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Um rosto na areia: o sujeito em Foucault

A face in the sand: the subject in Foucault

Resumo

Com base na crítica de Spivak a Foucault, discute-se a questão do sujeito na obra de Foucault, a fim de mostrar sua conexão com a perspectiva estruturalista que visava a superar o primado do sujeito autoconsciente nas Ciências humanas recorrendo a estruturas inconscientes como fundamento da explicação. Sustenta-se que essa perspectiva “antiantropocêntrica” permanece presente na obra do autor no período de Vigiar e punir e A vontade de saber. Por fim, propõe-se que as alterações na abordagem de Foucault no início dos anos de 1980 decorriam de uma tentativa de escapar de impasses que a recusa à perspectiva do sujeito soberano e autoconsciente teria acarretado.

Foucault; Sujeito; Subjetivação; Trajetória intelectual

Abstract

Based on a critique of Spivak to Foucault, the article discusses the question of the subject in Foucault’s work showing its connection to the structuralist perspective aimed to overcome the primacy of the individual self in the human sciences using unconscious structures as the foundation of explanation. It is argued that this perspective not “anthropocentric” remains present in the work of the author in the Discipline and punish period and The history of sexuality, vol. 1: An introduction and, finally, it is proposed that the changes in Foucault’s approach in the early 1980s resulted from an attempt to escape impasses that refusing the prospect of sovereign and self-conscious subject would caused.

Foucault; Subject; Intellectual trajectory

A volta do sujeito

Há décadas Michel Foucault é fonte de um pensamento crítico alternativo ao marxismo. Vigiar e punir e História da sexualidade oferecem uma analítica do poder e do sujeito, do saber e da verdade que se constituem numa teoria crítica da sociedade.

Gayatri Chakraworty Spivak, autora que pode ser incluída como fonte para novas versões de uma teoria crítica fundamentada no campo dos estudos subalternos e pós-coloniais1 1 . Não estamos tomando aqui “teoria crítica” como sinônimo da teorização da Escola de Frankfurt. , no texto “Pode o subalterno falar?” tece uma crítica a Foucault que pode ser entendida como resultado de um enquadramento a partir do qual perspectivas elaboradas nas “margens” do sistema internacional articulam discursos que problematizam o próprio “centro”.

Os problemas apontados na conversa entre Foucault e Deleuze2 2 . Apesar de a autora discutir Foucault e Deleuze, estamos interessados exclusivamente em Foucault. registrada em Os intelectuais e o poder são lidos com base em uma perspectiva “subalterna” por uma autora pensando o diálogo a partir de questões suscitadas pela sua posição de intelectual, de mulher e indiana. Tal crítica pode ser um bom começo para pensarmos Foucault, pois tenta demonstrar um “impensado”, uma dimensão não reconhecida, no pensamento do autor.

Spivak afirma que Foucault não consegue pensar o seu próprio lugar de enunciação: “nem Deleuze, nem Foucault parecem estar cientes de que o intelectual, inserido no contexto do capital socializado e alardeando a experiência concreta, pode ajudar a consolidar a divisão internacional do trabalho” (Spivak, 2010SPIVAK, G. (2010), Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 30). A problematização do lugar de fala de Foucault e Deleuze tem sido mais claramente percebida no texto, contudo ela não é a mais importante. Há outra crítica articulada de uma forma não tão explícita, e que seria o fundamento dessa problematização do lugar de fala dos autores, que questiona a própria capacidade de estes se manterem fiéis aos seus pressupostos.

Foucault, ao afirmar que o intelectual não pode mais representar os oprimidos, espera que o intelectual gere condições nas quais estes possam falar por si mesmos. O adeus ao “intelectual geral” está fundado na crítica ao “sujeito soberano”, ao intelectual que efetivamente poderia colocar-se na posição do “sujeito transcendental” e, por isso, falar pelo outro.

Para Spivak, Foucault não questiona a posição do intelectual europeu na reprodução da divisão internacional do trabalho. A ausência desse questionamento limita a crítica do sujeito soberano, pois não permite que se coloque em questão “seu próprio envolvimento na história intelectual e econômica” (Idem, p. 22). Esse intelectual que não fala pelo outro mas que considera que o outro deve falar por si próprio termina por reintroduzir o sujeito de duas formas distintas. Primeiro, ao não ser capaz de pensar sua própria posição enquanto intelectual europeu na divisão internacional do trabalho e, segundo, ao não problematizar seu envolvimento na história econômica e intelectual, assume inadvertidamente a própria posição de sujeito que critica: do intelectual que possui a perspectiva transcendental, que institui um “outro”, com a peculiaridade de afirmar que este “outro”, enquanto oprimido, deve falar por si só.

Foucault e Deleuze “introduzem novamente o sujeito indivisível no discurso do poder” (Idem, p. 28). E o fazem por meio de “uma valorização não questionada do oprimido como sujeito” (Idem, p. 29). Ao recusar o conceito de ideologia e afirmar que as massas sabem mais do que o intelectual e são capazes de se expressarem sem a mediação deste último, Foucault transforma essas massas, ou os grupos oprimidos, em sujeitos empíricos mais ou menos transparentes para si mesmos. Seriam os únicos capazes de expressar uma experiência absoluta, visto que partem da própria experiência. Portanto, esse sujeito oprimido é entronizado no local de onde o estruturalismo o baniu.

Spivak sugere que Foucault e Deleuze partilham a crítica do “sujeito soberano”, mas reeditam versões desse sujeito. A crítica mais forte de Spivak é que o intelectual apresentado por Deleuze e Foucault está muito mais perto da posição tradicional do que se pensa.

Apesar da crítica ao sujeito que herdaram do estruturalismo, a figura do intelectual que apresentam ainda segue os contornos do sujeito: “a experiência concreta que garante o apelo político de prisioneiros, soldados e estudantes é revelada por meio da experiência concreta do intelectual, aquele que diagnostica a episteme” (Idem, p. 30). Diagnosticar a episteme é articular a episteme. Enquanto intelectuais, Foucault e Deleuze estão envolvidos com a criação das condições de enunciação do oprimido, não necessariamente no sentido sociológico como no caso do GIP (Grupo de Informações sobre as Prisões), mas no sentido da configuração do campo discursivo em que as falas dos grupos oprimidos podem ser significativas. São intelectuais definindo que o discurso do oprimido é significativo, e contribuem para a configuração do “outro”, do subalterno, dos grupos que serão contrapostos à normalidade ocidental. Ao transformar esse “outro” em sujeito, colocam-se numa posição duplamente delicada, pois reintroduzem o sujeito que criticavam duas vezes, uma como o oprimido, cuja consciência é transparente e pode falar de sua própria sujeição sem mediação, e, por sua própria posição intelectual, reeditam a configuração discursiva do sujeito do conhecimento que, como o estruturalismo, buscavam deslocar.

