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A subjetividade no trabalho em questão

Subjectivity at work in question

Resumos

Neste artigo a subjetividade no trabalho e a centralidade do trabalho na construção do sujeito, da sua saúde mental e sua identidade são tratadas à luz da psicodinâmica do trabalho. Destaca-se, a partir de pesquisas e ações desenvolvidas, a invisibilidade, decorrente do que não é reconhecido pelos outros e pela hierarquia nas organizações. Diferentes maneiras de organizar o trabalho privilegiaram visões distintas e parciais das pessoas, desconsiderando a existência do sujeito. O conceito da racionalidade pathica distingue o sujeito de um operador, sendo a vivência, neste caso, central. O sujeito busca o sentido num processo de realização de si no interior de um coletivo, é aquele que zela para que os resultados do trabalho sejam os melhores possíveis.

Subjetividade e trabalho; Psicodinâmica do trabalho; Organização do trabalho; Saúde mental; Sofrimento


This paper examines the question of subjectivity in the workplace and the central role of work in the construction of subjects and their mental health, in light of advances in the psychodynamics of work. One of the most recurrent issues appearing in studies and initiatives in this field is the invisibility of work, the lack of recognition from others, especially corporate hierarchies. Different ways of organizing work privilege distinct and partial views of people, ignoring the existence of the subject. The concept of pathic rationality helps distinguish a view of the worker's subjectivity in which lived experience is central. The subject looks for meaning in a process of self-realization within a collective, striving to ensure that the end results of the work are as good as possible.

Subjectivity and work; Psychodynamics of work; Work organization; Mental health; Suffering


DOSSIÊ - SUBJETIVIDADE E CULTURA: O SOFRIMENTO NO SOCIAL

A subjetividade no trabalho em questão

Subjectivity at work in question

Laerte Idal Sznelwar; Seiji Uchida; Selma Lancman

RESUMO

Neste artigo a subjetividade no trabalho e a centralidade do trabalho na construção do sujeito, da sua saúde mental e sua identidade são tratadas à luz da psicodinâmica do trabalho. Destaca-se, a partir de pesquisas e ações desenvolvidas, a invisibilidade, decorrente do que não é reconhecido pelos outros e pela hierarquia nas organizações. Diferentes maneiras de organizar o trabalho privilegiaram visões distintas e parciais das pessoas, desconsiderando a existência do sujeito. O conceito da racionalidade pathica distingue o sujeito de um operador, sendo a vivência, neste caso, central. O sujeito busca o sentido num processo de realização de si no interior de um coletivo, é aquele que zela para que os resultados do trabalho sejam os melhores possíveis.

Palavras-chave: Subjetividade e trabalho; Psicodinâmica do trabalho; Organização do trabalho; Saúde mental; Sofrimento.

ABSTRACT

This paper examines the question of subjectivity in the workplace and the central role of work in the construction of subjects and their mental health, in light of advances in the psychodynamics of work. One of the most recurrent issues appearing in studies and initiatives in this field is the invisibility of work, the lack of recognition from others, especially corporate hierarchies. Different ways of organizing work privilege distinct and partial views of people, ignoring the existence of the subject. The concept of pathic rationality helps distinguish a view of the worker's subjectivity in which lived experience is central. The subject looks for meaning in a process of self-realization within a collective, striving to ensure that the end results of the work are as good as possible.

Keywords: Subjectivity and work; Psychodynamics of work; Work organization; Mental health; Suffering.

Introdução

Ao propor uma discussão sobre a subjetividade e sua relação com o trabalho, abre-se uma questão que por muito tempo foi relegada à invisibilidade. O trabalho e os afetos com ele relacionados eram considerados como não relevantes, pois o que mais se privilegiava estava ligado à capacidade de trabalhar do indivíduo. Essa capacidade costuma ser definida a partir das visões preponderantes sobre o que seria o ser humano, em especial aquele que contribui para a produção dos bens necessários à civilização (cf. Arendt, 1981; Dejours, 1999). Para Dejours (2005a), "trabalho é a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda não está prescrito pela organização do trabalho".

Por subjetividade compreendemos antes de tudo "o caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência, que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de 'meus'" (Abbagnano, 1998), mas acrescentamos a essa definição os fenômenos psíquicos inconscientes, no sentido freudiano.

Historicamente observamos também as mais variadas formas de dominação do trabalhador que se expressaram nas diferentes maneiras como o trabalhar foi concebido e controlado. Nas premissas tayloristas-fordistas, o foco era os aspectos físicos e fisiológicos; mais recentemente, com o advento das empresas flexíveis e enxutas, agregaram-se também aspectos mentais e cognitivos. No primeiro caso, o importante seria entender as capacidades humanas, para conseguir controlar as possibilidades de retorno através do esforço físico – desprovido de pensamento – pautado na gestão dos gestos e dos movimentos. Buscava-se conhecer os limites, as possibilidades de garantir a produção por meio da mecânica humana colocada à disposição de sistemas de produção. Com a evolução da tecnologia, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, entra em voga, de modo crescente, a questão da inteligência, entendida como a capacidade do trabalhador de dar conta daquilo que as máquinas e os artefatos exigiriam dele e de garantir o funcionamento do sistema. Caracteriza-se assim o início do reconhecimento de que há algum tipo de pensamento, de inteligência, nas pessoas que poderia ser útil para o processo produtivo.

Apesar de caricatural, esta primeira apresentação da problemática aqui tratada traz em seu bojo uma questão de fundo. As visões prevalentes sobre o ser humano, principalmente daquele que está trabalhando, ignoram a existência do sujeito. Este, quando muito, estaria restrito, segundo uma visão funcionalista, a seus aspectos biológicos e modos de funcionamento e limites. Onde estaria o sujeito capaz de sentir, desejar, decidir diante das incertezas do trabalho, de se constituir, se sujeitar, se emancipar? Como se constitui este sujeito, atuando em diferentes cenários socioculturais e históricos? Como ele poderia ser ator da construção da sua vida profissional, da sua forma de trabalhar e de sua saúde?

