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Pedro Meira Monteiro, Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil

Monteiro, Pedro Meira. . Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil São Paulo: Hucitec , 2015 282 p.

Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil , publicado em 2015 na coleção “Pensamento Político-Social” da editora Hucitec, condensa vários anos de pesquisa e de reflexão de Pedro Meira Monteiro sobre o autor de Raízes do Brasil . O livro é composto basicamente por uma série de exercícios analíticos que visam a confrontar a produção buarquiana com os textos de autores próximos ou distantes, seja em termos cronológicos, seja em termos geográficos, o que certamente contribui para testar os seus alcances e limites teóricos, políticos e estéticos. Ao colocar a obra de Sérgio Buarque – a rigor, o que está em jogo aqui é Raízes do Brasil , ainda que não faltem referências à sua atuação modernista ou como historiador profissional – ao lado de outras, de natureza e tempos diversos, como as de Gilberto Freyre, Rubén Darío, Enrique Rodó, Richard Morse, Carlos Guilherme Mota, Chico Buarque e José Miguel Wisnik, Monteiro chama a atenção para os variados deslocamentos de sentido que a imaginação do Brasil nela contida assume quando transportada para o passado, para o futuro ou mesmo para o seu próprio presente, ele mesmo em movimento, como atestam as várias reedições e modificações de Raízes do Brasil . No fundo, é a própria ideia de deslocamento – ideia forte já no próprio livro de estreia de Sérgio Buarque – que organiza Signo e desterro , já que o sentido da obra buarquiana, diante das tentativas de fixá-lo de uma só vez, parece sempre estar à deriva.

A posição de Monteiro, ao insistir no potencial heurístico da comparação – e justamente porque a comparação, aqui, não serve para igualar os termos comparados, e sim para identificar aproximações e afastamentos radicais ou sutis entre textos e contextos –, é uma importante advertência diante da nova leva de trabalhos sobre Sérgio Buarque, mais especificamente sobre Raízes do Brasil , que, para o bem ou para o mal, tem tentado desmascarar o ensaio – para usar um termo que não é de todo inapropriado aqui – e lançar dúvidas sobre o seu lugar na galeria de interpretações progressistas sobre o país. De um lado, como no recente livro de Jessé Souza (2015) SOUZA , Jessé . ( 2015 ), A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite . São Paulo , LeYa . , há uma denúncia quanto aos possíveis efeitos sociais de Raízes na recomposição conservadora do pacto político no país, já que a tese do patrimonialismo incrustrado no Estado serviria para legitimar o mercado como instância por excelência de coordenação das relações sociais, com resultados perversos na reprodução das desigualdades seculares. Como o próprio Monteiro já teve a oportunidade de esclarecer ( Monteiro, 2016a MONTEIRO , Pedro Meira . ( 2016a ), “Raízes do Brasil: oitenta anos depois” . Peixe Elétrico . Disponível em http://www.peixe-eletrico.com/single-post/2016/08/15/Debate-Ra%C3%ADzes-do-Brasil , consultado em 20/1/2017.
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), dificilmente encontramos suportes textuais claros, em Raízes , para a interpretação de Jessé Souza, que, no entanto, tem o mérito de mostrar os possíveis efeitos da leitura dominante de Raízes nos debates públicos – o que, é claro, remete a um outro arco de questões e problemas de investigação empírica. De outro lado, um conjunto de pesquisas que vem insistindo no horizonte político antiliberal e conservador inscrito na edição princeps do ensaio, de 1936, abrindo uma densa e fecunda discussão sobre as fontes teóricas (especialmente as alemãs) do livro e revelando materiais documentais inéditos ou pouco explorados. Ao dialogar com esta produção, crescente e heterogênea1 1 1 . Depois do artigo de Leopoldo Waizbort, “O mal-entendido da democracia: Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil , 1936” (2011), que abriu a onda revisionista, seguiram-se vários outros trabalhos, como o livro de Luiz Feldman, Clássico por amadurecimento (2016), e o artigo de Sérgio da Mata, “Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil” (2016). Antes, ainda, registre-se o livro de João Kennedy Eugênio, Ritmo espontâneo: organicismo em “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda (2011), autor que coorganizou, junto a Monteiro, importante volume com a fortuna crítica de Sérgio Buarque ( Monteiro e Eugênio, 2008 ). Na nota 206 de Signo e desterro (pp. 235-236), há um rápido ajuste de contas com esta bibliografia revisionista. , além de problematizar a interpretação “radical” de Raízes feita por Antonio Candido para a quinta e “definitiva” edição do livro, de 1969, Signo e desterro pretende restituir o caráter aberto e instável que informa o ensaio, capaz de desconfiar tanto do legado colonial quanto das promessas civilizacionais do Atlântico Norte, embora sem deixar de se encantar obliquamente por eles. Essa abertura garantiria o “frescor” do livro, que levaria inclusive a pergunta sobre a “identidade nacional” ao seu limite paradoxal.

