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Socialização do cuidado e desigualdades sociais

The socialization of care and social inequalities

Resumos

O presente texto tem como propósito tecer alguns comentários sobre o artigo apresentado por Eillen Boris, tendo como base pesquisas que venho realizando sobre o regime de care no Brasil. Sinalizo para o lugar estratégico que o trabalho doméstico remunerado assume, procurando situá-lo em relação a outras esferas de cuidado, como a repartição das tarefas domésticas entre homens e mulheres e as provisões públicas de educação infantil e no cruzamento de dois sistemas de desigualdades, de gênero e classe social.

Cuidado; Trabalhadoras dom ésticas; Divisão sexual do trabalho doméstico; Socialização do cuidado


This text offers a commentary on the article presented by Eillen Boris, drawing from my own on-going research into care regimes in Brazil. I highlight the strategic place occupied by paid domestic work, comparing it to other spheres of care, such as the sharing of domestic tasks between men and women and the public provision of child education, and examining the intersection of two systems of inequalities: gender and social class.

Care; Domestic workers; Sexual division of domestic work; Socialization


DOSSIÊ - TRABALHO E GÊNERO: CONTROVÉRSIAS

Socialização do cuidado e desigualdades sociais

The socialization of care and social inequalities

Bila Sorj

RESUMO

O presente texto tem como propósito tecer alguns comentários sobre o artigo apresentado por Eillen Boris, tendo como base pesquisas que venho realizando sobre o regime de care no Brasil. Sinalizo para o lugar estratégico que o trabalho doméstico remunerado assume, procurando situá-lo em relação a outras esferas de cuidado, como a repartição das tarefas domésticas entre homens e mulheres e as provisões públicas de educação infantil e no cruzamento de dois sistemas de desigualdades, de gênero e classe social.

Palavras-chave: Cuidado; Trabalhadoras dom ésticas; Divisão sexual do trabalho doméstico; Socialização do cuidado.

ABSTRACT

This text offers a commentary on the article presented by Eillen Boris, drawing from my own on-going research into care regimes in Brazil. I highlight the strategic place occupied by paid domestic work, comparing it to other spheres of care, such as the sharing of domestic tasks between men and women and the public provision of child education, and examining the intersection of two systems of inequalities: gender and social class.

Keywords: Care; Domestic workers; Sexual division of domestic work; Socialization.

O texto apresentado neste Dossiê por Eileen Boris, "Produção e reprodução, casa e trabalho", abriga um debate muito interessante sobre o entendimento de feministas de diversas gerações e matizes sobre o significado do trabalho doméstico e de cuidado nos Estados Unidos. Além disso, discute as dificuldades envolvidas nessas formulações para a afirmação das trabalhadoras domésticas como uma categoria profissional. Estas lutam para serem incluídas e protegidas pela legislação do trabalho culminou em 2013, quando as acompanhantes passam a ser reconhecidas como trabalhadoras do cuidado. A autora reflete sobre a importância da sindicalização, a valorização profissional, a ampliação de direitos e a inclusão das trabalhadoras imigrantes na cidadania econômica. Nesse movimento, percebe uma processo de resignificação do care que não seria mais decorrência do amor materno naturalizado, mas de um trabalho de reprodução social que evoca noções de direito e justiça social.

Desse modo, tanto as feministas liberais - que desvalorizam o trabalho doméstico como uma atividade menor - como as feministas anticapitalistas - que denunciam a mercantilização do cuidado como uma capitulação aos valores capitalistas - não estão em condição de ver a importância que o reconhecimento das cuidadoras como trabalhadoras adquire no contexto dos limites impostos pela condição humana de dependência.

Com base nas minhas pesquisas de alguns suportes para a articulação entre trabalho e cuidado com os quais as famílias contam no Brasil, comentarei e analisarei seus efeitos sobre as desigualdades de gênero e de classe social.

O primeiro deles se refere ao trabalho doméstico remunerado, que é uma ocupação responsável, direta e indiretamente, pela inserção de expressiva parcela de mulheres no mercado de trabalho. De maneira direta, porque atrai um grande contingente de mulheres que desempenham profissionalmente o trabalho exercido sem remuneração no âmbito da casa, em tarefas ligadas aos afazeres domésticos e de cuidado com os outros. E indireta, na medida em que permite a outras mulheres, ao delegarem essas tarefas às trabalhadoras domésticas, participar no mercado de trabalho. Tanto nos Estados Unidos como no Brasil, o trabalho doméstico é, sem dúvida, um dos recursos responsáveis pela forte expansão do emprego de mulheres de classe média nas últimas décadas.