Essas questões foram tratadas de maneira muito incipiente pela Ergonomia da Atividade e, de forma contundente e direta, pela Psicodinâmica do Trabalho (PDT) (cf. Dessors, 2009). A PDT se define como a análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos mobilizados pela situação do trabalho. Dinâmico significa que "a investigação toma por centro de gravida-de os conflitos que surgem do encontro entre um sujeito, portador de uma história singular preexistente a este encontro, e uma situação de trabalho cujas características são, por uma larga parte, fixadas independentemente da vontade do sujeito" (Molinier, 2006).

Desde os primórdios desta discussão nessas duas áreas de conhecimento, que têm pontos em comum na forma de compreender o trabalho, evidenciou-se o fato de que não seria possível trabalhar e produzir seguindo-se estritamente as regras predefinidas, principalmente aquelas prescritas por determinados atores da produção – engenheiros e gestores. A existência, inexorável, de discrepância entre aquilo que estava previsto e prescrito e a realidade foi e é um dos pontos centrais da discussão sobre a atividade, para a ergonomia. Assim, todos os que trabalham agem de modo diferente daquele que foi prescrito, para dar conta da variabilidade tanto no que diz respeito às condições e exigências da produção, como em relação às variações do estado de cada indivíduo e à diversidade humana, sempre presente (cf. Guerin et al., 2001; Hubault, 2000, 2004; Maggi e De Terssac, 2004).

No entanto, apesar de haver orientações principalmente da escola sociotécnica com relação à organização do trabalho, que propõem um mínimo de prescrição e, portanto, reconhecimento implícito desta discrepância irrevogável, as escolas dominantes, baseadas em princípios tayloristas e fordistas, mesmo que envoltas em uma aura de modernidade, mantêm o paradigma da relação concepção-execução como aspectos estanques e separados.

Já para a PDT, a questão da relação entre o prescrito e o real, também presente em quase toda sua trajetória, é tratada sob o ponto de vista do zelo, isto é, como as pessoas se engajam para que a produção saia a contento. O zelo seria um ponto-chave, fundamental para que de fato haja produção. Para obter resultados, seria necessário que cada ator-trabalhador se colocasse em jogo e, ante a resistência do real, isto é, diante dos imprevistos que surgem no trabalho, agisse de forma criativa. Dejours (2005b) adota então uma definição do trabalho que é afeita à ação no âmbito da discrepância entre o prescrito e o real. Para evitar as confusões entre o trabalho real que implica a cooperação e o zelo, utilizam-se igualmente os termos trabalho efetivo ou trabalho realizado para falar do real do trabalho. Isto permite também distinguir o trabalho efetivamente realizado (e pelo qual a pessoa pode ser reconhecida) daquele que a pessoa teria eventualmente desejado realizar. Outro ponto que Dejours enfaticamente defende é o de que o real se faz de início conhecer emocional e afetivamente. Quando o trabalhador se frustra, se irrita, se sente mal, se sente perdido e confuso diante dos imprevistos é que ele, através destas reações emocionais, se dá conta do obstáculo e da resistência do real (cf. Idem).

Há aí uma forte inspiração em conceitos oriundos da metapsicologia psicanalítica, pois o trabalhar envolve não só a razão, mas também desejos, afetos e emoções que estão relacionados com algo que não está estabelecido, normalizado e apaziguado. Ao contrário, o trabalho seria um esforço para superar o não prescrito, uma construção constante, que acrescente algo àquilo que não se previu, que está em constante negociação entre o desejo e o real.

Desse modo, se tudo fosse resolvido pelas prescrições, não seria necessário trabalhar. Bastaria operar, no sentido proposto pelas visões mais clássicas e reducionistas de certas escolas de organização. Operar, funcionar e respeitar as prescrições seria a perspectiva de um trabalhador enquanto instrumento ou recurso da produção, não a de um sujeito. Logo, as premissas da PDT estão centradas nas possibilidades do desenvolvimento dos sujeitos. Para esta abordagem, deve-se considerar que não existe um sujeito isolado, solipsista, ele existe e se constitui numa relação intersubjetiva na qual o trabalho é elemento indissociável. É sempre em relação ao outro que ele se constrói, existe e pode ser reconhecido; portanto, as relações entre o coletivo dos trabalhadores é fundamental. A PDT, ao focar o sujeito, não estaria propondo uma individualização e um isolamento do trabalhador, numa relação entre seus desejos e conflitos com a produção. Ao contrário, não apenas em seus fundamentos teóricos, mas sobretudo em suas propostas de ação, a importância do outro, do coletivo, é central. A construção de um caminho no sentido da emancipação não seria um movimento individual, isolado, mas um caminho com e em relação com os outros, pautado na intersubjetividade e na constituição de coletivos. Assim, fica evidente a importância e a centralidade do trabalho para a constituição dos indivíduos e da sociedade.

Outra questão central para as ciências do trabalho, em especial para a PDT e para a ergonomia, é a questão da saúde. Assim como se constroem as competências profissionais, aqui entendidas como o potencial para agir, a saúde seria, inspirado na proposta de Dejours, construção, busca, ideal, objetivo a ser atingido, mas nunca totalmente alcançado. Distante da proposição que considera a saúde mais um estado de bem-estar do que uma contraposição à doença, a sua definição estaria relacionada, de um lado, com uma dinâmica de vida pautada pelo que as pessoas fazem e podem fazer dentro de determinadas condições organizacionais e, de outro, com seus aspectos genéticos e fenotípicos. Desenvolver a saúde é desenvolver um patrimônio fundado num corpo-sujeito dentro das incertezas e buscas de continuidade, moderada por desafios constantes (cf. Dejours, 2009).

