y. (1995), "Introduction". In: KRACAUER, S. The mass ornament: Weimar essays Cambridge, Harvard University Press, pp. 1-30.
  • SEBALD, W. G. (2008), Austerlitz São Paulo, Companhia das Letras.
  • 1
    .
    Das Ornament der Masse. Essays (1920-1931) e
    Strassen in Berlin und anderswo. Essays aus der Frankfurter Zeitung von 1925-1933, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1963 e 1964, respectivamente.
  • 2
    . Tal prefácio foi publicado originalmente em 1991 em
    New German Critique, Ithaca, 54, pp. 47-76, outono - número totalmente dedicado a Kracauer e que consiste em excelente introdução à obra do autor. Ver também Gertrude Koch,
    Siegfried Kracauer: An Introduction, Princeton, Princeton University Press, 2000.
  • 3
    .
    Der Detektiv-Roman. Ein philosofischer Traktat, publicado em
    Schriften I, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1971.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      2009
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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