A história do dinheiro, em uma perspectiva teórica evolucionista como a de Carl Menger (1892), é narrada de forma linear, com origem em práticas de escambo e permuta a partir das quais se passa a introduzir um objeto mediador. Nigel Dodd desconstrói tais teorias em seu livro The social life of money, demonstrando como o dinheiro enquanto ideia seria um elemento intelectual de troca e operador complexo das relações sociais. Dodd desconstrói ainda perspectivas críticas e leituras mais essencialistas do caráter destrutivo do dinheiro, tais como as de Marx (1894, 1978, 1982), Nietzsche (1996), Simmel (2004) e Polanyi (1957), para os quais “a relação do dinheiro com a cultura é bastante ameaçadora e destrutiva” (p. 19).
Mesmo no senso comum, o dinheiro aparece repetidamente como objetificador de sujeitos, desumanizador de relações, e somente o seu desaparecimento poderia oferecer uma perspectiva de equilíbrio para a vida em sociedade. Dodd, professor de sociologia na London School of Economics, apresenta uma nova perspectiva, desconstruindo premissas genericamente tidas como naturais e naturalizantes desse caráter corrosivo do dinheiro.
Tomando como ponto de partida a crise que inicia em 2007 com as hipotecas subprime1 – modalidade de hipoteca para clientes com baixa renda e baixo limite de crédito –nos Estados Unidos, assim como o colapso de bancos de investimentos e serviços financeiros em 2008, até chegar à ameaça de saída grega da zona do Euro, Dodd se volta para as problemáticas de privatização dos lucros e socialização das dívidas. A inovação no argumento do autor está no sentido de desmistificar o dinheiro per se como vilão e causa central das mazelas sociais, desconstruindo seu mito de origem e atentando para novas formas de dinheiros (no plural), que emergem muitas vezes ancorados no desenvolvimento de novas tecnologias, como no caso do Bitcoin, e que poderiam protagonizar alternativas para um sistema econômico e financeiro que, se não se demonstra falido, é, no mínimo, perverso ao onerar os sujeitos mais vulneráveis com suas oscilações.
Dividido em oito capítulos, o livro inicia explorando as teorias e representações das “Origens do dinheiro” (cap. 1); passa pelas noções do dinheiro como “Capital “ (cap. 2) e “Dívida” (cap. 3); explora suas subjacentes moralidades e princípios de acumulação e gastos em “Culpa” (cap. 4) e em “Desperdício” (cap. 5); analisa as dimensões de “Território” (cap. 6) e “Cultura” (cap. 7) associadas ao dinheiro, e finaliza com a noção de transformar o dinheiro com base no próprio dinheiro “Utopia” (cap. 8). Como objetivo da obra, o sociólogo busca “dar um passo atrás e reconsiderar a natureza do dinheiro, particularmente sua natureza social, não apenas à luz de eventos específicos e sentimentos políticos […], mas in toto. O propósito do livro, resumidamente, é explorar a vida social do dinheiro em toda a sua complexidade” (p. 12).
Partindo de questões acerca do que seria o dinheiro – um processo ou uma coisa, uma mercadoria ou uma relação social –, o que explicaria o seu valor, quais seriam suas funções, quais seriam suas origens, Dodd sugere que o dinheiro é essencialmente uma ficção, uma ilusão social poderosa e necessária. Justamente por não considerar o dinheiro algo concreto, objetivo e singular, sob domínio exclusivo do Estado ou dos bancos, o sociólogo vê em sua abstração e múltiplas formas de organização as possibilidades de redenção.
Duas ideias centrais encontram-se articuladas em narrativas históricas da origem do dinheiro: a primeira, de que este teria surgido a partir de práticas de escambo e troca de sociedades tradicionais; a segunda, de que sua origem estaria associada ao direito de soberanos e governos ao monopólio de sua produção. Ambas são tratadas pelo autor, com base em leituras como Beckert (2013, p. 335) e Zbaracki e Bergen (2008, p. 49), em termos de ficções que desempenham um papel importante na economia para lidar com a incerteza, bem como mitos que auxiliam na organização racional do mundo social, respectivamente. Privilegiando, em termos de abordagem antropológica, o trabalho de Marcel Mauss (1990), Dodd passa do simples caráter de quantificação e mediação conferido pelo dinheiro à noção maussiana de dinheiro enquanto fato social total2, para indicar que distintas formas de dinheiro podem ter existido, materializadas em “objetos cujo valor não era destruído pelo uso” (p. 34), e ainda ignoradas pelos teóricos.
Nas concepções inspiradas pela semiótica de Ferdinand de Saussure, o dinheiro aparece como linguagem. É assim para autores como Parsons, para quem o dinheiro é visto como um “meio de comunicação simbólico que preenche funções específicas de linguagem”, e Rousseau, para quem o dinheiro seria “essencialmente linguagem”. Dodd considera que o dinheiro opera – assim como os signos – com base em um valor composto pela relação com algo dissimilar pelo qual pode ser trocado e comparado.