O Brasil é o país que conta com o maior número absoluto de empregadas domésticas do mundo, pouco mais de 7 milhões (oit, 2010). Mas apenas em 2013 - 25 anos após a promulgação da Constituição de 1988, considerada uma das mais avançadas do mundo justamente pela expressa garantia de direitos sociais - o Congresso aprovou a lei que equipara os direitos das empregadas domésticos aos demais trabalhadores urbanos do país. A demora na politização dos direitos das empregadas domésticas revela a forte hierarquia de gênero e a distância social que marca a estrutura de classe do país, o que dificulta a formação de alianças políticas para a defesa dos interesses trabalhistas dessa categoria.

O trabalho doméstico vem passando por mudanças importantes nas últimas décadas, como o aumento da formalização do emprego, uma rápida ascensão da categoria de diarista e o declínio da trabalhadora residente no domicílio do patrão (Sorj, 2013). Esses movimentos sugerem mudanças na identidade das trabalhadoras, que hoje buscam ganhar maior controle sobre suas vidas e estabelecer relações menos paternalistas com os patrões. Nota-se também um envelhecimento da categoria, ou seja, a ocupação está deixando de ser a principal porta de entrada no mercado de trabalho para mulheres jovens e pobres.

No entanto, a presença mais marcante da categoria de diarista no conjunto da ocupação tem efeitos contraditórios em termos de precarização. Por um lado, há uma tendência à profissionalização, na medida em que diminui a possibilidade de extensão da jornada de trabalho na casa dos patrões e reduz a dependência afetiva e mesmo financeira do empregador. Por outro, a formalização dos contratos de trabalho das diaristas não ocorre na mesma proporção; as diaristas que trabalham até dois dias na casa de um mesmo empregador não são consideradas pela legislação trabalhadoras com vínculo empregatício contínuo e, portanto, não têm acesso aos mesmos direitos que as mensalistas. Para essas diaristas, formalizar-se na condição de trabalhadoras autônomas representa um custo com o qual, dada a baixa remuneração, não conseguem arcar.

Outra mudança importante diz respeito à maior diferenciação das funções que são desempenhadas pela categoria. Embora as domésticas polivalentes (ou seja, aquelas que realizam todas as tarefas domésticas) tenham um peso maior, ao longo dos anos 2000, algumas funções, como as de faxineira, babá e cuidadora, ganharam mais importância quantitativa, o que pode ser responsável pelo pequeno aumento da formalização e dos rendimentos da categoria.

Apesar dessas mudanças, o emprego doméstico continua a ser a maior ocupação de mulheres no país: 17% das mulheres ocupadas são trabalhadoras domésticas, e, em termos absolutos, o Brasil possui o maior número de trabalhadoras domésticas do mundo (oit, 2010). A categoria reúne um conjunto de características indicativas de sua desvalorização social: baixa remuneração, longas jornadas de trabalho e elevado nível de informalidade. Trata-se de uma ocupação situada entre as mais precárias oferecidas pelo mercado de trabalho. Congrega trabalhadoras que acumulam múltiplas desvantagens sociais - de classe, de gênero e de raça - e que, por sua vez, enfrentam grandes dificuldades para conciliar o trabalho doméstico remunerado com o trabalho doméstico não pago. Em geral, apoiam-se nas redes de parentes, amigas e vizinhas.

Para se entender o lugar estratégico que o trabalho doméstico remunerado assume no país é preciso posicioná-lo em relação a outras esferas de cuidado, como a repartição das tarefas domésticas entre homens e mulheres na família e as provisões públicas de educação infantil.

Os debates sobre care têm frequentemente favorecido a análise das formas como se opera a sua externalização, seja para o mercado, seja para o Estado. A participação masculina na divisão sexual do trabalho doméstico, como uma reserva relevante de cuidado, permanece, até certo ponto, ausente das discussões, de tal forma que a questão do care aparece como um problema de e para as mulheres.

Como sabemos, apesar da intensa progressão das mulheres, sobretudo das mães, no trabalho remunerado, elas continuam assumindo uma parcela desproporcional do trabalho doméstico e do cuidado. Essa divisão tem uma longa história e é muito persistente em âmbito global. Minhas pesquisas têm mostrado que as mães com filhos dependentes dedicam, em média, o triplo de horas aos afazeres domésticos (Sorj e Fontes, 2012). Essa diferença é tão grande que, à primeira vista, poderíamos supor que a diferença de gênero seria suficiente para dar conta dessa realidade. Todavia, quando se introduz na análise a dimensão de renda, emergem distinções importantes, sugerindo que o trabalho doméstico comporta experiências sociais diversificadas entre mulheres. Assim, pelo ângulo da classe social, as mães mais ricas dedicam menos horas por semana aos afazeres domésticos do que as mais pobres, porque têm acesso a tecnologias domésticas, têm menos filhos e delegam parte das tarefas domésticas e do cuidado às empregadas domésticas. O mais interessante, contudo, é que a experiência masculina e a feminina são distintas. Para os homens, a posição na distribuição da renda não faz diferença em termos de horas que dedicam aos afazeres domésticos. O comportamento masculino mostra-se uniforme e transversal às classes sociais. Essa realidade sugere que a identidade masculina continua a se reproduzir pela distância que os homens mantêm e procuram preservar na esfera doméstica. A pouca dedicação de tempo não pago pelos homens contribui para a mercantilização do cuidado, o qual, por sua vez, assume um claro perfil de gênero.

