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Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921)

RESENHAS

Fabio Mascaro Querido

Doutorando em Sociologia, Unicamp

Walter Benjamin. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). São Paulo, Duas Cidades / Editora 34, 2011, 176 pp.

História, linguagem e interrupção da "servidão mítica" no jovem Benjamin

Ainda que o pensamento de Walter Benjamin (1892-1940) se caracterize como poucos por certa descontinuidade e fragmentação teórica, ele manteve no curso de seu desenvolvimento algumas preocupações essenciais. Ao longo desse itinerário intelectual, as novas aquisições teóricas não significaram a ruptura com as que até então vigoravam em seu pensamento, mas sim fizeram com que este se colocasse em um patamar mais elevado de reflexão. Com efeito, a aproximação ao marxismo desse incomum recolhedor dos trapos e das ruínas da vida social moderna, a partir de meados da década de 1920 - sem dúvida o momento mais decisivo de sua trajetória intelectual -, longe de representar uma ruptura total com suas preocupações de juventude, conferiu a estas um novo fundamento teórico, mais consistente, que contribuiria para a consolidação do seu modo idiossincrático de reivindicar a crítica ao capitalismo. Descontinuidade aí não significa ruptura exatamente porque pressupõe de modo dialético uma continuidade subterrânea de temas e reflexões ao longo do tempo.

Escritos sobre mito e linguagem reúne sete ensaios de juventude desse autor que - nas palavras de seu "primeiro discípulo", Theodor Adorno - se sentia, e em certa medida estava, "distante de todas as correntes" (embora também estivesse, como notou Michael Löwy, no "cruzamento de todos os caminhos"). Redigidos entre 1915 e 1921, esses ensaios tratam de questões literárias, ("Dois poemas de Friedrich Hölderlin", de 1915, e "O Idiota de Dostoievski", de 1917), passando por questões de ordem estética ("Sobre a pintura ou signo e mancha", também de 1917), até filosóficas ("Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem", de 1916, "Destino e caráter", de 1919, "A tarefa do tradutor", de 1921, e "Para uma crítica da violência", de 1921).

Esses ensaios revelam a ebulição de um pensamento, cuja forma de composição já manifesta com inteireza a fragmentação que, como dissemos, caracteriza a obra do filósofo. Se a forma ensaio é, no limite - como sugeriu o jovem Lukács de A alma e as formas - , uma forma de arte, ela encontra nos escritos do jovem Benjamin algumas de suas mais proeminentes expressões. A linguagem hermética, mesmo esotérica, confirma a ideia-força - também presente, ainda que de modo diferente, em sua obra posterior - de que "cada frase é escrita como se fosse a primeira ou a última", segundo Susan Sontag. De resto, tal escrita ensaística refletia, naquele momento, as singularidades do pensamento benjaminiano, tensionado que estava entre a recusa romântica da ordem burguesa moderna e a germinação complexa da esperança de um novo reino messiânico no plano da imanência histórica.

Reler esses escritos a partir dos desdobramentos posteriores do pensamento do autor, notadamente após a incorporação heterodoxa do materialismo marxista, parece, devido a esse tensionamento, uma boa chave interpretativa, capaz de devolver a relevância que de fato merecem esses ensaios, em geral pouco estudados, inclusive e sobretudo no Brasil. Trata-se de uma alternativa de interpretação interessante não porque o marxismo fornecesse, para Benjamin, a solução definitiva para suas inquietações de juventude, mas porque foi a partir de uma leitura específica dessa tradição teórica que, nas décadas de 1920 e 1930, o filósofo redimensionou qualitativamente sua reflexão sobre a história, a linguagem, a modernidade. Essa releitura torna possível, portanto, resgatar a importância fundamental dos trabalhos produzidos por Benjamin antes do período sobre o qual se debruçam quase exclusivamente as diversas frentes de recepção de sua obra - tais como a da problemática das mudanças da narração, a da percepção na grande cidade moderna ou a das transformações das práticas artísticas após a emergência da reprodutibilidade técnica.

Tome-se, como exemplo dos benefícios dessa releitura, o caso da concepção benjaminiana da história. Esta, que será magistralmente sintetizada nas teses de "Sobre o conceito de história" - redigidas no ano do seu suicídio, em 1940 -, deita algumas de suas raízes mais profundas em ensaios de juventude, como o brilhante "A vida dos estudantes", escrito entre 1914-1915 (não incluído na presente coletânea), ou o extraordinário "Para uma crítica da violência". Neste último, o messianismo libertário já propugnava a necessidade da violência revolucionária (a "violência pura", de ordem divina) a fim de interromper a dominação da violência do poder, do direito, da "justiça", enfim, de toda concepção mítica do destino como continuidade da catástrofe: "É na ruptura desse círculo atado magicamente nas formas míticas do direito, na destituição do direito e de todas as violências das quais ele depende, e que dependem dele, em última instância, então, na destituição da violência do Estado, que se funda uma nova era histórica" (p. 155).

