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Entrevista com Irene Cardoso

ENTREVISTA

Entrevista com Irene Cardoso*

Por Luiz Carlos Jackson; Fábio Cardoso Keinert; Alejandro Blanco

Quais são os aspectos de suas origens familiares que você considera decisivos à escolha pela carreira intelectual?

Quando entrei na Faculdade de Filosofia como aluna, entrei num lugar que eu desejava muito e que fazia parte do meu universo cultural. Era algo muito familiar para mim, dado o tipo de convívio que eu tive quando era adolescente, e mesmo criança, com professores da Faculdade de Filosofia, com pessoas ligadas à área de teatro, ao teatro infanto-juvenil de Júlio Gouveia, o Tesp, em São Paulo, com os que frequentavam a Cinemateca, na rua 7 de Abril, e os concertos da Pró-Arte, no Teatro Municipal, enfim, a vivência no espaço cultural de São Paulo, dos anos de 1950 e 1960. Quando jovem, essa experiência me era dada diretamente, ou indiretamente, pelo que via e ouvia nas conversas sobre esses assuntos e também sobre política. Portanto, quando cheguei à Faculdade, aquilo era para mim a coisa mais importante que existia. Eu tinha uma ligação muito visceral com ela. Depois tive, num processo de análise posterior, que "desconstruir" esse tipo de ligação.

Meu pai era médico, simpatizante do PC [Partido Comunista], e tinha um circuito de amigos intelectuais comunistas que eram do partido ou próximos a ele. Meu pai, apesar de médico, gostava muito de estudar, o marxismo era um tema muito presente, chegou a dar alguns cursos de formação para o pessoal do partido, no final dos anos de 1940, começo dos de 1950. Lia muita literatura, livros de filosofia, sobre cinema e teatro, e mesmo psicanálise, da qual discordava; na biblioteca dele tinha tudo isso. Gostava bastante de música, tinha uma discoteca grande. O ambiente na minha casa era esse, mas acho que há também a influência do ambiente cultural da época; eu ia muito a festivais de cinema na Bienal, assistia a cinema polonês, cinema russo... Existia uma efervescência muito intensa quando eu tinha entre 15 e 20 anos, até o golpe militar.

Minha mãe não tinha nenhuma formação propriamente escolar, foi criada à maneira antiga, estudou todo o primário em casa, aquela coisa de família mais tradicional, do interior do estado, que veio para São Paulo. Meu avô materno tinha sido fazendeiro, depois veio para cá e criou uma indústria de estopa, tornou-se diretor da Federação das Indústrias de São Paulo [Fiesp] e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo [Ciesp]. Depois, quando vim a estudar para a minha tese o período dos anos de 1920-1930, marcado pela industrialização, às vezes encontrava na imprensa referências ligadas ao meu avô. Mas, na verdade, não tive muita aproximação com essa parte da família, a ligação mais forte era com meu pai. Os modos de vida familiares eram muito diferentes...

A formação do meu pai era muito ampla mas, ao mesmo tempo, um tanto dogmática, apesar da biblioteca variada. Vários livros que tenho hoje (Marx, Althusser, Sartre, Lévi-Strauss e outros) foram trazidos da casa dele, todos anotados. Por ser meio dogmático, a discussão política com ele era muito difícil, em especial sobre a União Soviética. Então, a partir de certo momento, eu desisti.

Comigo aconteceu o contrário do que com a maior parte de meus colegas. Na disciplina de introdução à sociologia, no curso de Pedagogia, estávamos fazendo um seminário sobre Mannheim, o Diagnóstico de nosso tempo, quando o professor Douglas Monteiro me falou meio bruscamente uma coisa com a qual fiquei muito chateada; disse que eu só falava em dialética o tempo todo, fez uma crítica bombástica a mim, fiquei superchateada. De modo que, para mim, ocorreu o contrário, eu fui me abrindo à medida que fui me tornando menos marxista dogmática e conhecendo outros autores, Mannheim, Weber, além de outros. O pessoal em geral entrava na faculdade e virava marxista, eu entrei marxista e fui conhecendo outros autores e perspectivas.

Você acha que as relações de gênero constituem um aspecto relevante para compreender a sua trajetória?

É curioso dizer, mas a questão de gênero é algo sobre o que nunca pensei e nunca senti necessidade de pensar. Participei da banca da tese de Maria Helena Bueno Trigo, fui entrevistada por ela na condição de uma das mulheres dos anos de 1960 (ela entrevistou mulheres dos anos de 1950 e 1960), mas nunca tive uma ligação com o tema das relações de gênero, apesar de ter sido muito amiga de Elizabeth de Souza Lobo, que era professora do Departamento de Sociologia da USP. Ela trabalhava com esse tema muito bem, uma perda lamentável.

Mas a minha experiência, como é dos anos de 1960 em diante, é muito diferente da experiência das mulheres dos anos de 1950, que, aliás, eram muito menos numerosas. Na década de 1970, quando me tornei professora, nunca senti nenhum tipo de discriminação ou de hierarquização pelo fato de ser mulher. Isso nunca se tornou uma questão.

É interessante lembrar que as pessoas que entraram mais ou menos junto comigo, por volta de 1970, mais ou menos com a mesma idade, todas muito jovens, mulheres com 23, 24, 25 anos, foram jocosamente denominadas "martinetes", o que até virou folclore. O professor que dava aula expositiva para o grupo maior de alunos era José de Souza Martins, e nós, esse grupinho de cinco mulheres (Maria Célia Paoli, Maria Helena Oliva Augusto, Heloisa Fernandes, Jessita Moutinho e eu), éramos as professoras responsáveis pelos seminários. A classe era dividida e a gente orientava os grupos e discutia os textos (o que, aliás, funcionava muito bem) com dez a doze alunos, trabalhávamos com eles o semestre inteiro. Era uma relação em que a hierarquia antiga funcionava ainda fortemente, até a defesa do doutorado a gente só podia dar seminários, os alunos percebiam a relação hierárquica. Foram eles que nos apelidaram de "as martinetes".

Lembro também de um episódio ilustrativo, em 1970, que hoje soa meio engraçado. Marialice Forachi, que nos preparou para os seminários do primeiro ano, nos orientou, algo que tinha a ver com os costumes daquele momento, que não deveríamos dar aulas de calça comprida, tinha que ser de saia. Podíamos ir à Faculdade de calça comprida, mas no dia da aula deveríamos ir de saia. Acho que no comecinho, provavelmente, nós seguimos a orientação dela, mas depois não. No entanto, havia no departamento mulheres com poder. Maria Izaura Pereira de Queiroz e Aparecida Gouveia tinham bastante poder lá dentro. Mas já eram livre-docentes ou titulares.