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Signo e desterro se inicia, depois da “Introdução” que explicita o princípio de reunião dos textos antes soltos que comporão os seus capítulos, com um acerto de contas com a fortuna crítica de Sérgio Buarque de Holanda, em grande medida modelada com e contra a poderosa interpretação de Antonio Candido. Perscrutando Raízes do Brasil entre o seu passado e seu futuro, isto é, entre suas heranças e legados, Monteiro opta por uma leitura que toma como central sua atuação modernista e os embates estéticos que Sérgio Buarque enfrentou na década de 1920, que trariam forte carga de inquietação e ambivalência em relação aos destinos do país e do mundo – e que seguiria perseguindo sua produção posterior. Por essa razão, seu protocolo de leituras visa a desestabilizar qualquer princípio de coerência interna à obra, seja à direita (o suposto conservadorismo da edição de 1936) ou à esquerda (o estável progressismo pressuposto pelas leituras de Candido). “Minha intenção”, esclarece o autor, “é reencontrar, ou talvez simplesmente imaginar, a tensão que atravessa, aguda, a consciência do escritor, no instante mesmo em que se gesta e se dá a escrita” (p. 37). E continua: “No momento em que se produz Raízes do Brasil […], a previsão de uma via democrática para o Brasil não é guiada pela visão desassombrada de algum futuro brilhante das democracias ocidentais, nem mesmo por qualquer simpatia pela via socialista soviética […]. Ao contrário, o que se vê são dúvidas profundas e ferinas a atravessar o espaço íntimo da consciência, que é também o lugar em que se concebe a escrita. O que leio em Raízes do Brasil , como pretendo sugerir, é o tormento com que o crítico encara a política, mais que a clareza com que enfrenta seus desafios e dilemas. Interessam-me os titubeios e as perguntas sinuosas que terão infernizado o escritor em seu íntimo, mais que as respostas e a coerência de uma postura política afinal correta” ( Idem , ibidem ).

Introduzir a tensão como princípio que constitui a obra de Sérgio Buarque não significa, para Monteiro, “negar a interpretação de Antonio Candido”, e sim “lembrar que mesmo as inúmeras alterações no texto de Raízes do Brasil , a partir da segunda edição, não lhe retiram o sabor da dúvida” (p. 51). Quer dizer, não se trata de “alinhar o historiador a qualquer corrente conservadora do pensamento social brasileiro” (p. 37), mas de vê-lo em um jogo de luzes e sombras, que se alternarão de acordo com o ângulo buscado e com o interlocutor sugerido. Ao lado de Gilberto Freyre, a despeito de suas muitas aproximações e questões de fundo compartilhadas, não parecem restar muitas dúvidas de sua distância do conservadorismo; ao lado de Richard Morse, cujo diálogo com Sérgio Buarque é muito mais indireto, é possível iluminar a contrapelo as “profundezas” de sua sedução pelo legado ibérico e colonial, que seriam dissimuladas pelo ensaio e pelas várias revisões (p. 140). À maneira de um prisma, Raízes do Brasil revela sentidos múltiplos e, às vezes, contraditórios, dependendo do movimento realizado pelo autor. Embora Signo e desterro realize outros exercícios desse tipo, esta resenha seleciona para discussão mais detida os capítulos 3, “Raízes rurais da família brasileira: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre”, os capítulos 5 e 6, “Buscando América: os impasses do liberalismo (1)” e “‘ El hombre cordial ’ e a poética especular: os impasses do liberalismo (2)” e o epílogo, “Raízes do século XXI: Wisnik e o horizonte do ensaio”. Ainda que esta escolha deixe de lado dimensões muito importantes do livro – como a discussão sobre a linguagem em Sérgio Buarque de Holanda e seus desdobramentos no romance de Chico Buarque, a reflexão sobre o documentário Entreatos de João Moreira Salles, entre outras –, creio que esses capítulos capturam bem o enfoque analítico de Pedro Meira Monteiro.