Nesta perspectiva, é necessário introduzir a questão da relação sofrimentoprazer associada ao trabalho, elemento central para a PDT. Muitos criticam a PDT por considerá-la reducionista, pois ao focar a questão do sofrimento estaria evidenciando os aspectos negativos do trabalho numa espécie de ode ao sofrimento, que, como consequência, seria uma espécie de indutor de seu crescimento e serviria para torná-lo o ponto central do trabalhar. Isto não corresponde ao que de fato propõe este campo do conhecimento, cuja intenção é evidenciar a racionalidade pathica com relação ao trabalhar. Assim, trata-se das vivências dos sujeitos, da sua relação com o mundo através de seu corpo e da sua psiquê. O sofrimento no trabalho torna-se evidente quando não é mais possível transformá-lo em prazer através das realizações do sujeito, reconhecidas pelos outros como úteis e belas. Ou, como afirma Molinier, "o sofrimento no trabalho começa no momento em que ele se torna patogênico, isto é, exatamente lá onde a parte criativa do trabalho cessa" (Molinier, 2006, p. 60). Segundo Dejours:

O sofrimento começa quando a relação homem-organização do trabalho é bloqueada, quando o trabalhador utilizou ao máximo suas faculdades intelectuais, psicossensório-motoras, psicoafetivas de aprendizagem e de adaptação. Quando um trabalhador utilizou tudo o que dispunha de saber e poder sobre a organização do trabalho e quando ele não pode mais mudar a tarefa; isto é, quando esgotou os meios de defesa contra o constrangimento físico. Não é tanto a importância dos constrangimentos mentais ou psíquicos do trabalho que faz aparecer o sofrimento (se bem que este fator seja uma evidência importante) quanto a impossibilidade de toda a evolução em direção ao alívio. A certeza de que o nível atingido de insatisfação não pode mais diminuir marca a entrada no sofrimento (Dejours, 2000, pp. 78-79).

Molinier e Dejours falam de situações em que é necessária a criatividade para resolver os desafios que o contexto de trabalho apresenta ao trabalhador. A elaboração criativa dos imprevistos e problemas envolve um sofrimento criativo, ou seja, sofre-se criativamente para enfrentar a situação. Quando o trabalhador utilizou todos os seus recursos e não tem mais como mudar a tarefa, surge o sofrimento patogênico. Falar em sofrimentos criativo e patogênico não significa que existam dois tipos de sofrimento, mas que na realidade esses termos designam dois destinos diferentes do sofrimento: "O destino do sofrimento criativo é o de se transformar em prazer e em experiência estruturante. O destino do sofrimento patogênico é a doença que surge quando as defesas não cumprem mais sua função defensiva" (Molinier, 2006, p. 60).

Falar da criatividade implica para Dejours compreender que ninguém se sabe criativo ou considera sua produção criativa. É na relação com o outro, que julga e reconhece nosso trabalho ou nossa obra como engenhosa e criativa, que teremos certeza do que realizamos. Ou seja, será no campo social que criaremos a consciência de nossa criatividade. Dejours alerta ainda que é sempre o fazer que deve ser julgado, e não o ser. Para a PDT, dois são os critérios fundamentais que o outro (chefia, clientes e pares dentro da organização do trabalho) utiliza para avaliar o que fazemos: utilidade e beleza. A chefia e os clientes irão julgar se o que realizamos é útil econômica e socialmente. Já o par julgará se a nossa solução, obedecendo às regras de ofício, foi bela. Daí expressões como "foi bela a sua solução", "que beleza de trabalho", para ressaltar a originalidade e a singularidade do que realizamos. Este julgamento e reconhecimento do outro é essencial para a realização de si e a construção da identidade, condições essenciais para o desenvolvimento e o amadurecimento do indivíduo no trabalho.

Por identidade, a PDT entende a

[...] armadura da saúde mental, o resultado do trabalho de unificação psíquica que mantém o sentimento de estabilidade e coerência do eu através do tempo e dos destinos da história singular. Nossa identidade não está jamais completamente assegurada, vê-se na necessidade de ser reconfirmada sem cessar, essencialmente, ante o olhar do outro. Se este olhar é subtraído no caminho, ou o que é pior, desde o princípio, isto implica que a dificuldade para construir uma unidade psíquica pode desembocar na enfermidade mental. Nesse sentido, a saúde é intersubjetiva (Molinier, 2006, p. 60).

Aprendemos com a psicanálise que a construção da identidade como processo de individuação e desenvolvimento da identidade sexual é sempre inacabada e marca o sujeito com impasses relacionais oriundos das relações primitivas com os pais. Dessa forma, "o sofrimento do sujeito é herdeiro do sofrimento de seus pais. O sofrimento é, portanto, [...] ontologicamente primeiro, existencial e anterior ao trabalho" (Idem, pp. 60-61).

Lancman e Uchida explicitam este processo. Os autores observam que Dejours pensa a gênese do sofrimento que preexiste ao trabalho pelo conceito de angústia do ponto de vista psicanalítico. Analisa sua origem no sujeito em suas relações primitivas com os pais.