Embora Sergio Miceli tenha dito, no concurso de Maria Arminda, que só ela se tornou titular entre as mulheres do departamento da nossa geração, pois nem eu, nem Maria Célia, nem Maria Helena nos tornamos titulares, e que isso teria a ver com a questão das relações de gênero, não concordei muito. Na verdade, Maria Arminda era mais nova, entrou bem depois na Faculdade como professora, acho que em 1988, não era daquela geração. Desse pessoal mais antigo ninguém chegou a se tornar titular. Eu fiz a livre-docência, já tinha decidido me aposentar, já vinha pensando em sair mesmo. No Memorial da livre-docência já falo sobre isso. Fazer o concurso para professor titular implicaria ficar mais cinco anos, eu não poderia me tornar titular e sair da Universidade em seguida. Então resolvi me aposentar, ainda que uma vaga já estivesse no horizonte. Daí foi uma virada na vida aos 57 anos. Grande!

Como você situaria a experiência da sua formação no contexto de fins dos anos de 1960, marcado pela questão do desenvolvimento e dos debates sobre a América Latina? Isso de algum modo a marcou?

É engraçado lembrar que quando eu entrei na pós-graduação, fui fazer a entrevista com Florestan (só tinha essa entrevista inicial para ser aceita no programa), deve ter sido no início de 1968, e quando ele me perguntou o que eu queria estudar, falei sociologia industrial e do trabalho, havia o curso sobre esse tema, que era central naquele momento, ao lado da sociologia do desenvolvimento. Eu já havia feito a disciplina como ouvinte na graduação, porque eu vinha da Pedagogia. Esses temas eram muito sedutores para os alunos que entravam na Faculdade para cursar Ciências Sociais, ainda sob as ressonâncias do período pré-golpe militar. Mas depois não vejo muita influência na minha trajetória dessa temática latino-americana discutida nesse período, a não ser, talvez, de modo muito indireto, quando comecei a estudar a questão da ditadura brasileira, anos depois. Eu li bastante sobre a Argentina e, apesar de não ter escrito nada especificamente sobre a ditadura argentina, fiz muitas referências comparativas com a ditadura brasileira. Acho que não foi por influência daquela época, pelo menos de modo direto. Eu tinha um aluno argentino, Daniel Revah, que era meu orientando de mestrado, era muito novo, uns 18 anos, quando veio para cá, acho que por motivos ligados ao movimento estudantil secundarista. Cada vez que ele ia para a Argentina, comprava um monte de livros para mim, sobre a ditadura, na época em que começaram a sair os livros, já nos anos de 1980. Logo após os cursos, já em 1969, os meus interesses se dirigiram para o meu primeiro projeto de tese sobre a USP. Na verdade, um projeto que foi muito mudado depois, que ficou meio em suspenso algum tempo, quando comecei a dar aulas na USP e em Araraquara, em 1970.

Tive uma identificação muito grande com Beatriz Sarlo, porque fiz o prefácio de um livro dela, o Paisagens imaginárias

Tenho essa identificação porque acho que ela faz um trânsito pela psicanálise, pela história, pela sociologia, mesmo sendo da área de letras, é perfeito o modo como enfoca as questões nas quais a presença da psicanálise é, a meu ver, muito perceptível. O primeiro contato com ela foi através de um texto sobre a ditadura argentina, "Uma alucinação dispersa em agonia", publicado em Novos Estudos Cebrap, em 1985. Mas eu não a conheço pessoalmente, só a vi em entrevistas na televisão. A relação com a Argentina veio muito em virtude desse artigo, que me levou à escrita do meu primeiro texto sobre 1968: "Os acontecimentos de 1968: notas para uma interpretação".

Esse foi o primeiro de vários outros sobre 1968. No Memorial da livredocência, esclareço o modo como os meus textos foram sendo feitos, não eram livros propriamente, mas ensaios, e cada um surgia em virtude de uma certa configuração, minha e do tempo. Todos tinham uma relação com 1968, que foi para mim um marco, algo que ficou meio em suspenso na minha vida, até certo momento. O ano de 1968 ficou sempre como alguma coisa que voltava e dava margem a um novo texto, a outros enfoques, eu fiquei muito tempo mexendo com isso. Nunca fui especialista na sociologia da educação, alguns alunos falavam que eu fazia a sociologia da Universidade [risos], porque a toda hora eles me chamavam para falar sobre a Universidade, acho engraçado... [risos].

A partir dos anos de 1970, é possível constatar uma diversificação progressiva dos temas da sociologia, não é?

De fato, a partir dos anos de 1970 há uma abertura temática muito grande no Departamento de Sociologia, e acho que por vários fatores. Um deles foi a grande influência da presença, embora prematuramente interrompida, de Marialice Foracchi. Ela era professora da cadeira de Sociologia I, assistente do Florestan, em uma posição na hierarquia mais abaixo da de Ianni e de Fernando Henrique, junto com Maria Sylvia de Carvalho Franco. Aí sim, a questão de serem mulheres deve ter pesado muito... Ela escolheu um tema que, embora estivesse ligado à irrupção do movimento dos estudantes a partir de 1962, um tema quente, naquele momento era visto como menor, de importância menor, em relação ao que predominava no Cesit (o tema do doutorado foi O estudante e a transformação da realidade brasileira

Então houve essa influência de Marialice por temas, vamos dizer, "menores". Ela irá fazer a livre-docência já em 1969, em pleno período mais pesado da ditadura, dando sequência à problemática da juventude, com a tese A juventude na sociedade moderna

Ela foi minha orientadora, e de Sergio Miceli também, depois que o Octavio Ianni, que era nosso orientador, foi aposentado pelo AI-5. Formamos com Marialice um grupinho pequeno, acho que Sergio também estava, mais Maria Célia Paoli e Maria Helena Oliva Augusto. Fizemos um seminário na casa dela sobre o livro do Althusser, Pour Marx, que tinha acabado de ser lançado, tinha saído na França acho que em 1965 e aqui foi publicado em 1968.

O livro de Marialice, por exemplo, não sei se Estudante ou A juventude na sociedade moderna, evidenciava uma leitura de Sartre. Fernando Henrique também, na introdução de um dos seus livros, faz referência a Sartre.