O cotejamento das proximidades e dos afastamentos entre Sérgio Buarque e Gilberto Freyre leva em conta, no terceiro capítulo, múltiplas dimensões, como as relações de ambos com o modernismo – e as relações entre literatura e ciências sociais daí decorrentes, que informam suas obras de diferentes modos –, a análise do processo de longa duração que envolve a urbanização e a decadência da ordem rural e familiar, o uso compartilhado, mas divergente, das formulações teóricas de Georg Simmel, bem como o confronto entre suas versões próprias a respeito da “cordialidade”. Monteiro prepara o terreno da comparabilidade não para confundir os argumentos dos autores, mas para divisar as diferenças finas, mas decisivas, que separam Raízes do Brasil e Sobrados e mucambos , ensaios publicados no mesmo ano e extensamente revisados na edição seguinte. Como parte dessas revisões se deve ao próprio diálogo entabulado entre Buarque e Freyre, a comparação privilegia as segundas edições dos ensaios, de 1948 e 1951, respectivamente, pois ali os autores, em relação , dão mais clareza às suas posições sobre o legado colonial e suas consequências para o presente. Em outras palavras, interessa mais o movimento dos autores que uma suposta cristalização de suas tomadas de posição 2 2 . Para uma outra abordagem comparativa entre Raízes do Brasil e Sobrados e mucambos e que também considera central o cotejamento das primeiras edições do ensaio, chamando a atenção para suas divergências teórico-metodológicas e políticas, ver Bastos (2008) . André Botelho e eu fizemos exercício análogo em relação a Raízes e Populações meridionais do Brasil , de Oliveira Vianna ( Brasil Jr. e Botelho, 2016 ). O uso “dinâmico” da comparação, ao detectar o diálogo de Sérgio Buarque com os autores conservadores brasileiros ao longo das várias edições de Raízes , permite esclarecer suas diferentes posições quanto ao peso do legado colonial e as formas de superá-lo. . Assim, no confronto, fica mais nítido que, em Raízes , a tensão rural-urbano não cede lugar a uma superação, mas se revela trágica, o que se exprimiria inclusive no estilo “terso” de sua escrita (segundo formulação de Alexandre Eulálio), já “que a tensão se revolve na economia delicada e instável dos opostos e dos contrastes” (p. 77); ao passo que, em Freyre, a prosa “solta, derramada e coloquial” ( Idem ) estaria, pelo contrário, a serviço do elogio da contemporização e do equilíbrio social. A passagem abaixo revela, de modo condensado, o espírito comparativo que atravessa Signo e desterro: “Para Sérgio Buarque, a tensão não se resolve como uma composição, ou no equilíbrio de antagonismos [como em Gilberto Freyre]. Ela se mantém, ao longo de Raízes do Brasil , como uma espécie de falha trágica da formação brasileira: não se poderia erguer um Estado impessoal, burocrático, enquanto seguisse valendo a concretude das relações primárias, pessoais e familiares. […] Aí, por ventura, encontra-se uma característica que, apontada em Raízes do Brasil , sintetiza a conduta daqueles que ignoram tudo o que não seja familiar, numa atitude que termina por abolir as fronteiras da civilidade, da reverência, criando uma zona superficial de confraternização. Este, o momento em que Freyre e Sérgio Buarque mais se aproximam. Mas entre a chamada “democracia racial” e a sempre discutida “cordialidade”, há várias e importantes diferenças, que vem à luz no instante em que atentamos para o fato de que a cordialidade não é um valor a se conservar incondicionalmente. Aliás, exatamente em 1948, quando se publicava a segunda edição de Raízes do Brasil , Sérgio Buarque declararia, a Cassiano Ricardo, que o homem cordial estava morto, eliminado pela força despersonalizante da cidade, que se impunha não somente no perímetro urbano, mas nas próprias relações com o campo (pp. 72-73)

Se a comparação entre Raízes do Brasil e Sobrados e mucambos , livros escritos (e reescritos) no mesmo momento, ajudaria a clarificar a distância de Sérgio Buarque das posições conservadoras – ou, pelo menos, do conservadorismo no Brasil –, o confronto com O espelho de Próspero , de Richard Morse, publicado apenas na década de 1980, permitiria mostrar algumas facetas do “terreno lodoso que o leitor de Raízes do Brasil costuma evitar” (p. 115). Terreno que levaria o leitor a “sentir legitimamente a sedução da herança ibérica, sem que isto o leve, necessariamente, a edulcorar o passado colonial ou pré-colonial” (p. 232, nota 184), advertência que servirá de guia para a análise da relação entre o historiador paulista e o latino-americanista. O procedimento adotado aqui por Monteiro é algo sinuoso, pois Morse seria “talvez o autor que mais longe tenha levado uma reescritura de Raízes do Brasil , ainda que em seu O espelho de Próspero não se encontre uma única alusão a Sérgio Buarque de Holanda” (p. 112). Nesse sentido, sugere o autor, Morse mostraria um espelho que deforma e amplia, à maneira de uma lente de aumento, algo que, em Raízes , “permanece subentendido, ou talvez simplesmente desentendido” ( Idem ). Isso possibilitaria discutir em outro registro as diferenças entre as duas Américas – a do Norte, filha da Europa protestante, e a do Sul, descendente da Península Ibérica –, que também comparecem nos capítulos de Raízes e que