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RESENHAS

John D. French

Professor do Departamento de História em Duke University

Tradução de Alexandre Fortes

Antonio Luigi Negro, Linhas de montagem: o industrialismo nacional-desenvolvimentista e a sindicalização dos trabalhadores. São Paulo, Boitempo, 2004, 332 pp.

O impressionante livro de Antonio Luigi Negro propõe-se a um objetivo limitado, mas ao mesmo tempo ambicioso: usar "uma abordagem micro-histórica e social" para examinar "a experiência do povo brasileiro na construção de uma nação industrial" através dos "temas clássicos dos estudos sobre trabalho (política, economia, instituições, classe social, greves)" (pp. 17 e 19). As emergentes indústrias automobilísticas da grande São Paulo oferecem, como Negro sugere, um locus privilegiado para examinar como os trabalhadores formaram a si mesmos como uma classe social, um processo que é abordado por meio do estudo da sindicalização da força de trabalho "sem desconsiderar sua diversificação, complexidade e turbulência" (pp. 303-304). Os inumeráveis episódios compilados lidam com o papel dos trabalhadores numa luta desigual com os empregadores e o Estado durante a República populista e os quatro primeiros anos da subsequente ditadura militar.

De fato, Linhas de montagem vai bem além desse objetivo limitado, ao produzir uma reflexão altamente provocativa sobre as raízes históricas do "Novo Sindicalismo" que emergiu no interior dos sindicatos de metalúrgicos do ABC no final dos anos de 1970, com atenção específica para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, dirigido, de 1975 a 1980, por Luis Inácio Lula da Silva. Em 1978, a primeira de três greves anuais sucessivas dos trabalhadores das indústrias automobilísticas do ABC marcou, como afirma Negro, a "recondução do sindicalismo de ideologia anticapitalista de volta ao sistema político brasileiro" (p. 16). Ela produziu, simultaneamente, uma guinada dos intelectuais rumo à classe trabalhadora; em resultado, os 200 mil metalúrgicos do ABC se tornaram o grupo de trabalhadores mais estudado da história mundial. Até 2005, já haviam sido publicados 160 trabalhos tendo como tema uma única década de lutas dos metalúrgicos do ABC: trinta teses e livros, sessenta artigos acadêmicos e 29 entrevistas publicadas (algumas do tamanho de um livro), sem mencionar cerca de duas mil matérias em jornais e revistas e uma grande quantidade de panfletos e brochuras produzidas por organizações de esquerda e sindicais. Além dessas mídias padronizadas, quatro romances e peças teatrais, nove filmes e cinco livros de fotografia foram produzidos, assim como incontáveis horas de gravações de TV dessas greves mundialmente famosas.

Ainda assim, levariam quase duas décadas para que os primeiros historiadores se juntassem às fileiras dos estudiosos do final dos anos de 1970 em São Bernardo do Campo (Paranhos, 1999) - a tardia chegada dos historiadores brasileiros ao estudo do trabalho é discutida em French e Fortes (1998). Sendo apenas a segunda monografia histórica sobre o assunto, Linhas de montagem leva-nos de volta à préhistória dos trabalhadores do ABC, numa narrativa contextualizada no interior do padrão de longo prazo de cooperação indústria-governo que caracterizou tanto o nacional-desenvolvimentismo da República Populista como o desenvolvimentismo autoritário do regime militar. Com 731 notas de rodapé, o livro é baseado em profunda pesquisa em fontes policiais, empresariais, governamentais e sindicais, tanto no Brasil como nos Estados Unidos. O foco primário de análise é o desenvolvimento da indústria montadora automobilística e do setor de autopeças em São Bernardo do Campo (especialmente a Willys Overland, depois Ford), mas também em Santo André e São Caetano - os dois municípios mais antigos do ABC em termos industriais (haja vista a chegada da General Motors de São Caetano nos anos de 1930). Em menor extensão, também são enfocadas as plantas do município de São Paulo (por exemplo, Vemag e Ford), todas elas situadas em um contexto comparativo nacional. Para ilustrar dinâmicas-chave, o livro também utiliza livremente dados de fábricas de fora do setor automobilístico, assim como de um amplo espectro de fábricas não-metalúrgicas do ABC. Embora em parte esse seja um dos seus pontos fortes, essa amplitude geográfica e setorial provavelmente produzirá um efeito caleidoscópico entre os leitores menos familiarizados com a história industrial e trabalhista de São Paulo (um mapa teria sido bem-vindo).

Cronologicamente, Linhas de montagem começa em 1945, no final de uma ditadura, e os primeiros quatro capítulos exploram a agitação trabalhista durante a ordem eleitoral, mais aberta, apesar de profundamente problemática, da era populista que veio a acabar em 1964. Esses capítulos são marcados pela impressionante pesquisa levada a cabo nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e focalizam o período intensamente repressivo que se seguiu ao ataque contra a esquerda e o movimento operário a partir da irrupção da Guerra Fria em 1947 (a ascensão precedente do movimento operário e do Partido Comunista no ABC foi explorada por French, 1992; e Costa, 1996). Os relatórios sobre comunistas e sindicalistas produzidos pela polícia e por seus informantes - incluindo o tesoureiro comunista do maior sindicato de metalúrgicos do ABC entre 1956 e 1962, uma descoberta do autor (pp. 64-67) - fornecem uma consistência narrativa ímpar, à medida que o clima político se altera, após 1955, rumo a uma maior abertura para o movimento operário.

O segundo capítulo oferece um exame detalhado da "greve dos 400 mil" em 1957, em São Paulo e no ABC, enquanto nos dois capítulos seguintes o foco se desloca para a acelerada expansão da indústria automobilística em São Bernardo do Campo. Negro mostra como os sindicatos existentes em Santo André - liderados pelos comunistas e seus aliados - colonizaram as novas plantas automobilísticas, fazendo brotar em 1960 um novo sindicato nesse sonolento município vizinho são-bernardense de 65 mil habitantes. A atmosfera geral de fermento reformista e instabilidade política que se seguiu fez crescerem as oportunidades para o movimento operário e a esquerda. Negro proporciona, por exemplo, uma das primeiras discussões detalhadas das greves conduzidas para pressionar o Congresso a sancionar o projeto de lei do abono de Natal, formalmente conhecido como 13º Salário, que foi aprovado em julho de 1962 e ainda está em vigor.