Sartre foi lido naquele momento do ponto de vista do método, pelo livro Questão de método, a questão da análise do conceito de situação e de projeto sartrianos. A leitura de Sartre foi incorporada naquele momento, acho que Marialice era mais aberta do ponto de vista de uma formação não estritamente sociológica, uma formação que passava pela filosofia em algum grau, embora ela dominasse os autores da sociologia, norte-americanos, franceses etc.

Outro dado importante está ligado à mudança drástica do perfil do departamento, com o fim da cátedra e com as aposentadorias compulsórias a partir do AI-5, acontecimentos contemporâneos. Passou a não haver mais, naquele momento, na estrutura departamental, nenhum tipo de imposição temática, pelo contrário, o que pode ser chamado de diversidade talvez seja expressão do fato de que as pessoas realmente passaram a estudar o que elas desejavam naquele momento. A hierarquia não desapareceu de repente nos anos de 1970, mas levou dez anos diminuir consideravelmente, para que o departamento pudesse se organizar de uma forma um pouco mais democrática. Apesar de a cátedra ter sido extinta formalmente, tudo ainda funcionava de modo muito hierarquizado. A sua posição institucional, o modo como você era visto ou tratado, dependia dos seus títulos. Antes do doutorado, você não era absolutamente nada! Não se podia nem dar um curso optativo. Só seminários. Quando se começava a dar uma matéria optativa, esse momento era uma espécie de consagração. Você poderia eleger o tema, embora houvesse algumas restrições; quando ele não era muito sociológico, havia reparos do Conselho de Departamento: isso não é sociologia, isso é sociologia...

A cátedra foi extinta em 1968, com a lei federal que criaria os departamentos, mas é curioso lembrar que na verdade ela não havia acabado na prática. No departamento, a hierarquia ainda permanecia, os titulares funcionavam ainda como catedráticos, embora não o fossem mais formalmente. Não tinham mais o poder de determinar temas de pesquisa. Em alguns nichos essa prática me parece ter permanecido. Fico pensando, por exemplo, no caso do Ceru [Centro de Estudos Rurais e Urbanos], que nem era da Faculdade, era um instituto privado, uma associação civil, que funcionava lá dentro do prédio de Ciências Sociais e Filosofia. Alguns professores do departamento pertenciam ao Ceru, o que gerava conflitos de tempos em tempos; isso hoje parece bastante peculiar.

Mas acho que essa diversidade de temas teve a ver com esses acontecimentos e com as questões das áreas de pesquisa recentes, que surgiram na nova conjuntura dos anos de 1970. Por exemplo, o tema dos novos movimentos sociais, com uma construção teórica nova, não tinha mais nada a ver com os movimentos sociais dos anos de 1960. Dá para citar, ainda, os temas das relações de gênero, família, marginalidade, autoritarismo, cultura de massas, violência no campo e outros.

Quando pude dar uma optativa pela primeira vez, foi em 1980, o meu curso se chamava "Educação e ideologia". Tinha esse nome porque era uma espécie de disfarce para trabalhar com novos autores que não eram considerados sociológicos. Nesse curso, eu estava começando a trabalhar Foucault, Adorno, logo depois Marcuse e Reich. Foram turmas de alunos imensas, a partir de 1981, porque esse tipo de curso despertava muita curiosidade por parte dos alunos. Havia na Faculdade o curso de sociologia da educação, já consolidado, mas eu não tinha nenhuma sintonia com essa perspectiva, não fazia sentido para mim. A educação era algo que fazia parte da cultura, então eu trabalhava nesse registro mais amplo da educação e com autores de uma "sociologia da cultura" que tematizavam a questão da educação aí inserida.

E um curso como esse foi questionado no Conselho de Departamento. Aparecida Joly Gouveia, da área de sociologia da educação, quando viu o programa, disse que aquilo era um curso de filosofia, e não de sociologia. Havia esse tipo de "reparo". Daí em diante minha trajetória foi toda por esse caminho.

Fale um pouco mais sobre essa aproximação com outras áreas da Faculdade de Filosofia, ao longo dos anos de 1980. Acha que isso teve a ver com a recusa de uma visão mais ortodoxa da sociologia?

Quando terminei o doutorado, resolvi que não ia fazer a livre-docência logo em seguida, mas as pessoas me diziam que eu tinha um material imenso, e de fato se tratava de um material muito maior do que usei; mas não queria mais fazer aquilo, eu queria estudar. Porque já tinha passado dez anos praticamente em cima de teses, e dando muita aula, a gente dava muita aula. Por isso as teses demoravam, era preciso preparar as aulas, o que também demorava; a gente estava começando, eu tinha vindo de fora das ciências sociais, não existiam as bolsas. A gente entrava como auxiliar de ensino, comecei a dar aulas com 24 anos.

Então resolvi estudar e fazer novos cursos. Fiz, na Filosofia, nas Letras, cursos sobre tragédia, pré-socráticos, filosofia antiga (gostava muito de filosofia antiga). Havia um professor que fazia uma ponte entre o curso de filosofia e o de letras, o professor Cavalcante. Com ele fiz três cursos, ele achava que eu deveria fazer língua grega. Achava interessante alguém da Sociologia lá nas Letras, fazendo esses cursos. Depois fiz outro curso também interessante na PUC, sobre Nietzsche, com dois professores, um do Rio de Janeiro, outro de São Paulo, a cada quinze dias um deles desenvolvia a sua perspectiva sobre Nietzsche, isso tudo num semestre. Vários colegas meus também foram fazer esses cursos na PUC. Scarlett Marton e Roberto Machado ministravam as aulas. Fiquei esse tempo estudando, e isso ia se refletindo nos meus cursos, num certo modo de pensar também, de interpretar, de escolher temas... Mas sempre ocorreram esses "reparos", não só em reuniões do Conselho, mas indiretamente; Martins quando dava entrevista, por exemplo, falava desses professores que ficavam trabalhando com Adorno, com Foucault... José Carlos Bruni, de formação na Filosofia e já aposentado, também trabalhava com essas leituras. Aliás, por curiosidade, ele foi contratado exatamente por ter essa formação na época, já no final dos anos de 1970. Era um professor capaz de ensinar bem Marx, que podia fazer a fundamentação hegeliana de Marx, pois o pessoal da Sociologia não costumava fazer isso, e o Bruni acabava também dando cursos sobre Durkheim, Weber e Comte. Ninguém trabalhava mais Comte naquele momento, mas Bruni estava escrevendo uma tese sobre ele, e deu cursos muito bons a respeito. Estudei intensivamente Comte dialogando com Bruni. Lembro de ter passado uma Semana Santa em São Paulo discutindo Comte pelo telefone, horas ao telefone. Discutindo e lendo adoidadamente; queria introduzir Comte num curso e, de fato, eu não conhecia este autor. Era muito animador estudar naquele momento. Isso nos anos de 1970 e boa parte da década seguinte.