prenderam fortemente a atenção do jovem modernista 3 3 . Valeria a pena discutir com mais vagar o quarto capítulo do livro, “Signo e desterro: a impertinência da pertinência”, que situa institucionalmente o próprio roteiro interpretativo de Pedro Meira Monteiro, mas isso acabaria por alongar em demasia esta resenha. Apenas para fins de registro: “Na academia norte-americana”, lugar a partir do qual escreve Monteiro, professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade Princeton, “os espaços e as fronteiras se redefinem” (p. 89). E continua: “Não que o mapa do mundo seja divido, pelas mãos ávidas do Império, em setores determinados que não coincidem com a ‘real’ geografia das nações estrangeiras. Os espaços se misturam porque, uma vez submetido às malhas da administração e da curiosidade norte-americanas (ambas muito poderosas), o próprio olhar e o lugar de onde o discurso é enunciado se alteram significativamente. O Outro se torna mais próximo, de tal forma que eu mesmo me reconheço como Outro” ( Idem ). Escapando do olhar exotizante alheio e da tentação do autoexotismo, Signo e desterro faz desta condição liminar um dispositivo para alargar a nossa compreensão habitual do pensamento social brasileiro, sobretudo ao relacioná-lo com o ensaísmo latino-americano e caribenho. Ver, por exemplo, a introdução que ele escreveu para o livro A memória rota , de Arcadio Díaz-Quiñones ( Monteiro, 2016b ). . Assumindo a hipótese do diálogo de Morse com o ensaio de Sérgio Buarque, é como se o primeiro levasse às últimas consequências a opção pelo legado ibérico na América Latina apenas insinuado pelo segundo, radicalizando o trecho da primeira edição de Raízes que qualificava como “esforço bem-sucedido” a transplantação cultural europeia para o novo mundo – adjetivação que desaparece nas edições seguintes. Mais uma vez, a construção da comparabilidade não funciona para diluir as diferenças entre os autores, mas para chamar a atenção para suas distinções sutis, como no trecho abaixo: “A sedução pela via ibérica convida o estudioso à extensão, no tempo e no espaço, de concepções – sobre o indivíduo, sobre as razões de Estado, ou sobre a possível missão dos povos – que teriam sido gestadas e laboradas numa era passada. Esta é, de certa forma, a zona de coincidência entre Raízes do Brasil e O espelho de Próspero: o reconhecimento de que uma história das Américas deve necessariamente dialogar com a história europeia mais remota. Evidentemente, a fé depositada nos ibéricos e em seu universalismo supostamente mais poroso, aberto à diversidade e à variedade do gênero humano, é algo que encontra seus extremos em Richard Morse, enquanto Sérgio Buarque de Holanda, oitenta anos atrás, parecia mais reservado. Mas é plausível que, em ambos os casos, a desconfiança em relação à matriz liberal seja o motor, a causa primeira de sua escrita . No fundo de tudo, está a desconfiança em face daquele apagamento do indivíduo, da abstração de sua singularidade, com a entrega irrestrita ao progresso do mundo material” (p. 113, grifo do autor).

À contraluz do experimento-limite de Morse, saltaria à vista a possível desconfiança de Sérgio Buarque em relação ao pacto liberal, embora, de novo, suas reservas quanto às potencialidades da matriz ibérica restituiriam, no ensaio, o sabor da dúvida e da ambivalência. A despeito de efeito de atração provocado pelas Raízes que condensam o legado colonial, o ensaio de Sérgio Buarque é posto por Pedro Monteiro em um “lugar incômodo”, pois, em vez de respostas, ele “estende e multiplica perguntas” (p.198).

Nem Freyre nem Morse, mas tampouco Caio Prado Jr. e seu legado na “dura sociologia concreta dos corredores uspianos” (p. 190). É assim que Signo e desterro vai encerrando sua reflexão sobre Raízes do Brasil , chamando para a conversa José Miguel Wisnik. No epílogo, “Raízes do século XXI: Wisnik e o horizonte do ensaio”, o livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008) é convocado para colocar Sérgio Buarque no meio de campo entre as interpretações do Brasil de Gilberto Freyre e de Caio Prado Jr., numa espécie de mediação sem síntese entre a celebração das potencialidades do mundo colonial e a denúncia da marcha grotesca que o capitalismo trilhou entre nós. Em notação derrideana, a “cordialidade” seria o “indecidível” (p. 250). Ou, nos termos do livro de Wisnik, Sérgio Buarque codificaria a ambivalência do fármaco da experiência brasileira, num misto de encanto e pavor pelo que se condensou historicamente no regime agrário-escravista nos trópicos, capaz de gestar a mistura de matrizes civilizacionais distintas, num movimento de abertura e criatividade, mas também de alimentar uma poderosa máquina de exclusão, condenando o grosso da população à miséria e a uma inorganicidade renitente. Em vez da disjuntiva representada pelo “ veneno produzido pela formação histórica do Brasil” (p. 194), inoculado por Caio Prado, ou pelo “ remédio […] que produz a estranha sina histórica luso-tropical” ( Idem ), receitado por Freyre, “vemo-nos então diante do lugar privilegiado reservado a Sérgio Buarque de Holanda, cuja crucial e radical indefinição leva Wisnik a identificar, no diagnóstico de Raízes do Brasil , o veneno remédio que fornece o título de seu próprio ensaio” ( Idem ).