Pode-se dizer que Spivak critica Foucault por não reconhecer o seu próprio lugar de fala, se com isso entendermos que a questão não gira em torno apenas de Foucault ser um intelectual europeu acenando com a ideia de que o subalterno é capaz de falar por si, sem levar em conta as conexões entre o cenário intelectual europeu e a divisão internacional do trabalho. Para além dessa crítica claramente presente no texto da autora, encontra-se outra, que dizíamos ser mais importante: Foucault não reconhece seu lugar de fala na medida em que seu discurso repõe sub-repticiamente noções de sujeito das quais busca explicitamente se afastar3 3 . Uma crítica semelhante a essa de Spivak está explícita em Habermas, quando este afirma que a história genealógica de Foucault “segue o movimento de uma extinção radicalmente historicista do sujeito e termina em um subjetivismo irremediável” (Habermas, 2002, p. 387). .

Esse texto não se dedicará a contrapor Spivak e Foucault. Estamos interessados em explorar a ideia de que noções de sujeito das quais Foucault tentava se afastar eram repostas sub-repticiamente em seu discurso. Essa ideia quando apresentada por Spivak referia-se precisamente a um texto específico, o famoso diálogo entre Foucault e Deleuze, Os intelectuais e o poder. Essa questão pode ser desdobrada, revelando um problema que irá atravessar boa parte da produção de Foucault e diz respeito ao lugar da ação ou do sujeito que age criticamente no interior de uma teoria que explica processos de transformação ou de conservação social a partir de uma perspectiva sistêmica. Para solucionar o problema, Foucault mobiliza, com base em Vigiar e punir, a ideia de contrapoderes e resistência, que indicam justamente a possibilidade de ação dos sujeitos, mas estas permanecem de certa forma externas ao horizonte teórico construído no referido livro.

Menos do que caindo numa contradição, Foucault estava, sem perceber, enunciando uma aporia que marcava seu pensamento naquele momento, e da qual se tornaria consciente, tentando dela escapar nos últimos anos de sua vida. Essa aporia se apresenta como uma tensão que se estabelece no interior de uma perspectiva que assume uma crítica do sujeito semelhante àquela elaborada pelo estruturalismo, focando a análise em processos sistêmicos e que ao mesmo tempo busca ser uma teoria crítica da sociedade existente. A aporia reside na tensão entre os processos sistêmicos descritos nas principais obras de Foucault e a possibilidade de crítica, ação e contestação que pedem uma teoria do sujeito enquanto agente. No final de sua vida, na década de 1980, Foucault buscou resolver essa aporia recorrendo à análise de práticas de si como formas de constituição do sujeito distintas dos processos de sujeição. Para demonstrar isso, vamos reconstituir sua discussão acerca do “sujeito” partindo das considerações sobre o “homem” em História da loucura e As palavras e as coisas.

O outro da razão

Durante a década de 1980 Foucault afirmou que seu problema foi sempre a questão da conexão entre modos de constituição do sujeito e modos de produção da verdade. Essa proposta de pensar os textos de Foucault com base no binômio sujeito e verdade é coerente, e o primeiro livro de Foucault a trazer essa questão é A história da loucura. A loucura é apresentada como o “outro” não reconhecido da razão, seu exterior, cujos limites constituem a própria razão. Na modernidade, razão e loucura se constituem simultaneamente, e mesmo que o conhecimento racional acerca da loucura a reduza, “conferindo-lhe o frágil status de acidente patológico” (Foucault, [1961FOUCAULT, M. ([1961] 1999), “Prefácio”. In: FOUCAULT, M. Ditos & escritos, vol. I. Rio de Janeiro, Forense Universitária.] 1999, p. 145), ela permanece, após sua elaboração e domesticação pelo discurso científico e pela prática psiquiátrica, o limite de uma sociedade que se definirá através da razão.

No “Prefácio” (Foucault, [1961FOUCAULT, M. ([1961] 1999), “Prefácio”. In: FOUCAULT, M. Ditos & escritos, vol. I. Rio de Janeiro, Forense Universitária.] 1999) à primeira edição desse livro, suprimido nas edições subsequentes, o autor explicita a inspiração de seu texto em Nietzsche, ao apresentar a relação entre razão e desrazão como uma das fontes da profundidade e da originalidade da cultura ocidental desde a Idade Média. A experiência da loucura contribui para traçar o contorno da própria cultura ocidental. Enquanto outro da razão, a desrazão seria “uma região, sem dúvida, onde se trataria mais dos limites do que da identidade de uma cultura” (Idem, p. 142). A desrazão seria rejeitada como exterior à cultura, e esse ato de exclusão funda a própria cultura. A loucura é uma experiência-limite, uma condição de possibilidade da cultura ocidental.

Enquanto experiência-limite, a loucura é aproximada do trágico, “tendo Nietzsche mostrado que a estrutura trágica a partir da qual se faz a história do mundo ocidental não é outra coisa senão a recusa, o esquecimento e a recaída silenciosa da tragédia” (Idem, ibidem). O círculo cultural que constitui a Europa moderna teria denegado a experiência trágica da cultura, e a loucura permaneceria como um limite não reconhecido da cultura, como uma “divisão originária” (Idem, ibidem) que a teria instaurado.

Foucault aponta dois acontecimentos decisivos na transformação da “linguagem” da loucura entre os séculos XVII e o final do século XVIII: o “grande internamento” dos pobres, após a criação em 1657 do Hospital Geral, e a liberação dos acorrentados da Bicêtre por Pinel em 1794. Entre esses dois acontecimentos, toda a configuração na experiência da loucura se transforma e se constitui a moderna cultura ocidental. É a partir da experiência de reclusão dos “loucos”, de sua separação enquanto uma categoria distinta, com a conversão do espaço de internamento num campo de observação do louco não para puni-lo, mas para revelar sua verdade, que surge a concepção moderna do homem.