No início dos anos de 1980, ainda, formamos alguns grupos de estudo que não foram duradouros, mas eram muito importantes. Participavam professores da área de letras, história, filosofia e sociologia. Num deles discutimos nossos trabalhos, em outro fizemos seminários sobre Foucault. Organizamos também, eu e Bruni, em 1987 e 1988, dois seminários, voltados para nós mesmos, da Sociologia, nos quais foram feitas exposições por professores do Departamento de Filosofia. Num deles, chamado "A desordem do tempo", assim nomeado por Bruni, foi tematizada a questão do tempo da perspectiva de Nietzsche, Husserl, Bergson, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Benjamin, Foucault. Os expositores foram Scarlett Marton, Carlos Alberto Moura, Franklin Leopoldo, Victor Knoll, Salinas, Marilena Chauí, Olgária Mattos, Gérard Lebrun. Organizamos, ainda, um Seminário Temático no Programa de Pós-graduação em Sociologia sobre sociologia e filosofia, com os temas "Ciência e filosofia", "Arte e ciência", "Mito e ciência", "Técnica e ciências humanas", "História e liberdade", "Razão e paixão". Participaram José Chiappin, Vera Felício, Mário Miranda, Olgária Mattos. A ideia era criar um Núcleo de Sociologia e Filosofia cujo nome, dado por Bruni, era sophia. Não teve continuidade depois de 1989, mas foi ótimo. Aliás, a Tempo Social - Revista de Sociologia da USP foi assim nomeada em virtude dessas discussões sobre a questão da temporalidade, nessa fronteira entre sociologia e filosofia, naquele momento. Seu primeiro editor foi justamente Bruni. Creio que essas histórias permitem dar uma ideia do perfil dos meus interesses após a defesa do doutorado, que marcaram muito os meus cursos na graduação e na pós, assim como os meus textos.

Como se deu a escolha pelo tema da fundação da USP? A conjuntura dos anos de 1970 a interpelava a pensar a questão?

O contexto realmente me levou a pesquisar o tema da criação da USP, especialmente o contexto político. Isso é discutido um pouco na apresentação do livro A universidade da comunhão paulista. Foi a questão da percepção, a partir do golpe militar, mas especialmente a partir de 1968, de um autoritarismo que vinha de fora, e realmente vinha, ou seja, vinha da repressão do Estado, mas ao mesmo tempo de um autoritarismo oriundo de dentro da própria Universidade. Foi essa a questão que, na verdade, me levou a pensar o problema da tese, porque a ideia inicial era reconstruir a história da Universidade desde a criação até aquele momento. Mas isso acabou se tornando inviável. Dada a dimensão do material de pesquisa, acabei me concentrando no período dos anos de 1920 até 1937, quando ocorreu o golpe de Estado de Getulio Vargas.

A questão do contexto discutia esse autoritarismo que vinha de dentro da estrutura de poder na Universidade, por exemplo por intermédio de Gama e Silva, professor da Faculdade de Direito que, mesmo tendo assumido o Ministério da Justiça, não se desligou da USP e assinou o AI-5, em 1968, e as aposentadorias compulsórias de professores, em abril de 1969. Ou de Alfredo Buzaid, vice-reitor em exercício, que assumiu o cargo por pouco tempo, em substituição a Helio Lourenço de Oliveira, aposentado compulsoriamente, e permaneceu durante o período da aprovação da reforma universitária em 1969. Ele também veio da Faculdade de Direito e, logo em seguida, assumiu o Ministério da Justiça. Nesse contexto, havia uma direita muito forte dentro da Universidade, não só conservadora, mas politicamente de direita mesmo, num momento em que fazia grande diferença ser de direita ou de esquerda no país.

A tese é um trabalho que reconstrói a luta entre grupos políticos, as lutas ideológicas em torno do projeto de criação da USP. Depois da morte de Marialice, tive alguns problemas na avaliação do encaminhamento do trabalho; seria uma tese de política, e não de sociologia. Essa questão era recorrente no departamento. Lembro da vez que fizemos um programa de sociologia para o primeiro ano, em que a questão do Estado, em Durkheim, estava em destaque num determinado item. No Conselho de Departamento de Ciências Sociais, foi então colocada a questão de que o Estado era um tema da Ciência Política e não da Sociologia. As coisas eram bastante fechadas...

Como foi a recepção do livro?

Saíram algumas resenhas. Lembro que o "Suplemento Literário" do jornal O Estado de S. Paulo não aceitou fazer resenha, certamente pelo teor do livro, que envolvia a história do jornal e a imagem de Júlio Mesquita.

Depois houve também o fato de Antonio Candido ter ficado meio incomodado com a passagem em que falo de Lévi-Strauss. Roger Bastide, em entrevista a mim concedida, interpretava o afastamento de Lévi-Strauss da USP como de natureza política. Teria sido afastado por decisão de Mesquita Filho. Quando chegou a São Paulo para substituir Lévi-Strauss, em 1938, fez essa avaliação, inclusive pelo modo como foi recebido pelos colegas. Essa entrevista, publicada na revista Discurso, será republicada, agora com notas explicativas, no meu livro que deve sair no próximo ano

Acho que o interesse pelo livro se deu mais imediatamente pela questão do autoritarismo e pelo tema das elites políticas. Mas depois ele ficou meio esquecido, até do ponto de vista do mercado editorial. Tanto que grande parte dos livros editados ficaram comigo, porque a partir de certo momento a editora Cortez resolveu que não os queria mais, pois não teriam mais lugar para guardar os estoques. Os livros passaram anos no porão da casa de meus pais. Ainda guardo inúmeros exemplares.

O reconhecimento da sua importância é relativamente mais recente. O trabalho foi questionado, mas silenciosamente, e não sei se pelo fato de ter sido considerado pouco sociológico, talvez porque tivesse uma tese política e não fosse simplesmente uma reconstrução da história cultural e educacional. Tenho a impressão que isso incomodou.

