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Resenhas

Varoufakis, Yanis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. Werneck, Marcela; Paulani, Leda. Autonomia Literária, São Paulo: 2016. 296

Certa vez, o economista e ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis definiu a si mesmo como um “marxista errático”. Ainda que uma regra básica do bom senso nos aconselhe a não aceitar sem exame crítico aquilo que alguém diz sobre si mesmo, poucos qualificativos poderiam resumir melhor o conteúdo de seu livro que acaba de ser publicado no Brasil. Do começo ao fim, O Minotauro Global é, de fato, em todas as suas muitas riquezas e poucas lacunas, a obra de um perspicaz e criativo “marxista errático”.

Em sua abertura, franqueza e desapego a dogmas, a boa heterodoxia econômica de Varoufakis mostra-se fecunda tanto na demonstração das graves deficiências das teorias neoclássicas dominantes (aqui chamadas “teorias tóxicas”, em estreita relação com o seu papel no surgimento dos “ativos tóxicos”) – que soberbamente ousaram postular que uma crise global como a de 2008 não poderia acontecer –, como na construção de uma sólida narrativa alternativa sobre as origens e as causas do atoleiro em que se encontra a economia mundial pós-crise.

Desse modo, buscando explicações sistêmicas e equacionando sofisticada leitura macroeconômica com as dinâmicas geopolíticas, o autor consegue traçar o caminho que nos trouxe até a crise sem escorar sua análise, como se tornou corrente, em algum anedotário moralizante sobre ganância e rentismo, ou em qualquer outro discurso ad hoc sobre a reprovação per se da ação do Estado nas economias.

Outro mérito: sua análise econômica não se furta a entrar no debate público. Sem com isso perder em profundidade, o texto é desenvolvido em linguagem fluida, didática e bem-humorada, recorrendo a potentes imagens da cultura pop e da mitologia grega para dissecar e apresentar, em muitos e elucidativos exemplos, cada um dos argumentos que mobiliza.

E é justamente uma dessas alegorias que se dá título à obra: o Minotauro de Creta. Metade homem, metade animal, o ser é produto da relação entre a mulher de Minos, rei de Creta, e um touro (um castigo dos deuses a Minos por este não ter atendido ordens divinas). De modo a conter a voracidade da besta, um labirinto foi construído como sua morada e, no interior deste, sua inusitada dieta se dava à base de seres humanos jovens. Para satisfazer sem maiores problemas o monstro, o rei Minos força os atenienses, após vencê-los em uma guerra, a todos os anos enviarem rapazes e moças para serem devorados pelo Minotauro.

Conforme lembra Varoufakis, historiadores tendem a relacionar o mito à real hegemonia política e econômica de Creta na região do mar Egeu – a quem cidades-estados menos poderosas tinham de pagar tributos regulares em troca de proteção e manutenção da paz. A imagem é mobilizada como analogia ao papel político-econômico dos Estados Unidos da América no mundo pós-revogação do regime de Bretton Woods, a partir do início da década de 1970 – veremos por quê. O livro está encadeado, assim, pela descrição dos antecedentes que dão surgimento à besta ianque, passando pelo seu período áureo, até chegar a 2008, quando esta é praticamente ferida de morte. Percorrendo esse traçado, apresenta uma concisa e didática história do capitalismo mundial, especialmente a partir do pós-guerra, até o momento presente.

A obra começa com uma breve e bastante pragmática discussão sobre os antecedentes de formação do capitalismo mundial, bem como o desenho de seus mecanismos gerais de funcionamento, explicados – raramente recorrendo a citações diretas – com base em formulações de Karl Marx, John Maynard Keynes e Joseph Schumpeter. Em alguns momentos, e mesmo que não sejam citados diretamente, argumentos presentes em Karl Polanyi, Suzzane de Brunhoff e Hyman Minsky aparecem – articulação que se mostra, aliás, bastante produtiva.

Assentada em tais bases, a história que Varoufakis desenha é composta por três eras. Primeiro, da Revolução Industrial a 1945 – período que inclui a crise financeira mundial de 1929 e as duas grandes guerras. Em seguida, o boom do pós-guerra, ou os “anos gloriosos” do capitalismo mundial, período que vai de 1945 a 1971. A esse período ele dá o nome de “Plano Global”, quando os Estados Unidos se tornam a maior economia superavitária a ocupar o centro da ordem econômica internacional. Finalmente, aparece o “Minotauro Global”, a era das altas finanças, de 1971 a 2008, quando os Estados Unidos se tornam uma grande economia deficitária, mantendo, de forma renovada, sua mesma posição central.