A loucura é a forma principal e primeira do movimento com o qual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna acessível a uma percepção científica. O homem só se torna natureza para si mesmo na medida em que é capaz de loucura. Esta como passagem espontânea para a objetividade, é momento constitutivo no devir-objeto do homem (Foucault, [1961FOUCAULT, M. ([1961] 1999), “Prefácio”. In: FOUCAULT, M. Ditos & escritos, vol. I. Rio de Janeiro, Forense Universitária.] 2000a, p. 518).

Através do internamento, um saber médico sobre a loucura se constitui, mas esse saber objetivo que revela a “verdade” da loucura, que a captura nas tramas do discurso científico, torna não apenas o louco objeto de observação: ao produzir a verdade sobre o louco, produz também a verdade sobre o homem, converte o homem em objeto de ciência, “é através da loucura que o homem, mesmo em sua razão, poderá tornar-se verdade concreta e objetiva a seus próprios olhos” (Idem, ibidem).

O saber médico que se desenvolve sobre a loucura inevitavelmente constitui uma imagem do próprio homem “normal”, pois a invenção/observação da doença mental irá supor o louco como alguém tragado por paixões, dominado por motivos inconscientes que estão presentes não apenas nos “alienados”. A desrazão convertida em doença mental torna a mente do ser humano em objeto de saber, a imagem do homem moderno se teria fabricado a partir desse saber que buscou extrair a verdade da loucura. Com base nessa experiência se constitui o círculo antropológico que faz de todos nós seres humanos dotados de uma interioridade, capazes de problematizar e pensar essa interioridade: “o homo psychologicus é um descendente do homo mente captus” (Idem, p. 522).

O saber psiquiátrico, ao converter a loucura em doença mental, constituiu o homem e a mente humana em objeto de conhecimento científico e contribuiu para a constituição do modo como o ser humano é compreendido na cultura ocidental moderna. O que Foucault chama de círculo antropológico é justamente a configuração das estruturas que convertem o “homem” em problema e núcleo dessa experiência cultural. Através da loucura e de sua compreensão enquanto doença mental, a imagem do moderno homem racional se constitui.

A morte do homem

Se A história da loucura mostra como o “homem” surge da confluência de determinadas práticas sociais e saberes médicos, em As palavras e as coisas Foucault enuncia a famosa profecia sobre a morte do homem. Numa entrevista de 1981, o autor explicaria essa afirmação através do contexto no qual ela foi escrita. O Pós-Segunda Guerra Mundial viu a emergência de uma série de pregações humanistas,

[…] todo mundo era humanista, Camus, Sartre, Garaudy eram humanistas, Stalin também era humanista. Eu não farei a grosseria de lembrar que os discípulos de Hitler se chamavam de humanistas […] na época eu não podia mais pensar nos termos dessa categoria. Estávamos em plena confusão intelectual. Na época o eu era compreendido como categoria de fundamento. As determinações inconscientes não podiam ser aceitas. […] Em nome do humanismo, em nome do eu humano em sua soberania, numerosos fenomenólogos […] não podiam aceitar a categoria do inconsciente. […] a consciência não devia perder seus direitos soberanos (Foucault, [1981FOUCAULT, M. ([1981] 1999), “Entrevista com Michel Foucault”. In: FOUCAULT, M. Ditos & escritos, vol. I. Rio de Janeiro, Forense Universitária.] 1999, p. 311).

Tanto a linguística quanto a psicanálise permitiam na época “responder de fora ao problema do eu”, explicar a fala ou a ação humana sem recorrer às intenções conscientes do sujeito. Foucault situa-se em plena revolução estruturalista no que diz respeito a uma de suas características fundamentais: o descentramento do sujeito e a busca de formas de abordagem que procuraram níveis de explicação que não se reduziam à consciência. O anúncio do “fim do homem” estava associado à crítica do estruturalismo ao humanismo vigente na época, que se caracterizava pela recusa a incorporar fatores inconscientes à análise. Foucault4 4 . Em 1967, também numa entrevista, Foucault, após ser chamado de “papa do estruturalismo” pelo entrevistador, assim expressou sua relação com o estruturalismo, após responder brincando que era apenas o “coroinha”: “O que tentei fazer foi introduzir análises do estilo estruturalista em domínios nos quais elas não haviam penetrado até o presente […]. Nessa medida, fui levado a analisar em termos de estrutura o nascimento do próprio estruturalismo (Foucault, [1967] 2000, p. 59). afirmou que As palavras e as coisas recorre ao instrumental estruturalista para fazer a arqueologia das condições de surgimento do estruturalismo. Com isso não se deve pensar apenas em Lévi-Strauss, mas também nas abordagens desenvolvidas pela escola dos Annales, no interior da historiografia, que recorrem a procedimentos estruturalistas ao recusarem a compreensão da história enquanto registro das “expressões mais conscientes dos fenômenos sociais” (Lévi-Strauss, [1958LÉVI-STRAUSS, C. ([1958] 2008), Antropologia estrutural I. São Paulo, Cosac Naify.] 2008, p. 37), típicas de uma historiografia política tradicional. Se Lévi-Strauss opunha história a antropologia afirmando que a primeira “organiza seus dados em relação às expressões conscientes, e a etnologia em relação às condições inconscientes da vida social” (Idem, p. 32), a “virada” estruturalista no final de 1950 e início dos 60 caracterizou-se justamente pela busca dessas condições inconscientes subjacentes aos processos sociais. Pode-se dizer que enquanto a concepção tradicional da história ou as perspectivas humanistas buscavam compreender o “homem” através de sua autoconsciência, os diversos estruturalismos buscavam os fundamentos inconscientes sobre os quais essa autoconsciência repousa.

Em As palavras e as coisas, Foucault apresenta o enquadramento no qual as modernas formas de saber podem se constituir e que geram o espaço no qual as Ciências humanas emergiram. Foucault revela “o a priori histórico da compreensão do Ser” (Habermas, 2002HABERMAS. J. (2002), O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes., p. 362) que caracteriza as Ciências humanas, o espaço aberto pela formação do “homem” enquanto duplo empírico-transcendental, como objeto e sujeito do conhecimento. Trata-se de examinar os fundamentos inconscientes sobre os quais se configuram as Ciências humanas, revelar as estruturas que possibilitam a emergência dessas linguagens que buscarão produzir a verdade sobre o “homem” em diferentes campos de experiência.