Incomodou o fato de eu ter falado do autoritarismo que vinha de dentro da USP lá nos anos de 1930, entre 1935 e 1937, porque a imagem que se tinha sobre a criação da USP era uma imagem liberal e democrática. Acho que o livro foi um pouco estigmatizado num certo momento.

Ao mesmo tempo, é engraçado lembrar que houve um reitor da USP, o professor Fava

Houve uma recepção favorável em alguns setores das Ciências Humanas, na Faculdade de Filosofia. Nesse período, no começo dos anos de 1980, mantive intensa relação com pessoas de outras áreas. Foi quando resolvi estudar mais tempo, a gente tinha um grupo de estudos criado informalmente, não durou também muito tempo, mas era composto pelo pessoal das Letras, da Filosofia, da História, da Sociologia, era muito agradável. A gente discutia textos, discutia o que as pessoas estavam fazendo, enfim, havia essa interação com outras disciplinas que fez parte da minha formação e da de outras pessoas também.

Nesse período, a minha vinculação (eu sempre me senti assim) era maior com a Faculdade de Filosofia do que com o Departamento de Sociologia. Sempre que eu ia dar meus créditos, não deixava de pôr Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de Sociologia, pois a minha ligação era com a Faculdade, com muitas pessoas da Faculdade, tanto que por causa disso eu acabei tendo uma carreira burocrática [risos ] extensa na Faculdade. Fiquei anos fazendo essas coisas, e hoje até me arrependo um pouco, mas de algum modo deu para conhecer melhor a área. Fui eleita para a Congregação, e da Congregação acabei indo para o Conselho Central de Pesquisa e daí virei presidente da Comissão de Pesquisa da Faculdade, e então fui representante dentro do Conselho Central de Pesquisa da Câmara de Avaliação de Metas, em que estavam discutindo os critérios de avaliação da pesquisa, discutindo com o pessoal de biológicas, química e exatas; lembro que eles eram contra o valor dado ao livro publicado na avaliação de desempenho. Eram a favor de artigos, papers. No Conselho Central de Pesquisa votei contra a implantação dos núcleos de pesquisa. Temia o modelo único para a pesquisa na USP e também percebi que em muitos casos os núcleos serviam para resolver problemas de falta de espaço político dentro dos departamentos. Foram aprovados, mas depois de um tempo, não sei bem por quais motivos, não se criaram mais novos núcleos.

No início de 1990, decidi sair de todos os cargos administrativos e voltar apenas a estudar, escrever e fazer a tese de livre-docência. Decidi, pois, largar essa parte ligada ao "legislativo" da Universidade.

Mas quando fui vice-chefe no departamento, numa coalizão com Eunice Durham na chefia, deu tudo errado, e por conta de um grande desentendimento, pedi demissão do cargo. Deu tudo errado porque o projeto de Eunice Durham naquele momento estava ligado ao de Goldemberg (reitor da USP na época), que, por sua vez, tinha proximidade com o projeto federal da Nova República, com as proposições das comissões de alto nível, com Simon Shwartzman, um conjunto de concepções sobre a universidade no qual eu não conseguia me situar e, mais que isso, do qual discordava fortemente.

Gostaríamos de saber qual é a sua visão sobre o significado da expansão das universidades e das ciências sociais, a partir de 1968, ano da reforma universitária. Haveria alguma contradição nesse processo de expansão transcorrido em meio à ditadura militar?

Nesse período entre 1972 e 1985-1986, os investimentos de pesquisa do governo militar se deram prioritariamente nos chamados institutos extrauniversitários, que eram mistos, empresas mistas, governo-empresa privada voltados ao desenvolvimento tecnológico. Apesar de ter havido investimento em outras áreas, o forte do investimento governamental não foi na área das ciências humanas, que ficou a cargo da Fundação Ford, em alguns setores, mas não na Universidade.

Apesar desses investimentos todos, eu não acho que a política educacional do regime militar seja contraditória, porque justamente com isso eles conseguiram esvaziar os movimentos de oposição. Por exemplo, o movimento estudantil na década de 1960 era uma força política que fazia barulho no país, era de âmbito nacional, com apoio de toda a esquerda, que também tinha ficado alijada a partir do momento em que o governo João Goulart foi derrubado pelo golpe.

A Universidade de Brasília foi criada junto com a cidade, quase ao mesmo tempo ou um pouquinho depois [1962], e era um projeto do Darcy Ribeiro, importante do ponto de vista da renovação da concepção de universidade no Brasil. Ela já tinha na sua organização a ideia de institutos, levou para lá professores de alto nível, e no entanto foi uma das primeiras instituições a sofrer a repressão política, ela sim foi literalmente destruída! Não só do ponto de vista do cerco militar, mas também os professores foram demitidos. Assim como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro foi demitido. E a Universidade passou a ser, naquele momento, comandada e dirigida pelo pessoal da direita ligado aos governos militares. O reitor indicado por Castelo Branco foi Laerte Ramos de Carvalho, catedrático da USP, do Departamento de Filosofia da Educação. Também ocorreu um choque violento com o movimento estudantil. Há inclusive filmes e documentários mais recentes que foram montados com imagens da época. Darcy Ribeiro nomeava essa experiência de A universidade necessária

Por isso acho que não era paradoxal, porque essa ampliação do número de vagas, do número de universidades... alguma modernização da universidade tinha que ser feita, tanto é que esse projeto vem de antes. Portanto, não é paradoxal que o governo militar tenha feito isso, aliás, acho que eles foram muito inteligentes nesse sentido.

Exceto a experiência da Universidade de Brasília, que foi de fato violentamente liquidada, nas outras universidades, tirando as cassações de um número razoável de professores na USP, isso não implicou a impossibilidade de funcionamento da universidade. Ou seja, acho que foi uma estratégia política dos militares não levar às últimas consequências a destruição da USP. Em São Paulo não existia ainda a Unicamp, era fundamentalmente a USP e os então chamados institutos isolados.

O paradoxo é o seguinte: a USP, apesar das aposentadorias compulsórias de professores, das prisões, exílios forçados, do clima de ameaça permanente, foi relativamente preservada. A comparação com a experiência na ditadura argentina é impressionante. Lá a universidade foi praticamente destruída. A USP pôde se manter e continuar oferecendo cursos, mesmo nas unidades, vamos dizer, que eram mais à esquerda, mesmo nos departamentos que foram mais esvaziados do que outros, de algum jeito os cursos foram mantidos. O Departamento de Filosofia, por exemplo, também teve um expurgo grande, muita gente teve que ir embora por cassação ou exílio. Exílio, inclusive, independentemente de ter sido preso ou não, muita gente teve que fugir.