Voltando a olhar para 1957, Linhas de Montagem demonstra convincentemente que um movimento operário crescentemente visível tinha se tornado mais difícil de controlar. A formação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), em 1963, foi um marco, já que o CGT não tinha prerrogativas legais e estava fora do sistema sindical oficial. "A marcha adiante do trabalhismo polarizava a ambiguidade do sindicalismo brasileiro", ele escreve, enquanto um movimento operário ainda mais representativo insistia cada vez mais na sua independência (pp. 217-218). Essa evolução dos acontecimentos na esteira da Revolução Cubana foi percebida como ameaçadora pelas companhias industriais domésticas e estrangeiras que atuavam no país, pelas "classes conservadoras", pelo establishment político e pelo governo dos Estados Unidos, e todos eles deram as boas-vindas à derrubada militar do presidente democraticamente eleito João "Jango" Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Os capítulos 5 a 8 cruzam a fronteira artificial de 1964, fazendo amplo uso de fontes diplomáticas e consulares norte-americanas, especialmente as produzidas pelos adidos trabalhistas (labor attachés), que providenciam um rico relato de bastidores das emergentes políticas econômica e trabalhista do novo regime entre 1964 e 1968, um período decisivo frequentemente passado por alto pela literatura existente. Os esforços do governo dos Estados Unidos e da central sindical norte-americana AFL-CIO para desenvolver um sindicalismo "apolítico" no Brasil são detalhados, embora o regime se comprometesse apenas da boca para fora com a negociação coletiva no "estilo norte-americano" (pp. 208, 258, 298-299). Enquanto isso, mesmo muitos trabalhadores treinados por instituições norte-americanas acabariam se juntando à oposição ao regime ao longo de 1968. Nos capítulos 6 e 8, Negro traça a evolução da política interna dos sindicatos e a emergência de uma nova corrente no interior do sindicato de São Bernardo do Campo, cujo mais influente líder, Paulo Vidal (1969-1975), trouxe para a presidência da entidade um homem cuja trajetória subsequente transformaria a política brasileira no quarto de século seguinte.

O ápice analítico do livro localiza-se nos capítulos 7 e 8, que exploram a retomada da militância operária e das greves em 1968 por toda a grande São Paulo, incluindo os subúrbios industriais como o ABC e Osasco (local de uma ocupação de fábrica liderada por um grupo jovem e explicitamente revolucionário de líderes sindicais). A greve de Osasco ocorreu no auge do radicalismo estudantil mundial e atraiu vasta atenção contemporânea, ao contrário da paralisação que ocorreu no ABC. Esse retorno à atividade grevista levou muitos, incluindo o cônsul norte-americano em São Paulo, a concluir que os trabalhadores pareciam acreditar "na necessidade de auto-organização, em vez de ficarem dependendo de líderes políticos e sindicais para lutar pelos seus direitos" (pp. 283-284). A repressão a todas as for-mas de luta social de oposição que se seguiu esmagou as esperanças exageradas de que trabalhadores e estudantes poderiam derrubar a ditadura, um resultado desencorajador que tornou as greves dez anos depois em São Bernardo ainda mais inesperadas e impressionantes.

Produto de quinze anos de pesquisa, a originalidade do livro emerge mais claramente para aqueles familiarizados com a historiografia existente. Assim, muitos leitores podem achar difícil compreender o sentido dos debates travados por Negro num texto que trata de eventos com os quais eles provavelmente não estão familiarizados. Isso se acentua devido a uma preferência por formas indiretas de argumentação cumulativa, pela tendência ao pontilhismo (chegando a dez ou mesmo dezoito subseções num capítulo, apenas vagamente ligadas entre si) e pelo tratamento de alguns eventos e assuntos fora da ordem cronológica. Quando o livro termina, o leitor não encontra uma conclusão, mas um capítulo sui generis de doze páginas intitulado "Opinião". Indo bem além do conteúdo do livro, esse miniensaio de seis partes oferece a visão sintética da análise geral de Negro sobre todo o período de 1945 a 1980. Embora ele seja um pouco desconcertante, os especialistas provavelmente retornarão a esse texto daqui a alguns anos, por suas agudas e provocativas formulações, afora suas estimulantes sugestões em relação aos caminhos da nossa pesquisa acadêmica.

Colocando o ativismo de fábrica no centro

Para apreciar plenamente a contribuição de Negro, devemos enfatizar o que o livro faz e o que ele não faz. Ao contrário de muitos estudos anteriores sobre a história do trabalho no Brasil, Linhas de montagem não enfoca o Estado ou seu papel legal e político na estruturação dos sindicatos atrelados ao governo e por ele financiados, que são organizados por base geográfica, um para cada categoria econômica, com direitos legais exclusivos de representação (unicidade). A presença sindical dentro das fábricas é barrada ao passo que o conflito é canalizado em direção à negociação indireta via Justiça do Trabalho que também lida com disputas individuais (French, 2004). Linhas de Montagem tampouco é um estudo do sindicato como uma instituição social, econômica ou política; o livro se interessa apenas secundariamente pelo seu funcionamento burocrático, condução das negociações ou fornecimento de serviços legais e de bem-estar social (assistencialismo). Por fim, as longas disputas sobre o papel dos partidos reformistas ou revolucionários na República populista ou no período imediatamente posterior, não estão no coração desse requintado livro. Embora esclareça cristalinamente equívocos politicamente motivados, Negro não premia ou deprecia correntes políticas esquerdistas rivais, como acontecia frequentemente com boa parte da produção acadêmica e das análises políticas anteriores. O que lhe interessa são as ações daqueles trabalhadores que vieram a dar seu apoio ou a se aliar a tais grupos anticapitalistas, não obstante não ignore os trabalhadores que não possuíam essas simpatias; um grupo, aliás, que se provaria vital à trajetória dos metalúrgicos de São Bernardo no pós-1964.