Se As palavras e as coisas trata da emergência do “homem” e dos saberes sobre este, desta vez não se busca a conexão entre práticas e discursos como foi feito em A história da loucura. A passagem da representação da época clássica para a episteme moderna é apresentada como a passagem de um universo discursivo para outro. Em As palavras e as coisas toda a história é interna às próprias formações discursivas. Revelam-se as estruturas subjacentes às Ciências humanas sem se recorrer às práticas sociais que as constituíram. As Ciências humanas são tratadas como linguagens, e Foucault busca justamente reconstruir o campo sintático que tornou possível que estas viessem a adquirir significado.

A episteme moderna é inaugurada através da ruptura com as garantias metafísicas que sustentavam a correspondência entre a linguagem e o mundo (entre o pensamento e o ser). O cogito cartesiano tinha em última análise Deus como fiador: “Penso, logo existo”. Isso pressupõe uma relação de adequação entre o pensamento e o mundo a ser conhecido que só se sustenta na suposição de que Deus não é um espírito enganador. Deus criou o pensamento e o mundo, logo o pensamento é um instrumento adequado para o entendimento do mundo. Deus é a garantia da adequação entre a razão e o mundo.

Num quadro como este o homem não é um problema. Não há lugar aqui para uma reflexão sobre o homem enquanto sujeito de conhecimento. Tudo o que é preciso saber é que o homem pensa, por suposto ele é capaz de conhecer o mundo. A ruptura com essa garantia metafísica gera a dúvida sobre a capacidade de um ser limitado como o humano conhecer o mundo. Kant resolve o problema transformando as limitações nas condições mesmas a partir das quais o conhecimento é possível, derivando o conhecimento de categorias a priori constitutivas do espírito humano. As condições transcendentais do conhecimento estão dadas nos próprios limites das faculdades humanas. A partir daí começa a se desenvolver o quadro que dará lugar ao nascimento do “homem”: o sujeito do conhecimento se duplicará em objeto de conhecimento, constituindo-se como um duplo transcendental-empírico. Ou seja, o “homem”, a partir de Kant, assume tanto a posição de sujeito empírico, que pode ser tomado como um objeto entre outros objetos no mundo, quanto a posição de sujeito transcendental.

Com base em Kant desenvolve-se um pensamento antropocêntrico, que situa o espírito humano como condição do conhecimento. E no espaço aberto por essa “virada antropológica” podem se constituir as ciências humanas, a partir do quadro formado pelas ciências da vida, da linguagem e da produção (respectivamente, biologia, filologia/linguística e economia emergindo das clássicas história natural, gramática geral e análise das riquezas). Das conexões entre essas ciências e a matemática e a filosofia, surge a perspectiva que possibilitará a constituição das ciências humanas: a percepção do “homem” enquanto ser vivo que trabalha e fala. as ciências humanas se elaboram como discursos dedicados a analisar o “homem” a partir das objetivações por ele mesmo engendradas ao viver, falar e trabalhar.

Essa invenção do “homem” corresponderia à estrutura não reconhecida do pensamento moderno, que permitiu que toda a verdade fosse conectada ao conhecimento do próprio “homem”. Revelar essa estrutura seria de certa forma descentrá-la:

A todos os que pretendem ainda falar do homem, de seu reino, ou de sua libertação […] a todos os que […] reconduzem todo conhecimento às verdades do próprio homem, […] que não querem pensar sem imediatamente pensar que é o homem quem pensa, a todas essas formas de reflexão canhestras e distorcidas, só se pode opor um riso filosófico – isto é, de certo modo, silencioso (Foucault, [1966] 1990FOUCAULT, M. ([1966] 1990), As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes., p. 359).

O pensamento desde Kant estaria preso a esse círculo antropológico no qual o “homem” é ao mesmo tempo o ser que conhece, condição da verdade e o objeto obscuro a ser revelado. O “homem” seria simplesmente um efeito de “uma mudança nas disposições fundamentais do saber. O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo” (Idem, p. 404).

A discussão dessa episteme equivale a uma análise das estruturas que sustentam tanto as ciências humanas quanto as perspectivas humanistas predominantes nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Enquanto a Escola dos Annales substituía uma historiografia descrita como um registro consciente da ação humana pela investigação de estruturas de longa duração, e Lévi-Strauss fazia da Antropologia uma análise da cultura através da assunção de um método de inspiração linguística, Foucault em As palavras e as coisas operava um descentramento do mesmo gênero. As “disposições fundamentais do saber” que constituem o “homem” enquanto sujeito e objeto do conhecimento são estruturas inconscientes que fundamentam as Ciências humanas e o pensamento moderno. São estruturas inconscientes que explicam a hegemonia da ideia do ser humano como ser autoconsciente. Trata-se, portanto, de uma “crítica do sujeito soberano”, pois essa soberania se revela ilusória, uma vez que fundada sobre estruturas não reconhecidas.

O poder disciplinar, a biopolítica e o poder pastoral

Na História da loucura, Foucault elabora uma gênese do “homem” moderno a partir de uma confluência de práticas e discursos. As palavras e as coisas são uma história do saber, ou das condições de saber, que se restringem à formação da episteme com base em fatores inerentes ao próprio saber. Em Vigiar e punir ([1975] 2015), teremos Foucault realizando a genealogia das Ciências humanas, revelando o vínculo entre formas de saber e práticas de poder5 5 . Para uma breve análise das dificuldades levantadas em As palavras e as coisas e que teriam levado Foucault a substituir a discussão de episteme pela análise da conexão entre poder e saber, confira-se Habermas, 2002, pp. 373-376. . Aqui podemos retomar a discussão de Spivak, pois um dos problemas que a autora aponta é a ausência de um conceito de ideologia em Foucault.