A tese fundamental, e fio condutor teórico-conceitual da análise de Varoufakis ao longo deste percurso, é a de que o capitalismo não pode funcionar de maneira minimamente estável sem dispor de um Mecanismo Geral de Reciclagem de Excedentes (mgre). Partindo da ideia de que as economias tendem a observar diferenciais de produtividade inerentes às diferenças setoriais e regionais, o autor sustenta que, diante desse fato, e a bem de uma composição comercial mais ou menos equilibrada, faz-se necessária a construção de mecanismos que permitam investir lucrativamente os excedentes acumulados nas regiões e nos setores superavitários em suas contrapartes tendencialmente deficitárias (“das áreas urbanas para as rurais, das mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas” etc.).

No interior de uma economia nacional, por exemplo, isso é feito por meio de unidade fiscal, que possibilita a realização de transferências da União (em bens, serviços, infraestrutura, isenções, incentivos etc.) em prol dos Estados e regiões menos vigorosas economicamente – algo que também pode ser feito por meio de sistemas federalizados de seguridade e saúde.

Entre as economias nacionais, distintamente, as diferentes taxas de câmbio, a depender das condições, podem igualmente constituir um mecanismo natural de reciclagem de excedentes: uma vez que o acúmulo de déficits tende a levar à desvalorização cambial, esta pode acabar redundando em estímulo às exportações e desestímulo às importações, além de contribuir para atrair outros capitais excedentes graças às taxas de juros mais elevadas, bem como ao preço relativo mais baixo de seus ativos. Assim, tanto o “Plano Global” como o “Minotauro” são, em verdade, como veremos, arranjos sustentados em formas distintas de mgre (o primeiro tendo nos Estados Unidos um imenso polo superavitário; o segundo, seu inverso, tendo neste um polo deficitário).

Tendo vivido e aprendido com a catástrofe econômica de 1929, que só seria plenamente resolvida, de acordo com o autor, graças à enorme destruição produzida pela Segunda Guerra Mundial, os idealizadores estadunidenses do “Plano Global” aproveitaram a enorme oportunidade com a qual se depararam ao fim do conflito para desenharem uma nova ordem. O novo arranjo deveria, ao mesmo tempo que funcionasse de modo a impedir grandes desequilíbrios que pudessem levar à eclosão de uma nova crise global, servir para cristalizar sua nova posição hegemônica no interior do “mundo livre”.

Assim, com base em muitas das prescrições keynesianas, a Conferência de Bretton Woods deu nascimento a um sistema de governança econômica global que levou à criação do Fundo Monetário Internacional (fmi) e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e à constituição de um sistema de administração cambial que fixava a percentuais determinados a flutuação das taxas de câmbio dos demais países em relação ao dólar, e deste ao ouro – com a consequente conversibilidade direta do dólar em ouro.

Algumas das mais importantes (e ousadas) propostas de Keynes, no entanto, ficariam de fora do novo arranjo, devido à não aceitação do novo hegemon: a criação de uma União Internacional de Divisas, um Banco Central Internacional e uma moeda única a ser utilizada em transações comerciais entre nações (o bancor ), que objetivavam a constituição de uma governança econômica multilateral equilibrada, durável, e politicamente compartilhada. A razão da recusa não era nada ocasional: os Estados Unidos queriam gerir eles mesmos, e através de sua própria moeda, a nova ordem econômica mundial.

O sofisticado “Plano Global”, acreditavam seus idealizadores, parecia ter tudo para dar certo. Assim, os Estados Unidos, a maior economia superavitária do planeta, passaram, a bem da garantia de sustentabilidade do novo arranjo, a investir seus enormes excedentes na reconstrução dos países arrasados pela guerra. Esse investimento permitia ainda sustentar a demanda por seus produtos e a lucratividade dos capitais invertidos. De modo a constituir zonas regionais para o amortecimento de eventuais choques econômicos globais, os arrasados e humilhados Alemanha e Japão foram escolhidos como “pupilos” – os novos hubs , destinos preferenciais do mais generoso suporte político e econômico norte-americano. Enquanto eram incentivados a fortalecer suas zonas econômicas e moedas regionais, esses dois países sustentavam a penetração e o fortalecimento acelerado do dólar como dinheiro mundial. Um mgre, sustentado no “privilégio exorbitante” do dólar, estava garantido e, com ele, a “idade de ouro” do capitalismo regulado nos países do capitalismo central.