A criança, inicialmente, é suscetível à angústia dos pais, principalmente aquela com a qual os pais têm dificuldades de lidar. Ao vivenciá-la, passa a senti-la como se fosse sua, pois nesta etapa de sua vida não tem condições de distinguir o que é seu e o que é dos seus pais. Quando adquire a capacidade de falar, tenta expressar esta angústia para poder elaborá-la, mas infelizmente não encontra espaço psíquico propício nos pais, pois estes não têm condições de ajudá-la na medida em que a criança recoloca em cena aquilo que os fez sofrer. Esta angústia não elaborada vai adquirir uma característica enigmática e será origem de uma curiosidade jamais satisfeita, de um desejo de saber e compreender que periodicamente será reposto pelas situações conjunturais.

Ao mesmo tempo, vai-se constituir como zona de fragilidade psíquica do sujeito, uma face obscura e para sempre desconhecida. Um dos espaços sociais privilegiados em que esta criança, ao se tornar adulto, vai repor esta angústia é o trabalho. Neste locus irá procurar, indiretamente, elaborar este sofrimento primitivo e, a cada enigma do trabalho que resolve, sentirá que se fortalece psiquicamente e a zona de obscuridade diminui um pouco (Lancman e Uchida, 2003).

Um dos aspectos essenciais da questão do trabalhar está ligado ao fato de que os sujeitos precisam desenvolver suas atividades em cenários que, em grande parte, são modulados por decisões de outros e que de alguma maneira determinam aquilo que deve ser feito. São eles que definem os preceitos organizacionais que pautam as relações dentro de determinada organização, são eles que definem as tarefas e a maneira como os sujeitos serão avaliados. Trabalhando em cenários onde parte significativa das suas possibilidades de agir são definidas de modo heterônomo, cabe aos sujeitos negociar suas margens de manobra e constituir coletivos nos quais poderão encontrar espaços para criar formas de solidariedade e de cooperação.

Todavia, certos modos de organizar o trabalho, principalmente aqueles que buscam combater a organização coletiva de trabalhadores em qualquer nível da hierarquia e pautados em processos cada vez mais sofisticados de individualização, podem ser bastante perigosos no que diz respeito à saúde mental. Neste âmbito, há inúmeros exemplos, principalmente em empresas de serviços de massa, que ilustram essa perspectiva. Ao se constituir um sistema de trabalho, bastante comum em centrais de atendimento mediado por telefone, que privilegia de todas as formas tarefas nas quais, para se obter resultados, o sujeito trabalha quase completamente isolado, a possibilidade de formação de coletivos fica bastante comprometida. Coerente com esses preceitos organizacionais, todo o processo de avaliação, recompensa e punição é centrado no indivíduo, assim como a responsabilização por aquilo que não dá certo. A existência de equipes de trabalho, como muitas vezes são denominados os agrupamentos de trabalhadores sob a supervisão de um superior hierárquico, reveste-se de fortes tintas de eufemismo (cf. Dejours, 2003).

Infelizmente este tipo de paradigma organizacional se tornou muito prevalente em atividades de serviço. Aparentemente inspirados em princípios tayloristas-fordistas, a impressão é de que a disseminação de seus conceitos aparece como a única possibilidade de organização do trabalho nessas empresas; aquelas que, por desventura, adotam outros preceitos, estariam fadadas ao insucesso. Ao que tudo indica, o paradigma organizacional proposto radicaliza os pressupostos do taylorismo-fordismo, onde há uma linha de montagem que mantém interdependência entre os trabalhadores, uma vez que a tarefa de quem trabalha a jusante é, pelo menos em parte, modulada por aquilo que seu colega realiza a montante. No caso de uma central de atendimento, não é essa a realidade. Os trabalhadores de atendimento são dispostos como uma grande linha de frente que recebe as chamadas e onde cada um desenvolve seu trabalho isoladamente. Não existe espaço para a cooperação; ao contrário, a competição prevalece. Aliás, qualquer contato pode ser considerado uma interferência negativa para o desenvolvimento da atividade. O controle exercido sobre os trabalhadores também privilegia a ausência de trocas, o isolamento.

Pergunta-se: não seria este tipo de organização do trabalho detentor de um amplo potencial patogênico? Os estudos desenvolvidos nas centrais de atendimento mediado por telefone, em bancos, em empresas de cartão de crédito, em empresas de telefonia (cf. Sznelwar e Mascia, 2000; Sznelwar e Abrahão, 2007) corroboram a hipótese deste potencial patogênico. Uma quantidade muito significativa de trabalhadores sofre de distúrbios psíquicos e músculo-esqueléticos.

Poderíamos imputar esses problemas em grande parte à falta de um coletivo, desestruturado pelos processos de competição, que poderia servir como proteção, como locus privilegiado para a criação de normas, para o desenvolvimento de atividades deônticas. Estas dependem basicamente das dinâmicas de troca que possam ser construídas, deliberadas, da criação de regras de ofício comum e que ajudem a tecer relações profissionais de qualidade, isto é, que permitam aos trabalhadores existirem como sujeitos. A constituição de uma profissão depende da possibilidade de fazer parte de determinado coletivo fecundado por regras mais ou menos estabilizadas. O quanto cada um contribui para o enriquecimento da profissão e, nesta construção, reforça sua identidade, ao trilhar um caminho para a realização de si, é fundamental na busca da saúde.