Nesse movimento, volta à cena novamente Antonio Candido, agora em texto seminal escrito pouco depois do prefácio à quinta edição de Raízes: trata-se de “Dialética da malandragem” (1970), redigido a propósito de Memórias de um sargento de milícias (1853), de Manuel Antônio de Almeida. Se o balanceio entre o polo da ordem e da desordem que caracterizaria esta peculiar dialética revelaria o caráter mais aberto e dialógico da sociabilidade espontânea no Brasil, ao contrário do caráter excludente que marcaria as sociedades puritanas 4 4 . Pedro Meira Monteiro escavou uma espécie de genealogia da “dialética da malandragem” remontando à atuação modernista de Sérgio Buarque de Holanda, ao anotar sua correspondência com Mário de Andrade. Ver Monteiro (2012) . – nos termos da leitura do próprio Wisnik, devidamente recuperados por Monteiro (p. 194) –, seu chão social, porém, não seria o da dominação senhorial, mas a dos homens livres pobres urbanos do novecentos, tema recorrente nos escritos de Candido. Este seria o modo pelo qual o autor de Formação da literatura brasileira (1959), não sem ambiguidades, recupera em chave positiva certas dimensões da experiência brasileira, sem fazer, para isso, elogio necessário ao mundo escravista-senhorial, do qual, todavia, esta camada de homens livres pobres formava parte, ainda que fosse quase “desnecessária” à sua reprodução social. Justamente por seu caráter inorgânico, recuperando aqui a noção de Caio Prado Jr., os homens livres pobres não poderiam converter a sua sociabilidade solta e porosa em “sistema” 5 5 . Aqui, mobilizo o termo empregado pelo próprio Wisnik, citado por Pedro Monteiro (p. 196). , condenando-a como potencialidade nunca plenamente realizada no Brasil, salvo em momentos efêmeros, não produtivos e não lineares – como num drible, numa síncopa etc. Esta questão certamente não escapou nem a Wisnik nem a Monteiro, que assim colocam o problema: “Aí reside, porventura, o segredo de Veneno remédio: a sublimidade de uma promessa irrealizada, de um espasmo de beleza e genialidade que se consome no próprio instante, que se esvai sem se tornar produtivo, espetáculo fugaz e inútil, como o dos moleques no sinal de trânsito. Mas como converter essa produtividade improdutiva, momento glorioso em consequências, em um projeto , isto é, numa cadeia de consequências claras e minimamente estáveis? Como, do prazer ininterrupto que move Macunaíma em sua saga de anti-herói, construir algo? Haveria que parar e mandá-lo à escola, ensinar-lhe a técnica que ele por princípio despreza e ignora?” (p. 186)

Ora, se essas promessas contidas na nossa sociabilidade aberta e dialógica, presentes no complexo simbólico do futebol (e também no da música popular e da literatura), exprimem possibilidades que não se completam como “sistema” no plano das relações sociais, condenando-se à condição de fios soltos que não se ligam, a meras manifestações isoladas, a indagação a respeito do modo pelo qual a sociedade se reproduz histórica e estruturalmente não pode ser colocada para escanteio. Ela é que permitirá explicar o porquê desta situação. Tornando mais clara a provocação aqui ensaiada, questiono se é possível “vigorosamente recusa[r] a leitura caiopradiana” (p. 190), já que são precisamente os “impasses do inorgânico”, como lembrou Maria Odila da Silva Dias (1989) DIAS , Maria Odila Leite da Silva . ( 1989 ), “Impasses do inorgânico” . In: D’INCAO , Maria Angela ( org .) . História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Jr . São Paulo , Brasiliense/Editora da Unesp , pp. 377 - 405 . , que permitem qualificar os limites daquela aposta, ou melhor, sua dificuldade crônica em se transformar em um projeto consistente 6 6 . O exemplo clássico, do próprio Caio Prado Jr., é a análise dos conflitos na regência, tal qual exposto em Evolução política do Brasil (1933). Como vêm mostrando as pesquisas mais recentes sobre Mário de Andrade, a chave dialógica que ele propõe entre cultura erudita e cultura popular, entre racionalização e soltura, pode desaguar num tipo de postura política que leve não só ao encontro entre esses elementos – que a vida social brasileira aproxima, porém separando-os em condições de desigualdade abissais –, mas também ao seu melhoramento mútuo, embora com resultados sempre abertos e contingentes (ver Hoelz, 2015 ; Botelho e Hoelz, 2016 ). Em outras palavras, Mário de Andrade elabora uma forma de tratar a matéria brasileira na chave da diferença e da igualdade, mas sem deixar de notar as consequências perversas das assimetrias sociais. Roberto Barbato Jr., referindo-se a um dos vários aspectos da atuação de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, assinalou como a promoção dos Concertos Públicos tinham um caráter de democratização da cultura que se associava estreitamente ao seu projeto de renovação da música erudita brasileira. No programa do 1º Concerto Público do Departamento, há uma orientação que certamente faria sorrir a José Miguel Wisnik. Referindo-se à necessidade de que o público mais amplo não só tivesse acesso, mas também compreendesse a nova música – ele mesmo diz que deveria ser uma “compreensão mais elevada”, que exige “dedicação” –, escreve Mário de Andrade: “O dia em que nossos ouvintes souberem escutar música polifônica como sabem apreciar o jogo polifônico do futebol, todos dirão que o povo paulista é um grande povo culto. E nós perceberemos muito melhor, com muitos e maiores prazeres, as belezas musicais criadas pelos grandes gênios do mundo” (citado em Barbato Jr., 2004 , p. 159). A meu ver, esta passagem é muito interessante pois nota: (a) que música erudita e futebol não são coisas equivalentes, mas desiguais em termos de acesso cultural; (b) porém, vê que a inteligência polifônica, enquanto forma, não é vedada às camadas populares, que já a compreendem em outros registros