Contudo, tal ordem de coisas só poderia permanecer inabalável sob uma condição: a de que os Estados Unidos seguissem indefinidamente como uma economia superavitária. Ainda que seus idealizadores não tenham considerado a sério a hipótese de tal prospecto não ser sustentável no médio prazo, foi exatamente isso que ficou patente, no entanto, a partir do início da década de 1970: os déficits norte-americanos crescentes passaram a atentar contra o próprio arranjo que o país havia ajudado a conceber em seu favor.

Os déficits estadunidenses apareceram, explica Varoufakis, na esteira da rápida recuperação e dos ganhos de competitividade e produtividade dos outrora “pupilos” do pós-guerra (Alemanha e Japão), com a consequente queda de competitividade relativa dos Estados Unidos (junto da abertura de seu mercado para a entrada de produtos de tais competidores, especialmente do Japão), somada, ademais, aos crescentes gastos do governo, especialmente com guerras, como a do Vietnã. A expansão monetária vinculada ao aumento de gastos do governo norte-americano redundou na desvalorização de sua moeda. Desse modo, vinculados à exportação de dólares para outros países e à consequente valorização das moedas nacionais destes, emergiram questionamentos sobre a real garantia de convertibilidade ouro-dólar então vigente. O “Plano Global” estava com os dias contados.

Diante de novas e sonoras contestações à sua posição “privilegiada”, os Estados Unidos responderam com ações enérgicas e medidas drásticas (que Paul Volcker, presidente do Federal Reserve durante os governos Jimmy Carter e Ronald Reagan, mais tarde denominou “uma desintegração planejada da economia mundial”): o rompimento unilateral do acordo de Bretton Woods, com a quebra da conversibilidade ouro/dólar, e consequente desvalorização da moeda norte-americana. A depreciação do dólar representou um duro golpe nas exportações japonesas e europeias. Mas dado que todos estavam a essa altura já presos ao dólar como moeda de reserva global, pouco restava a fazer. A posição privilegiada que os norte-americanos haviam construído estava garantida, e agora em bases renovadas. “A moeda é nossa. O problema é de vocês”. Começava, sob o tacão desse choque, a nova era do “Minotauro Global”.

Com seu nascimento, os Estados Unidos mostraram ao mundo que, contanto que fossem capazes de controlar a moeda mundial, que lhes permitiria continuar reciclando o excedente econômico global, ao mesmo tempo que se mantivesse como a maior e mais importante força no comércio internacional, pouco importava ser uma economia superavitária ou deficitária. O que o mundo viu acontecer na era pós-1971 foi, então, uma reversão do fluxo comercial e dos excedentes de capital entre os Estados Unidos e os demais países. Pela primeira vez na história mundial, o poder hegemônico fortalecia-se aumentando deliberadamente seus déficits.

Donos da moeda fiduciária mundial, os Estados Unidos tornam-se, sob um sistema monetário e financeiro internacional hegemonizado pelo dólar flexível, o grande polo de um novo mgre às avessas: funcionando como uma espécie de “consumidor de primeira instância”, o enorme corpo gravitacional dos déficits gêmeos (comercial e orçamentário) norte-americanos serviu como força de atração para o investimento dos excedentes acumulados em outras regiões do globo. Resumidamente: enquanto os seus persistentes saldos comerciais negativos suscitavam o avanço da produção em outros países e regiões, os déficits orçamentários serviam para transformar os excedentes comerciais destas em títulos da dívida norte-americana. À medida que o mundo acumulava tais títulos, o capital mundial fluía inadvertidamente para o mercado financeiro estadunidense. Para se ter uma ideia da dimensão desse movimento, no início dos anos 2000, pouco antes da crise, mais de 70% das saídas globais de capitais tinham os Estados Unidos como destino final.

Para que o movimento global de capitais se configurasse e se comportasse exatamente sob esse padrão, duas tarefas foram necessárias: de um lado, uma recuperação da competitividade das empresas norte-americanas face, especialmente, às alemãs e japonesas; de outro, a elevação da taxa de juros paga aos títulos de sua dívida soberana.