Nesta perspectiva, a cooperação será um dos pilares fundamentais para que se constitua um ambiente de trabalho em que haja confiança naquilo que os outros fazem. A confiança só pode se estabelecer em situações em que o outro consegue avaliar aquilo que cada um faz, como age e de que maneira contribui positivamente para o trabalho coletivo. A constituição de uma vida comum no trabalho é possível se houver condições para isso e, sobretudo, se as atitudes da hierarquia da empresa, no longo prazo, não forem contrárias. Há hoje mecanismos muito mais sutis para destruir os coletivos se compa-rarmos aos métodos prevalentes no período da industrialização em massa, no começo do século passado, em que o controle sobre os trabalhadores ainda era muito mais incipiente. Para destruir a solidariedade entre os indivíduos, bastou a instituição de mecanismos cada vez mais sofisticados para reforçar a concorrência e o espírito competitivo. Ameaças veladas, como a perda do emprego ou de premiação, funcionam e são muito eficazes. Constituir um ambiente de confiança entre os trabalhadores é um longo processo, destruílo é aparentemente muito rápido e relativamente fácil. Completando esse quadro, a instauração de mecanismos de controle individualizados e sistemáticos, apoiados por sistemas de informação de alto desempenho, permite às hierarquias obter um conhecimento sobre as ações dos indivíduos de modo mais preciso e em tempo real.

Não seria um exagero imputar a esses modos de organização do trabalho graves problemas de saúde mental, como síndromes do pânico e depressões. Este fato reforça a ideia de que a dominação sobre os trabalhadores está longe de ser ultrapassada e põe de lado a sua preconizada substituição por meios mais democráticos de gestão. Em casos extremos, redundam em tentativas de autoagressão, levando a suicídios às vezes em escala nunca antes notificada em determinadas empresas.

Dentre as hipóteses avançadas por pesquisadores em PDT, impasses podem ser criados pelo fato de os sujeitos se verem compelidos a agir de acordo com preceitos que consideram eticamente condenáveis. Há muito espaço em uma determinada organização para que se cometam as mais variadas formas de perversão. Nesta perspectiva se situam as diferentes formas de assédio que têm como características a invisibilidade e o fato de estarem dirigidas às pessoas de maneira individual.

Nesses cenários, são possíveis as mais diversas práticas, que, infelizmente, se tornaram muito frequentes. O simples não reconhecimento do esforço feito pelos sujeitos para produzirem com qualidade, muitas vezes em situações adversas, já seria uma maneira insidiosa de reforçar o registro do sofrimento patogênico. Práticas mais sofisticadas, aplicadas de maneira sistemática para desestabilizar as pessoas, fazem parte inclusive de temas explorados por consultores (cf. Durieux e Jourdain, 1999). Sua banalização é um cenário possível e existente. O desdém, o menosprezo pelo desempenho dos outros e pelo que são, seria a consequência esperada.

Nesta perspectiva, ficam mais evidentes certas ambiguidades que se constroem na implantação de sistemas de qualidade. Sistemas de avaliação que desconsiderem o zelo, aquilo que as pessoas fazem para bem trabalhar e conseguir resultados adequados, induzem a práticas pautadas pelo cinismo, uma forma de defesa muito comum e que reforça a desconfiança.

Nas empresas onde esses cenários são prevalentes, surge um desafio de monta. Como transformar essas situações? Como criar novos acordos com relação ao trabalho e que tipos de compromisso poderiam ser implementados visando à construção de modos menos nefastos de produção? Parece-nos evidente que as relações sociais de produção são construtos nos quais questões de dominação, de diferenças sociais e culturais estão presentes e atuam como moduladores fundamentais com relação ao vivido pelas pessoas. Todavia, a existência de espaços de discussão, deliberação e construção de acordos é importante para o desenvolvimento dessas relações, reforçando a existência dos coletivos e permitindo que os sujeitos trilhem caminhos em direção à realização de si e à emancipação.

Ação em psicodinâmica do trabalho

A psicodinâmica do trabalho não pode ser resumida a uma tentativa de entender o trabalhar dos sujeitos, numa busca de aprofundar o conhecimento somente sobre este aspecto que se sabe central da vida. Reforçar a centralidade do trabalho e sua importância para os sujeitos, trilhar um caminho em busca da emancipação numa perspectiva intersubjetiva é a perspectiva primordial deste campo. Assim, a proposta não se resume a um estudo sobre o trabalhar, mas sim à constituição de um processo de ação, onde quem atua por meio da psicodinâmica do trabalho age como um facilitador, como alguém que se propõe a uma escuta arriscada, a um papel de sistematizar ideias construídas em grupos de expressão. Agir com grupos de expressão constituídos por trabalhadores, quase sempre homogêneos no que diz respeito à profissão e ao nível hierárquico, é consonante com as propostas de Arendt, postas em prática por Dejours e diferentes pesquisadores em PDT, visando facilitar a expressão no que diz respeito às vivências do trabalho.

Propor a constituição de grupos de expressão inspirados na construção de um discurso comum, pautado na perspectiva de uma racionalidade pathica, exige dos proponentes a resposta a diferentes demandas sociais referentes às questões tratadas pela PDT, em especial à relação entre o sofrimento e o prazer (cf. Dejours, 1987, p. 52). Ainda, aquilo que estamos buscando situa-se na perspectiva da racionalidade dramatúrgica ou racionalidade em relação à representação do eu. Trata-se de evidenciar a importância do agir expressivo, que é constituído por formas por intermédio das quais a ação deve ser posta em cena para que sua legitimidade e sua justificação possam ser compreendidas pelo outro. O agir expressivo está ligado à dimensão intersubjetiva, inerente à ação. O mundo que alimenta o agir expressivo é o mundo subjetivo (Dejours 1997, pp. 68-69).