culturais. . Esticando um pouco mais o ponto, um confronto que poderia ser feito é ver como as pesquisas sociológicas dos anos de 1950 e 1960 em São Paulo, modulando em sentido próprio os insights de Caio Prado Jr., capturaram os modos de sociabilidade popular, dando voz aos homens livres pobres no século XIX ou aos egressos da escravidão na primeira metade do século XX. Refiro-me sobretudo à tese de doutorado de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na velha civilização do café , e à tese de cátedra de Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes , ambas de 1964 7 7 . Além, é claro, de Os parceiros do Rio Bonito , de Antonio Candido, também de 1964 e presente na discussão realizada em Signo e desterro . . Nos universos pesquisados – o Vale do Paraíba paulista e a cidade de São Paulo –, não deixa de comparecer a típica soltura proporcionada por uma inserção apenas tangencial no mundo das mercadorias e nos regimes de socialização correspondentes, embora esta soltura esteja envenenada pela miséria generalizada a impor tanto a reciprocidade quanto o ajuste violento. Não estaríamos aqui num debate cifrado com a ideia de “cordialidade”? Quem sabe o “código do sertão” ou o “individualismo agreste”, noções cunhadas por Franco e Fernandes, respectivamente, para exprimir modos de interação social quase desprovidos de regulação institucional, pudessem ser lidas como uma versão desencantada até o osso de uma sociabilidade que opera entre “pessoas” e não a partir de imperativos abstratos e universais? Uma vez que Pedro Monteiro frisa que o programa de pesquisa de Signo e desterro continua, “porque se desdobra em outros textos e iniciativas” (p. 201), fica aqui o convite para pensar, de um outro ângulo, a sociologia paulista e suas possíveis relações com o ensaio de Sérgio Buarque 8 8 . Para uma análise da “presença ausente” do ensaísmo de 1920-1930, Sérgio Buarque de Holanda incluído, na versão em livro da tese de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata (1969), ver Hoelz (2010) e Cazes (2013) . A fim de ilustrar a noção de “individualismo agreste” de Florestan Fernandes, vale a pena citar o trecho que a caracteriza: “As instituições coordenam as condições externas e organizam as compulsões interiores que regulam, estimulando ou inibindo, os motivos das ações humanas. As debilidades crônicas e profundas desse sistema de referência expunham o negro e o mulato a agirem, em diversas e numerosas situações de convivência, como se estivessem sujeitos a um vácuo social . Nesses casos, não era o egoísmo antissocial (ou outros atributos psicológicos equivalentes) que entrava em jogo. Porém, a própria impossibilidade de discernir entre os motivos pessoais e as consequências sociais das ações praticadas. O indivíduo convertia sua pessoa em algo exclusivo e à parte, como se tudo que fizesse ou pretendesse apenas dissesse respeito a ele próprio e se suas ações não afetassem as pessoas ou os interesses dos ‘outros’” ( Fernandes, 2008 , p. 288). .

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Já na introdução, Pedro Meira Monteiro assinala que “o principal objetivo deste livro é ajudar a compreender a permanência de Raízes do Brasil na imaginação do país” (p. 16), a ponto que “talvez se possa afirmar” que o livro “pertence ao inconsciente coletivo do Brasil” (p. 17). Se a efeméride dos oitenta anos de Raízes sem dúvidas ajuda a colocar o ensaio (mais uma vez) na berlinda do debate público, parece-me que o interesse renovado por sua visão da sociedade brasileira captura igualmente o pulso do momento atual, de crescente e, quem sabe, inédita polarização social e política. Lembremos que o famoso prefácio de Antonio Candido à quinta edição, que serviu de esteio para localizar o livro na incerta e frágil família das interpretações radicais do Brasil – numa espécie de clarificação a duas vozes do sentido político de Raízes9 9 . Thiago Lima Nicodemo, em “Para além de um prefácio: ditadura e democracia no diálogo entre Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda” (2016), propõe uma espécie de biografia cruzada a fim de entender diferentes modalidades de colaboração intelectual entre os autores. , foi uma das peças reflexivas cruciais que acompanhou o processo de abertura democrática ao longo dos anos de 1970, sobretudo ao insistir que o legado colonial deveria ser superado por algo novo, preferencialmente pelo protagonismo popular. Este prefácio sinalizava para um horizonte aberto de transformações sociais democratizantes, no qual valia a pena se engajar (à esquerda). Vide a participação de Sérgio Buarque na fundação do Partido dos Trabalhadores e a esperança de Antonio Candido quando da eleição de Lula, cuja força estaria “na junção dos setores radicais da classe média com o operariado e o campesinato” (citado em Melo, 2014 MELO , Alfredo César Barbosa de . ( 2014 ), “ Pressupostos, salvo engano, de uma divergência silenciosa: Antonio Candido, Roberto Schwarz e a modernidade brasileira” . Alea , 16 ( 2 ): 403 - 420 . , p. 419).

Ora, pode-se conjecturar que é justamente o turvamento deste horizonte de transformação – a reiteração do poder oligárquico se apresenta na cena política com notável nitidez neste momento, e talvez permaneça – que dá o tom das novas tentativas de desmascarar não só a “cordialidade” como uma espécie de código simbólico que orienta a cultura política brasileira, mas também o próprio lugar do ensaio de Sérgio Buarque de Holanda nas interpretações do país. A frustração com o que de fato se tornou aquele horizonte de abertura ao novo – e com o livro que serviu como um dos suportes daquela profecia frustrada – pode ser uma das motivações inconfessadas da ânsia de varrer as muitas camadas de revisão textual que esconderiam, tal qual um cavalo de troia, o segredo conservador da primeira versão de Raízes .

