Introdução
Como convinha ao defensor de uma sociologia reflexiva que jamais abdicasse de objetivar suas próprias condições sócio-históricas de possibilidade, Pierre Bourdieu sublinhou, vezes sem conta, o quão decisivas foram as suas experiências na Argélia da segunda metade da década de 1950 para a sua “conversão” às ciências sociais – o termo religiosamente carregado é dele (Bourdieu, 2005, p. 87). Tais anos de aprendizado etnossociológico de Bourdieu na sociedade argelina têm sido objeto de um interesse acadêmico renovado, o qual vem motivando um retorno aos seus escritos de juventude com base em multifacetadas preocupações analíticas. Sem querer esgotar o escopo variado de tais preocupações teóricas, metodológicas, empíricas e ético-políticas, podemos listar, inter alia: a) o colonialismo e o pós-colonialismo, tomados seja como condições sócio-históricas efetivas (Go, 2013), seja como posturas epistemológicas no pensamento social (Puwar, 2009); b) o debate sobre as raízes do (sub)desenvolvimento, que opõe teorias evolucionistas da modernização, de um lado, e teorias neomarxistas do imperialismo e da dependência, de outro (Burawoy, 2011; Calhoun, 2006); c) a fidedignidade histórico-sociológica dos retratos bourdieusianos da sociedade argelina in genere (Goodman e Silverstein, 2009), dos grupos da Cabília em particular (Colonna, 2009; Goodman, 2009; Hammoudi, 2009; Reed-Danahay, 2009; Silverstein, 2009) e das vicissitudes do domínio colonial francês na Argélia até a conquista de sua independência política em 1962 (Loyal, 2009); d) as singulares concepções metodológicas quanto à natureza do trabalho etnográfico desenvolvidas por Bourdieu, tais quais, por exemplo, sua defesa da “objetivação participante” (Bourdieu, 2013, pp. 265-279) como caminho de superação concomitante de mitologias subjetivistas da imersão empática, de um lado, e do olhar radicalmente distanciado do objetivismo lévi-straussiano, de outro; e) o papel epistemológico e ético da fotografia na pesquisa científico-social (Back, 2009; Frisinghelli, 2009; Haddour, 2009; Robbins, 2009; Schultheis et al., 2009; Simone, 2009), questão trazida à baila pela divulgação de parte do largo arquivo de fotos que Bourdieu produziu nas suas incursões etnográficas pelas diferentes regiões e comunidades argelinas (Bourdieu, 2003; 2012). Inspirado por questões oriundas dessa literatura recente, a qual inclui, aliás, uma excelente seleção de “esboços argelinos” da lavra do próprio Bourdieu pela antropóloga Tassadit Yacine (2013), o presente artigo explora a significação das experiências pelas quais Bourdieu passou na Argélia, no intervalo que vai de 1955 a 1961, para o desenvolvimento da sociologia teoricamente informada, empiricamente orientada e politicamente motivada que ele viria a praticar ao longo de toda a sua carreira.
Os anos de aprendizado de Bourdieu na Argélia: rascunho para um romance etnossociológico de formação
Em 1955, pouco depois de graduar-se em filosofia na prestigiosa École Normale Supérieure, o jovem Bourdieu foi recrutado para o serviço militar obrigatório no que era então uma colônia francesa em meio a extraordinárias turbulências, as quais resultavam tanto do ciclo de violência de uma guerra anticolonial como das rupturas socioeconômicas efluentes de uma abrupta modernização capitalista imposta “do alto”. Como muitos outros intelectuais franceses de seu tempo, Bourdieu era acidamente crítico quanto aos devastadores efeitos sociopsicológicos do domínio colonial francês sobre a maior parte da população argelina (Le Sueur, 2005). Não obstante, uma vez em território argelino, primeiramente como soldado2 (1955-1957), depois como professor na Universidade de Argel (1957-1961), ele buscou ir além das fórmulas de engajamento político amplamente difundidas por intelectuais de esquerda como Sartre e Fanon, as quais ele via como especulativas, utópicas e pobremente informadas (Bourdieu, 1990, p. 19). Rompendo com o escolasticismo filosófico do seu treinamento educacional de elite, mas sem abandonar seu forte senso das injustiças materializadas na conjuntura ao seu redor, Bourdieu começou a cultivar o que se tornaria uma tendência de toda a vida, qual seja, a “sublimação” de suas paixões políticas pelo recurso às ferramentas rigorosas da ciência social (Peters, 2012, pp. 241-243). Imbuído com esta espécie de objetividade apaixonada, ele mergulhou no estudo detalhado das condições sociais internamente diversificadas da Argélia, experimentando com uma ampla variedade de métodos de pesquisa, da estatística à etnografia, de entrevistas em profundidade a fotografias e até mesmo testes de Rorschach (!) (Bourdieu, 2012, p. 19).
A entrada de Bourdieu nas ciências sociais logo tomou a forma de uma combinação criativa de conceitos teóricos e insights observacionais in situ, propelidos por uma necessidade urgente de dar sentido aos modos de vida agrários, mítico-rituais e “pré-capitalistas” dos povos tradicionais da Argélia. Graças à sua própria socialização na região rural francesa do Béarn, ele se viu socialmente predisposto a simpatizar com tradições socioculturais camponesas, concebendo sua etnografia das comunidades argelinas tanto como um empreendimento científico quanto como uma missão moral de “reabilitação” (Bourdieu, 1980, p. 10; 2013, p. 310). Em primeiro lugar, isso significava uma reabilitação do valor, riqueza e complexidade dessas culturas tradicionais contra o desprezo etnocêntrico ou quaisquer mitos pseudocientíficos de primitivismo. Mais dramaticamente, a empresa também significava uma reabilitação da memória histórica de sociedades que estavam rapidamente entrando em colapso devido a expropriações coloniais de terra, à introdução de regimes capitalistas de trabalho e a “reagrupamentos” forçados de grandes populações rurais em “campos” estabelecidos pelos governantes franceses, como parte de uma política militar de neutralização dos fluxos de suprimento material à Frente de Libertação Nacional, que liderava a luta armada contra o domínio colonial da França (Yacine, 2004). Ao juntar suas preocupações ético-políticas a um compromisso com a objetividade do conhecimento científico-social (Swartz, 1997, p. 270; Bourdieu e Loyola, 2002, p. 14), Bourdieu contrabalançou sua identificação empática com os camponeses argelinos mediante a busca de um realismo sociológico radical quanto aos dilemas objetivos e subjetivos das suas condições, como se estivesse testando a si próprio em uma situação trágica para saber, parafraseando Weber, “quanta verdade podia suportar”. Em outras palavras, ciente do que Bachelard havia chamado de “bipolaridade dos erros” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 73), ele estava determinado a não deixar que a sua preocupação moral com os destinos dos camponeses deslocados e expropriados na Argélia colonial deslizasse para uma mal disfarçada condescendência (um avatar do que ele posteriormente chamaria de “violência simbólica”) ou para esperanças políticas irrealistas em relação ao seu futuro, como o projeto de uma revolução socialista-campesina nutrido por Fanon e outros3.