Assim, partindo de uma determinada solicitação, procura-se entender as origens dessa questão e propor aos trabalhadores que constituam grupos de expressão, formados por voluntários que estejam dispostos a compartilhar com colegas e pesquisadores suas experiências. Reitere-se que esta troca visa à construção de um discurso comum, que seja fruto do trabalho coletivo construído ao longo das horas que passam juntos, balizadas pelo objetivo de, após desvelar as vivências como sujeitos, construir um discurso comum que reflita aquilo que o grupo constitui. Cabe, portanto, aos pesquisadores que também trabalham em grupo (duas ou três pessoas) escutar, observar, se deixar envolver, sistematizar e devolver aos integrantes do grupo um documento que seja por eles validado e que reflita o melhor possível aquilo que o grupo construiu conjuntamente. Para isso, o importante é buscar recuperar aquilo que se passou, refletir sobre o dito, mas também sobre o não dito, para permitir, nos momentos de validação, um processo final de enriquecimento do conteúdo do documento que se tornará público. O trabalho dos pesquisadores é enriquecido por um processo de supervisão desenvolvido por um colega, que não participa diretamente do grupo, mediante discussões e reflexões sobre o conteúdo das falas e a condução dos trabalhos.

Outra etapa a ser constituída, além da entrega de um documento final validado pelo grupo, é propor um processo de validação ampliada, em que colegas que não participaram diretamente do processo possam ter acesso a essas questões e trabalhá-las, para no final contribuir no sentido do enriquecimento dos resultados, difundir mais o debate e permitir que aumentem as possibilidades de transformação do trabalhar em coletivos maiores. Uma vez que haja identificação com aquilo que foi constituído em determinado grupo de expressão e que ocorra ressonância com suas próprias vivências, isto vai permitir o deslocamento de um posicionamento solipsista com relação à questão do sofrimento e do prazer no trabalho para um posicionamento mais coletivo. O que está em jogo não seria mudar de atitude para aceitar imposições da organização do trabalho, mas facilitar um movimento em prol da transformação do trabalho em si.

Propor que as pessoas expressem e reflitam sobre questões sensíveis do seu trabalhar e que ao mesmo tempo as afetam pessoalmente é um processo arriscado. Isso implica por parte dos facilitadores uma preparação para acessar a vulnerabilidade do outro, desenvolver uma escuta que ajude as pessoas a compreender que os desafios do trabalhar não é uma questão individual e que os sentimentos de fracasso, medo, inaptidão, não devem ser tratados como um reflexo exclusivo de características pessoais, mas também talvez resultantes de maneiras inapropriadas de se constituir a organização do trabalho.

As maneiras de organizar o trabalho que privilegiam o individual e focalizam todo processo de constituição das relações nas organizações numa perspectiva de isolar as pessoas e solicitar que o desempenho de cada um seja o mote principal – em detrimento da construção de coletivos em que predominem a cooperação e a solidariedade – devem ser compreendidas e, se possível, superadas na constituição dos processos de produção. Estão em jogo relações de poder e dominação que, mesmo sem serem focos de uma ação em PDT, constituem os cenários onde as práticas mais ou menos nefastas podem se constituir. Uma ação em PDT não é uma proposta de apaziguar conflitos ou de transformar diretamente as relações de poder, mas sim de permitir que, a partir da expressão dos trabalhadores, se possam constituir processos de deliberação que ajudem a transformar a organização do trabalho.

Reflexões sobre ações em PDT

Partindo de diferentes tipos de demanda, expressas por diversos atores sociais, foram realizadas ações ao longo dos últimos vinte anos por pesquisadores que buscaram desenvolver este campo em nossa realidade. Essas ações, inspiradas na PDT e de acordo com os seus preceitos, foram propostas para diferentes grupos profissionais (cf. Sznelwar et al., 2004; Lancman e Andrade, 2006; Lancman et al., 2007). Ressalte-se que as demandas não foram endereçadas para este grupo enquanto um coletivo de pesquisadores em PDT, mas sim como profissionais identificados no espaço público como atuantes na área de saúde e trabalho, reabilitação e ergonomia, pois a PDT era pouco conhecida em nosso meio. Assim, muitos trabalhos desenvolvidos foram originados em demandas ligadas aos poderes públicos, a determinadas empresas e, mais recentemente, a sindicatos de trabalhadores. Dentre os profissionais que participaram dessas ações, os mais prevalentes foram trabalhadores dos setores bancário-financeiro, de centrais de atendimento, de serviços de atenção primária e secundária em saúde pública, de transporte público, de limpeza hospitalar, de segurança pública e aqueles responsáveis por regular o tráfego de veículos.

A partir de reflexões sobre os resultados dessas ações, ressaltamos dois aspectos fundamentais:

a) A perspectiva de falar e ser ouvido sobre a sua experiência e de aprender a ouvir os outros com relação a questões semelhantes é uma vivência ímpar. Aquilo que se constrói nos grupos pode servir como reforço fundamental para a identidade dos sujeitos e para criar novas perspectivas com relação ao trabalho.

b) A possibilidade de se apropriar do sentido por meio de um documento em que o sujeito se sente, de certa forma, como criador e, através dele, representado, abre uma nova perspectiva para ele. Desvelar algo que sempre fora invisível no espaço público e cujo conteúdo autoriza a ser divulgado propicia algo não vivido anteriormente. Ser proprietário de um discurso comum constituído de questões íntimas sobre o trabalhar onde cada qual pode identificar-se é inédito para aqueles que participaram.

A incerteza que se instala na finalização desses processos, tanto para os sujeitos participantes como para os pesquisadores, traz muitas inquietações. Será que este tipo de ação propiciará uma transformação de fato? Os coletivos saíram mesmo reforçados? Aquilo que foi vivenciado ajudará os sujeitos a trilhar caminhos no registro da emancipação em detrimento dos processos de alienação? O papel dos pesquisadores termina na entrega dos documentos e nas mais variadas formas de disseminação dos resultados ou haveria outros momentos a serem construídos?

Parece evidente que todos esses aspectos refletem os desafios da constituição do campo, principalmente como perspectiva de ação na pólis, no sentido mais primordial da política, o de agir no espaço público para facilitar processos mais amplos de deliberação relativos a um aspecto fundamental da cidadania, que seria a existência e a constituição dos sujeitos através do trabalhar.