De ponta a ponta, Linhas de montagem proporciona ao leitor um claro senso da atuação dos ativistas operários dentro das fábricas, nas ruas e nos sindicatos. Para essa finalidade, o livro percorre um amplo arco de práticas por meio das quais os militantes buscam construir a força da classe trabalhadora a partir de baixo, por meio da organização no local de trabalho (incluindo publicações clandestinas), assim como de paralisações e greves (greves com piquetes versus vários tipos de greves no interior da fábrica são discutidas em detalhes). A abundância de evidências corrobora sua pretensão de ter descoberto "facetas desconhecidas" do ativismo no local de trabalho, marcadas pela "criatividade, união e diferenças operárias no local de trabalho" (p. 44), muito antes de eles terem sido "descobertos no ABC nos anos 1970" (Frederico, 1979). Então, que visão geral Negro deriva do seu foco na militância no local de trabalho e no sindicato à medida que ela evolui no decorrer de um quarto de século nos distritos industriais da grande São Paulo?

Em primeiro lugar, o foco irredutível do autor na "máquina estatal de produzir medo e consenso" (p. 312) força o leitor a relativizar o contraste entre "democracia" e "ditadura", ao menos no que concerne à esquerda. De fato, esse estudo proporciona chocantes evidências de que mesmo nas mais democráticas conjunturas pré-1964, o governo desempenhou um papel esmagadoramente repressivo como parte integral de uma estreita aliança empresarialpolicial destinada a "asfixiar o sindicalismo de fábrica", um fenômeno que nunca foi diferenciado da dissidência política (mais conhecida como subversão) (p. 214). Como Negro anota secamente, nem o populismo nem a autoridade dos empregadores sobrevive somente à base de discursos, "favores [e] tapinhas nas costas. Era preciso delatores, agentes secretos, capatazes e vigias," assim como cassetetes e cargas de cavalaria nas ruas (p. 44).

Uma segunda contribuição é a derrubada, de uma vez por todas, de visões estabelecidas sobre a persistência e a importância da organização em nível fabril antes de 1970 (p. 207). Como Negro comenta, "dirigentes empresariais, políticos e trabalhistas negaram ou menosprezaram a existência da ação reivindicativa independente dentro das fábricas. Caso existisse, alegavam, era quantitativamente desprezível, politicamente manipulada e incapaz de se impor aos patrões, porque os trabalhadores simplesmente não se interessavam pelo assunto" (p. 292). Essa minimização da militância dos trabalhadores serviu para reafirmar um velho discurso brasileiro que apresentava o povo comum como unicamente pacífico e cordial, inocentes ingênuos, "indefesos ou inconscientes", prontos a serem manipulados pela "demagogia populista" ou pela "politização do PCB" (p. 158).

De fato, o falso quadro traçado pela academia sobre o movimento operário na República Populista deriva muito mais centralmente da polêmica e da disputa internas da esquerda nos anos de 1970 e 1980 (Weffort, 1971, 1973; Negro, p. 311). Após o desapontamento de 1964, o Partido Comunista, que tinha sido hegemônico na esquerda, foi denunciado como acomodacionista, enquanto o movimento operário pré-1964 era rotulado como uma forma de "populismo sindical" de baixo para cima (Negro, pp. 226-227; French, 1992). Embora motivados por diferentes objetivos políticos, tanto os esquemas interpretativos da esquerda como os da direita conservadora ajudaram a forjar um aparentemente coerente "consenso corporativista" (French, 1992) que apenas foi abandonado definitivamente por pesquisadores a partir dos anos de 1990 (ver McCreery, 2008 para uma excelente visão panorâmica de tendências baseada em seis monografias brasileiras de história do trabalho publicadas em 2003-2004).

Sua pesquisa em arquivos policiais permite a Negro nos levar para além dos portões das fábricas, enquanto a ação dos grevistas desfere outro golpe contra as imagens de trabalhadores submissos e pacatos. Como ele comenta sobre 1957, "os trabalhadores estavam mobilizados, atentos e insatisfeitos" e dezenas de milhares, tendo "deliberado sobre suas próprias ações," optaram por participar ativamente da "Greve dos 400 mil" para expressar seu "descontentamento com a inflação e com líderes que não encaminhavam suas queixas direito" (p. 212). Quanto ao movimento operário, ele encontra "um sindicalismo trabalhista profundamente influenciado pelo PCB, ou pela aliança PCB-PTB. Havia energia, vontade, identidade, sutileza e estratégias - a partir dos locais de trabalho. Pudemos assim deixar de lado a teoria do sindicalismo populista" (p. 305).

A ênfase na mobilização de base, não é, de fato, nova na literatura sobre os trabalhadores de São Paulo (Wolfe, 1993). O que Negro oferece, entretanto, em uma terceira contribuição significativa, é um julgamento mais equilibrado quando comparado ao comentário esquerdista politicamente motivado que foi transformado em mito (French, 1995). Ele critica, por exemplo, aqueles que contrapuseram um "sindicato burocratizado sem representatividade" a uma "base operária" idealizada mas "autoativada " (p. 27), frequentemente vista como distante e mesmo hostil aos sindicatos controlados pelo Estado, bem como ao Partido Comunista (Wolfe, 1993, que não teve acesso aos arquivos do Dops, é criticado a esse respeito por Negro, pp. 25-26). Além disso, sua ideia de que havia mais de um Partido Comunista não se baseia em estereótipos simplistas que jogam a (má) liderança partidária contra seus (bons) seguidores e militantes sindicais de base (pp. 72-74).

Não é que o autor deixe de reconhecer "ambiguidades, contradições e ziguezagues do PCB defronte ao ativismo operário, "mas, antes, ele os reconhece como tensões inerentes ao relacionamento entre partidos políticos e movimentos sociais. Sua origem pode ser encontrada, ele escreve, "na fricção do apego do núcleo dirigente à sua própria imagem de único ator capaz de entender e modificar o capitalismo com a proposta do mesmo PCB de ser expressão - institucional e social - da experiência das classes subalternas" (pp. 72-73). Ao abordar essa questão empiricamente, ele encontra um contraste mas não necessariamente o antagonismo sugerido por aqueles que postulam "um PCB das bases (democrático) e um PCB da cúpula (maquiavélico)" (p. 73).