No entanto, Dodd não define o dinheiro como uma linguagem, mas sim como uma ideia. Sua análise do dinheiro enquanto uma “ideia poderosa” (p. 14) deriva do trabalho de Simmel publicado acerca desse tema. Simmel não considera o dinheiro simplesmente um objeto físico intermediário de trocas, mas sim um mediador perfeito de intercâmbios, intelectualmente complexo, que mobiliza concepções sociológicas, filosóficas e psicológicas das interações sociais e modos de existência. Parafraseando a noção de que nem todo dólar é igual (Zelizer, 1997), o autor propõe que o dinheiro, assim como a compreensão da linguagem após o trabalho de Saussure, acontece em relação e não tem valor intrínseco nem atua como um equivalente perfeito esvaziado de significado.
O autor mapeia nesta obra a “complexa história do estudo monetário”, fazendo uma extensa revisão de pensadores que problematizaram o dinheiro, tais como Marx, Keynes, Simmel, Freud, Nietzsche, Schumpeter, Strange, Bataille, Menger, Zelizer, Hart, Derrida, Deleuze e Guatarri, entre outros. A partir de Marx, o papel ambíguo do dinheiro aparece, sendo este tanto uma medida de valor quanto um meio de circulação. Essas duas funções carregam uma contradição inerente que aparece como uma terceira função: dinheiro como reserva de valor. Ao assumir essa função, o dinheiro passa a ser visto como fim em si mesmo, e têm início práticas de acumulação, adquirindo caráter de mercadoria e perdendo o valor de um representante universal de mercadorias. Dodd analisa a noção marxista de “acumulação primitiva” como um processo histórico de separação do produtor em relação aos meios de produção, ou ainda o que Harvey chamaria de “acumulação por expropriação”. Dessa forma, o autor constrói seu argumento de que a perversão associada ao dinheiro se encontra justamente no seu caráter acumulativo.
Resgatando noções de economia moral, ancorado em autores como Nietzsche e Kant, Dodd passa à definição do dinheiro como uma forma de dívida e da dívida dotada de culpa (por parte do devedor). No entanto, assim como a estruturação do caráter acumulativo do dinheiro com base na lógica do sistema capitalista de produção, é possível analisar a transformação da noção de dívida atrelada à moralidade (e mesmo à honra) nas relações sociais (Nietszche, 1996; Mauss, 1990) em dívida dotada de juros. O dinheiro pode então ser visto tanto como uma forma de dívida, quanto uma forma de crédito.
Para tratar da noção de dívida e da distinção entre o “antigo estilo de crédito” e “crédito dotado de interesse” (ou juros), o autor recorre à obra Debt: the first 5000 years, de David Graeber (2011) – antropólogo, anarquista e ativista considerado por muitos o criador do slogan “We are the 99%”, do movimento Occupy Wall Street. Assim como apontado por Sennett (2005) e Harvey (1992), Dodd indica essa transformação como embasada na lógica da negociação de crédito e dívida entre estranhos. Para o sociólogo, a “história não contada de Graeber é a da transformação de uma economia de crédito em uma economia de juros” (p. 94).
O sistema monetário moderno estaria enraizado na violência estatal. No entanto, é importante salientar que Dodd (e mesmo Graeber) não considera a violência algo intrínseco ao dinheiro per se, mas sim consequência do desenvolvimento de formas específicas de dinheiro. Com uma perspectiva crítica à organização hierárquica social dita moderna, ele aponta como a crise financeira demonstrou uma abismal separação entre a sociedade em geral e as elites financeiras, especialmente aquelas centradas em Wall Street.
Ao discutir a origem do dinheiro e sua relação com o Estado, Dodd alinha-se com a concepção neochartalista4 de Geoffrey Ingham, sociólogo da Universidade de Cambridge. Essa teoria, em oposição à noção de Menger da origem do dinheiro como meio facilitador do comércio, concebe o dinheiro como um instrumento de criação estatal. Nessa concepção, o Estado é colocado como intermediário do conflito de interesses entre credores e endividados. Para Ingham, “o Estado impõe um significado hegemônico do dinheiro ao definir o dinheiro que conta”. Dodd reforça que essa ficção está ancorada em uma complexa configuração de arranjos institucionais e epistemológicos que precisam ser repensados.
A dívida, para o autor, é parte daquilo que nos faz “seres sociais” e não apenas uma “função de culpa religiosa ou autorrepressão”. Ela “está profundamente implicada na vida social do dinheiro” (p. 139). Outra característica do dinheiro trabalhada por Nigel Dodd refere-se ao seu gasto ou desperdício. Temática abordada por pensadores como Georges Bataille (1986) e Thorstein Veblen (2009), o desperdício materializado em forma de bens de luxo e práticas de consumo conspícuo é a chave da distinção de classe. O desperdício é, então, entendido como um símbolo cultural, uma manifestação contraditória do caráter (super)acumulativo do dinheiro do qual tratamos.