Dentre as ações citadas, apresentaremos a seguir alguns exemplos de resultados:

Para quem trabalha com enfermagem, um dos pontos fundamentais é garantir que o processo de cuidado do paciente seja finalizado em conformidade com as necessidades desse e que não haja erros. Este profissional que mantém o contato direto com aquele que necessita de cuidados é quem finaliza o processo e que pode reparar uma falha que ocorreu a montante, mas também é ele quem pode introduzir uma falha que não poderá mais ser recuperada. Portanto, ser preciso em suas funções e ter condições de trabalhar de maneira segura são centrais nesta profissão (Sznelwar et al., 2006).

Ainda neste caso, trabalhar com enfermagem exige compaixão, ou seja, nada se pode fazer com relação ao outro se a subjetividade não for mobilizada. É evidente que não se trata nesse sentido de uma profissão em que se possa "cumprir procedimentos" sem se deixar invadir pelo outro, pelo sofrimento do outro. Exigir que um profissional de saúde, mais especificamente o pessoal de enfermagem, se atenha exclusivamente àquilo que pode ser definido como "técnico", "procedimental", portanto frio e exclusivo do mundo da tarefa, seria destruir um dos pontos centrais da profissão. Poder sofrer, sentir junto, chorar são fundamentais na constituição deste corpo de profissão. Sobretudo, poder compartilhar com colegas e valorizar este aspecto central da profissão torna-se algo fundamental para evitar um processo de reificação dos trabalhadores e também dos pacientes.

A ação desenvolvida com os Agentes Comunitários da Saúde (ACS) foi bastante esclarecedora com relação à subjetividade no trabalho. Trabalhar como ACS e acompanhar a vida das famílias em determinadas comunidades exige dedicação sem limites e capacidade de se dispor a criar soluções para questões muito complicadas, em situações de carência, violência e demanda sem fim. Este tipo de trabalho, assim como o de outros trabalhadores que atuam em serviços básicos de saúde, em especial no Programa de Saúde da Família (PSF), é construído na arte do acompanhamento, na possibilidade de se envolver com as famílias sem confundir os papéis, trabalhando como alguém que, ao mesmo tempo, porta uma mensagem do Estado e uma mensagem dos cidadãos. Traduzir essas mensagens e transformá-las em ações efetivas para promover a saúde das pessoas é um grande desafio, que abre o caminho para a construção da profissão e da promoção da própria saúde desses trabalhadores. A inexistência de condições propícias para isso e a falta de reconhecimento dos pares, dos outros profissionais e dos gestores do sistema podem se tornar graves entraves. Isso pode gerar condições para que não haja qualidade no trabalho e criar cenários que favoreçam o sofrimento patogênico (cf. Lancman et al., 2007).

Os trabalhadores que atuam em serviços especializados para pacientes com distúrbios mentais graves e persistentes são outro exemplo. Trabalhar com a assim chamada "loucura" requer destes profissionais a construção de um coletivo que os faça sentir mais seguros via a constituição de espaços de cooperação, como é o caso dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Trabalhar nesta perspectiva é se envolver, é entrar no "banho", é se molhar. Atuar com este tipo de doente, com distúrbios mentais severos, como no caso de certos quadros psicóticos, é estar sempre em busca de soluções criativas, do reconhecimento de sua qualidade e do apoio de colegas e da hierarquia, apesar de não se poder avaliar os resultados pela cura dos pacientes, pois a maioria dificilmente tem "alta". O reconhecimento do trabalho aparece tanto pela expressão dos próprios doentes como pelas pequenas ações de todos que trabalham nessas instituições (cf. Lancman, 2008).

Nos serviços hospitalares há uma série de profissionais cujo trabalho é ainda mais invisível, pois se trata de pessoas que atuam em setores responsáveis por manter as condições propícias para o atendimento e o desenvolvimento de ações de outros profissionais. Um exemplo seria o trabalho de profissionais da limpeza. Tipicamente, é um trabalho de bastidores, em que, por mais que se faça, o resultado dificilmente é reconhecido ou, ainda, reconhecível. Um dilema fundamental, mais ainda em hospitais, seria: o quão limpo é o limpo? Neste caso, não se trata de uma limpeza trivial, pois o temor de infecções hospitalares é constante. A possibilidade de reconhecimento pelos pares de um trabalho benfeito e belo torna-se muito difícil, ainda mais que, muitas vezes, alguns trabalham isoladamente em clínicas onde não há outros colegas da limpeza, mas sim trabalhadores de diversas categorias profissionais que pouco conhecem sobre a sua "arte". Além disso, a sua ação não se limita a limpar: o fato de se sentirem integrantes da comunidade hospitalar faz com que cooperem agindo em situações que não lhes caberiam diretamente, como acudir alguém ou prestar alguma informação. Nesta perspectiva, processos de terceirização de atividades considerados como "não fim" em hospitais devem ser vistos com muito cuidado, pois esses profissionais expressam que se sentem mais identificados com as clínicas onde trabalham e com o trabalho de cuidado do que com a limpeza (cf. Sznelwar et al., 2004).

Quando se trata do trabalho bancário-financeiro e em centrais de atendimento de outras áreas da economia, uma questão que surge com frequência crescente e preocupante diz respeito à mentira. Mentir para um cliente, para um colega, para a hierarquia, para um subordinado tornou-se bastante banal. Há situações onde, apesar de não estar documentada, a mentira se torna quase que prescrita. Quando um superior hierárquico diz ao trabalhador que ele pode responder qualquer coisa, ou ainda quando as metas devem ser cumpridas a qualquer custo, mesmo mediante a venda de determinado produto para alguém que claramente não vai usufruir dele, uma contradição de fato se instaura. Qual seria o verdadeiro papel deste trabalhador, atender ao público e resolver problemas ou agir de qualquer maneira, contanto que cumpra o que lhe é imposto? A banalização dessas práticas e a desconsideração da importância desse tipo de serviço como uma verdadeira atividade profissional são frequentes. Neste cenário, não é de se estranhar que sinais de sofrimento patogênico sejam cada vez mais observadas.