Enquanto descreve de forma dramática a força dos seus inimigos, o livro demonstra a persistência teimosa, a coragem e a astúcia dos militantes operários à medida em que buscam, com limitado - o que apenas pode parecer surpreendente - sucesso, lutar contras os empregadores, as diversas agências policiais, o aparato trabalhista estatal e sua própria fraqueza e imaturidade. É aqui que Negro faz a sua quarta contribuição, ao reabrir o velho debate sobre o impacto da migração rural. As pesquisas pioneiras sobre metalúrgicos - incluindo um survey, de 1963, da fábrica de São Bernardo da Willys-Overland (Rodrigues, 1970) - sugeriram que tais trabalhadores tinham, na melhor das hipóteses, uma capacidade limitada de ação coletiva (p. 13). Esses relatos sociológicos estabeleciam uma ligação causal entre a suposta fraqueza do sindicalismo e a migração rural, a mobilidade social ascendente e, no melhor dos casos, a difusa consciência social dos trabalhadores. Análises subsequentes criticaram e desaprovaram essas explicações estruturalistas (French, 1992), mas deixaram de lado a questão sobre o papel que a origem rural realmente desempenhou na emergência desse novo proletariado fabril (a questão reemergiu apenas recentemente na agenda acadêmica - ver Fontes, 2008).

Examinando o desenvolvimento processualmente, Negro destaca que a indústria automobilística era de fato "um espaço novo para a imensa maioria dos que nela viviam, fossem operários ou não. Redefiniu tradições, modos de vida, práticas e valores, e identidades, mas nunca", ele insiste, "fez dos trabalhadores uma coisa" (p. 157). Ainda assim, ele dá a essa afirmação um novo sentido com a hipótese, baseada na propaganda institucional das empresas e em perfis e entrevistas de trabalhadores, de que o significado do trabalho fabril nas novas unidades automotivas era diferente por causa do impulso nacionalista do final dos anos 1950, os "cinquenta anos de desenvolvimento em cinco" sob a presidência de Juscelino Kubitschek. Os industriais, ele afirma, iam além do simples desejo de controlar os trabalhadores, ao exaltarem, numa sociedade profundamente hierárquica, "tanto o trabalho braçal quanto a trajetória de vida dos seus empregados", de origem esmagadoramente rural, "deitando elogios sobre sua vontade de aprender, versatilidade e disposição para trabalhar 'no duro'" para o bem da nação. Essa retórica empresarial, ele sugere, foi "apropriada pelos operários não-qualificados que acabaram se vendo como dignos"; eles não eram, apesar de tudo, "os empregados de uma fabriqueta. Eram "peões" de poderosas empresas dispostas a industrializar o país... "Quando esse 'patriotismo de fábrica' foi revestido de tons sindicais", como ocorreria em 1968 e novamente na década seguinte, a invocação da dignidade pelo sindicato - e sua defesa contra empregadores indignos de confiança e um governo desonesto - demonstrou ser uma ferramenta poderosa para impulsionar a mobilização dos trabalhadores (Negro, pp. 309-310; Abramo, 2000).

A quinta contribuição de Linhas de montagem é estabelecer as continuidades e as descontinuidades entre sucessivas gerações de ativistas nas fábricas e dentro dos sindicatos em uma São Paulo marcada pela industrialização acelerada. Essa parte da história começa com a oposição no interior dos sindicatos do ABC antes de 1964 (os assim chamados "democráticos"), que era liderada pelo bispo reformista Dom Jorge Marcos de Oliveira e por trabalhadores maria-nos ativos nas paróquias locais. Esses esforços anticomunistas eram conectados - embora de forma remota e indireta - aos objetivos da cúpula de líderes políticos, sindicais e empresariais que, assim como os Estados Unidos, se opunham ao presidente Goulart, considerado mais tolerante com os comunistas que seus fortes antecessores (p. 190). Após o golpe de 1964 ter banido os líderes do PCB e do PTB, essas oposições foram catapultadas para dentro das sedes sindicais, mas suas ações acabaram moldadas por fatores além do seu controle: uma recessão induzida pelo governo em 1965-1967 cortou empregos no ramo automobilístico e acelerou a consolidação industrial, enquanto uma série de medidas antioperárias minava os direitos adquiridos pelos trabalhadores, incluindo-se aí a estabilidade no emprego.

O antissindicalismo "atávico" dos empregadores e do novo regime combinava com sua "aversão às demandas reivindicativas" dos trabalhadores (pp. 298299). Mais importante ainda, a determinação dos reajustes salariais foi colocada nas mãos dos planejadores econômicos do governo que os estabeleciam abaixo das taxas de inflação durante o então reinante "milagre econômico brasileiro" (1968-1974); assim proporcionando a reivindicação central destacada por Lula já no início da sua presidência sindical (pp. 258-159, 309).

É pouco surpreendente que, em 1968, os trabalhadores - segregados do sistema político, tendo seus direitos atacados e recebendo salários baixos - não tenham aderido "a um sindicalismo favorável à empresa privada [...]. A questão em aberto era antecipar como os trabalhadores finalmente reagiriam quando pudessem" (p. 258). Dado "o acúmulo dos ressentimentos e frustrações", em 1968, o cônsul norte-americano em São Paulo estava convencido de que o governo militar tinha inadvertidamente criado as condições para o crescimento da esquerda (pp. 259, 291). Mas não seria um simples retorno dos comunistas ao poder, cuja influência tinha declinado após 1964 devido às agudas divisões internas tanto quanto, se não mais do que, pela perseguição (pp. 226227). Com seus ativistas dispersos, enfraquecido e desacreditado, o PCB perdia sua centralidade como o grande grupo esquerdista no interior do movimento operário, que era agora, no pós-64, caracterizado por uma confusa disputa de forças opostas.

Os oponentes do pré-1964 do PCB, os democráticos, como Negro os chama, experimentariam eles próprios complexas mutações. Alguns se congelaram como um grupo fechado - marcado por uma postura acomodada - e decisivamente perderam influência (p. 305). Esse não foi o caminho, contudo, de todos aqueles que defenderam uma forma ordeira e disciplinada de sindicalismo contra o que viam como os excessos politizados e a irresponsabilidade dos sindicatos liderados pelo PCB no pré-1964. Essa nova geração de ativistas não-vinculados ao PCB também estava familiarizada com a retórica de estilo norte-americano sobre o sindicalismo "verdadeiro" ou "autêntico", que lhe proporcionava alguma cobertura num ambiente hostil. Na sua sexta e pioneira contribuição, Negro nos ajuda a compreender as complexidades no interior do grupo que ele chama de "sindicalistas autênticos".