Se Foucault não tem um conceito de ideologia6 6 . Em A arqueologia do saber o conceito de ideologia aparece, mas não se contrapõe à ciência, e sim se articula com esta, de forma que a questão da ideologia é da constituição da ciência como “prática discursiva e de seu funcionamento entre outras práticas” (Foucault, [1969] 2012, p. 223). Essa concepção prefigura a conexão entre poder e saber realizada na época de Vigiar e punir. , pode-se encontrar a razão em Vigiar e punir. A noção de ideologia como conhecimento ilusório que se contrapõe à verdade não é coerente com o projeto de articular formas de saber e práticas de poder que caracteriza Vigiar e punir. Se a ideologia é o discurso do poder, deveria encontrar seu oposto num discurso livre do poder. Entraríamos numa oposição tradicional entre discurso ideológico e discurso verdadeiro ou científico, e a verdade estaria do lado oposto ao poder. Enquanto é justamente a conexão entre o discurso da verdade e o poder que Foucault procura demonstrar.

Há uma razão mais profunda para o conceito de ideologia não ser compatível com Vigiar e punir. Curiosamente a razão para essa incompatibilidade estaria na afinidade que tal livro tem com certas perspectivas marxistas. Vigiar e punir investiga transformações estruturais, cujas causas não são explicadas pela consciência ou vontade dos agentes envolvidos, mas por processos inconscientes. Herdando a ruptura do estruturalismo com a filosofia do sujeito, Foucault abandona também o conceito de ideologia que no seu entendimento só poderia ser pensado como (falsa) consciência.

Se em Vigiar e punir a autonomia das formas de saber é abandonada e busca-se a conexão entre tecnologias de poder e formas de saber, a ruptura com a filosofia do sujeito ainda se mantém. Contudo, a historiografia genealógica desenvolvida por Foucault permite que, mesmo preservando a “crítica ao sujeito soberano”, se tome uma distância maior do modelo estruturalista que informava As palavras e as coisas. Agora os perigos do antropocentrismo e do humanismo são erradicados através da abordagem genealógica que demonstra como os saberes se constituem em conexão com práticas de poder.

Em Vigiar e punir a substituição do suplício pela prisão, o retraimento das penas físicas e da pena de morte enquanto espetáculos são apresentados como efeitos de transformações nas tecnologias e regimes de visibilidade do poder. São transformações estruturais ou sistêmicas que explicam mudanças que a autoconsciência ocidental atribuiria a discussões sobre os “direitos do homem” do século XVIII, ou a um progresso de nossas sensibilidades. As disciplinas são formas de poder que se imprimem sobre os corpos dos sujeitos, fazendo com que estes interiorizem padrões comportamentais. Os sujeitos modernos são efeitos do poder disciplinar e é este que, através das práticas de vigilância, irá constituir a “alma” dos sujeitos. A subjetividade é modelada pela ortopedia social das disciplinas, pelas práticas de vigilância de um dispositivo de poder que alterou seu regime de visibilidade: o poder não é mais aquilo que se exibe para intimidar os súditos, mas é o efeito normalizador de um olhar que examina constantemente aqueles que lhe estão sujeitos.

As ciências humanas se relacionam diretamente com esse efeito normalizador do poder. São ciências do exame, têm afinidades com a prática da vigilância, e buscam através da observação do comportamento atingir o interior dos sujeitos, descobrir as razões que levam à obediência ou à transgressão da norma. Em seus procedimentos epistemológicos, duplicam o olhar que o poder disciplinar dirige aos sujeitos. O poder disciplinar, ao deslocar o “corpo” como alvo da punição colocando em seu lugar o “comportamento”, ou a “alma”, que deveriam ser observados, controlados e modelados, instaura a dimensão interior que as Ciências humanas buscarão conhecer. Não se trata mais de uma episteme analisada a partir de sua arqueologia, mas de uma afinidade entre formas de saber e práticas de poder. A invenção das Ciências humanas está associada às formas de poder que definem a sociedade moderna como sociedade disciplinar.

Essa forma de apresentar a questão do sujeito em Vigiar e punir e de pensar as mudanças nas práticas penais como efeito de transformações sistêmicas nas tecnologias de poder estará na raiz das críticas que Joas (2012)JOAS, H. (2012), A sacralidade da pessoa. São Paulo, Editora da Unesp. e Hunt (2012) fazem a Foucault ao tratarem do tema dos direitos humanos. Segundo Joas e Hunt, Vigiar e punir faz a história das transformações das práticas penais sem levar em consideração os protestos que o suplício provocava na Europa, especialmente na França, do final do século XVIII.

As ações apresentadas por Foucault como explicativas da constituição da sociedade disciplinar têm uma significação que é inconsciente, pois se era claro para seus promotores que buscavam modelar o comportamento alheio através da vigilância, não tinham como horizonte o conjunto de transformações que essas disciplinas no dia a dia viriam a acarretar. Joas e Hunt tomam os direitos do homem no século XVIII como parte de um processo de luta, por tentativas de mobilizar a “opinião pública” contra a pena de morte e a tortura. Assim, Hunt sustenta que “novos tipos de experiência, desde ver imagens em exposições públicas até ler romances epistolares […] [foram experiências que] ajudaram a difundir as práticas da autonomia e da empatia” (Hunt, 2007HUNT, L. (2007), A invenção dos direitos humanos. São Paulo, Companhia das Letras., p. 30) que contribuíram para novas percepções políticas, novas concepções de direitos.

Retornando ao diálogo entre Foucault e Deleuze discutido por Spivak, se é desejável criar condições nas quais os oprimidos “seriam capazes de falar por si mesmos” – segundo os autores, que operam com a suposição de que “as massas sabem perfeitamente bem” (Spivak, 2010SPIVAK, G. (2010), Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 29) –, no horizonte teórico constituído em Vigiar e punir a ação está deslocada. Trata-se de uma abordagem sistêmica, que quando encontra a ação percebe nela estruturas mais profundas, alheias à consciência e que, portanto, não são explicativas dos processos em curso.

O primado do sistema sobre a ação também pode ser encontrado na História da sexualidade I: A vontade de saber na contraposição entre o biopoder e a hipótese repressiva. Faz parte da autoconsciência das sociedades ocidentais modernas a ideia de que o sexo foi reprimido para garantir a produtividade da sociedade capitalista-industrial. A ordem burguesa exigiria a repressão sexual porque não poderia permitir que as energias que deveriam ser dedicadas ao trabalho se dissipassem na busca dos prazeres.

