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Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana

RESENHAS

Marcos Barbosa de Oliveira

Professor-associado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP)

Hermínio Martins, Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana. Belo Horizonte, Fino Traço, 2012. 454 pp.

O livro mais recente de Hermínio Martins reúne onze ensaios publicados originalmente de 1993 a 20081 1 . Os dois últimos ensaios não foram incluídos na edição portuguesa (Martins, 2011). . Não se trata contudo de uma simples coletânea, uma vez que praticamente todos os ensaios foram revistos, atualizados e ampliados – extensamente, em alguns casos –, mas também porque há uma temática comum a todos, centrada nas relações entre tecnologia e sociedade. Alguns ensaios tratam do que está mais em evidência atualmente, o impacto sobre o meio ambiente, com todos os problemas a que dá origem, discutindo questões do controle ou dominação da natureza, dos riscos, das calamidades etc. Porém o que recebe mais atenção, e se reflete no título da obra, é o choque das inovações tecnológicas sobre a própria natureza, ou condição humana – ou seja, o experimentum humanum (expressão creditada ao teólogo Karl Rahner), entendido como o "experimento-sobre-o-homem, pelo próprio homem, sobre seu próprio ser ou natureza" (p. 345). Os principais componentes do experimento são, de um lado, os avanços na genética, na genômica e nas tecnologias reprodutivas, que já no presente subvertem as bases biológicas das relações de parentesco e, para o futuro, acenam com a possibilidade de geração de bebês geneticamente programados e de clones; de outro lado, pelo desenvolvimento de próteses dos mais variados tipos, cada vez mais sofisticadas, que avançam no caminho da transmutação dos seres humanos em ciborgues. Os dois processos se juntam no movimento do trans-, ou pós-humano, outro dos temas tratados em destaque no livro.

Um traço marcante de todos os ensaios é a profunda erudição do autor, a competência com que expõe, analisa e compara as ideias de um número enorme de pensadores, das mais diversas áreas do conhecimento – de filosofia, sociologia, economia, história, e mesmo ciências naturais. Aprende-se muito com a leitura do livro. Mais importante, porém, é o fato de que essa erudição não vem como exibição de virtuosismo acadêmico. Embora nem de longe tenham o caráter de manifestos, percebe-se em todos os ensaios uma postura profundamente engajada, de um pensador atento aos problemas que a humanidade enfrenta, procurando entender os grandes movimentos, na realidade social e na esfera das ideias, que nos conduziram à situação crítica em que nos encontramos. Em vez de um fim em si mesmo, a erudição está a serviço da busca de entendimento assim motivada.

O livro divide-se em três partes: "Pensar a técnica: questões preliminares", "Do trágico tecnológico" e "Passagem para o pós-humano". Grosso modo, a primeira trata de grandes temas da filosofia e da sociologia da técnica; a segunda, de aspectos relativamente mais específicos do impacto da tecnologia na sociedade; e a terceira, dos movimentos do trans e pós-humano. Na impossibilidade de comentar em detalhes cada um dos ensaios, vamos nos limitar a dois dentre os que nos parecem mais significativos, um da primeira, outro da terceira parte.

O tema central de "Tecnologia, modernidade e política" são as duas grandes vertentes do pensamento social dos séculos XIX e XX sobre a tecnologia como meio de dominação da natureza: a prometeica e a fáustica. Em termos gerais, a prometeica, própria dos socialistas utópicos e positivistas franceses, atribui um valor essencialmente positivo à tecnologia, concebendo a dominação da natureza como subordinada aos fins do melhoramento das condições de vida dos seres humanos, da emancipação de toda a humanidade. A vertente fáustica, que tem Spengler, Jünger e Heidegger entre seus expoentes, caracteriza-se por uma visão pessimista, em que o avanço tecnológico sem limites aparece como um fim em si mesmo, fruto de um impulso originário de dominação da natureza, e dos próprios seres humanos.

As duas vertentes comportam, naturalmente, inúmeras variações sobre os temas centrais, cuidadosamente analisadas ao longo do ensaio. Entre os fáusticos, trata-se com destaque da linhagem dos frankfurtianos. Os comentários envolvem uma crítica, a nosso ver procedente e muito oportuna, de Adorno e Horkheimer, questionados por não distinguirem adequadamente as visões prometeica e fáustica; por assumirem uma concepção simplista da tradição prometeica, equiparando o "positivismo" genérico à sua mais crua variante tecnocrática, e por subscreverem, ou tentarem ultrapassar "(sem solução clara e inequívoca) o niilismo tecnológico, condição pela qual a técnica não serve qualquer objetivo humano para além de sua própria expressão" (p. 36). Por outro lado, num espírito mais próximo ao dos frankfurtianos, a última sentença do artigo envolve uma expressão que sintetiza vigorosamente um ângulo de ataque à postura de dominação da natureza, a saber, a "tirania das possibilidade tecnológicas" – a tese de que tudo o que a tecnologia permite fazer deve ser feito (p. 61).