A chapa eleitoral que emergiu do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema após 1964 combinara alguns membros da geração pré-1964, especialmente os que não tinham ocupado cargos, com um grupo corajoso e crescentemente radicalizado de "igrejeiros" (o nome semidepreciativo para o pessoal ligado à Igreja) que incluía o bispo de Santo André. Esses últimos ativistas tornaram-se cada vez mais ligados aos novos partidos revolucionários fundados pelos estudantes e intelectuais, especialmente a Ação Popular (AP), que foi criada por estudantes católicos em 1962 e tinha transitado para o maoísmo em 1968 (as dinâmicas desse desenvolvimento local não são exploradas aqui). Ao longo dos dez anos seguintes, as forças dessa nova esquerda não vinculada ao PCB vieram a se agrupar numa organização semiformal, mais famosa em São Paulo, onde era conhecida como Oposição Sindical Metalúrgica, cujo discurso - se não a prática real (p. 227) - tendia a repudiar completamente a estrutura sindical oficial, incluindo, para alguns, a validade de participar dessa estrutura.

Para Negro, as paralisações que ocorreram nas fábricas automobilísticas do ABC em 1968 representaram um momento no qual se podem detectar antecipações dos dramáticos eventos que se seguiram no final dos anos de 1970. As novas oposições às lideranças sindicais existentes envolveram um "misto ebuliente" formado pela "volta e reciclagem da antiga militância, surgimento de novos ativistas, hostilidade governamental, descrédito oficial e desgaste dos dirigentes sindicais" no poder (p. 299). "Agredido e mal representado, o operariado estava se identificando com as oposições", caracterizadas por uma "marcante tendência de abraçar os problemas com suas próprias mãos sem consultar os sindicatos" (p. 298). No seu descontentamento, ele pare-cia cada vez mais aberto a "soluções inovadoras, radicais e autogeridas e o proscrito CGT fornecia uma nostálgica referência ou o anti-herói" aos seus líderes (pp. 299-300). Nas palavras do cônsul norte-americano, os trabalhadores estavam se movendo para a oposição "com ou sem os seus atuais líderes... [que são] vistos como presas de um sistema que não lhes permite desempenhar nenhuma atribuição sindical básica" (p. 299).

O ano de 1968 e seus desdobramentos foram marcados por uma complexidade final: os anticomunistas democráticos da era populista tinham se transmutado em mais do que um grupo corajoso e vociferante de oposição sindical ligado - mas não limitado - à Igreja e aos partidos de esquerda clandestinos não-vinculados ao PCB. Havia também um segundo grupo mais bem representado pelo sindicato de São Bernardo do Campo. Como presidente de 1969 a 1975, Paulo Vidal e seu grupo compartilharam com os grupos leninistas anti-PCB um desejo de não "repetir o sindicalismo do CGT", ao passo que rejeitavam os vendidos do anticomunista Movimento Sindical Democrático (MSD) do pré1964, que agora estavam desacreditados (pp. 305; 236-237). Paulo Vidal e seus sequazes faziam o discurso do "verdadeiro e moderno" sindicalismo, enquanto cautelosa, mas, claramente, se opunham ao regime e mantinham-se à distância do radicalismo ameaçador dos seus oponentes sindicais à esquerda (seja do PCB, como o irmão de Lula, ou a Oposição Sindical local) (pp. 262 e 267). Nessa caracterização da administração de Vidal, Negro sugere que a meta teórica era construir uma instituição sindical poderosa que, embora contivesse as forças da esquerda, poderia um dia confrontar os empregadores e, assim, conquistar ganhos para os seus membros, algo nunca esboçado nem alcançado até a presidência do sucessor de Vidal, Lula.

É aqui que chegamos à contribuição final e mais profunda de Negro, embora facilmente possa se perder isso de vista no texto. Linhas de Montagem argumenta que a busca tenaz desse objetivo levaria inevitavelmente esse grupo de autênticos a se confrontar com "dilemas, impasses e desafios não muito diversos daqueles sofridos, anteriormente, pelos sindicalistas cassados e perseguidos em 1964, e em 1947" (p. 268). Enquanto os empregadores e a política trabalharam sistematicamente para manter os sindicalistas fora da fábrica, sucessivos grupos de sindicalistas honestos e militantes operários - a despeito das diferenças de geração, ideologia ou filosofia sindical - extraíram conclusões similares do seu encontro com o profundamente defeituoso sistema de relações industriais controlado pelo governo: que, para avançar, eles teriam de enfrentar os empregadores, a polícia e o governo e que eles apenas poderiam fazer isso se tivessem estabelecido profundas raízes dentro das fábricas e entre a massa esmagadora de trabalhadores.

Na sua ruptura mais radical com as visões ortodoxas, Negro correta e convincentemente argumenta que existe uma similaridade fundamental de estratégia entre a esquerda PCB-PTB do pré-1964 e a esquerda que emergiu sob destacada liderança do jovem Lula, este um dedicado participante da estrutura sindical oficial. De fato, a discussão de Negro sobre o pensamento da geração de ativistas e sindicalistas pré-1964 captura a lógica subjacente às ações de Lula após 1975. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, que criou a "chamada estrutura sindical oficial" baseada na geografia, negava "o direito da representação sindical no local de trabalho se o sindicato queria fazer sentido para as bases, era preciso colonizar a institucionalidade a partir da energia extraída com a sindicalização das fábricas, dando fluência aos conflitos e às tensões negados pelo corporativismo da CLT". Esse haveria de ser o "eixo privilegiado de transformação do sindicalismo brasileiro" (p. 306), e isso foi precisamente o que ocorreu - numa vasta escala em âmbito nacional nos anos de 1980 - sob a bandeira do "Novo Sindicalismo" identificado com Lula e São Bernardo (mesmo se a sua visão sobre o passado do movimento operário é completamente equivocada por razões compreensíveis do ponto de vista da disputa política - pp. 300, 311).