A esse propósito, com a minha experiência de diálogo com trabalhadoras domésticas que são ativistas sindicais, identifico uma situação ambivalente. Quando trago à discussão a importância de uma repartição mais igualitária das tarefas domésticas entre homens e mulheres ocorre, com frequência, uma reação de desconfiança. Supõem-se que eu estaria argumentando contra a mercantilização do cuidado, a favor da abolição do emprego doméstico e desvalorizando as competências profissionais que elas tratam de defender. Essa tensão entre a luta pelo fortalecimento e pela valorização profissional do trabalho doméstico e do cuidado e a luta por uma justiça distributiva de gênero no espaço doméstico está presente tanto na experiência norte-americana como na brasileira. Também me parece importante refletir em que medida a construção da ocupação de cuidadora implica a produção de distinções sociais e de hierarquias entre as trabalhadoras domésticas que executam tarefas de limpeza, arrumação, etc. nas casas, por um lado, e as trabalhadoras do cuidado, por outro.

A socialização do trabalho doméstico e do cuidado não precisa necessariamente percorrer o caminho do mercado, que tem como efeito confirmar e acentuar as desigualdade sociais entre mulheres de diferentes classes sociais. Pode, particularmente na dimensão do cuidado, trilhar a via do Estado, como ocorre em muitos países do norte ocidental.

A via da socialização dos cuidados através de instituições públicas tem mostrado efeitos muito positivos sobre as desigualdades de classe e de gênero no Brasil. Apesar de o acesso à educação infantil, notadamente às creches, ser muito restritivo, as mães cujos filhos frequentam creches e pré-escolas não apenas apresentam maior taxa de ocupação no mercado de trabalho como trabalham em atividades mais formalizadas, ampliam o número de horas trabalhadas e auferem maior renda do trabalho. Essas vantagens são ainda mais acentuadas nos estratos de renda mais pobres (Sorj e Fontes, 2007). Hoje, a demanda por creche constitui uma das principais reivindicações das mulheres dirigidas ao poder público (Data Popular/sos Corpo, 2012).

Para concluir, as reflexões da Eileen Boris nos fazem pensar que as sociedades apresentam diferentes alternativas para o cuidado: mercantilização, serviços públicos, trabalho não pago, práticas cooperativas e coletivas, redes de parentes, amigos e vizinhos. Essas modalidades de provisão - ou a combinação entre elas, pois sempre há mais do que uma fonte de recursos de cuidado - dependem da história política, social e econômica de cada país. Como afirma a autora, todos nós podemos desejar um reino de liberdade. O meu é num certo sentido bastante modesto, mas, ainda assim, me parece muito distante de se tornar uma realidade. Trata-se da construção de um Estado solidário, que por meio de políticas públicas de qualidade coloque o cuidado no centro da sua definição de bem-estar social.

Texto recebido em 21/10/2013

aprovado em 27/2/2014.

Bila Sorj é graduada em sociologia e história pela University of Haifa, tem mestrado em sociologia pela mesma universidade e doutorado em sociologia pela Manchester University. Atualmente é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: sorjbila@gmail.com.

  • Sorj, Bila & Fontes, Adriana. (2012), "O care como um regime estratificado: implicações de gênero e classe social". In: Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araujo (orgs.). Cuidados e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo, Atlas.
  • Sorj, Bila. (2013), "Le marché de lémploi domestique en Amérique latine: changeements et permanences". In: Maruani, Margaret (org.). Travail et genre dans le monde: l'état des savoirs Paris, La Découverte.
  • Sorj, Bila; Fontes, Adriana & Machado, Danielle C. (2007), "Políticas e práticas de conciliação entre família e trabalho no Brasil". Cadernos de Pesquisa: Fundação Carlos Chagas, 37 (132): 573-594.
  • Data Popular/sos Corpo (2012). "Creche como demanda das mulheres por políticas públicas". São Paulo/Recife, Data Popular/sos Corpo, outubro. Disponível em http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2012/10/Creches_-_Divulgacao.pdf, consultado em 22/4/2014.
  • Oit (2010), "Um trabalho decente para as trabalhadoras domésticas remuneradas do continente". Notas oit Brasília, oit. Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/gender/pub/notas_oit_1_557_730.pdf, consultado em 22/4/2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2014
  • Data do Fascículo
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2013
  • Aceito
    27 Fev 2014
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