Como isso foi alcançado é história amplamente conhecida. À enorme redução dos custos do trabalho nos Estados Unidos somou-se a crise do petróleo (estimulada pelo próprio governo norte-americano, segundo Varoufakis), que afetou de modo especial os dependentes Japão e Alemanha, que não dispunham de produção própria significativa. Na outra ponta, as taxas de juros foram paulatinamente elevadas ao longo da década, até alcançarem níveis recordes em 1979 – uma verdadeira catástrofe para países endividados em dólar, como os latino-americanos e europeus do leste. A metamorfose havia sido concluída.

Mas ao conseguir emplacar mais esse feito notável, o sucesso trágico de Washington, ao mesmo tempo que reforçou seu domínio, implantou as sementes de sua própria desgraça: uma expansão financeira sem precedentes. Sob a direção dos “serviçais do Minotauro” (as teorias tóxicas, Wall Street, o sistema Walmart e as políticas da trickle-down economics ), as décadas de financeirização acelerada sob esse equilíbrio desequilibrado redundaram, por fim, na hecatombe de 2008.

Enquanto absorvia uma imensidão de capitais vindos de todas as partes, Wall Street, livre de regulamentações, barreiras e constrangimentos políticos de outrora, encarregava-se de ativar uma verdadeira farra desvairada de criação de dinheiro privado por meio de ativos tóxicos (entre os quais estão as famigeradas classes de derivativos bizarros que o mundo veio a conhecer). Fusões e aquisições alavancadas por bolhas financeiras, a produção e a circulação de capital fictício em quantidade inimaginável encontram-se, especialmente ao longo das últimas duas décadas, com a concessão de hipotecas e enorme expansão de crédito pessoal para aqueles mesmos trabalhadores que não percebiam aumento real em seus salários desde 1973. Ativado pela espantosa criação de dinheiro privado, o consumo sustentado parecia indicar que tudo estava indo muito bem, obrigado.

Até as vésperas da crise, Wall Street, com todas as suas gambiarras outrora eufemisticamente conhecidas como “inovações financeiras”, atraiu não só capital mundial suficiente para reciclar a contento os excedentes obtidos pelos demais países e até mesmo sustentar certa reconversão destes em mais investimentos produtivos, mas também novas vendas para os Estados Unidos, o que ensejava novos superávits daqueles países e, assim, a continuidade, em dimensão ampliada, da mesma roda-viva. Enquanto isso, os desequilíbrios no comércio internacional seguiam se ampliando. Quando a música parou, o número de cadeiras era pequeno demais para aqueles que circulavam freneticamente em seu redor. O dinheiro privado evaporou, e o sistema bancário quebrou. O resto é história (que nosso autor descreve, aliás, em minúcias).

Desde então agonizante, gravemente ferido, o Minotauro, conforme aponta Varoufakis, não é mais capaz dos feitos de outrora: sua demanda por bens e serviços já não é mais a mesma, e tampouco Wall Street tem sido capaz, mesmo diante da astúcia em manter-se no comando, de gerar a enorme quantidade de dinheiro privado que antes sustentou a escalada de consumo e investimento. Em consequência, com Europa, Japão e China em marcha lenta, os exportadores de commodities e produtos primários são juntos arrastados para o rosário de agonias do mundo pós-2008, um mundo de desesperança e acelerada desagregação política e social.

E assim o autor encerra sua teratologia da economia mundial. Seja desestabilizado pela expansão do dinheiro estatal-público, seja pelo avanço desgovernado do dinheiro privado-bancário, conclui o economista grego, mgres dessa forma geridos – sem disporem de mecanismos de coordenação multilateral global análogos aos sugeridos por Keynes em Bretton woods – tendem a sustentar, como em um equilíbrio desequilibrado, fôlego curto.

Apresentados os méritos e principais ideias do livro, cumpre problematizarmos alguns não ditos entre todo o dito.

De certo modo, a transição fundamental ocorrida na economia mundial e no poder norte-americano a partir da década de 1970 (do “Plano Global” ancorado em seus superávits para o “Minotauro” sustentado em déficits), elemento-chave na articulação explicativa do autor, tornar-se-ia mais sólida se apresentasse de modo mais cuidadoso outros aspectos que sustentaram essa viragem em termos estruturais. Vejamos.