Diferentes gerações de dedicados e honestos ativistas e líderes sindicais sempre tiveram consciência de que, mesmo nos momentos mais amigáveis da era populista, eles nunca exerceriam influência "se não tivessem respaldo". Eles sabiam que não era suficiente desfrutar da unicidade e do imposto sindical. Era necessário abrir o seu próprio caminho. "Sem este, as condições para sua ação institucional" sempre seriam ditadas pelos partidos mais poderosos, "aqueles que escreviam as leis e mandavam na polícia. Melhor se munir do viço da base social" (p. 314). O objetivo era libertar as relações de trabalho do entulho autori tário que dava origem às lideranças burocratizadas e reboquistas (p. 216). Lula e os autênticos deram-se conta de que "não havia como fazer um genuíno movimento sindical sem arrancar aos patrões o reconhecimento de sua presença como algo indispensável... Só sairiam, contudo, da posição marginal em que se encontravam se, junto consigo, os trabalhadores se levantassem de suas margens" (p. 275).

"O movimento de massas era o grande fator de mudança, dado ser o grande manancial de energia transformadora, recursos humanos e organizativos" (p. 73). À medida em que os eventos se sucederam durante três anos sucessivos de greve (1978-1980), foi das fábricas "que o herdeiro de Vidal extraiu as forças também para ganhar maioridade diante de seu tutor" (p. 277). Embora mantendo o apoio a Vidal, o caminho escolhido por Lula incluía, entre outros elementos, o cortejo e a incorporação de ativistas de fábrica esquerdistas na vida do sindicato que, a despeito da sua ambiguidade cuidadosamente cultivada, se definia crescentemente por sua decidida oposição aos inimigos dos trabalhadores. Igualmente decisivo foi o fato de que a liderança sindical "ia sintetizando a pacificação de suas lutas internas na figura carismática e extraordinária de Luiz Inácio Lula da Silva", enquanto tecia "uma densa rede de relações interpessoais".

Comparando brevemente esses eventos aos do início dos anos de 1960, Negro destaca "a incrível força mobilizadora" alcançada no final da década de 1970 entre os trabalhadores do setor automobilístico de São Bernardo e Diadema. Nas suas mais famosas greves de massa de 125 mil operários em 1979 e 1980, o sindicato também obteve a difícil fusão de "greves brancas e greve geral" (p. 311) e, poderíamos acrescentar, a unificação das esferas da comunidade e do sindicato; a última sendo possível pelo decidido suporte do bispo católico local, Dom Cláudio Hummes, que colocou os recursos institucionais e humanos da Igreja à disposição dos grevistas diante da ocupação militar da região.

Visto em perspectiva histórica, Linhas de montagem oferece uma abordagem completamente diferente sobre as extraordinárias mobilizações dos trabalhadores do setor automobilístico do ABC entre 1978 e 1980: ele as apresenta como a realização dos sonhos de gerações de ativistas operários que se sucederam desde 1945. Nesse momento específico, nesse lugar específico, ocorreu uma "politização do cotidiano das classes subalternas", na qual os trabalhadores vieram a decidir conscientemente "o rumo de suas próprias vidas" baseados na participação de massas em um movimento de classe buscando a universalização das suas demandas (p. 315). "À medida que a poeira baixava após a onda de greves" (três milhões entraram em greve em todo o país em 1979), a classe trabalhadora brasileira adquiria mais peso no processo de "reformulação do sistema político democrático, suspenso desde 1964. A nação seria transformada de ponta a ponta." Os anos de 1980 seriam agitados pela consolidação de um Novo Sindicalismo radical, incluindo greves gerais nacionais sem precedentes, enquanto o Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula em 1980, vivia um crescimento acelerado. Após o final do Regime Militar, em 1985, o incomum candidato presidencial do PT, um líder sindical com apenas quatro anos de escola primária chamado Lula, conquistou sucesso surpreendente e finalmente alcançou a presidência da República em sua quarta tentativa, em 2002, reelegendo-se em 2006, com 61% do voto nacional, no segundo turno em ambos os casos (French e Fortes 2005; French 2007).

No final, uma história que começa com uma minoria de ativistas radicais, trabalhadores descontentes e líderes sindicais corajosos, termina com os trabalhadores alterando decisivamente o curso da história nacional no quinto maior país do mundo em população (décimo-primeiro no tamanho da economia). O mundo raramente assistiu a ocorrência de mudanças de forma tão radical e inesperada e, como Eric Hobsbawm reconheceu em 1994, seguindo o que parecia uma receita da Europa Ocidental do século XIX: industrialização capitalista, emergência do proletariado de fábrica, sindicalização e politização das lutas dos trabalhadores por meio de um parti-do socialista-popular lutando pelo poder político (Hobsbawm, 1994, 370). Como Lula memorável e repetidamente declarou durante a greve dos trabalhadores da indústria automobilística que ele liderou: "Que ninguém mais ouse duvidar da capacidade de luta da classe trabalhadora".

Referências Bibliográficas

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Guilherme Leite Gonçalves* * A presente resenha é uma versão revista e modificada do Capitulo 2 da tese de doutorado que defendi em janeiro de 2006 na Universidade de Lecce, Itália.

Professor da Escola de Direito e da Graduação em Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas

Evolução e diferenciação funcional do direito em Luhmann

Para Luhmann, a evolução do sistema jurídico culmina na estabilização do direito positivo. Seu ponto de partida é a negação do evolucionismo clássico e das análises orientadas pela noção de progresso. A variabilidade jurídica é compreendida de outra perspectiva: como resultado de eventos incontroláveis. Esta renovação da teoria da evolução foi formulada pelo autor em diversos textos (cf. 1998, vol. 1, pp. 413-456; 1981, pp. 12-16; 1987, pp. 132-145; 1975, pp. 150-153; Luhmann e De Giorgi, 2000, pp. 169-191), cujo denominador comum é a eleição da contingência como conector da relação entre antes e depois. Isto possibilitou à sociologia repensar a ideia de causalidade.

Luhmann não rejeitou o princípio da causalidade, pois o reconhece como motor de comunicações. No entanto, de acordo com sua definição de complexidade, um evento depende de infinitos motivos impossíveis de serem controlados e assimilados por uma única estrutura: para dado efeito, existem inúmeras explicações. Precisa-se, portanto, de seleção. Assim, o problema da causalidade é redimensionado conforme a perspectiva do observador. A relação entre motivo e consequência é resultado de uma escolha sobre causas possíveis: ao observador cabe definir os fatores causais que serão ou não adotados (Luhmann, 1998, vol.1, p. 150). O observador rompe a cadeia infinita da relação causa/efeito e estabelece um horizonte próprio de causalidade. As causas são submetidas à autorreferência.