De qualquer modo, o “choque de realidade” implicado na sua imigração para um cenário em que estruturas coletivas longamente sedimentadas pelo tempo estavam desmoronando sob a pressão de uma modernização “patologicamente acelerada” (Bourdieu, 2012, p. 228) foi decisivo para aprofundar as propensões antiescolásticas de Bourdieu. No cadinho argelino, ele podia acompanhar (e fotografar) de perto os efeitos perturbadores de tal dissolução sobre as vidas concretas de mulheres e homens capturados no turbilhão de uma velocíssima mudança sócio-histórica. Em última instância, suas experiências em uma Argélia rasgada pela guerra o desviaram do que parecia uma carreira simbolicamente mais prestigiada na filosofia, a área do saber que o mundo acadêmico francês, intoxicado de sartrianismo, alçara na época ao posto de “disciplina-rainha” e vocação praticamente incontornável para qualquer intelectual noviço desejoso de reconhecimento. Como se quisesse perpassar uma escala decrescente de capital simbólico na hierarquia corrente das disciplinas, seu desvio de trajeto intelectual o levou, assim, da filosofia aos domínios da etnologia e da sociologia.
Os custos dessa transição, em matéria de reconhecimento acadêmico, foram decerto mitigados pelo fato de que a primeira dessas disciplinas havia tido o seu prestígio intelectual tremendamente reavivado, ao longo dos anos de 1950, pelos trabalhos de Lévi-Strauss, “que contribuíra para esse enobrecimento ao substituir a designação tradicional da disciplina pela denominação inglesa de antropologia, reunindo assim os prestígios do sentido alemão […] e a modernidade do sentido anglo-saxão” (Bourdieu, 2005, p. 71). De modo mais amplo, a derrocada da hegemonia da fenomenologia existencial de Sartre no campo intelectual francês deu ensejo à emergência de um “paradigma” estruturalista que, frouxamente unificado por uma reação ao subjetivismo de Sartre calcada na recuperação dos determinantes estruturais do pensamento e da conduta humanos, engendrou empreendimentos hibridamente situados na interface entre a filosofia e as ciências humanas: a “arqueologia” do primeiro Foucault, a gramatologia de Derrida, a semiologia de Barthes e tutti quanti4. Por comparação, entretanto, o que passava por “sociologia” gozava da reputação de “especialidade furreca” (Miceli, 2005, p. 11) que, deixando à filosofia o tratamento das questões primeiras, desenvolvia-se como “ciência plebeia e vulgarmente materialista das coisas populares” (Bourdieu, 2005, p. 51). Seja como for, Bourdieu terminaria por explodir qualquer distinção epistêmica entre antropologia e sociologia, não apenas por rejeitar as premissas histórico-teleológicas comumente associadas à repartição dos seus objetos (sociedades primitivas e avançadas, simples e complexas etc.), premissas cujo eurocentrismo servia então de alimento ideológico à dominação colonial dos argelinos pelos franceses, mas também por construir um modelo de ciência social calcado na dialética entre auto-objetivação e “alter-objetivação” sociológicas.
É interessante que os primeiros estudos etnossociológicos de Bourdieu foram concebidos como um desvio provisório de rumo, ditado pelo dever cívico (“trabalho de pedagogia política”, idem, p. 71) de transmitir informações confiáveis a um público francês cujo conhecimento da situação argelina era, a seu ver, bastante raso; e isso tanto à esquerda quanto à direita. Um índice do papel transitório que ele atribuía a esses seus esforços é o fato de que suas primeiras incursões etnográficas diurnas a comunidades argelinas foram interpoladas com sessões noturnas de escrita sobre a fenomenologia da experiência temporal segundo Husserl (Bourdieu, 2013, p. 6). Tais sessões davam prosseguimento a uma tese de doutorado acerca das “estruturas temporais da vida afetiva” que Bourdieu começara a desenvolver (e jamais concluiria) sob a orientação de Georges Canguilhem. De fato, antes mesmo da inflexão vocacional provocada por sua encruzilhada argelina, o jovem normalien já havia visto no historiador das ciências um modelo de habitus intelectual que destoava positivamente do escolasticismo opinioso de um Sartre em favor de um trabalho rigoroso de pesquisa metódica sobre temas bem delimitados.
A combinação de etnografia diurna em cenários sociais concretos e reflexões noturnas sobre questões rarefeitas de filosofia daria ensejo, com o tempo, a uma disposição durável do habitus sociocientífico de Bourdieu, nomeadamente, a interpenetração sistemática entre a “grande” teoria e a pesquisa empírica sobre tópicos mundaníssimos que o habitus escolástico tendia a desprezar como indignos da sua vocação (Peters, 2010, p. 32) – pesquisa realizada, aliás, também segundo os procedimentos metodológicos “mais humildes do ofício de etnólogo ou de sociólogo”, os quais envolviam “sair ao mundo” para as tarefas de observação e entrevista que, em um modelo mais escolástico de pesquisa, seriam “terceirizadas” a assistentes (Bourdieu, 2001c, p. 13). Como ilustrado pelo pitoresco comentário do Bourdieu maduro (2002a, p. 40) sobre seu uso de conceitos kantianos na compreensão de estatísticas sobre o consumo de pijamas, tal interpenetração subvertia preconceitos acadêmicos tradicionais em relação ao prestígio de ideias “grandiosas” (por exemplo, as categorias do entendimento segundo Kant) e à sua contraparte no estigma sobre temáticas “menores” (por exemplo, pijamas).