Se a autoconsciência ocidental moderna apresenta o sexo como aquilo que é reprimido, distorcido pelo poder e desviado de sua autenticidade, Foucault demonstra que o sexo não é na sociedade ocidental aquilo que se proíbe. Ao contrário, haveria uma verdadeira “incitação ao discurso”, somos levados a falar, a problematizar, a teorizar o sexo o tempo todo. O sexo e a sexualidade são convertidos nos segredos fundamentais do sujeito. Há uma vontade de saber nesta sociedade que supõe que a verdade de cada um estaria em seu interior, em sua sexualidade. De novo trata-se de uma forma de constituição do sujeito, de um processo de subjetivação/sujeição através de práticas e discursos, mas desta vez não se trata apenas do poder disciplinar.

Foucault apresenta então o conceito de biopolítica, contrapondo-o ao conceito de soberania. Na teoria clássica da soberania, o direito sobre a vida e a morte eram fundamentais, e se traduzia no direito do soberano de matar. “O poder era, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la” (Foucault, 1999a, p. 128).

A partir do século XVII iniciaram-se transformações profundas nos mecanismos de poder. Algumas dessas transformações são as mesmas discutidas em Vigiar e punir, e que levam à constituição de um poder disciplinar. Nesse período desenvolveram-se práticas de poder que têm:

[…] funções de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas: um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou destruí-las (Foucault, [1976FOUCAULT, M. ([1976]1999a), História da sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal.] 1999a, p. 128).

Trata-se de um mecanismo de poder que não existe simplesmente para dizer “não”, não corresponde a um aparato meramente repressivo. O poder é produtivo, gera e gere a vida, investe nas condições de existência, busca ordenar as condições de sobrevivência da nação ou da comunidade. “De agora em diante o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver” (Foucault, [1976FOUCAULT, M. ([1976]1999a), História da sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal.] 2005, p. 295). Não se trata mais do antigo direito sobre a morte que caracterizava a soberania, mas um poder que se exerce sobre a vida, que visa a garantir a vida. Não é paradoxal que com esta nova forma de poder tenham se multiplicado as guerras e os genocídios.

As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais (Foucault, [1976FOUCAULT, M. ([1976]1999a), História da sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal.] 1999a, p. 129).

No contexto do surgimento do biopoder, o tema do relativo desaparecimento da pena de morte e do fim dos suplícios de Vigiar e punir retorna em A vontade de saber. A lógica ainda é a mesma: o abrandamento das penas e o fim da pena de morte como espetáculo resultam das transformações no maquinário do poder. “A partir do momento em que o poder assumiu a função de gerir a vida, já não é o surgimento de sentimentos humanitários, mas a razão de ser do poder e a lógica de seu exercício que tornaram cada vez mais difícil a aplicação da pena de morte” (Idem, p. 130).

Pensar o abrandamento das penas como resultado de processos de “humanização” corresponderia a ficar no nível da autoconsciência desta sociedade. O recurso de Foucault é revelar a mecânica do poder que sustenta a ilusão antropológica, encontrar os mecanismos que possibilitam uma explicação sistêmica dos fenômenos. Em outras palavras, o abrandamento das penas não decorre do desenvolvimento de sentimentos humanitários, ou de algum tipo de alteração das consciências que teria produzido resistência aos suplícios e à pena de morte, mas é efeito de uma nova configuração do poder, que reúne práticas disciplinares e biopolítica. Pensar essas alterações em termos de mudanças na consciência seria uma ilusão antropológica no sentido de tomar a consciência do homem como explicação de processos que na verdade estão fundamentados em transformações nos regimes de poder.

Esse novo tipo de poder sobre a vida se teria desenvolvido em duas dimensões. A primeira, no século XVII, “centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões” (Idem, p. 131). Essa forma corresponde ao poder disciplinar já apresentado em Vigiar e punir. A segunda dimensão se teria desenvolvido a partir do século XVIII e “centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (Idem, ibidem). Trata-se, diz Foucault, de uma biopolítica da população. Então, as duas dimensões dessa transformação do poder seriam o poder disciplinar que adestra os corpos dos indivíduos, que é individualizante, que se exerce através da observação e do exame, e um biopoder que busca regular a população.

É bem conhecido que o plano original para a História da sexualidade não foi seguido por Foucault. Os volumes 2 e 3 não correspondem àquilo que originalmente havia sido planejado. Em vez de permanecer em torno da formação da sociedade moderna, ainda que para isso fosse preciso remeter os estudos à Idade Média para encontrar lá o dispositivo da confissão, tão central na experiência da “carne” (ou da sexualidade) no mundo ocidental, Foucault regressa à Antiguidade clássica e tardia, e opera um giro na sua problemática.

Antes de realizar esse giro, Foucault apresenta um novo tipo de poder: o poder pastoral. Este já aparece no curso de 1978, Segurança, território e população, no qual Foucault introduz também os temas do governo e da governamentalidade7 7 . A relação do governo e do poder pastoral com o cuidado de si foi tratada por nós em “Versões de Édipo: Foucault e as transições do saber-poder ao governo” (Castro e Campos, 2017). . O poder pastoral situa-se séculos antes da emergência do poder disciplinar. É uma forma de poder baseada numa relação na qual o pastor deve conhecer o que se passa no interior do cristão. O conhecimento da interioridade do indivíduo é fundamental, e esse conhecimento se realizará através de uma série de mecanismos, sendo o mais importante deles a confissão. Trata-se de um poder individualizante: o pastor conhece cada ovelha de seu rebanho. O poder pastoral estabelece uma relação entre o pastor e o rebanho que faz com que cada membro deste último examine sua consciência, levando à produção da interioridade, que seria o segredo de cada um. Mas trata-se fundamentalmente de uma relação de poder que está baseada na ideia do estabelecimento de uma conexão singular com o pastor. Cada indivíduo é diferente dos outros, tem seus próprios pecados, sofre suas próprias tentações. O pastor deve conhecê-las para que os fiéis as reconheçam em si. É uma forma de poder que se exerce numa estrutura dialógica.

O retorno do sujeito ou uma forma simbólica de integração?

É possível pensar o poder pastoral como uma estrutura análoga àquela que Foucault encontrará na problemática do cuidado de si. O biopoder e o poder disciplinar podem ser pensados como desdobramentos lógicos, o primeiro conceito sendo elaborado a partir do aprofundamento da perspectiva que produziu o segundo. O poder disciplinar institui a alma como uma forma de controle do corpo, a alma é ao mesmo tempo um efeito de poder e um dispositivo que domina o corpo. O poder disciplinar gera sujeitos que interiorizam a vigilância e as normas, produzindo uma dimensão subjetiva, “interior”. As formas de saber fundadas no exame supõem justamente essa “interioridade” como objeto a ser observado a partir do comportamento dos sujeitos. As práticas de vigilância e os saberes de exame revelam as disposições, o caráter, a alma. Trata-se de uma abordagem sistêmica da constituição do sujeito.