Se a causalidade é construída pelo sistema e as causas são objeto de seleção, inexiste a lógica de concordância, ponto a ponto, entre sistema e ambiente, própria das teorias do progresso. A ideia de causalidade autoproduzida traz duas consequências importantes: bloqueia qualquer pretensão de determinação de um evento do sistema pelo ambiente e das operações passadas pelas futuras. Esta interrupção nas relações de determinação, produzida pela obrigação de seleção das causas, subordina a evolução dos sistemas à experiência da contingência. Não existem garantias de que a atribuição de uma causa a determinado efeito tenha sido mais acertada do que se a escolha tivesse recaído sobre alternativas. Como o ambiente não oferece certeza sobre o que vai acontecer, o sistema produz incerteza quanto à adequação das seleções adotadas (Luhmann, 1987a, pp. 252-253). Isso faz da contingência o autovalor da evolução social.

Dessa perspectiva, analisar o movimento evolutivo do direito significa descrever o processo de aquisição de contingência pelo sistema jurídico. A evolução do direito não é determinada por fenômeno externo, mas por suas próprias escolhas. Em outras palavras: o sistema jurídico evolui às cegas, sem nenhum projeto ou planificação, mas conforme a incerteza em relação à consistência e à adequação de suas seleções. Para qualquer sistema social, a contingência é estímulo evolutivo: à medida que é experimentada, abre possibilidades para outros contextos. Mesmo quando atenuada - momento da seleção - é, paradoxalmente, acrescida: quem poderia assegurar que a escolha adotada foi, de fato, a melhor? Este crescimento da contingência estimula correções e novas decisões, o que, por sua vez, é fonte de renovação de incertezas.

Em resumo, o aumento de complexidade (surgimento de novas alternativas) exige seleção. Este é um fator redutor de complexidade e ampliador da contingência: a incerteza sobre a adequação da seleção estimula novas decisões, vale dizer, aumenta a complexidade. Esta circularidade entre complexidade, seleção e contingência é a fórmula da evolução social. Para observá-la Luhmann construiu uma categoria analítica, a diferença entre variação, seleção e estabilização (Luhmann, 1981, pp. 12-16; 1987, pp. 132-145; 1993, pp. 240-241). Vejamos como ela aparece no sistema jurídico.

A função de variação apresenta-se como "projeção de expectativas normativas imprevisíveis" (Luhmann, 1993, p. 257; Neves, 2000, p. 25). Não se encontra, portanto, no plano das expectativas normativas, mas em estado anterior (Neves, 2000). A variação identifica-se com a multiplicidade de comportamentos sociais, os quais, dada a sua pretensão contrafática, são assimilados pelo direito que, em um segundo momento, os transformará, ou não, em expectativas normativas. Para Luhmann, tais comportamentos variáveis são projeções de expectativas normativas, interesses individuais, incapazes de se autogeneralizar, pois, no momento da variação, parecem inadequados às estruturas do sistema. A princípio, aparecem, portanto, como condutas desviantes que "frustram as expectativas contrafáticas reinantes" (Idem). Por esta razão, estimulam conflitos (Luhmann, 1981, pp. 17-18) e exigem decisões. No âmbito da resolução destes conflitos, tornar-se-ão expectativas normativas aqueles comportamentos desviantes que se repetirem e se difundirem nas operações do sistema jurídico (Neves, 2000), isto é, que se apresentarem de modo redundante à seleção.

A principal finalidade da seleção é transformar projeções em expectativas normativas. É, nesse sentido, fator de institucionalização, vale dizer, de escolhas que generalizam socialmente papéis, ações e comunicações. A seleção é responsável pelo tratamento de dois problemas produzidos pela variação,

o excesso e a incongruência das possibilidades. Não é possível generalizar todos os comportamentos, sob pena de se alçar ao plano normativo a colisão desestruturada de interesses, o que bloquearia a diferenciação do direito. A seleção é o mecanismo de reação a tal risco, pois constrói instrumentos para rejeição de interesses alheios ao sistema jurídico. Responde, portanto, pelo fechamento do sistema: ao impor escolhas, reduz complexidade e distingue expectativas jurídicas da pluralidade de comportamentos do ambiente.

No direito, as seleções são estabilizadas por meio de técnicas de abstração que asseguram que o sistema jurídico seja capaz de captar alto grau de variabilidade de possibilidades sem destruir sua identidade. A estabilização está, portanto, ligada à construção de sentido jurídico próprio e indiferente ao ambiente. O que é estabilizado pelo sistema? Os elementos produzidos pela variabilidade que, graças à repetição ou redundância, foram selecionados no plano das estruturas. São, portanto, atualizações de eventos passados que se transformam em realidade presente (Idem, p. 20). Esta fixação de sentido abstrato projeta-se contra o horizonte de possibilidades sociais de modo paradoxal: ao definir referências para a orientação das expectativas (diminuição de complexidade), expõe-se às críticas e a novas alternativas (aumento de complexidade). Note-se, portanto, que o sentido abstrato torna-se condição para a variação. Por este motivo, para Luhmann, estabilização é, na verdade, reestabilização.

A reestabilização é um processo de abstração e generalização de três dimensões: temporal, social e material. A primeira é meio de imunização das expectativas normativas diante das desilusões. Expectativas normativas são aquelas que não aprendem com os fatos. Diante de uma frustração, a expectativa mantém-se intacta no tempo. São diferentes das expectativas cognitivas (típicas dos sistemas econômico e científico), que aprendem e se adaptam à nova realidade, formada após a desilusão. Para manutenção de postura contrafática, são necessários mecanismos capazes de neutralizar as expectativas normativas dos acontecimentos individuais que lhes são contrários. Estes mecanismos encontram-se em cada um dos elementos que compõem a estrutura da norma jurídica: de um lado, o princípio da imputação, que qualifica como violação a conduta frustradora; de outro, a sanção, que prevê consequência punitiva para o responsável pela frustração (Luhmann, 1987, p. 55). Esta dupla qualificação negativa da conduta desviante reforça as expectativas em detrimento dos desapontamentos fáticos e assegura sua conservação mesmo diante da adversidade comportamental.