No ensaio "O Idiota de Dostoievski", por outro lado, Benjamin visualiza na vida infantil uma "infinita potência de salvação" (p. 79) em ruptura com os imperativos do destino mítico. O direito, diz Benjamin no pequeno ensaio "Destino e caráter", "erige as leis do destino, da infelicidade e da culpa à condição de medida da pessoa" (p. 93). O destino, por sua vez, sela "o nexo de culpa do vivente" como parâmetro de sua "servidão mítica". Assim, a verdadeira felicidade não é uma categoria constitutiva do destino, ou, mais amplamente, do continuum histórico. Ao contrário: "a felicidade é, muito mais, o que liberta aquele que é feliz das cadeias do destino e da rede do seu próprio destino" (p. 92); em outras palavras, ela sinaliza a interrupção do "destino demoníaco", e, como a própria revolução depois reivindicada, constitui um "freio de emergência" diante da locomotiva da catástrofe mítica. ("Enquanto houver um mendigo, seguirá existindo o mito", disse Benjamin em Passagens, confirmando a perspectiva da emancipação social como quebra da cadeia mítica).

Portanto, nestes ensaios de juventude, a preocupação de Benjamin com a problemática do mito (ou da "violência mítica" do direito) era tão somente outra faceta de sua preocupação com a história, tal como ressalta Jeanne Marie Gagnebin (p. 9), responsável pela excelente organização, apresentação e notas da coletânea. A contraposição entre história e mito - que, na esteira da tradição judaica, incorpora a oposição entre religião e natureza - já revelava os primeiros contornos da crítica do Benjamin "materialista", no projeto de Passagens, à história petrificada do século XIX, à "história-natural" vivida como um "sonho coletivo", crítica que, para se realizar, reclamava uma perspectiva alegórica em relação ao "amontoado de ruínas" a que convencionamos chamar de progresso (a esse respeito, ver também IX tese em "Sobre o conceito de história"). Em ambos os casos, na juventude e na "maturidade", tratava-se da luta para escapar do domínio da natureza e do mito, adentrando o da religião, que, na matriz judaica, se assenta, por sua vez, no domínio mesmo da história.

Para Benjamin, naquele momento, estava em questão o vínculo indissociável entre razão e linguagem, ou melhor, entre história e linguagem: a história é constantemente reelaborada, rescrita e "atualizada" - para usar uma expressão enfaticamente utilizada em Passagens - pela linguagem, indicando a possibilidade de uma nova maneira de escrevê-la. "Toda manifestação da vida espiritual humana pode ser concebida como uma espécie de linguagem", afirma Benjamin no ensaio "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem", no qual aparecem alguns temas que, alguns anos depois, seriam desenvolvidos em 1925 no "prólogo epistemológico-crítico" de sua tese de habilitação - recusada pela Universidade de Frankfurt - A origem do drama barroco alemão.

A linguagem é também índice do despertar de um "fim messiânico da história" no ensaio "A tarefa do tradutor" - originalmente concebido como prefácio à sua tradução para o alemão da seção "Quadros parisienses" de As flores do mal de Baudelaire. Toda tradução, segundo Benjamin, está dirigida a este horizonte utópico: a busca por um estágio definitivo da construção da linguagem, marcado pela reconciliação e pela plenitude das línguas e, então, pela procura da Revelação oculta nas intenções complementares das diversas línguas específicas. "A tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação" (p. 117). Em nome da "pura língua", rompem-se as barreiras da própria língua, em direção a uma nova escritura da vida e da história.

Em conjunto, os ensaios de Escritos sobre mito e linguagem constituem, então, por essas e por outras razões, uma boa amostra do quanto a vitalidade do pensamento posterior de Benjamin - menos metafísico, mais "materialista" - decorre exatamente de sua capacidade de mobilizar esses estilhaços da tradição judaico-messiânica e do romantismo (sobretudo alemão, mas não só) a partir de uma perspectiva dialética. Esta foi a sua forma de oxigenar e potencializar a crítica da civilização capitalista moderna, formulando - nas décadas de 1920 e 1930 - uma compreensão singular do marxismo absolutamente irredutível às diversas vertentes do pensamento reificado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    2012
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