O poder pastoral abre o tema da constituição do sujeito através de uma relação de conhecimento que coloca dois indivíduos em conexão, fazendo que um destes venha a desenvolver sua “consciência” que será exposta através da confissão. A formação do sujeito, a “invenção da alma”, para usar a expressão que Foucault cunha no início de Vigiar e punir para se referir a essa instância supostamente interior dos sujeitos, aparece na discussão do poder pastoral como prévia ao poder disciplinar. Nesse sentido, o cristianismo inventou a alma (a dimensão “interior” que em Vigiar e punir aparecia como resultado do poder disciplinar). O poder pastoral é uma forma de poder que se estabelece numa relação interindividual. Uma das características do poder pastoral é que o pastor não é responsável apenas por todo o rebanho, mas por cada uma das ovelhas.

Um passo lógico após a formulação da concepção de poder pastoral seria justamente conceber um processo de constituição do sujeito fundado na interação, mas que não necessariamente implicaria um processo de sujeição. A partir da Hermenêutica do sujeito ([1982] 2004), e depois de ter discutido o tema do governo e do poder pastoral, Foucault pensa processos de subjetivação que não sejam processos de sujeição. Trata-se de ir além do poder disciplinar ou mesmo do biopoder, sem que esse movimento implique um abandono desses conceitos. Há o reconhecimento da existência de formas de construção de si que não se reduzam a efeitos do poder disciplinar e do biopoder. Apesar de Foucault insistir que não há poder sem resistência, no arcabouço montado em Vigiar e punir não existe espaço para pensá-la, pois a transgressão já está previamente incorporada ao sistema. A própria delinquência é um efeito das práticas disciplinares e do sistema de classificação da sociedade. Nesse sentido, a própria transgressão seria parte do sistema exposto em Vigiar e punir. Não há como escapar do olho do poder. Os contrapoderes e a resistência são introduzidos por Foucault, mas não se encaixam no horizonte teórico montado em Vigiar e punir, são externos ao sistema descrito no livro. A nova forma de pensar o sujeito é uma tentativa de superar esse limite, produzindo uma análise da formação do sujeito através do cuidado de si que permita pensar essa constituição para além dos processos de sujeição.

No seu último curso no Collège de France, A coragem da verdade, Foucault afirma que se voltara para os gregos levado pela questão da relação entre sujeito e verdade, entendida de forma “tradicional” como a indagação: “a partir de que práticas e através de que tipos de discurso se procurou dizer a verdade sobre o sujeito?” Mas a seguir procurou “encarar essa forma das relações entre sujeito/verdade sob uma nova forma: não a do discurso em que se poderia dizer a verdade sobre o sujeito, mas a do discurso de verdade que o sujeito é capaz de dizer sobre si mesmo” (Foucault, [1984]FOUCAULT, M. ([1984] 2004), A hermenêutica do sujeito. São Paulo, Martins Fontes. 2011, p. 5).

A problematização do sujeito na Antiguidade não é uma fuga da política. Com a discussão do cuidado de si, o autor busca superar um limite que estava implícito na “teoria” do poder como formulada a partir de Vigiar e punir. Não havia lugar para pensar teoricamente a resistência, já que o desvio é no livro explicado como um efeito da norma. Se não há lugar para pensar a constituição do sujeito fora das relações de poder que se imprimem sobre ele através do panoptismo da sociedade moderna, como pensar a resistência, como justificar a existência de sujeitos ou de dimensões do sujeito que não sejam efeitos do poder e que por isso mesmo já não estejam capturados pelo sistema? O poder não é apenas repressivo, ele também é produtivo, e produz antes de mais nada os próprios sujeitos. Não há lugar aqui para pensar uma teoria da ação política ou mesmo da resistência. Para justificar como estas são possíveis, Foucault busca formas de constituição do sujeito que estão para além do poder disciplinar. Este é o horizonte a partir do qual a ação faz sentido, o solo a partir do qual é possível fazer a crítica do poder.

Retomando Spivak, é possível apontar uma antinomia na crítica ao sujeito soberano elaborada por Foucault. Pode-se dizer que, no quadro teórico de Vigiar e punir e A vontade de saber, o horizonte de análise é constituído por processos sistêmicos, que escapam à ação consciente dos sujeitos. Recuperando o exemplo anterior, a retração na prática do suplício e da pena de morte resulta não das lutas dos iluministas contra ela, mas de uma alteração no regime de visibilidade do poder, pela emergência de um poder de vigilância.

Spivak criticava Foucault por reintroduzir em seu discurso noções de sujeito que ele mesmo procurava deslocar. A tensão apontada com base nessa leitura era entre uma filosofia que busca descentrar o sujeito e ao mesmo tempo o repõe quando se enuncia a possibilidade de os oprimidos falarem por si mesmos. Cremos que ela encontra nessa crítica uma tensão ou mesmo uma aporia que irá atravessar o trabalho de Foucault. A crítica ao “humanismo” ou a filosofia do sujeito ou da consciência leva Foucault a manter-se, mesmo na fase dos trabalhos genealógicos, próximo do estruturalismo no que diz respeito à “crítica ao sujeito soberano”. No entanto, Foucault busca uma perspectiva crítica e sente a necessidade de conjugar à análise dos processos sistêmicos uma abertura para a prática, para a crítica, para a ação. Ao fazer isso, não é possível pensar o sujeito apenas como efeito do poder. E nesse sentido o sujeito e a ação têm que ser contrabandeados como contraposição ao sistema.