As explicações para a referida transição apresentadas no livro devem-se centralmente: (i) aos ganhos de competitividade dos outrora “pupilos” do pós-guerra (Alemanha e Japão) e à consequente queda de competitividade relativa dos Estados Unidos; (ii) aos crescentes gastos do governo, especialmente com guerras, como a do Vietnã; e, por fim, (iii) à expansão monetária e à desvalorização do dólar – relacionada com a exportação dessa moeda para outros países, com a valorização das demais moedas nacionais – e, assim, à emergência de questionamentos sobre a real garantia de convertibilidade ouro-dólar.

Ainda que Varoufakis reconheça a natureza essencialmente instável e produtora de crises do capitalismo como modo de produção, não articula com a devida clareza, para além do encadeamento acima apontado (e pensado centralmente a partir da necessidade de um mgre), sua tese “subconsumista” sobre a transição que nos trouxe até a crise de 2008. É certo que o autor percebe, de passagem, a queda dos lucros corporativos norte-americanos durante um período, mas não chega a relacioná-la diretamente, de alguma forma, com uma eventual estagnação do investimento e/ou desvalorização de capital. Talvez isso se dê pelo fato de, para além do comportamento dos salários reais, o economista grego conceder pouca atenção a outros problemas subjacentes da economia real nos Estados Unidos e em outros países. Dessa forma, o ponto parece ficar em aberto.

Ainda que o texto não seja exatamente claro a respeito, a reestruturação produtiva e a financeirização acelerada, objeto de amplos debates na literatura, parecem ser aqui entendidas como consequências do processo de transição supracitado 1 1 . Sem uma definição precisa, a dita “financeirização” aparece no livro, por vezes, como mera expansão das finanças – passando ao largo de definição ampliada que sustenta, em consonância com as formulações de François Chesnais e outros, que esta é, em verdade, um processo de reordenação lógica geral da acumulação de capital em prol da valorização financeira, ou seja, de submissão do processo produtivo como um todo aos objetivos e aos modos de funcionamento desta. Nesse particular, Leda Paulani é precisa quando, em seu prefácio à publicação, observa “a ausência no livro do movimento assimétrico de crescimento das riquezas financeiras e real no mundo a partir dos anos de 1970. Essa história não está desconectada da questão da posição privilegiada do dólar, antes o inverso. Os dois elementos em conjunto obrigariam Varoufakis a abraçar mais explicitamente as teses da financeirização, que vêm sendo advogadas, há mais de duas décadas, nas mais variadas nuances, pelo pensamento crítico” (pp. 27-28) . Caberia nos perguntarmos, no entanto, se a viragem em tela poderia ser entendida como parte da busca pela ampliação de fronteiras antes fechadas ou restritas à acumulação de capital. E, relacionado com isso, de que maneira o neoliberalismo, como narrativa política e projeto de classe, se articula a essa teia de transformações. Sem uma resposta solidamente articulada para tais questões, é possível dizer que, aqui, o papel centralmente explorador da nova finança mundializada perde sua força explicativa diante da opção pela ênfase no referido Mecanismo Geral de Reciclagem de Excedentes.

A esse respeito, e por mais que o autor argumente brevemente em seu favor, faz igualmente sentir a falta de uma análise mais detida das dinâmicas de lutas sociais na reconfiguração do jogo de forças políticas no interior das transformações em questão. Seu conciso debate sobre as origens do neoliberalismo talvez seja o aspecto que melhor demonstre essa ausência: este é apresentado em sua definição reduzida, como um conjunto de decisões de Estado, implicitamente vindas de cima para baixo – a partir da necessidade de este responder às contingências que lhe são postas.

Ainda nesta chave, uma vez que os Estados Unidos são tratados como entidade política determinante na configuração dos rumos da economia mundial, restaria discutir quais agentes ou setores, em última instância, de fato estavam no controle da condução das políticas passadas em revista: os grandes bancos e capitalistas financeiros (os principais beneficiados), uma aliança entre capitalistas financeiros e industriais, os burocratas com pensamento estratégico, uma coalização política transnacional desses distintos atores? Uma possível resposta a essa pergunta surge quando o autor nos apresenta os “serviçais do Minotauro” (as teorias tóxicas, Wall Street, o sistema Walmart e as políticas da trickle-down economics ), bem como a constituição pós-crise de uma “bancarrotocracia” ( bankruptocracy ) – instituições e governos dirigidos por tecnocratas a serviço da agenda dos outrora falidos financistas (mas atualmente triunfais, graças ao seu salvamento às custas dos contribuintes).