Publicado pela primeira vez em 1963, o brilhante estudo sobre “A atitude da sociedade tradicional quanto ao tempo e ao comportamento econômico” (Bourdieu, 2013, pp. 52-71) oferece um dos primeiros exemplares dessa mobilização sociológica criativa de preocupações filosóficas na explicação e na compreensão5 das condições, práticas e experiências concretas de pessoas comuns. O texto analisa como o fellah, o camponês argelino cuja subjetividade havia sido moldada por atitudes temporais ligadas a uma tradicional economia rural de dádivas e contradádivas entre vizinhos, foi lançado no desespero e/ou na improvisação desorganizada quando forçado a lidar com orientações temporais requeridas por uma economia capitalista impessoal, baseada no trabalho assalariado. Inteligentemente, Bourdieu insere insights husserlianos quanto à estrutura da experiência temporal em um ensaio de sociologia econômica que critica a naturalização e a universalização espúrias do modelo neoclássico do homo oeconomicus pela demonstração, calcada em rico material etnográfico, de sua historicidade e circunscrição cultural. Trata-se, como diz Tassadit Yacine, de uma “etnossociologia” (2004) das mais singulares.
Por que etnossociologia? No seu próprio título, o primeiro livro de Bourdieu, Sociologie de l’Algérie (1958, 1960), subvertia deliberadamente a divisão ortodoxa entre a sociologia como estudo de sociedades ocidentais “avançadas”, de um lado, e a etnologia como estudo de sociedades não ocidentais “primitivas”, de outro. Desde então, a mobilização de ferramentas teóricas forjadas – ou baseadas – em seu extenso trabalho de campo na Argélia deu ensejo a uma prática sociológica que incorpora um elemento de “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) entre os seus constituintes fundamentais. Essa incorporação da “etnologia” ao coração da teorização e da pesquisa sociológicas opera especialmente por meio de uma dialética entre a familiarização etnológica do exótico e a “exotização” sociológica do familiar. Ao alargar o senso do cientista social quanto à multiplicidade de formas culturais de ação e experiência humana, o estudo de práticas e instituições estrangeiras facilita uma consciência da contingência histórica do mundo coletivo no qual ele é nativo. Nesse sentido, tal estudo serve de contrapeso à sua tendência espontânea, socialmente inculcada, a tomar as propriedades desse mundo coletivo como naturais, universais e autoevidentes (Bourdieu, 1980, p. 44). Na síntese praxiológica entre objetivismo e subjetivismo legada por Bourdieu (Peters, 2013, pp. 48-53), o desvio pela alteridade sociocultural opera, portanto, como uma ferramenta de auto-objetivação reflexiva.
Foi graças a esse procedimento que Bourdieu foi capaz, por exemplo, de transmutar a preocupação durkheimiana com a conexão entre estruturas sociais e estruturas mentais nas sociedades “primitivas” em um amplo e detalhado programa de pesquisa sobre a legitimação simbólica de assimetrias de poder em formações modernas, altamente diferenciadas, de classes e campos6 (Bourdieu, 1984; 2007). De modo similar, sua análise de como a teoria econômica da utilidade marginal negligenciava o caráter limitado de sua aplicabilidade “histórico-cultural” (Weber) foi solidamente fundada em seus estudos etnográficos da turbulenta transição de uma economia predominantemente agrária para uma economia urbano-capitalista na Argélia. Ali, Bourdieu estabeleceu contato direto com agentes cuja falta de treinamento sociocultural para operar numa economia racionalizada mostrava a contrario, por assim dizer, a habituação subjetiva e a naturalização ideológica das disposições econômicas típicas das sociedades modernas (Bourdieu, 1979). A “cumplicidade ontológica” (Bourdieu, 1988, p. 52) entre as condições objetivas de funcionamento do capitalismo moderno e as orientações subjetivas que ele engendra nos seus agentes (via socialização) impede que esses agentes vislumbrem o que suas próprias disposições possuem de historicamente contingentes e circunscritas. Longe de basear-se exclusivamente na autocrítica, a descoberta sociológica dessa contingência foi possível a Bourdieu graças à observação de indivíduos socializados nas condições de uma economia tradicional e repentinamente forçados a uma adaptação, ou melhor, a uma “conversão” para um modo capitalista de agir7.
Na medida em que diziam respeito às dimensões mais profundas das orientações subjetivas que os agentes mantinham em face do mundo, como aquelas que organizavam sua experiência mesma do tempo, tais estudos de Bourdieu não consistiram apenas em investigações fecundas das conexões íntimas entre economia e cultura (Yacine, 2004). De modo mais agudo, eles davam alguns dos primeiros testemunhos empíricos de que o funcionamento transponível das disposições socialmente inculcadas dos habitus exige uma abordagem sociológica multidimensional, capaz de perpassar tradicionais especializações temáticas (por exemplo, sociologia da economia e sociologia da cultura, sociologia da educação e sociologia política etc.)8. Por fim, a análise bourdieusiana das condições socioeconômicas de aquisição das disposições de conduta que capacitam os agentes a operar em uma economia capitalista pode ser lida na chave de sua ulterior tentativa de superação da dicotomia subjetivismo/objetivismo. Os motores subjetivos da ação econômica não podem ser simplesmente deduzidos das condições estruturais objetivas em que os agentes estariam imersos no presente, como se os agentes se apresentassem sem mais como “portadores” ou “veículos” dessas últimas. Por outro lado, a crítica a tal dedução objetivista não se presta à visão naturalista de um indivíduo que se postaria diante da economia vigente como um agente assocializado. Ao contrário, aquela crítica demanda uma investigação das disposições nas quais os indivíduos se baseiam para responder às injunções dos seus arranjos socioeconômicos atuais, disposições que trazem a marca das condições econômicas em que eles foram previamente socializados. A diferença radical entre as circunstâncias de constituição passada e as circunstâncias de operação presente dos habitus dos subproletários argelinos é o que permite denunciar tanto o dedutivismo objetivista (agentes intercambiáveis respondendo de forma idêntica às mesmas injunções objetivas) quanto o naturalismo subjetivista (a “racionalidade” econômica como atributo a-histórico e universal). Ambos são inferências errôneas, produzidas pela “cumplicidade ontológica” entre disposições subjetivas e circunstâncias objetivas no capitalismo ocidental moderno.