A atual polarização social e política, ao recusar a intimidade e estabelecer a distância entre as partes (desiguais) em luta, somada à radicalização da classe média (mas em sentido reacionário), talvez estejam, agora sim, fazendo do “homem cordial” um pobre defunto. Essa é uma leitura possível, mas não a única. Parece mais plausível que, num desses dribles inesperados, a “cordialidade” esteja mais uma vez aí de corpo inteiro, já que o ódio e o desejo de eliminação do outro não deixam de se aninhar no seu campo semântico, tal qual alargado por Sérgio Buarque nas sucessivas revisões de Raízes . O excesso de proximidade e o excesso de distância, ao deixarem os afetos políticos muito soltos, são vizinhos em sua recusa à mediação institucionalizada dos conflitos por via democrática. Num momento em que alguns teimam em colocar o ensaio de 1936 no lado oposto, Pedro Meira Monteiro nos abre os seus muitos outros lados e recoloca a dúvida e ambivalência no cerne de sua leitura.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    . Depois do artigo de Leopoldo Waizbort, “O mal-entendido da democracia: Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil , 1936” (2011), que abriu a onda revisionista, seguiram-se vários outros trabalhos, como o livro de Luiz Feldman, Clássico por amadurecimento (2016), e o artigo de Sérgio da Mata, “Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil” (2016). Antes, ainda, registre-se o livro de João Kennedy Eugênio, Ritmo espontâneo: organicismo em “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda (2011), autor que coorganizou, junto a Monteiro, importante volume com a fortuna crítica de Sérgio Buarque ( Monteiro e Eugênio, 2008 MONTEIRO , Pedro Meira . & EUGÊNIO , João Kennedy ( orgs .) . ( 2008 ), Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas . Rio de Janeiro/Campinas , Eduerj/Editora da Unicamp . ). Na nota 206 de Signo e desterro (pp. 235-236), há um rápido ajuste de contas com esta bibliografia revisionista.
  • 2
    . Para uma outra abordagem comparativa entre Raízes do Brasil e Sobrados e mucambos e que também considera central o cotejamento das primeiras edições do ensaio, chamando a atenção para suas divergências teórico-metodológicas e políticas, ver Bastos (2008) BASTOS , Elide Rugai . ( 2008 ), “ Raízes do Brasil – Sobrados e mucambos: um diálogo” . In: MONTEIRO , Pedro Meira & EUGÊNIO , João Kennedy ( orgs .) . Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas . Rio de Janeiro/Campinas , Eduerj/Editora da Unicamp , pp. 227 - 244 . . André Botelho e eu fizemos exercício análogo em relação a Raízes e Populações meridionais do Brasil , de Oliveira Vianna ( Brasil Jr. e Botelho, 2016 BRASIL JR ., Antonio & BOTELHO , André . ( 2016 ), “Primos entre si? Rural e urbano em Raízes do Brasil e Populações meridionais do Brasil ” . In: HOLANDA , Sérgio Buarque de . Raízes do Brasil: edição crítica . São Paulo , Companhia das Letras , pp. 411 - 417 . ). O uso “dinâmico” da comparação, ao detectar o diálogo de Sérgio Buarque com os autores conservadores brasileiros ao longo das várias edições de Raízes , permite esclarecer suas diferentes posições quanto ao peso do legado colonial e as formas de superá-lo.
  • 3
    . Valeria a pena discutir com mais vagar o quarto capítulo do livro, “Signo e desterro: a impertinência da pertinência”, que situa institucionalmente o próprio roteiro interpretativo de Pedro Meira Monteiro, mas isso acabaria por alongar em demasia esta resenha. Apenas para fins de registro: “Na academia norte-americana”, lugar a partir do qual escreve Monteiro, professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade Princeton, “os espaços e as fronteiras se redefinem” (p. 89). E continua: “Não que o mapa do mundo seja divido, pelas mãos ávidas do Império, em setores determinados que não coincidem com a ‘real’ geografia das nações estrangeiras. Os espaços se misturam porque, uma vez submetido às malhas da administração e da curiosidade norte-americanas (ambas muito poderosas), o próprio olhar e o lugar de onde o discurso é enunciado se alteram significativamente. O Outro se torna mais próximo, de tal forma que eu mesmo me reconheço como Outro” ( Idem ). Escapando do olhar exotizante alheio e da tentação do autoexotismo, Signo e desterro faz desta condição liminar um dispositivo para alargar a nossa compreensão habitual do pensamento social brasileiro, sobretudo ao relacioná-lo com o ensaísmo latino-americano e caribenho. Ver, por exemplo, a introdução que ele escreveu para o livro A memória rota , de Arcadio Díaz-Quiñones ( Monteiro, 2016b MONTEIRO , Pedro Meira . ( 2016b ), “Introdução: A arte de furtar-se” . In: DÍAZ-QUIÑONES , Arcadio . A memória rota: ensaios de cultura e política . São Paulo , Companhia das Letras , pp. 20 - 34 . ).
  • 4
    . Pedro Meira Monteiro escavou uma espécie de genealogia da “dialética da malandragem” remontando à atuação modernista de Sérgio Buarque de Holanda, ao anotar sua correspondência com Mário de Andrade. Ver Monteiro (2012) MONTEIRO , Pedro Meira . ( 2012 ), “‘Coisas sutis, ergo profundas’: o diálogo entre Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda” . In: MONTEIRO , Pedro Meira . ( org .) . Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência . São Paulo , Companhia das Letras , pp. 169 - 360 . .
