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Apresentação

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DOSSIÊ - SOCIOLOGIA E HISTÓRIA

Apresentação

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Angela Alonso

"Sociologia sem história parece um estúdio de Hollywood: grandes cenários, alguns brilhantemente pintados, mas sem nada nem ninguém neles. Vista apenas como ciência do presente ou - pior ainda - atemporal, a sociologia perde sua vocação de fixar causas no tempo." A afirmação é de Charles Tilly (2008, p. 120) e está em um de seus últimos livros, Explaining social processes, cujo capítulo 7 funciona como abertura deste Dossiê. Os autores aqui reunidos pertencem ao time dos que se reconhecessem no postulado tillyano de que não há boa sociologia que prescinda de história. São sociólogos que tomaram por objeto processos históricos já concluídos e/ou de longa duração por julgarem que os fenômenos sociais envolvem processos, isto é, embutem tempo, e só podem ser devidamente analisados quando reconstruídos em toda a sua trajetória. Prestam-se, pois, melhor à análise os fenômenos do passado que os do presente, que, ainda em andamento, podem sofrer reorientações de curso que alterem seu sentido.

O estudo sociológico do passado sobrepõe-se naturalmente ao trabalho do historiador, o que gera alianças entre sociólogos e historiadores, mas também estranhamentos e controvérsias entre as disciplinas. Essa colaboração em tensão é o assunto do artigo de Charles Tilly, que discute a maneira pela qual sociólogos históricos e historiadores sociais relacionaram-se entre si e com temáticas difíceis, como classes sociais, desde a Segunda Guerra Mundial. Acompanhando os movimentos - ora centrífugos, ora centrípetos - de guerra e paz entre sociologia e história desde 1945, Tilly mapeia assuntos, estratégias metodológicas e abordagens dominantes nas cenas europeia e norte-americana, e os agrupa em duas grandes orientações teóricas: a teoria da modernização e o marxismo (sobretudo de inspiração thompsoniana). Tilly trafega com sua erudição por acertos e problemas de ambas as perspectivas, apontando, ao cabo, para a necessidade de sínteses e alargamento de horizontes.

O artigo subsequente, de Diogo Ramada Curto, Nuno Domingos e Miguel Bandeira Jerónimo, tematiza também as relações entre sociologia e história. Trata-se aí de inquirir as razões da ausência de tematização sobre a nação na teoria clássica e na contemporânea, mesmo diante do recrudescimento do nacionalismo contemporâneo com sua xenofobia. Os autores insistem no nacionalismo como tema que se impõe à agenda de pesquisa de sociólogos e historiadores e voltam a ele por meio de leitura atenta e provocativa das teses de Benedict Anderson, com atenção particular à sua obra já clássica a esse respeito, Comunidades imaginadas.

Roberto Garvía toma uma problemática assemelhada, mas seu ângulo, em vez do nacionalismo, é a disputa em torno de uma língua franca global. O conflito opõe três projetos de língua universal surgidos no fim do século XIX e início do xx, o volapük, o esperanto e o ido, quando o primeiro ciclo de globalização demandou uma língua comum para comunicação em escala transnacional. A investigação concentra-se em descobrir as razões do fracasso do volapük em contraponto ao sucesso do esperanto, a partir da retomada da noção de path dependence, com foco nas trajetórias e estratégias dos líderes dos movimentos linguísticos.

Uma das tópicas de Garvía, a relevância da religião no conflito linguístico, reaparece no artigo de Peter Stamatov, no qual as táticas da campanha contra o tráfico de escravos na Inglaterra no século XVIII são comparadas às de um movimento de impeachment iniciado por Edmund Burke e que, a despeito de semelhanças discursivas, não teve o mesmo sucesso prático. Stamatov argumenta então que o êxito de uma e o malogro do outro teve a ver menos com as ideias que propagavam - ambos difundiam um discurso humanitário - e mais com a capacidade que um movimento teve e o outro não de criar e valer-se de redes sociais de apoio em escala transnacional.

Tanto Stamatov quanto Garvía documentam, pois, a efetividade de processos transnacionais no século XIX. Essa "era de globalização precoce" é justo o assunto de Benedict Anderson em seu último livro, Under three flags: anarchism and the anti-colonial imagination, resenhado aqui por Fábio Nogueira de Oliveira e Iacy Maia Mata.

As relações transnacionais e a temática antiescravista - como em Peter Stamatov - reaparecem em meu artigo, que focaliza a maneira pela qual o movimento abolicionista brasileiro lidou com as experiências estrangeiras prévias e simultâneas como um repertório. Teve, contudo, de colher recursos nele de maneira seletiva, de modo a adequar-se a contexto e tradição nacional distintos. Assim foi que a religião, tão central nas campanhas anglo-americanas, acabou por ceder aqui espaço às artes na configuração da propaganda abolicionista. O artigo argumenta, assim, que a tradição condiciona e direciona os processos de transposição de repertórios - aliás, conceito de Tilly.

Por fim, o artigo que fecha este Dossiê retoma outro tema caro a Charles Tilly: a longa duração da desigualdade. Sérgio Costa volta ao legado escravista na América Latina e seu impacto na definição de desigualdades duradouras e interdependentes. E o faz apontando, como Garvía e Stamatov, para o caráter transnacional do processo. O caso serve de âncora empírica para avaliar a produção sociológica recente sobre desigualdade e procura suplantar o "nacionalismo metodológico" em favor de uma investigação das intrincadas relações entre desigualdades locais, nacionais e globais, bem como das sobreposições entre diversas desigualdades - de raça, classe, gênero e etnia.

De diferentes maneiras, portanto, os autores aqui reunidos apresentam uma visada sociológica sobre processos sociais passados, todos lidando com fenômenos político-culturais - arte, linguagem, religião, classificações sociais -, cujas marcas ainda se vislumbram no presente, caso da desigualdade racial, ou cuja reconstrução denota que as apregoadas novidades do século xxi, como as globalizações política e cultural, não são tão novas assim. De uma forma como de outra, convidam o leitor a imergir nos temas e problemas da sociologia histórica. Ou simplesmente da sociologia, para aqueles que, como os que se agrupam aqui, não a compreendem sem história.

  • Anderson, Benedict. (2007), Under three flags: anarchism and the anti-colonial imagination Londres, Verbo.
  • Tilly, Charles. (2008), Explaining social processes Boulder, Paradigm.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Nov 2012
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