Um Bourdieu menos conhecido
Com o benefício da visão retrospectiva, pode-se interpretar o autotreinamento para a pesquisa social que Bourdieu realizou em meio às transformações da Argélia, um aprendizado autodidata em etnografia que ele qualificou de “escolasticamente irresponsável” (2012, p. 19), como o berço do pluralismo metodológico que se tornaria outro componente fundamental de seu habitus sociocientífico. Além disso, nos níveis teórico e empírico, essa combinação inteligente de técnicas de pesquisa se dirigia, desde o início, à captura das complexas interconexões entre subjetividade e objetividade, “agência” e “estrutura”, “biografia e história” (para usar a clássica expressão de Wright Mills [1975]). Bem antes dos “tratados” teóricos sobre a prática em que ele apresentaria sua praxiologia estrutural como uma transcendência de modos subjetivistas e objetivistas de análise do social (Bourdieu, 1977; 1980), o hábil rastreamento de tais inter-relações apareceu, com poucos traços do “reprodutivismo” lastreado na pesquisa da Cabília tradicional, em seus textos coautorais sobre camponeses expropriados e (sub)proletários urbanos na Argélia dos anos de 1950 e 1960: Travail et travailleurs en Algérie (Bourdieu et al., 1963) e Le déracinement (Bourdieu e Sayad, 1964).
Até mesmo aqueles de nós que não têm os rebuços de Wacquant (2004, pp. 390-391) em situar a teoria da prática de Bourdieu entre as “teorias teóricas” que enfrentaram questões de estrutura e agência mais ou menos contemporaneamente, como o estruturacionismo de Giddens (1979; 1993; 2003; Peters, 2015), não podem deixar de se impressionar com a versatilidade metodológica, a substância empírica e a relevância ética que os estudos do “jovem” Bourdieu trazem para essas questões. A contraparte da captura teórica das conexões entre os aspectos subjetivos e objetivos do mundo social consistiu em uma conjugação rara de metodologias quantitativas e qualitativas. Enquanto instrumentos estatísticos permitiram que Bourdieu e seus colaboradores, como o brilhante sociólogo argelino Abdelmalek Sayad, diagnosticassem “macrotransformações” nos domínios do mercado de trabalho e das demografias urbana e rural, suas “microconsequências” para as condutas e experiências de indivíduos particulares foram atentamente seguidas com observações etnográficas e entrevistas em profundidade.
Os textos in toto de Travail et travailleurs en Algérie (1963) e Le déracinement (1964) continuam indisponíveis em português, embora exista uma tradução da versão condensada do primeiro livro – escrito em coautoria com Alain Darbel, Jean-Paul Rivet e Claude Seibel –, que aparece despojado “do aparato de provas (quadros estatísticos, trechos de entrevistas, documentos etc.)” (Bourdieu, 1979, p. 7) que recheavam a obra original. Seja como for, algumas passagens muito contundentes desses dois livros borrifam as páginas de uma obra recente que torna públicas diversas das fotografias que Bourdieu tirou no seu trabalho de campo (Bourdieu, 2003; 2012), enquanto extratos de ambos, juntamente com artigos do jovem Bourdieu sobre a guerra de independência argelina, aparecem em uma já mencionada compilação dos seus escritos, organizada por Tassadit Yacine e dirigida a um público anglófono, com o título Algerian sketches (2013).
A releitura dos seus textos sobre os “camponeses desterrados” (Idem, pp. 117-145) e “o subproletariado argelino” (Idem, pp. 146-161) oferece um lembrete impactante de um dos objetivos precípuos da sociologia de Bourdieu: trazer à tona toda a carga de sofrimentos e indignidades que o funcionamento cotidiano do mundo social torna invisíveis pela dissimulação ideológica. A categoria guarda-chuva de “subproletariado argelino” designava, segundo Bourdieu, um grupo multifacetado que incluía “os desempregados, os trabalhadores casuais, os vendedores ambulantes, os pequenos empregados, porteiros, mensageiros, cuidadores, aqueles que vendem pacotes de cigarro ou um punhado de bananas” (Idem, p. 88). A análise das circunstâncias objetivas e dos pontos de vista subjetivos desses indivíduos demonstra que a sociologia de Bourdieu pode ser intensamente compassiva sem se deixar levar na direção de uma “falsa solicitude” (Idem, p. 95) em relação às pessoas que retrata. Por um lado, Bourdieu e seus colaboradores são desconcertantemente implacáveis quando apontam para as inconsistências, as confusões, a “ausência de nuances” e a “falta de realismo” (Idem, p. 154) que marcavam as visões que os subproletários argelinos, na passagem dos anos de 1950 para os de 1960, tinham de suas condições presentes e prospectos futuros. Por outro lado, os autores explicam as fontes estruturais de tais visões distorcidas, de modo a mostrar que elas eram “necessitadas”, como o último Bourdieu diria frequentemente (Bourdieu 2003, p. 700), pela situação daqueles indivíduos. As opiniões inconsistentes e desorganizadas daqueles trabalhadores subempregados e desempregados continham “uma forma de verossimilhança”, dado que estavam “tingidas de preocupação e desespero e, como um grito por socorro, […] expressa[va]m dramaticamente uma experiência dramática”. O tocante relato de seus confusos testemunhos como “a expressão adequada de uma experiência inexprimível”, “uma confissão incoerente da insuperável incoerência” (Bourdieu, 2013, p. 157) na qual eles estavam histórica e estruturalmente presos, combina assim uma penetrante crítica epistemológica das representações desses agentes leigos com uma sensível preocupação moral com sua condição. Nesse sentido, trata-se de uma instância do que Bourdieu via como o relacionamento paradoxal – “objetificante e amoroso, desapegado e, no entanto, íntimo” (2012, p. 17) – que ele mantinha com seus sujeitos de pesquisa, um relacionamento ao qual ele posteriormente se referiu, com um toque spinozano, como “amor intelectual” (Bourdieu, 2003, p. 704).