Havia cerco policial, havia policiais dentro das salas de aula, um conhecido torturador da Oban (Operação Bandeirantes), ameaça de invasão a todo momento, havia invasões realmente, prisões de estudantes que foram retirados de sala de aula, a prisão do chefe de Departamento de Ciências Sociais, Ruy Coelho, a demissão obrigatória do diretor da Faculdade de Filosofia, Eduardo d'Oliveira França. Enfim, as pressões eram de todo tipo, mas os cursos se mantiveram, inclusive nos seus programas bibliográficos anteriores a esse endurecimento maior do regime militar. Por exemplo, a gente mantinha Marx, só cortamos referências a Lenin, Trotski. Era um acordo interno nosso. Marx tinha que ser dado. Houve uma relativa preservação nesse período. Por isso a Universidade, melhor dizendo, parte dela (porque setores dela apoiaram as intervenções da ditadura) pôde, por exemplo, lutar contra a tentativa de implantação das licenciaturas curtas.

Tais licenciaturas também eram um projeto do governo militar, que transformava o curso de Ciências Sociais, e também a área de ciências, numa licenciatura de dois, três anos. O pessoal da Física na USP, da Matemática, das "ciências básicas", que tinham sido até recentemente parte da Faculdade de Filosofia, que sempre foi mais politizado, e até hoje é, fez um movimento grande que conseguiu barrar a implantação desse tipo de licenciatura.

Mas eu acho que, de fato, estrategicamente não houve da parte do governo militar um interesse em desmantelar por completo. Houve perdas substanciais, fundamentais, certa desorganização dos departamentos, mas os cursos foram mantidos. Por isso acho que não é paradoxal.

Agora, na verdade não houve políticas de incentivo dos governos militares para as Ciências Sociais; nenhum investimento em especial, a não ser a questão da criação da nova pós-graduação em 1972, pela legislação federal, mas que também não tinha dinheiro. Naquele momento, a USP não teve dinheiro algum. Esses investimentos foram feitos fora, em institutos como o Cebrap, e com dinheiro que também não era do governo militar, mas da Fundação Ford especialmente, ou depois por outras instituições, como a Fapesp. A Fapesp nunca foi comandada ou reorientada pelo governo militar. Ela sempre gozou de certa autonomia.

Você escreveu muitos textos sobre as transformações por que passaram as universidades a partir da redemocratização. Você diria que as mesmas questões postas por você de modo crítico, naquele momento, valeriam para os dias de hoje?

Na verdade, o meu movimento foi de afastamento da Faculdade. E não foi fácil, parecia ser mais fácil então do que é nos dias de hoje, a "crítica e resistência" ao modelo vigente não se constitui mais como questão para mim.

O livro Para uma crítica do presente

Com a instauração da Nova República, tem início a discussão da avaliação, como paradigma de estruturação do sistema universitário, do sistema de títulos dos docentes e da concepção de trabalho intelectual. Na época, eu via esse processo como expressão de uma temporalidade homogênea, de uma produção intelectual homogênea. Isso porque se definiu um prazo cada vez menor para a realização do mestrado e do doutorado; os prazos eram extensos na época em que eu fiz, não tinha essa pressão dos dias de hoje. A ideia de formação estava mais presente, apesar de não se poder dizer, obviamente, que fosse a do ideal do século XIX, mas era de algum jeito a ideia de uma formação universitária, tanto para os alunos como para os docentes, importante para a área de Ciências Humanas e Filosofia. Creio que essa temporalidade mais breve repercute num certo estilo de trabalho intelectual e na ideia de profissionalização mesmo, e de uma organização universitária mais estruturada.

Para você ter uma ideia, um exemplo que pode parecer meio bobo, mas não é, atualmente a pós-graduação da Sociologia é de dois anos e meio para o mestrado, o que significa um ano de curso com quatro disciplinas e mais um ano e meio para fazer a dissertação. Quando fiz mestrado e doutorado, porque acabei indo direto para o doutorado, eram oito anos para o mestrado e mais nove para o doutorado. Isso foi reduzido para cinco anos no começo da década de 1980, no governo Montoro, depois quatro e meio, e depois foi reduzido para dois e meio no mestrado e quatro no doutorado. Isso para mim incide sobre um jeito de trabalhar. Acho que homogeneiza o trabalho, dificulta mais o surgimento de estilos de trabalho diferentes. Basicamente as transformações foram essas, do ponto de vista daquilo que me incomodou mais, a partir de 1985-1986 em diante.

Nessa linha da funcionalização dos cursos de ciências sociais, me opus, como vice-chefe, à proposta de Eunice Durham, chefe do Departamento de Ciências Sociais, de criar três eixos no curso de Ciências Sociais, algo como três habilitações: um eixo de formação de pesquisadores para aqueles que queriam fazer mestrado e doutorado, um eixo profissional para o pessoal que iria trabalhar realmente fora, no mercado de trabalho, e um eixo para o pessoal proveniente de outras unidades da Universidade, que vinha fazer o curso porque tinha interesse, algo próximo de uma formação geral, de uma difusão cultural (o pessoal que vinha da Física, da Poli, por exemplo). A gente se opôs, me refiro a um grupo de professores que conseguiu manter a estrutura do curso de Ciências Sociais até recentemente.

Ao longo dos anos de 1980 e de 1990, foi muito discutida a questão da autonomia universitária, da separação da universidade em relação ao Estado, a ideia de que a Universidade deveria se manter como autarquia, que é uma característica do modelo alemão. Isso foi na verdade um aspecto positivo dessa reforma, que não mexeu na noção de separação, ou melhor, de autonomia da Universidade em relação ao Estado e em relação à sociedade. Porque a partir do Estatuto de 1988 se criou um terceiro objetivo na Universidade: a extensão cultural, que passou a ser entendida em vários registros, incluindo a ideia da prestação de serviços.