No entanto, resta observar, no que concerne à coordenação do capitalismo mundial, que um papel talvez maior que o devido é dado na análise aos atores estatais nacionais. Aqui, as crises, ainda que indiretamente, acabam por se dar em relação com suas escolhas e não escolhas. Mesmo que isso seja em parte correto, convém cautela diante do recurso, sempre tentador, de conferir, a posteriori , racionalidade e premeditação política às transformações econômicas globais (do “Plano Global” ao “Minotauro”, por exemplo), algo que, em alguns momentos, aparece.

Acerca disso, muitos economistas heterodoxos tendem a ver, não sem razão, os golden years como produto de um capitalismo coordenado pelo Estado. Não obstante, o que parecem não considerar com o devido cuidado é o fato de este ter sido um capitalismo de guerra, reconstrução e polaridade geopolítica, marcado por um contexto de acirrada luta de classes, tanto nos países capitalistas centrais como nas periferias do sistema-mundo. Os “anos gloriosos” não podem ser pensados senão a partir desse conjunto de fatores. Se é verdade que Varoufakis não ignora isso, sua narrativa parece minimizar os demais aspectos em detrimento de uma “regulação hegemônica”, politicamente orientada a partir de Washington.

Ademais, uma vez que o livro se pretende uma espécie de retrato do capitalismo mundial nas últimas décadas, o argumento central toca de forma muito residual a situação dos países ditos “em desenvolvimento” (África, Ásia, América Latina). Ao subestimar (ao menos na construção de seu modelo explicativo) o papel desse enorme território econômico nos processos de acumulação, acaba, em consequência, por dar excessiva centralidade para o centro capitalista – quando ambos, em verdade, são desigualmente interdependentes, em termos sistêmicos. O déficit de discussão sobre a China, um dos fenômenos mais surpreendentes do capitalismo global nos últimos quarenta anos, é significativo nesse particular. É sabido que o país jogou importante papel na última década ao financiar os déficits gêmeos da economia estadunidense, investindo nesta a maior parte de seus excedentes. Diante disso, uma problematização mais acalentada sobre as transformações ocorridas na divisão internacional do trabalho bem como a configuração das novas cadeias globais de produção e valor poderiam calçar melhor sua discussão.

Por fim, e ainda em termos do que poderia um bom “marxista errático” ter feito, cabe apontar que a reflexão de Varoufakis, centrada em um debate sobre os rumos de um mundo no (interior do) capitalismo, não dá o passo além, quando se dedica a prospectar o que nos espera, de problematizar a atual conjuntura global em face do capitalismo. Longe de um desvio ideológico, trata-se de apresentar impasses que se sobrepõem logicamente. É que novos desafios e constrangimentos vêm se colocando nas últimas décadas, em especial no que se refere aos limites vitais-ambientais, para um crescimento econômico global sustentado em produção e consumo crescentes. Poderá o mundo sair devidamente da crise em que se encontra mantendo o padrão produtivo atualmente existente?

Tudo somado, e apesar das mencionadas brechas e omissões, o livro mostra-se como uma contribuição de enorme relevo para a leitura e compreensão crítica das principais tendências globais do capitalismo contemporâneo.

Notas

  • *
    Pseudônimo de Edemilson Cruz Santana Junior.
  • 1
    . Sem uma definição precisa, a dita “financeirização” aparece no livro, por vezes, como mera expansão das finanças – passando ao largo de definição ampliada que sustenta, em consonância com as formulações de François Chesnais e outros, que esta é, em verdade, um processo de reordenação lógica geral da acumulação de capital em prol da valorização financeira, ou seja, de submissão do processo produtivo como um todo aos objetivos e aos modos de funcionamento desta. Nesse particular, Leda Paulani é precisa quando, em seu prefácio à publicação, observa “a ausência no livro do movimento assimétrico de crescimento das riquezas financeiras e real no mundo a partir dos anos de 1970. Essa história não está desconectada da questão da posição privilegiada do dólar, antes o inverso. Os dois elementos em conjunto obrigariam Varoufakis a abraçar mais explicitamente as teses da financeirização, que vêm sendo advogadas, há mais de duas décadas, nas mais variadas nuances, pelo pensamento crítico” (pp. 27-28)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2016
  • Aceito
    27 Out 2016
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