Respondendo a um interesse acadêmico renovado sobre os primeiros estudos de Bourdieu acerca da sociedade argelina, obras como Algerian sketches e Images d’Algérie são propensas a desconcertar sobretudo aqueles leitores que conhecem os textos teoricamente informados sobre a sociedade Cabila (como o Esquisse e Le sens pratique), mas não Travail et travailleurs en Algérie, Le déracinement ou seus escritos de juventude sobre a guerra argelina de libertação nacional (Bourdieu, 1959; 1960a; 1961; 1962). Tais leitores encontrarão um Bourdieu que discrepa significativamente do consagrado analista da naturalização sociossimbólica da dominação graças à conexão causal e funcional entre habitus e campos. Em vez da reprodução de assimetrias de poder através da violência simbólica que garante a cumplicidade prática dos agentes dominados com a sua própria dominação, o que se acha nesses textos são relatos de rebelião aberta contra a humilhação coletiva, de ciclos crescentes de violência física rasgando os véus ideológicos que até então justificavam a dominação colonial e, por fim, das condições sócio-históricas de possibilidade da resistência revolucionária9. Em vez da cumplicidade ontológica entre estruturas sociais e mentais, aqueles leitores encontrarão um foco sobre as dificuldades práticas e existenciais de indivíduos cujas disposições subjetivas foram cultivadas em um meio rural e tradicional, estando agora radicalmente fora de compasso com os requisitos objetivos do capitalismo urbano no qual tais indivíduos foram forçados a operar. Em vez de uma nítida “ruptura epistemológica” (Bachelard) com narrativas de senso comum, amarrada a uma ênfase sobre as disposições infraconscientes e não discursivas do habitus, o que desponta é o recurso sistemático a longos testemunhos de agentes leigos, alguns dos quais provam ser notavelmente reflexivos e perspicazes a respeito das condições em que se encontram.
Vale a pena deter-se sobre este último ponto. Bourdieu ficou particularmente impressionado, por exemplo, com o quão perceptivo era um cozinheiro cabila, com quem ele havia travado contato em Argel, quanto às conexões entre suas experiências biográficas e as transformações socioeconômicas de larga escala que a Argélia atravessava então. Os comentários desse “economista espontâneo” haviam aparecido nos apêndices de Travail et travailleurs en Algérie, mas retornaram em um artigo maduro sobre “A formação do habitus econômico”:
[…] esse homem, que mal possuía uma educação elementar, estava descrevendo em suas próprias palavras, alternando entre o francês e o berbere, o núcleo daquilo que eu tinha sido capaz de descobrir acerca da transformação em curso das estruturas sociais e mentais forjada pela expansão capitalista e pela guerra colonial na Argélia, mas apenas por meio de um esforço longo e árduo de produção e decifração de dados (Bourdieu, 2013, p. 191).
Sempre um sociólogo tenaz, Bourdieu não atribui a compreensão penetrante que esse cozinheiro tinha de seu cosmos econômico a algum fator misterioso e sociologicamente intratável. Em vez disso, ele busca explicá-la em termos da trajetória posicional que esse homem inegavelmente muito inteligente havia percorrido no espaço social da ordem colonial, trajetória que o havia levado a experimentar o mundo econômico europeu a partir de dentro, ao mesmo tempo que mantinha seus laços pessoais com vários compatriotas argelinos que não haviam logrado adaptar-se de modo eficaz às novas realidades sociais. Entre esses indivíduos presos em um “efeito de histerese” (1977, p. 89), isto é, em uma disjunção histórica entre suas expectativas e capacidades subjetivas, de um lado, e as exigências, as recompensas e as sanções atreladas às suas novas condições estruturais objetivas, de outro, estavam os membros da categoria de “camponeses camponeizados” (paysans empaysannés [Bourdieu, 2006]). Tais agentes haviam sido pressionados ou forçados a deixar suas aldeias rurais apenas para descobrir, na atmosfera opressiva dos centros de “reagrupamento” ou nas precárias condições de vida de favelas urbanas, que suas aldeias rurais, por assim dizer, não os haviam deixado. Suas orientações de conduta mais intimamente entranhadas traíam seu passado camponês e estavam, portanto, dolorosamente fora de compasso com os requisitos práticos de suas novas circunstâncias objetivas sob o capitalismo urbano. O argumento de Bourdieu é complexificado ainda pela observação de uma espécie de histerese interiorizada em alguns indivíduos, os quais não se tornaram “camponeses camponeizados” deslocados de sua terra, mas camponeses confusamente “descamponeizados” (paysans dépaysannés). Enquanto o camponês camponeizado, cujas disposições não se ajustavam às suas novas condições de existência, frequentemente desistia da participação no novo estado de coisas e se refugiava no “tradicionalismo do desespero” (Bourdieu, 2013, pp. 69-70), os indivíduos insuficientemente ou precariamente expostos aos mundos tradicional e moderno – ou melhor, “lançados entre dois mundos e rejeitados por ambos” (Bourdieu, 1960b, p. 144) – desenvolviam um “habitus clivado” (Bourdieu, 2001c, p. 79), uma espécie de subjetividade esquizoide ou vida interior dupla que os levava a oscilar entre hiperidentificação forçada e rejeição rebelde da nova sociedade.
Os textos sobre camponeses forçadamente “realocados” e subproletários urbanos que Bourdieu publicou no início dos anos de 1960 prefiguram alguns dos traços mais salientes do seu tardio projeto coletivo sobre as bases estruturais e as experiências subjetivas do sofrimento social em macrocontextos assaltados pelo que ele chamou de “invasão neoliberal” (Bourdieu, 1998; Bourdieu et al., 2003). Tais traços incluem, por exemplo, um retrato multidimensional da “miséria do mundo” que, longe de se restringir à pobreza material, descreve um conjunto de outras dolorosas privações sociossimbólicas frequentemente concomitantes à penúria econômica: privações de valor social, significado existencial, orientação prática, competência performativa, “segurança psicológica” (Bourdieu, 2013, p. 70; Peters, 2012, p. 247), senso de enraizamento e estabilidade, e assim por diante. Outro traço em comum entre os dois grupos de escritos é o já mencionado afrouxamento do imperativo metodológico da cesura epistemológica com as pré-noções espontâneas dos agentes leigos, imperativo herdado de Bachelard e Durkheim. Em vez disso, a abordagem desenhada por Bourdieu projeta um alto – embora não acrítico, bem entendido – valor analítico sobre testemunhos pessoais dos indivíduos pesquisados. Enquanto alguns desses depoimentos são, de fato, estruturalmente explicados como representações mistificadas do mundo social (é o caso das visões confusas dos subproletários tratadas acima), outros não são tanto objetivados como formas de desconhecimento quanto dialogicamente refinados mediante uma contextualização socioestrutural (é o caso das observações sagazes do “economista espontâneo” que discutimos anteriormente e de alguns dos comentários dos “camponeses reagrupados” [2013, pp. 117-145]). Por fim, no que deveria ser outro golpe sobre as premissas evolucionistas e teleológicas das teorias da modernização ao estilo dos anos de 1950, a caracterização bourdieusiana da incerteza crônica experimentada pelos trabalhadores subempregados e desempregados nas cidades daquele país “subdesenvolvido” ou de “Terceiro Mundo” prenunciava, curiosamente, as condições de vida de vastos setores da população em sociedades do Atlântico Norte após as transformações estruturais do capitalismo tardio10.