O outro ensaio selecionado, "Biologia e política: eugenismos de ontem e de hoje", consiste num minucioso estudo histórico-crítico do movimento eugenista estruturado por sua divisão em dois períodos: o do eugenismo clássico, ou eugenismo de nível i, e o do eugenismo de nível ii, que vem se desenvolvendo nas últimas décadas, alimentado pelos avanços tecnocientíficos nas áreas da genética, genômica e das tecnologias reprodutivas. O papel muito maior desempenhado pela tecnociência é apenas um dos traços que distingue o eugenismo de nível ii do de nível i; inúmeras outras diferenças são apontadas e analisadas na parte central do ensaio. Uma delas consiste em que no primeiro predominava a eugenia negativa, isto é, voltada não para o melhoramento, mas para a prevenção da decadência genética da espécie. À luz da teoria darwiniana da evolução, tal decadência seria fruto da suspensão dos processos de seleção natural nas sociedades humanas ou, mais drasticamente, da entrada em operação de um processo de seleção invertido, decorrente do fato de os pobres, supostamente menos aptos, serem mais prolíficos que os ricos. No eugenismo de nível ii, o lado positivo tem um peso relativamente maior, embora tendo em vista não o melhoramento genético da espécie com um todo, mas sim o desejo dos pais de terem filhos geneticamente bem-dotados.

A diferença mais importante a nosso ver, contudo, diz respeito aos papeis do Estado e do mercado, e permite associar o desenvolvimento do eugenismo de nível ii à ascensão do neoliberalismo. Enquanto no ideário e nas práticas do primeiro eugenismo o Estado figurou como ator principal, atuando por meio de políticas públicas relativamente unificadas, no segundo o mercado é o principal responsável pela implementação de medidas eugenistas, de naturezas muito mais variadas. Por esse motivo, o eugenismo de nível ii é denominado pelo autor "micro-eugenia de mercado". São mencionadas também, numa lista que não se pretende exaustiva, nada menos de dezessete outras designações encontradas na literatura – como "eugenismo liberal", "eugenismo libertário", "eugenismo de laissez-faire" etc. – o que dá uma medida do vigor, mas também da desunião teórica do movimento eugenista contemporâneo.

Entre as inúmeras facetas desse processo de mercantilização do eugenismo, uma das mais curiosas (ou chocantes, dependendo do ponto de vista) é o desenvolvimento do mercado de óvulos humanos, mencionado no anexo do ensaio. As vendedoras de óvulos mais bem cotadas nesse mercado são jovens universitárias – e aí surge um inesperado vínculo com o processo de mercantilização da universidade, do qual fazem parte os rankings universitários, tão em voga nos últimos tempos. Tal vínculo consiste na correlação positiva que vigora entre os preços de mercado dos óvulos e a posição nos rankings das universidades em que as vendedoras estudam. Como se lê no anexo: "Os óvulos de uma estudante de Harvard valem mais neste mercado (chegam a ser avaliados em 50 mil dólares) que os de uma estudante de Yale, por exemplo, e bem mais que as de Ohio State, e em geral os das não harvardianas custavam há anos uma média de 5 mil ou 6 mil dólares, e a American Society for Reproductive Medicine recomenda uma taxa de 5 mil dólares (um banco de gametas norte-americano chegou a cotar óvulos a 150 mil dólares" (p. 402).

Por sua extensão (454 páginas, em composição bastante compacta) e densidade, além do rigor e da erudição característicos dos escritos de Hermínio Martins, Experimentum humanum está bem longe de ser o proverbial livro que se lê de uma sentada. É uma obra mais para ser estudada do que para ser lida. Por outro lado , embora compartilhando em linhas gerais a mesma temática, os ensaios são relativamente autônomos, podendo ser estudados em diferentes ordens, de acordo com o interesse do leitor. Em qualquer caso, trata-se de um estudo altamente compensador, pelo muito que se aprende sobre um domínio da vida social – o da tecnologia – cada vez mais crucial para os destinos da humanidade.

Nota

  • MARTINS, HERMÍNIO. (2011), Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana Lisboa, Relógio D'Água.
  • 1
    . Os dois últimos ensaios não foram incluídos na edição portuguesa (Martins, 2011).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Nov 2013
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