  • 5
    . Aqui, mobilizo o termo empregado pelo próprio Wisnik, citado por Pedro Monteiro (p. 196).
  • 6
    . O exemplo clássico, do próprio Caio Prado Jr., é a análise dos conflitos na regência, tal qual exposto em Evolução política do Brasil (1933). Como vêm mostrando as pesquisas mais recentes sobre Mário de Andrade, a chave dialógica que ele propõe entre cultura erudita e cultura popular, entre racionalização e soltura, pode desaguar num tipo de postura política que leve não só ao encontro entre esses elementos – que a vida social brasileira aproxima, porém separando-os em condições de desigualdade abissais –, mas também ao seu melhoramento mútuo, embora com resultados sempre abertos e contingentes (ver Hoelz, 2015 HOELZ , Maurício . ( 2015 ), Entre piano e ganzá: música e interpretação do Brasil em Mário de Andrade . Rio de Janeiro , tese de doutorado , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro . ; Botelho e Hoelz, 2016 BOTELHO , André & HOELZ , Maurício . ( 2016 ), “O mundo é um moinho: sacrifício e cotidiano em Mário de Andrade” . Lua Nova , 97 : 251 - 284 . ). Em outras palavras, Mário de Andrade elabora uma forma de tratar a matéria brasileira na chave da diferença e da igualdade, mas sem deixar de notar as consequências perversas das assimetrias sociais. Roberto Barbato Jr., referindo-se a um dos vários aspectos da atuação de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, assinalou como a promoção dos Concertos Públicos tinham um caráter de democratização da cultura que se associava estreitamente ao seu projeto de renovação da música erudita brasileira. No programa do 1º Concerto Público do Departamento, há uma orientação que certamente faria sorrir a José Miguel Wisnik. Referindo-se à necessidade de que o público mais amplo não só tivesse acesso, mas também compreendesse a nova música – ele mesmo diz que deveria ser uma “compreensão mais elevada”, que exige “dedicação” –, escreve Mário de Andrade: “O dia em que nossos ouvintes souberem escutar música polifônica como sabem apreciar o jogo polifônico do futebol, todos dirão que o povo paulista é um grande povo culto. E nós perceberemos muito melhor, com muitos e maiores prazeres, as belezas musicais criadas pelos grandes gênios do mundo” (citado em Barbato Jr., 2004 BARBATO Jr ., Roberto . ( 2004 ), Missionários de uma utopia nacional-popular: os intelectuais e o Departamento de Cultura de São Paulo . São Paulo , Annablume . , p. 159). A meu ver, esta passagem é muito interessante pois nota: (a) que música erudita e futebol não são coisas equivalentes, mas desiguais em termos de acesso cultural; (b) porém, vê que a inteligência polifônica, enquanto forma, não é vedada às camadas populares, que já a compreendem em outros registros culturais.
  • 7
    . Além, é claro, de Os parceiros do Rio Bonito , de Antonio Candido, também de 1964 e presente na discussão realizada em Signo e desterro .
  • 8
    . Para uma análise da “presença ausente” do ensaísmo de 1920-1930, Sérgio Buarque de Holanda incluído, na versão em livro da tese de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata (1969), ver Hoelz (2010) HOELZ , Maurício . ( 2010 ), Homens livres, mundo privado: violência e pessoalização numa sequência sociológica . Rio de Janeiro , dissertação de mestrado , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro . e Cazes (2013) CAZES , Pedro Faria . ( 2013 ), A sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco: pessoalização, capitalismo e processo social . Rio de Janeiro , dissertação de mestrado , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro . . A fim de ilustrar a noção de “individualismo agreste” de Florestan Fernandes, vale a pena citar o trecho que a caracteriza: “As instituições coordenam as condições externas e organizam as compulsões interiores que regulam, estimulando ou inibindo, os motivos das ações humanas. As debilidades crônicas e profundas desse sistema de referência expunham o negro e o mulato a agirem, em diversas e numerosas situações de convivência, como se estivessem sujeitos a um vácuo social . Nesses casos, não era o egoísmo antissocial (ou outros atributos psicológicos equivalentes) que entrava em jogo. Porém, a própria impossibilidade de discernir entre os motivos pessoais e as consequências sociais das ações praticadas. O indivíduo convertia sua pessoa em algo exclusivo e à parte, como se tudo que fizesse ou pretendesse apenas dissesse respeito a ele próprio e se suas ações não afetassem as pessoas ou os interesses dos ‘outros’” ( Fernandes, 2008 FERNANDES , Florestan . ( 2008 ), A integração do negro na sociedade de classes . São Paulo , Globo , vol. 1 . , p. 288).
  • 9
    . Thiago Lima Nicodemo, em “Para além de um prefácio: ditadura e democracia no diálogo entre Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda” (2016), propõe uma espécie de biografia cruzada a fim de entender diferentes modalidades de colaboração intelectual entre os autores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2017
  • Aceito
    15 Fev 2017
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br