O envolvimento desapegado de Bourdieu: a fotografia como instrumento de “objetivação participante” e “amor intelectual”
Um dos melhores modos de abordar a bem conhecida síntese teórica entre os “momentos” objetivista e subjetivista em um quadro de análise praxiológico é apontar para seu agudo senso dos trade-offs epistêmicos envolvidos em relacionamentos distantes e próximos entre o cientista social e os agentes, cujas práticas ele pretende explicar e compreender (Bourdieu, 1977; 1980). O desafio máximo, conforme a estratificação da praxiologia de Bourdieu em dois “momentos” analíticos de objetivismo e subjetivismo, consiste em combinar as vantagens intelectuais da “alienação” e do “envolvimento”, para colocar nos termos de Elias (1998), ao mesmo tempo que os seus respectivos limites heurísticos são superados. Ao longo de suas incursões etnográficas pelas diferentes regiões e comunidades da sociedade argelina, houve uma ferramenta metodológica que Bourdieu considerou particularmente adequada para o alcance desse equilíbrio entre “a distância do observador”, de um lado, e a “familiaridade, atenção e sensibilidade até mesmo aos detalhes menos perceptíveis” (Bourdieu, 2012, p. 1) que apenas a proximidade garante, de outro: a fotografia.
Images d’Algérie (2003), recentemente publicado em tradução anglófona com o título Picturing Algeria (2012), contém cerca de 150 fotografias selecionadas entre as muitas mais que Bourdieu tirou durante seu trabalho etnográfico naquele país ao longo da segunda metade da década de 1950 e início dos anos de 1960. A maior parte dessas fotos “tinha permanecido guardada em caixas durante quarenta anos” (Bourdieu, 2012, p. 8) e teria lá ficado não fosse pela insistência de Franz Schultheis, professor da Universidade de Genebra, em torná-las publicamente acessíveis. Após uma relutância inicial, provavelmente ligada à sua eterna fobia da autocomplacência narcísica tipicamente atrelada à figura do “intelectual”, Bourdieu terminou embarcando na montagem de uma exposição e de um livro que revelasse esse arquivo fotográfico largamente desconhecido, ainda que ele não tenha vivido para ver tal projeto levado a termo. Em 2003, cerca de um ano após a morte de Bourdieu, Images d’Algérie veio a lume, e exposições de suas fotografias aconteceram no Instituto do Mundo Árabe, em Paris, e no Museu de Arte de Graz, na Áustria.
Para aqueles cujo primeiro conhecimento dos sujeitos e sociedades argelinos retratados na obra de Bourdieu veio sobretudo dos seus escritos, é refrescante conectá-los a mulheres, homens, crianças, casas, artefatos e paisagens que aparecem nas suas fotografias. Embora não haja nenhuma explicação detalhada das circunstâncias que cercaram cada um dos retratos – o que é lamentável, porém compreensível –, as fotos são acompanhadas de seleções instrutivas dos escritos de Bourdieu sobre a Argélia, assim como por uma entrevista com Schultheis, na qual ambos exploram seu “uso da fotografia para […] a pesquisa etnográfica de campo e os estudos sociológicos em situação” (2012, p. 8). Bourdieu estabelece interessantes conexões entre a utilização da fotografia como ferramenta metodológica e o modus operandi da abordagem sociológica que ele desenvolveu paulatinamente. Tais considerações metodológicas são muito bem-vindas em um cenário de debate sociológico no qual tecnologias de produção e disseminação de imagens ainda parecem figurar mais como um tema de pesquisa que como um recurso sistematicamente empregado na geração e na comunicação de conhecimento científico-social11 (Back, 2009).
As funções que a fotografia desempenhou no trabalho de campo de Bourdieu foram múltiplas. Em primeiro lugar, as fotos tinham uma qualidade documental, no sentido de que, tiradas em situações de urgência etnográfica, por assim dizer, elas operavam como anotações visuais às quais ele poderia retornar pausada e atentamente mais tarde. Além de um artifício mnemônico que as tornava o equivalente imagético de um caderno de campo, o recurso a fotografias foi uma importante moeda de comunicação entre pesquisador e pesquisados, ao servir como um meio pelo qual Bourdieu expressava sua (genuína) preocupação moral com as pessoas cujas vidas ele estava estudando, muitas das quais estavam interessadas em obter fotografias de si próprias e/ou na divulgação de suas difíceis circunstâncias para um público interessado. A prática da fotografia intensificou a sensibilidade de Bourdieu para as minúcias de cenas socioetnográficas, levando-o a perceber detalhes sociologicamente relevantes que teriam escapado à sua atenção não fosse por essa função sensibilizadora da produção regular de retratos. Além disso, de um ponto de vista afetivo, tirar fotos era um modo de interpor alguma distância entre ele e as pessoas cujas provações ele estava retratando, uma distância sem a qual, diz Bourdieu, ele teria sido assoberbado pela emoção diante de tantas aflições e, assim, motivacionalmente incapacitado de continuar seu trabalho de testemunho. Através da condensação permitida por meios imagéticos, as fotografias também ajudavam a comunicar diagnósticos sociológicos complexos, em particular do que ele alcunha de “realidades dissonantes” (2012, p. 13). Para ficar no exemplo mais óbvio, cujo sabor ingenuamente “exótico” esconde uma complexidade subjacente, as dinâmicas da dominação metropolitana e da resistência colonial, bem como sua mistura simbólica com questões de “tradição” e “modernidade” na Argélia dos anos de 1950, são expressas na foto de uma mulher com burca andando de motocicleta (Idem, p. 31)12.