Isso se ligava à questão da autonomia, porque não cabe à universidade prestar serviços diretamente à sociedade, cabe a ela pensar, questionar, construir suas reflexões, inclusive propostas para essa relação, mas não prestar serviços diretamente. Esse é o modelo norte-americano. Tal concepção de extensão universitária esteve presente no Projeto Rondon, a partir de 1967, que foi uma iniciativa do governo militar no Brasil. Tinha esse nome por referência ao Marechal Rondon. O projeto era o de uma prestação de serviços do Estado nas regiões da Amazônia, Goiás, Mato Grosso e outras regiões do Brasil, um trabalho de integração nacional com os índios e outras pequenas comunidades; o governo militar usou isso para incorporar os estudantes aos propósitos da ideologia militar sobre a nação, foi uma das estratégias para tentar diluir a política estudantil. O pessoal que era politizado não aderia, mas muita gente que não era nem de direita, nem de esquerda, sim. Também não fez tanto mal, pois muita gente, com essa participação, acabou se politizando.

Uma coisa engraçada é que muito dessa luta era para manter as coisas como estavam. Você lutava para preservar a experiência. Então o curso meio que se manteve, mudou muito pouco.

Hoje não estou mais envolvida propriamente nem com a resistência, nem com a crítica aos rumos da Universidade, por isso saí de lá, foi um dos motivos. Eu já não aguentava mais conviver com essas questões, acabava as reuniões de Conselho e de pós-graduação muito irritada, chegava em casa mal-humorada. Não dava mais. Já tinha tido todas as experiências possíveis, passei pelos conselhos centrais na Reitoria, ou seja, vi como a Universidade funcionava no seu centro de poder, acompanhei as mudanças que levaram à criação dos núcleos de pesquisa. Enfim, cada vez menos era possível um trabalho mais individual lá dentro. Atualmente acho que a maioria dos professores participa de algum tipo de grupo de pesquisa. Há uns anos isso não era tão comum.

Nunca fui propriamente, como estudante, uma militante partidária, ainda que fosse simpatizante, na época dos partidos, dos grupos, antes do AI-5, em 1968. Depois, dentro da Universidade, já como professora, também não era militante, mas estava o tempo todo (não sei se isso seria uma forma de militantismo, mas enfim...) atuando em defesa do que eu acreditava que deveria ser preservado. Era um envolvimento muito intenso, alguma coisa que eu tinha que defender. Durante a ditadura isso foi muito forte, preservar as coisas, preservar os cursos, tentar impedir as licenciaturas curtas, estar muito presente e muito próxima dos alunos. Fase que hoje entendo mais como de resistência do que propriamente de atividade, mas de resistência ativa, isto é, mantendo o padrão de trabalho, de aulas etc. Eram coisas muito claras, e não era só eu, tinha muita gente, mas eu tinha isso imbuído em mim, quase como uma missão.

Com a Nova República, começo a ver que aqueles ideais todos estavam sendo transformados no processo de modernização que se iniciava na Universidade. O que havia sido preservado durante a ditadura, certa concepção de universidade, em especial no que se referia às humanidades, estava em declínio. Tenho a sensação de que passei a minha vida na Universidade na resistência - ou era resistência à ditadura ou era resistência a esse momento da Nova República em diante, que no meu entender desfigurava, ou melhor, iniciava um processo de desfiguração de uma concepção de trabalho intelectual que eu achava que tinha que ser preservada e que era herança da antiga Faculdade de Filosofia. Obviamente não seria mais o mesmo, mas sim um padrão, uma referência, um estilo, a ser mantido. Fui, inúmeras vezes, vista por colegas como "conservadora", por não aderir aos pressupostos "modernos" que então se instalavam. Então, a partir de 1990, resolvi fazer um corte na minha vida, porque não era mais possível, a vida não podia ser inteiramente tomada por essa paixão, que mais parecia uma "missão", analisando a posteriori.

Você poderia comentar o seu deslocamento profissional da sociologia para a psicanálise?

Aqui no Brasil não houve uma proximidade grande entre a psicanálise e a sociologia, a não ser a que foi feita por Roger Bastide nos textos Psicanálise do cafuné, de 1941, Sociologia e psicanálise, de 1950, O sonho, o transe e a loucura, de 1972. Heloisa Fernandes e Paulo Silveira tiveram uma experiência, antes de se aposentarem, em que procuraram estabelecer essa relação; Paulo talvez até mais explicitamente, de trabalhar mais no registro próprio da psicanálise.

No meu caso, à medida que fui fazendo minha análise pessoal, desenvolvendo alguns temas novos nos cursos que dava na Faculdade, acabei enveredando por um tipo de trabalho que passava pela psicanálise, mas a partir de autores que não eram propriamente teóricos da psicanálise, mas que a incorporavam de algum modo, como Adorno, Walter Benjamin, e mesmo Foucault, que a questionava fortemente, assim como a prática psicanalítica. Foucault, no entanto, dialogava com a psicanálise, em especial com Lacan, às vezes implícita, às vezes explicitamente. A partir disso, comecei a trabalhar mais a questão da subjetividade, e passei a utilizar um ou outro texto de Freud. Por exemplo, no curso de pós-graduação sobre a reconstrução histórica, introduzi a discussão sobre o estranho e o familiar, mas não pela óptica da Antropologia, e sim pelo ponto de vista da Psicanálise. Quando fazia sentido, colocava algum texto de teoria psicanalítica nos cursos. No curso de pós sobre a questão da reconstrução histórica, entrava alguma coisa ligada ao romance familiar na psicanálise e às construções em análise (Freud).

Mas a mudança para a prática clínica foi uma transformação e uma reviravolta total na minha vida, e até hoje ainda me recinto por ter mudado um pouco tarde. Comecei a atender no final de 2000, já estava com 55 anos. Primeiro, eu me dei conta de quão isolada vivia dentro da USP, fechada lá na Cidade Universitária, sem conhecer o mundo fora; porque a clínica, em termos práticos, faz você entrar em contato com pessoas que dentro da Universidade eu jamais viria a me relacionar. Óbvio que a relação não é a mesma dentro do consultório, mas você começa a ouvir discursos e falas que, dentro da USP, quase não escuta, porque há um discurso universitário preponderante e mais homogêneo. Você não tem uma diversidade de discursos como acontece na clínica.