Para trabalhadores que atuam no espaço público da cidade, como policiais e agentes de trânsito, pontos muito interessantes se apresentam com relação ao trabalho e à subjetividade. Um deles diz respeito a questões de gênero: para as mulheres há um grande desafio que se expressa no tema de atuar em profissões que se caracterizam como um trabalho masculino sem perder sua identidade de gênero e, ainda mais, buscar transformar este tipo de profissão ao introduzir a possibilidade de ser uma policial ou agente de trânsito mantendo o registro do feminino. Outras questões que não de gênero são parte fundamental da vivência desses profissionais. Eles agem em situações em que o conflito e a violência estão inexoravelmente presentes. Atuar na prevenção e no apaziguamento é a tônica do seu trabalho. Construir relações de cooperação na comunidade onde atuam é algo fundamental para seu sucesso, mesmo que eles representem um Estado que não necessariamente é bem-visto. Subverter essa situação e criar relações interpessoais em que possam ser considerados agentes de garantia da cidadania não é muito fácil, até porque há grande discrepância na conduta desses trabalhadores e o estigma criado pelo fato de seu trabalho envolver regulações do espaço público e emissão de multas. Muitas vezes os critérios de avaliação do seu trabalho induzem práticas que exacerbam esses conflitos, por exemplo quando são avaliados pela quantidade de autuações e não pelos problemas que evitaram (cf. Molinier, 2006).

Em todas essas situações fica evidente que, dependendo do modo como o trabalho é organizado, do conteúdo previsto nas tarefas e das práticas de avaliação, os cenários que poderiam ser propícios para a construção da saúde, do desenvolvimento profissional e do reforço dos ofícios podem ser bastante deletérios na perspectiva da psicodinâmica do trabalho. Um exemplo muito frequente é avaliar os resultados numa perspectiva apenas quantitativa, sem considerar os desafios reais do trabalho e o inevitável insucesso inerente a qualquer um deles. Este cenário não está presente apenas nas profissões citadas, mas tornou-se muito comum no mundo organizacional em geral, inclusive em meios antes considerados mais distantes deste tipo de organização do trabalho, como o da pesquisa acadêmica. As práticas de avaliação quase que exclusivamente quantitativas passaram a predominar.

À guisa de conclusão

Consideramos a discussão com relação à questão da subjetividade no trabalho e as contribuições da PDT como iniciais e parciais, uma vez que o campo a ser explorado é muito mais abrangente e por recorrermos somente àqueles conceitos que serviram para embasar os pontos de vista aqui explicitados. Em primeiro lugar, trazer para o debate público conceitos sobre a subjetividade fundamentados numa determinada racionalidade é um grande desafio. Propor que se aborde o trabalhar a partir de uma racionalidade pathica, isto é, a partir de como os sujeitos constroem e vivenciam o seu trabalho, é uma tentativa de enriquecer as diferentes representações sociais existentes sobre o trabalho humano. Todavia, conforme já discutido por outros autores (cf. Molinier, 2006), não se trata de um único tipo de racionalidade que estaria em jogo, pois outras abordagens contribuem de maneira significativa, não só para a compreensão do que seria o trabalhar, mas também do que seria uma ação. No caso da racionalidade pathica, a questão reside em como o sujeito transforma o mundo e como seu trabalho o transforma, trabalho este que está inscrito no real do mundo. Por outro lado, agir para transformar o mundo do trabalho de cada sujeito é parte também de uma perspectiva ligada à racionalidade instrumental. Ao mesmo tempo, o trabalhar pode ser entendido a partir de uma racionalidade axiológica, em que a questão da comunicação e de suas possíveis distorções, de um ponto de vista habermasiano, também seria importante. A ação no mundo situa-se numa perspectiva ético-moral, ligada portanto à pretensão de uma vida boa. Por fim, podemos incluir a questão do agir expressivo, fundamental para entender como o sujeito se situa diante dos outros, reforçando a ideia de que a subjetividade é, na realidade, uma intersubjetividade, ou seja, aquilo que fazemos é com os outros e para os outros.

Num mundo em que predomina a lógica do capital financeiro, que exige um crescimento sem fim, impondo metas cada vez mais absurdas e defendendo a ideologia de que os homens são seres com capacidade de superação infinita, observamos a partir de nossas pesquisas várias formas de adoecimento psíquico no trabalho. Na ânsia de corresponder às exigências de que só se é bem-sucedido quando se atinge cada vez mais metas agressivas e rigorosas, observamos que estes sujeitos se tornam visíveis não pelo sucesso, mas pelo preço que passam a pagar, ou seja, pela expressão dos seus sofrimentos patogênicos. Por outro lado, há sujeitos agindo em cenários mais propícios para o desenvolvimento da saúde, o que torna possível a reflexão e a transformação. É nesse sentido que se pode pensar a questão do prazer no trabalho e a emancipação daqueles que trabalham.

Texto recebido e aprovado em 30/3/2011.

Laerte Idal Sznelwar é professor doutor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP. E-mail: <laertesz@usp.br>.

Seiji Uchida é professor doutor da Fundação Getulio Vargas. E-mail: <seiji.uchida@fgv.br>.

Selma Lancman é professora titular do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da FMUSP. E-mail: <lancman@usp.br>.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    2011
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