Observando os retratos textuais e fotográficos da Argélia produzidos por Bourdieu, descobre-se que as raízes existenciais da sua obsessão pela reflexividade epistemológica não derivam somente dos deslocamentos estruturais inerentes à biografia de um miraculè, saído de uma pequena aldeia provinciana no Béarn para chegar ao pináculo do campo acadêmico francês no Collège de France em Paris. Essa obsessão também adveio da experiência fundacional de ter de conduzir pesquisas empíricas em meio a um contexto de guerra, no qual a natureza do relacionamento social entre o pesquisador e seus informantes bem como a atenção aos menores e aparentemente mais triviais detalhes procedimentais eram literalmente uma questão de “vida ou morte” (Bourdieu, 2012, p. 17). Além dos desafios inerentes à realização de uma etnografia em circunstâncias tão arriscadas, as quais envolviam, por exemplo, “avançar […] por uma estrada entupida, no trajeto inteiro, por carcaças de carros carbonizados” com “o estrondo das metralhadoras” ao fundo (Bourdieu, 2005, p. 77), a reflexividade de Bourdieu também foi intensificada pela ambivalente experiência, em primeira mão, das condições coloniais e violentas de possibilidade da etnologia:
[…] Eu havia partido para as montanhas a pé para observar as aldeias destruídas, e encontrei casas que tinham tido seus telhados retirados para forçar as pessoas a saírem. Elas não haviam sido queimadas, mas não eram mais habitáveis. E eu me deparei com jarras de argila nas casas […] na Cabília, eles as chamam aqoufis, essas grandes jarras de argila decoradas com desenhos. Os desenhos são frequentemente de cobras, cobras sendo um símbolo de ressurreição. E, ainda que a situação fosse tão triste, eu estava feliz em poder tirar fotografias – era tudo tão contraditório. Eu só fui capaz de tirar fotos dessas casas e imóveis porque elas não tinham mais telhados […]. Eu estava muito comovido e sensível ao sofrimento das pessoas, mas, ao mesmo tempo, eu tinha o distanciamento de um observador, manifesto pelo fato de que estava tirando fotos13 (Bourdieu, 2012, p. 18).
A experiência direta dos laços históricos entre etnologia e violência colonial não conduziu Bourdieu, entretanto, a supor que os recursos intelectuais da primeira estariam inevitavelmente presos à ideologia colonialista. Concebida como “objetivação participante” (2013, pp. 265-279), uma investigação etnossociológica que dá conta sistematicamente das suas próprias condições sociais e históricas de possibilidade propiciaria também a possibilidade de controle reflexivo dos vieses inerentes à posição do etnógrafo. Tal visão do relacionamento entre etnologia e colonialismo é uma instância particular do que se tornaria uma proposição geral da epistemologia sociológica de Bourdieu, a qual reconhece os condicionamentos estruturais que coagem os pontos de vista sobre o mundo social, mas não abandona o ideal de conhecimento objetivo, alicerçando-o na superação de tais coações por meio da “objetivação do sujeito objetivante” (Bourdieu, 1990, p. 14; Peters, no prelo). Além disso, ao rechaçar as perspectivas dos colonizadores assim como as posições “daqueles que meramente ‘reagem’ contra elas sem entender as condições sociais do seu trabalho” (Bourdieu, 2013, p. 285), Bourdieu avançou uma concepção do conhecimento etno(socio)lógico que buscava expor os diversos males do colonialismo e contribuir para iniciativas emancipatórias não a despeito de sua objetividade científica, mas precisamente por causa dela.
Modernização e colonialismo
Os escritos bourdieusianos de juventude sobre as transformações provocadas pela guerra argelina de libertação nacional já mostram sua típica tendência a trilhar um caminho de síntese entre as principais perspectivas em oposição na sua paisagem intelectual. No nível político, ele era inequivocamente a favor da independência plena da Argélia em relação ao Estado francês. Isso o colocava obviamente contra os defensores do regime colonizador, entre os quais estavam os membros da facção de extrema direita do exército francês que assassinou críticos do colonialismo, como os seus amigos Mouloud Feraoun e Moulah Hennine, colocou o nome de Bourdieu em uma lista de homicídios programados e, assim, acabou levando-o a deixar o país um tanto às pressas, em avião militar, na calada de uma noite em 1961 (Yacine, 2004; Go, 2013). Sua defesa de uma Argélia plenamente independente também o situava à esquerda das propostas “centristas”, reformistas e reconciliadoras avançadas por intelectuais como o romancista Albert Camus e a socióloga e etnógrafa Germaine Tillion – uma importante interlocutora dos primeiros trabalhos de Bourdieu14. Como vimos, no entanto, ele também criticou as “simplificações e mitologias” de certa esquerda utópica apelando “para a extrema complexidade do real” (Bourdieu, 2013, p. 85) – por exemplo, sustentando que nem os camponeses expropriados nem os subproletários urbanos possuíam os meios objetivos e subjetivos para desenvolver uma consciência revolucionária racional15.
Se a atitude política de Bourdieu sobre a questão argelina é bem conhecida, menos discutida é sua síntese entre os quadros analíticos associados à teoria da modernização, de um lado, e a teorias do colonialismo, do imperialismo e da dependência, de outro. Contra as visões teleológicas da transição para a modernidade, os anos de 1960 e 1970 testemunhariam uma proliferação de perspectivas que não mais concebiam “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” como estágios diferentes ao longo do mesmo caminho evolucionário, mas sim como condições mutuamente determinadas em um sistema assimétrico internacional. No nível econômico, por exemplo, segundo tais perspectivas, relacionamentos em bases desiguais eram estabelecidos de modo tal que o enriquecimento dos países de “Primeiro Mundo” era sistematicamente alcançado às expensas do empobrecimento de largas porções dos seus “satélites econômicos” no “Terceiro Mundo”. Em compasso com uma visão pioneiramente avançada pelo antropólogo Georges Balandier16, o artigo que Bourdieu publicou em 1959 com o título “O choque de civilizações” (1959; 2013, pp. 39-51) defende que a desintegração das estruturas sociais tradicionais na Argélia não poderia ser explicada nem em termos de um desenvolvimento endógeno “atrasado”, nem como mero resultado do contato cultural entre duas sociedades distintas. “Os fenômenos de desagregação social, econômica e psicológica” observados em comunidades argelinas não eram a consequência inevitável do encontro entre sociedades desigualmente desenvolvidas, mas o produto de “uma situação particular, aquela do colonialismo” (2013, p. 40), com sua miríade de consequências. A substituição histórica da possessão conjunta das terras pelas tribos argelinas por propriedades pessoais estritamente divididas, para ficar em apenas um exemplo, adveio de uma série de políticas para a propriedade da terra que, começando com o chamado sénatus-consulte em 1863, consistiram em “uma verificável operação de ‘cirurgia social’ que não deveria ser confundida com contágio cultural” (Idem, p. 45). O que isto significava para Bourdieu, entretanto, não era que as análises do subdesenvolvimento conduzidas ao estilo da teoria da modernização, como os estudos de Germaine Tillion que enfatizavam as “dificuldades” e as “resistências” que impediam certas populações argelinas de propelir seu desenvolvimento socioeconômico (Hadour, 2009, p. 392), estariam completamente erradas, mas sim que elas apenas adquiriam sua “plena verdade” (Bourdieu, 2013, p. 41) se vistas à luz da dominação colonial. Bourdieu aduziu um argumento de sabor estrutural-funcionalista para explicar por que este era o caso:
Toda cultura permite maior ou menor espaço para mudança; as alternativas que o contato civilizacional propõe […] são […] resolvidas em função do sistema de valores estabelecidos na “cultura recipiente” […]. Em uma situação normal, modificações propícias a dissolver […] valores […] fundamentais são repelidas, enquanto aquelas em conformidade com o “estilo” específico da “cultura recipiente” podem ser […] adotadas. Na medida em que essa seleção pode ser exercida, a “cultura” mantém seu equilíbrio e originalidade […]. No caso contrário, os próprios valores fundamentais podem ser dissolvidos, e as normas vitais da cultura, despedaçadas, levando a uma desintegração mais ou menos catastrófica do conjunto cultural (Idem, p. 40).