Pode-se dizer, adotando o vocabulário de Habermas, que em Vigiar e punir e em A vontade de saber Foucault discute formas de integração sistêmica da sociedade. Para Habermas, a integração sistêmica prescinde do meio linguagem e recorre aos meios poder ou dinheiro como mecanismos de coordenação; na esfera sistêmica, poder e dinheiro garantem uma forma de integração que dispensa a justificação linguística. No mundo da vida a integração se dá através de processos simbólicos, ou seja, de interações mediadas pela linguagem, de trocas comunicacionais entre os agentes. O mundo da vida é apresentado como fonte de um modelo de ação que poderia ser mobilizado criticamente diante dos avanços da esfera sistêmica. Ação e sistema, integração simbólica e sistêmica são analiticamente separadas nos conceitos de mundo da vida e esfera sistêmica. Os processos descritos em Vigiar e punir e A vontade de saber poderiam ser aproximados dos mecanismos que caracterizam a esfera sistêmica habermasiana. Em ambos os livros a discussão revela não só como determinados processos estruturais ocorrem alterando a mecânica do poder, mas como a nova mecânica do poder garante a integração sistêmica da sociedade. Toda essa história pode ser contada sem sujeitos, justamente porque ela é elaborada a partir da perspectiva do sistema.

O problema aparece quando se tenta conectar a crítica ao poder à ação política. Na fase Vigiar e punir/A vontade de saber, Foucault sempre teve que acrescentar a ação ou a resistência valendo-se de uma ou outra frase de efeito no estilo “onde há poder há resistência”, “todo poder engendra contrapoderes”, que não se encaixam muito bem no modelo teórico apresentado. A discussão do cuidado de si no início da década de 1980 incorpora algo novo, que é a possibilidade de pensar a constituição do sujeito para além do registro do poder disciplinar e do biopoder. Nesse sentido, abre-se espaço para pensar em processos de subjetivação que se dão não no registro da integração sistêmica, mas no domínio da integração social, que, segundo Habermas, é simbólica, linguisticamente e interativamente constituída. Na contraposição entre processos de subjetivação sistêmicos, a partir dos quais o poder constitui os sujeitos através da sujeição, e processos simbólicos de integração social por meio dos quais os sujeitos se constituem interativamente, há o espaço para pensar as tensões, a resistência, a emergência de contrapoderes surgindo do próprio mundo da vida. Foucault não voltou atrás em relação a sua própria obra e buscou recuperar o sujeito. Não retorna a uma filosofia da consciência, mas busca um solo no qual seria possível recuperar perspectivas de autonomia, autoformação, resistência. Para isso seria preciso supor a possibilidade de processos de constituição de sujeitos que não se reduzem aos efeitos do poder. Isso não significa que nos seus últimos trabalhos Foucault estivesse afirmando a possibilidade de pensar formas de integração simbólica ou um mundo da vida isentos de relações de poder. Mas analiticamente é possível perceber um giro na forma de pensar o problema das formas de constituição do sujeito que leva para além da aporia entre um sistema de sujeições que constitui os sujeitos e as práticas de resistência que correspondem à ação de sujeitos que se contrapõem à esfera sistêmica.

Retomando a crítica de Spivak, a suposta incoerência que a autora aponta quando afirma que Foucault e Deleuze estavam, sem perceber, recuperando a perspectiva do sujeito soberano que criticavam poderia ser superada se o conceito de sujeito tivesse sido ampliado, não para negar os processos inconscientes que o constituem, não para reinstaurar o primado da autoconsciência, mas para recuperar processos intersubjetivos de formação, que possibilitem pensar a tensão constitutiva entre integração simbólica e sistêmica, entre forças que a partir do poder se imprimem sobre os sujeitos, e os esforços destes para se autoconstituírem para além dos efeitos do poder, ou apesar dos efeitos do poder, ou contra os efeitos do poder, que contudo sempre estão presentes. Neste sentido, a perspectiva interessante para uma teoria crítica dos processos de constituição do sujeito está na articulação de perspectivas que permitam reconhecer os processos sistêmicos e ao mesmo tempo afirmar a ação como fundamento da possibilidade de crítica. Não se trata de escolher entre mundo da vida e esfera sistêmica ou discutir se na constituição do social o elemento anterior e fundamental é a linguagem ou o poder.

Referências Bibliográficas

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  • SPIVAK, G. (2010), Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG.
  • 1
    . Não estamos tomando aqui “teoria crítica” como sinônimo da teorização da Escola de Frankfurt.
  • 2
    . Apesar de a autora discutir Foucault e Deleuze, estamos interessados exclusivamente em Foucault.
  • 3
    . Uma crítica semelhante a essa de Spivak está explícita em Habermas, quando este afirma que a história genealógica de Foucault “segue o movimento de uma extinção radicalmente historicista do sujeito e termina em um subjetivismo irremediável” (Habermas, 2002HABERMAS. J. (2002), O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes., p. 387).
  • 4
    . Em 1967, também numa entrevista, Foucault, após ser chamado de “papa do estruturalismo” pelo entrevistador, assim expressou sua relação com o estruturalismo, após responder brincando que era apenas o “coroinha”: “O que tentei fazer foi introduzir análises do estilo estruturalista em domínios nos quais elas não haviam penetrado até o presente […]. Nessa medida, fui levado a analisar em termos de estrutura o nascimento do próprio estruturalismo (Foucault, [1967] 2000FOUCAULT, M. ([1967] 2000), Ditos & escritos, vol. II. Rio de Janeiro, Forense Universitária., p. 59).
  • 5
    . Para uma breve análise das dificuldades levantadas em As palavras e as coisas e que teriam levado Foucault a substituir a discussão de episteme pela análise da conexão entre poder e saber, confira-se Habermas, 2002HABERMAS. J. (2002), O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes., pp. 373-376.
  • 6
    . Em A arqueologia do saber o conceito de ideologia aparece, mas não se contrapõe à ciência, e sim se articula com esta, de forma que a questão da ideologia é da constituição da ciência como “prática discursiva e de seu funcionamento entre outras práticas” (Foucault, [1969FOUCAULT, M. ([1969] 2012), A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária.] 2012, p. 223). Essa concepção prefigura a conexão entre poder e saber realizada na época de Vigiar e punir.
  • 7
    . A relação do governo e do poder pastoral com o cuidado de si foi tratada por nós em “Versões de Édipo: Foucault e as transições do saber-poder ao governo” (Castro e Campos, 2017CASTRO, Ronaldo Oliveira de & CAMPOS, Tamara de Souza. (2017), “Versões de Édipo: Foucault e as transições do saber-poder ao governo”. In: LEAL, Ana Christina Darwich Borges et al (orgs.). Normalização, poder e direito. Salvador, Juspodivm.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2016
  • Aceito
    30 Maio 2017
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