Outra coisa que achei engraçado e interessante é que, quando se é funcionário público, você fica acostumado ao seguinte: todo mês o seu salário está lá no banco, você recebe o holerite e pronto. Quando vira um profissional liberal, é outro mundo, não só em relação ao dinheiro, mas pelo fato de ter que se filiar à prefeitura, é o ISS, tem que ter nota fiscal, e tudo isso envolve um despachante para fazer isso; o registro na prefeitura eu não tinha a menor ideia de como se fazia e até hoje não sei, a prestação de contas no imposto de renda muda completamente. Mas de repente a sensação de que eu tinha entrado num mundo que não conhecia, mas que estava ali ao lado... fiquei com a ideia de que na USP, na instituição, a gente fica muito protegido, provavelmente por eu ter estado muito tempo lá.

E a psicanálise tem duas coisas: a prática clínica e o estudo teórico, você não pode deixar isso de lado. Então, tem que fazer as duas coisas, e na verdade isso aumentou meu ritmo de trabalho porque continuo às vezes participando de bancas na Sociologia, ainda tenho orientandos. Com isso tenho que estudar outras coisas, em algumas consigo fazer as pontes com mais facilidade, mas alguns textos do Lacan são muito técnicos, é outro tipo de estudo, o que exige que eu participe de grupos de estudos; enfim, na verdade estou trabalhando muito mais do que trabalhava antes. Além de ser outro estilo de trabalho - antes ficava muito em casa, no escritório, e só ia à Faculdade quando tinha reunião, aula (a não ser no período que estava na administração), e agora não, tenho uma rotina de trabalho fora de casa, no consultório. Mudou muito, não é ainda uma coisa completamente assentada.

Por que você optou por não fazer parte das sociedades psicanalíticas?

Quando eu ainda fazia análise, acho que no final da década de 1990, pensava nessa questão de ser parte ou membro de uma instituição, que era a USP. A dificuldade que eu estava sentindo de ser parte de uma instituição, de trabalhar numa instituição, de ter a instituição como meu meio de ser, essa discussão toda foi bem longa. Lembro até de procurar outra psicanalista para bater um papo sobre essa questão da experiência institucional.

Quando comecei a clinicar, como não sou psicóloga e também não tive uma formação em uma instituição, embora existam instituições em São Paulo em que você pode fazer isso, minha formação ocorreu em grupos de estudos, com psicanalistas diferentes. Por isso, minha prática clínica está fora da referência institucional, por um lado porque não sou psicóloga e não tenho o CRP (Conselho Regional de Psicologia), como exigido em outras profissões, como na arquitetura, na medicina etc. No Brasil ainda é bastante comum pessoas que se tornam psicanalistas sem serem psicólogos ou médicos. Mas em alguns países já está havendo um questionamento a esse respeito. Na França, a tradição é muito aberta, há muitos psicanalistas que são filósofos, historiadores, sociólogos, de formação anterior. Creio que na Argentina a tradição também é mais aberta; a pessoa que coordena meu grupo de estudos há cinco anos é um psicanalista argentino, Alejandro Viviani, que está aqui no Brasil desde 1977.

De qualquer modo, acho que tem sim uma relação entre minha experiência institucional anterior e minha posição atual como psicanalista: hoje eu não conseguiria ser membro de uma escola de psicanálise. Apesar de ter como referência a teoria de Lacan, a psicanálise francesa que passou por Lacan, além, evidentemente, da freudiana, não consigo dizer que sigo um "ensino de Lacan", não consigo dizer que "faço parte de uma escola lacaniana" ou "sou lacaniana", não posso falar isso devido a esse trajeto, às minhas experiências. Para dizer bem a verdade, no "ser lacaniana" ressoa o "ser marxista", lá de trás... Não se trata de um atributo ligado ao meu "ser". Então prefiro transitar um pouco mais, para escutar pessoas, discussões, ir me posicionando, aceitando, discordando, construindo o meu estilo. Prefiro esse caminho a me filiar a uma escola.

É um pouco isso, trabalho, faço supervisões quando é necessário, mas comecei tarde, só faz sete anos e pouco que estou atendendo, embora no contato mais direto com a psicanálise eu tenha bem mais de vinte anos.

  • 1. "Prefácio - Uma crítica do presente". In: Beatriz Sarlo, Paisagens imaginárias: intelectuais, artes e meios de comunicação. São Paulo, Edusp, 1997, pp. 9-22.
  • 1
    . Foi Sergio Miceli, quando estava na Edusp, que me indicou para fazer o prefácio, talvez ele tenha achado que eu teria uma sintonia com ela, e de fato gosto muito daqueles textos, e de outros também.
  • 2
    ). O trabalho é anterior a 1968, o doutorado foi defendido em 1964 ou 1965. O livro acabaria sendo um marco para o próprio movimento estudantil. É uma pesquisa grande e detalhada sobre o comportamento estudantil, mas não era um tema, naquele momento, dos mais valorizados, na cadeira de Sociologia I.
  • 3
    . O livro é um ensaio extremamente interessante que teve que ser feito rapidamente, lembro-me bem disso, para obter a titulação em virtude dos expurgos na Universidade, em abril daquele mesmo ano. É um ensaio basicamente teórico, em que ela faz um levantamento de toda a questão da juventude, que naquele momento estava no auge, tanto no âmbito nacional como no internacional. Por exemplo, ela trabalhava com autores que não eram tratados na cadeira de Sociologia I, como Herbert Marcuse, Pierre Bourdieu, Henri Lefebvre.
  • **
    . Só algum tempo depois da defesa da tese, Antonio Candido me disse que não concordava com a posição de Roger Bastide, do afastamento por motivos políticos. Mas eu acho que Bastide tinha razão, o motivo não teria a ver apenas com o distanciamento da Faculdade para realizar suas pesquisas. Lévi-Strauss, bem depois, fez referência a essa passagem do meu livro em
    Saudades de São Paulo ; estou eu lá citada pelo Lévi-Strauss, ele procura esclarecer a questão.
  • 4
    , que também foi diretor científico da Fapesp durante bastante tempo, que gostava muito do meu livro, sempre fazia referências a ele. E era reitor... Mas isso foi bem depois, já na década de 1990.
  • 5
    . É o título do livro dele.
  • 6
    reúne textos de um momento diferente do atual. Ainda era uma época em que eu estava escrevendo de um ponto de vista crítico sobre essas transformações na universidade brasileira, que, na verdade, não se iniciam na Nova República, mas são retomadas nesse período. Analisando, num plano histórico um pouco maior, você percebe que muitas das discussões e propostas, e aquilo que é efetivado realmente como mudança na universidade, é algo que já estava lá no relatório do Atcon, um movimento de racionalização e profissionalização da universidade nos moldes do modelo norte-americano.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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