O “caso contrário” refere-se primariamente, é claro, ao trágico desabamento da Argélia tradicional. Dado que sua existência anterior era a de “uma totalidade cujos elementos são indissociáveis”, seu colapso não poderia ser senão também total, “produzindo dissoluções não apenas na ordem econômica, mas também nas ordens social, psicológica, moral e ideológica” (Idem, p. 43). É em relação com essa “modernização pela força” que se deve entender, por exemplo, o diagnóstico bourdieusiano de como as expectativas e as capacidades inerentes ao habitus do camponês argelino prejudicam sua adaptação à economia e à sociedade modernas. Tal diagnóstico, se desligado de um quadro de análise que projeta uma primazia explanatória sobre “o sistema colonial” e seus efeitos relacionais agonísticos, pareceria apenas mais uma instância da teoria da modernização clássica, com sua correlata psicologia das atitudes culturais que favorecem ou impedem a transição para a modernidade (Burawoy, 2011). No caso da situação argelina, portanto, a teoria da modernização captou algo real, mas não percebeu suas causas estruturais profundas no colonialismo17.
Conclusão
Verificamos que o desvio pela alteridade sociocultural propiciado pelos estudos etnográficos que Bourdieu conduziu na Argélia é uma fonte primordial da perspectiva desnaturalizante que ele veio a avançar sobre a sua França nativa. Tanto no plano individual como no coletivo, o questionamento crítico de crenças sobre nós mesmos, que tendemos a tomar como autoevidentes, é tornado possível ou, pelo menos, facilitado pelo contato efetivo com indivíduos e sociedades que nos demonstram in actu que há outros modos de “ser-no-mundo” (Heidegger), os quais podem discrepar bastante dos nossos. Se intitular o seu primeiro livro Sociologia da Argélia já importava em questionar a repartição de objetos entre sociologia e antropologia nos termos da distinção entre sociedades avançadas e primitivas, desenvolvidas e subdesenvolvidas etc., a manobra antietnocêntrica mais radical adveio quando Bourdieu resolveu aplicar ao estudo de seus espaços “nativos” – a França moderna (Bourdieu, 2007) e o próprio campo onde viceja o homo academicus (Bourdieu, 1984) – os instrumentos teórico-metodológicos que lhe renderam tantos frutos cognitivos no estudo da Cabília tradicional, tais como a tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais e estruturas mentais.
Ao mesmo tempo, o projeto mesmo de uma “teoria da prática” radica no pressuposto epistêmico, mas também na descoberta empírica, da existência de uma unidade subjacente à diversidade histórico-cultural, de propriedades comuns à conduta humana em sociedade como tal (Bourdieu, 2001c). Com efeito, Bourdieu foi capaz de mostrar que os princípios que regulavam a reprodução de assimetrias de poder e desigualdades distributivas na sociedade moderna eram estruturalmente semelhantes, mutatis mutandis, àqueles que vigoravam na Cabília tradicional (por exemplo, a cumplicidade ontológica entre divisões objetivas da estrutura social e princípios subjetivos de percepção dessa estrutura) precisamente porque escapou, antes de tudo, à tentação de conceber o “exotismo” argelino como diferença cultural intransponível, ao erro levy-bruhliano do “antropólogo que coloca o primitivo à distância porque […] não reconhece o pensamento primitivo, pré-lógico, em si próprio” (Bourdieu, 2013, p. 271). A objetivação reflexiva dos pressupostos do seu trabalho etnográfico também o levou, assim, à crítica de uma artificial “exotização do exótico” comumente baseada no esquecimento do que significa ser nativo em qualquer universo sociocultural. Se sociologia é “a arte de pensar coisas fenomenicamente diferentes como semelhantes em sua estrutura e funcionamento” (Bourdieu, 1988, p. 44), ela é também a arte de pensar seres humanos culturalmente diferenciados em sua universal “natividade” prática. Tremendamente ampliada e burilada ao longo de mais de quatro décadas, tal perspectiva começou a brotar nos momentos em que Bourdieu percebeu bearneses nos cabilas e cabilas nos bearneses18, depois de se lançar a uma investigação etnossociológica que mitigasse, ao menos parcialmente, a tristeza pessoal e o senso da tragédia coletiva circundante que o afligiam. Refletindo acerca das motivações que o levaram a envolver-se intensamente no trabalho de campo em um contexto de guerra que o expunha a riscos consideráveis, Bourdieu sublinhou que seu
[…] engajamento total e esquecimento do perigo não tinham nada a ver com […] heroísmo e se enraizavam […] na tristeza e ansiedade extremas em meio às quais eu vivia e com a vontade de decifrar um enigma do ritual, de observar um jogo, de ver este ou aquele objeto […] ou […] com o simples desejo de […] testemunhar, levavam-me a lançar-me de corpo e alma no trabalho puxado que me permitiria estar à altura das experiências de que eu era testemunha indigna e desarmada e das quais eu queria dar conta a qualquer preço19 (Bourdieu, 2005, p. 77).