David Harvey (1992) também aponta a inexistência, no sistema capitalista, de uma forma de controle da acumulação de riqueza e do poder dela obtido. Retomando o ritual do potlatch – trabalhado extensivamente por antropólogos como Mauss –, Harvey indica a prática do “desperdício” de dinheiro como forma de obtenção de prestígio, o que podemos pensar em termos de capital social para práticas contemporâneas de filantropia (estratégica) e investimento social privado. No entanto, mesmo essas estão cada vez mais capturadas pela lógica de mercado, com especialistas clamando pela necessidade de racionalização e otimização dos gastos – ou agora investimentos. Dessa forma, permanece reproduzindo-se o problema da acumulação de riquezas na mão de uma minoria que produz dinheiro a partir do próprio dinheiro.
Atrelada às noções de gasto e desperdício está a premissa fictícia da escassez, sobre a qual opera o modelo econômico ocidental. Sahlins (1972) em A sociedade afluente original desconstrói essa ideia, e Baudrillard (1983, 1993) sugere ser o mercado a forma social que produz a escassez.
Outra premissa muitas vezes naturalizada, mas desconstruída por Dodd, trata da questão territorial em relação ao dinheiro, ou seja, da moeda vinculada ao Estado-nação. Apesar de contradizer-se ao apresentar o caso do euro como uma moeda desterritorializada, Dodd recorre a autores como Hart e Zelizer para pensar um novo tipo de dinheiro, um dinheiro “com vida”, perecível, a fim de evitar sua acumulação e concentração.
Ainda com base no trabalho de Hart e Zelizer, algumas dicotomias são desestabilizadas: a dicotomia entre mercado e Estado e “as esferas separadas” (Zelizer) entre afeto e dinheiro, respectivamente. Estados e mercados operam juntos, o que também pode ser visto no caso já mencionado de certas formas de filantropia, e não em oposição. Dodd aponta justamente essa associação como responsável pelo ciclo autodestrutivo gerado na crise europeia.
Nigel Dodd argumenta que o dinheiro na sua dimensão cultural é moldado por práticas sociais e valores culturais de seus usuários, e o dinheiro que foi impessoalizado precisa voltar a ser pessoal e qualitativo. Para o autor, se a ficção do dinheiro objeto foi criada, ela precisa agora ser repensada por meio da pluralidade de dinheiros que aparecem, tais como local exchange trading systems (Lets), Bitcoin e Freicon. Ao devolver a vida ao dinheiro, esse deve deixar de ser visto como perene e acumulável.
Uma vez discutidas as concepções do dinheiro como uma coisa ou linguagem, Dodd relembra a definição de Hart de que o dinheiro não é “uma coisa ou ideia estática” (Hart, 2001, p. 33). Enquanto uma ideia, Dodd considera o dinheiro vitalmente durável e capaz de operacionalizar criações construtivas para problemas sociais. O sociólogo sublinha as potencialidades de descentralização da produção e do gerenciamento de fluxos de dinheiro das mãos dos governos nacionais e instituições bancárias, especialmente no caso das moedas locais.
O argumento central de Dodd é de que o dinheiro é social, “ele é uma reivindicação, se não na ‘sociedade’ então nos variados modos de existência e experiência compartilhados” (p. 394). Sem valor intrínseco e predeterminado, esse dinheiro seria socialmente vivo de muitas formas: reproduzindo conflitos e desigualdades; conectando crédito e dívida; possuindo qualidades (quase) sagradas; expressando a capacidade de uma sociedade para lidar com o excedente e o desperdício; existindo sombriamente nas fronteiras e espaços de interstício geopolítico; apresentando propriedades culturais e ainda um espírito reformista e utópico.
O mito que contamos a nós mesmos seria justamente de que o dinheiro é somente um objeto que medeia troca e impessoaliza relações. A forma como o dinheiro é concebido como multiplicável, louvável, um fim em si mesmo, confere-lhe o status de sagrado. O autor invoca até mesmo o caráter anal da relação dos sujeitos com o dinheiro, apontado por Freud para pensar a necessidade de contenção e acumulação de dinheiro que vigora nas práticas de financeirização.
Dodd mostra que distintas formas de dinheiros existiram e existem em culturas e tradições plurais. No entanto, pesquisadores e intelectuais do dinheiro ocidental contemporâneo visualizam alternativas ao modelo hegemônico como movimentos de alternância (Maurer, 2012) e falam mesmo em pós-capitalismo com foco em economias alternativas e diversas (Gibson-Graham, 2006). O necessário parece ser pensar em uma “transformação de dentro”, a partir do próprio dinheiro, não mais visto como vilão, mas como um possível protagonista desse processo social quando trazido de volta à vida, não mais visto como um fim em si mesmo, perene e acumulável, mas fluido, perecível e múltiplo.