Se, na dimensão temporal, o sistema jurídico desenvolve formas de segurança contra frustrações, na dimensão social procura criar mecanismos abstratos que o imunizem do dissenso. A complexidade da sociedade moderna produz excesso de pretensões sociais. A passagem da variação para a seleção sempre importa desapontamentos e, com isso, o acirramento de discórdias. Cria-se uma situação de elevada divergência entre interesses. A generalização da dimensão temporal, ao proteger expectativas normativas de frustrações, é incapaz de solucionar esta divergência. Ao contrário, tende a aumentar a conflituosidade. Para Luhmann, somente a generalização da dimensão social, por meio da institucionalização, pode enfrentar o dissenso.

Diante da impossibilidade do pleno consenso, a sociedade maximiza mínimos consensos. "A quantidade ínfima de experiências simultâneas e com o mesmo sentido" é, nas palavras do autor, "socialmente superestimada" (Idem, p. 67). Assim, o papel da institucionalização não seria ampliar o consenso, mas supô-lo a partir de um mínimo existente. Por meio da suposição do consenso, é possível viabilizar operações sociais, mesmo que a realidade seja divergente. Cria-se, por meio da generalização da dimensão social, uma abstração que imuniza o direito em relação ao dissenso, sem, no entanto, eliminá-lo (Idem, pp. 69-70).

Entre as várias formas de institucionalização de expectativas normativas, as mais importantes são os procedimentos (Idem, pp. 74-80). Neste caso, o consenso presumido deriva da suposição de que, para a escolha decisória, são necessários ritos, formalidades e práticas que reduzam sentimentalismos e incoerências. É óbvio que, na realidade, todos estes "defeitos" podem se verificar, mas a suposição é fundamental para a legitimidade da decisão. Presume-se que o julgamento foi correto porque precedido e informado por processo que garantiu a participação das partes. Na verdade, a função do procedimento cria expectativas de expectativa: ainda que não concordem, espera-se que os destinatários aceitem a decisão, pois, dadas as características do rito decisório, supõe-se que todos a reconhecem. Por meio da suposição sobre terceiros, os procedimentos resolvem o problema do consenso sem que, necessariamente, ele exista de fato. Ao estabelecerem regras de competência, princípios, símbolos e papéis especiais, eles legitimam decisões (Idem, pp. 141-142; 1998a, pp. 36). Ainda que exista dissenso sobre o resultado, os procedimentos asseguram seu caráter vinculante.

A última dimensão de generalização que complementa o processo de reestabilização é a material. Ela oferece segurança contra contradições entre interesses e expectativas individualizadas. Tais contradições verificam-se no plano concreto das relações sociais e derivam da impossibilidade de participação direta na consciência alheia: não há como saber

o que o ego verdadeiramente espera (Luhmann, 1987, pp. 81-82). Isto produz, de um lado, aumento de conflitos entre conteúdos de expectativas e, de outro, improbabilidade da manutenção de expectativas de expectativa. Este problema é superado por um princípio de identificação abstrato que, forma-do por conteúdos compartilhados resultantes da condensação de experiências passadas, orienta as variadas manifestações sociais. Luhmann denominou este princípio de síntese de sentido e indicou quatro formas para sua manifestação, quais sejam, pessoas, papéis, programas decisórios e valores. (Idem, pp. 81-93).

A referência de sentido "pessoa" possui conteúdo excessivamente particularizado, pois, formada pela convivência em grupos íntimos (Idem, pp. 8586), é incapaz de transcender casos concretos e individualizados. Os papéis, por sua vez, são dotados de maior grau de generalização, pois se baseiam na institucionalização de competências e funções. Suas expectativas não giram em torno de laços pessoais, mas de um papel socialmente desempenhado. Como categoria abstrata, os papéis servem mais à estabilização de expectativas normativas do que as pessoas, mas não são suficientes.

Segundo o autor, os principais mecanismos para a realização desse fim são os programas decisórios, definidos como "regras de decisão" (Idem, pp. 8687). Tais regras abarcam múltiplas pessoas, diversos papéis e definem condições para a imputação da ação. No direito, os programas são condicionais e se expressam na fórmula "se A, então B". Seu grau de abstração é suficientemente adequado para definir o conteúdo normativo que especificará qual expectativa individual será ou não jurídica. O mesmo não acontece com os valores - a última síntese de sentido -, considerados excessivamente abstratos (Idem, pp. 87-89). Os valores abarcam todas as expectativas sociais correntes. Como são altamente consensuais, agregam todos, mas não são operativos, pois bloqueiam critérios seletivos e introduzem, no direito, o mesmo nível conflituoso da fase da variação.

Por fim, uma vez definidas as três dimensões de generalização - temporal, social e material -, podese notar que elas não são, naturalmente, congruentes entre si. Estas diferenças fazem com que cada uma generalize expectativas incompatíveis: aquilo que é juridicamente aceitável em um plano, pode não ser em outro. Pense-se, por exemplo, na nor-ma da boa educação, generalizável apenas na dimensão temporal. Como superar esta incongruência? Nas diferentes dimensões não se encontra apenas uma, mas diversas possibilidades de generalização. Tais possibilidades são restringidas por "necessidades de compatibilidade" (Idem, pp. 98-99). Existem pressões seletivas impostas por determinados problemas sociais que, para serem solucionados, dependem da generalização e da atuação conjunta das três dimensões.

Desta superação da incongruência natural das dimensões de reestabilização surge a função do direito: generalização congruente de expectativas normativas. A função permite a construção de mecanismo abstrato que contempla inúmeras possibilidades, mesmo aquelas que não foram adotadas pela seleção: projeções normativas ou princípios de identificação divergentes não são eliminados (ibidem, p. 99). Ao contrário, transformam-se em premissas de variações. Esta estrutura paradoxal é denominada de direito positivo.

Nota

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    A presente resenha é uma versão revista e modificada do Capitulo 2 da tese de doutorado que defendi em janeiro de 2006 na Universidade de Lecce, Itália.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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