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Helen Sampson. International seafarers and transnationalism in the Twenty-first century

SAMPSON, Helen. International seafarers and transnationalism in the twenty-first century. Manchester: Manchester University Press, 2013. 196

Uma série de razões fazem do livro de Helen Sampson uma obra de grande interesse para pesquisadores de diferentes disciplinas. Ao examinar os impactos do processo de globalização sobre a vida e a atividade laboral de uma categoria particular de trabalhadores, marinheiros transmigrantes, a pesquisadora desvela entrecruzamentos complexos entre questões geracionais, étnicas, de gênero e de classe, condições espaçotemporais e sistemas de hierarquia organizacional, alcançando diferentes dimensões da vida de pessoas que ocupam esse lugar no sistema social. Combinando estratégias metodológicas, com destaque ao estudo etnográfico, a autora foi capaz de produzir um relato sociológico convincente que proporciona ao leitor uma experiência de quase intimidade com a realidade e os sujeitos pesquisados, permitindo, ao mesmo tempo, estabelecer conexões com outras realidades particulares, sistematizando conhecimentos que extrapolam o objeto específico, retratando o que há de melhor da pesquisa sociológica engajada dentro de uma tradição que nos remete a nomes como Roy (1959)Roy, Donald. (1959), “‘Banana Time’: job satisfaction and informal interaction”. Human Organization, (4): 158-168., Burawoy (1979)Burawoy, Michael. (1979), Manufacturing consent: changes in the labor process under monopoly capitalism. Chicago, University of Chicago Press., Linhart (1980)Linhart, Robert. (1980), Greve na fábrica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980., Beynon (1995)Beynon, Huw. (1995), Trabalhando para Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. São Paulo, Paz e Terra., Nichols e Beynon (1977)Nichols, Theo & Beynon, Huw. (1977), Living with capitalism: class relations and the modern factory. Londres, Routledge & Kegan Paul., entre outros..

A navegação é um universo pouco investigado pelas ciências humanas e sociais, embora altamente potente para iluminar problemáticas de interesse desde aos olhos da sociologia do trabalho até aos da psicologia social. Como retrata a autora, “os navios são cenários complexos que constituem, de modo potencial, microcosmos sociais fascinantes e reveladores”, tão reveladores quanto invisíveis e inacessíveis a espectadores. Talvez devido às dificuldades de acesso e à própria invisibilidade, Sampson assevera que “navios cargueiros, como espaços ocupacionais de trabalho e espaços multinacionais de vida, têm sido ignorados como potenciais locais de pesquisa em ciências sociais”. Nessa obra, ganhadora do Ethnography Award1 1 . Prêmio anual organizado pelo programa Thinking Allowed da rádio BBC 4, em parceria com a Associação Britânica de Sociologia, enaltecendo estudos que representem contribuição significativa para a análise em profundidade da vida cotidiana de uma cultura ou subcultura. Para a lista dos trabalhos premiados, ver www.bbc.co.uk. em 2014 e em processo de tradução para o português2 2 . A tradução está sendo realizada por Fernando Ramalho Martins e revisada por Juliana Campregher Pasqualini, ambos autores desta resenha, com revisão técnica do professor Rodrigo Santos, para publicação pela Editora da Unicamp. , Sampson relata os achados de um estudo etnográfico da atividade laboral e da vida de marinheiros a bordo de navios cargueiros, desvelando os impactos da liberalização da economia na passagem ao século XXI sobre esse setor e seus sujeitos sociais, agregando a essa problemática uma análise rigorosa do fenômeno do transnacionalismo.

O que é um navio? Fundamentalmente, trata-se de um (imponente) dispositivo social de transporte de cargas. Ao mesmo tempo, é um espaço de trabalho e de vida. Os que o habitam nessas primeiras décadas do século XXI, como efeito da internacionalização e da franca desregulamentação do setor, são majoritariamente trabalhadores recrutados em países onde as possibilidades de emprego local são severamente limitadas (como, por exemplo, Cabo Verde, Filipinas, Gana, Índia). Marginalizados e pobres que vagam pelo mundo à procura de trabalho sob quaisquer condições: assim Helen Sampson retrata os marinheiros transnacionais com quem conviveu intensivamente em sua aventura etnográfica.

O estudo baseou-se em cinco viagens feitas pela autora em navios cargueiros internacionais, aliadas a entrevistas com diferentes atores que compõem o universo da navegação, incluindo funcionários que trabalham na administração em terra, marinheiros desempregados de longo prazo, marinheiros transnacionais que acabaram por se estabelecer em terra firme, cônjuges de marinheiros. Assim, o livro descreve e examina o mundo de marinheiros a bordo, alcançando também suas comunidades locais de origem (a partir do caso ilustrativo de Goa e Mumbai, na Índia). O principal critério de seleção dos navios foi que tivessem tripulação de diferentes nacionalidades, tendo em vista o interesse da pesquisadora em explorar o transnacionalismo no contexto da indústria naval. O estudo ocupa-se, ainda, de retratar a vida de um grupo de trabalhadores de Gana e Cabo Verde que se encontram à procura de trabalho em bases no norte da Alemanha.

A vida a bordo é retratada por Sampson como solitária, perigosa, barulhenta, por vezes monótona, ao mesmo tempo que comporta experiências mágicas de contemplação da natureza, de sua beleza e força. Vastas extensões de mar aberto. Uma baleia de passagem. Um grupo de golfinhos observado da ponte de comando. Nuvens de gansos-patola mergulhando na água enquanto o barco corta o mar em frente. Peixes voadores e fosforescentes avistados do deque. O sol brilhando benevolente em um dia de inverno. Essas são algumas experiências relatadas pela autora no curso de suas imersões etnográficas, mescladas com o testemunho do labor árduo e extenuante, em condições de trabalho precárias, no interior de um sistema social e organizacional marcado pela hierarquia rígida e pela segregação étnica no cumprimento de operações altamente complexas, arriscadas, e que exigem alto grau de coordenação entre os trabalhadores. Mesmo tarefas rotineiras e de manutenção da embarcação, como o preparo das refeições da tripulação e a limpeza do compartimento de cargas, podem trazer riscos à segurança dos marujos, a depender das condições climáticas.

Digna de destaque é a experiência ousada de uma mulher pesquisadora em um contexto quase exclusivamente masculino e seu gradual processo de tornar-se “um(a) deles” e ser “conquistada pelo mar e pelos marinheiros”. Sampson permaneceu em alto-mar por períodos que variaram de duas a seis semanas, em instalações por vezes completamente desprovidas de conforto (ou de condições mínimas, considerando os padrões de vida da classe média europeia). Ao partilhar a viagem com os marinheiros, a pesquisadora se “sujeitava às mesmas condições de vida, à mesma exposição ao movimento e ao barulho, à mesma exposição ao tédio, ao mesmo afastamento de familiares e amigos, aos mesmos riscos associados a naufrágio e afogamento”, com isso adquirindo o status temporário de “marinheira”. Sampson pondera que o processo de investigação foi sem dúvida afetado por questões de gênero – o que aparece, por exemplo, na pitoresca confissão dos tripulantes de que “ter uma mulher a bordo elevava o padrão geral de comportamento, particularmente em relação à higiene pessoal” – e que o ambiente de pesquisa foi desafiador para uma pesquisadora solitária do sexo feminino. Ao mesmo tempo, afirma que em discussões com colegas do sexo masculino, e tendo lido seus diários de campo, foi “incapaz de detectar qualquer diferença significativa no conteúdo dos dados que coletamos sobre transnacionalismo que se possa atribuir à diferença de sexo”.

No arcabouço conceitual da autora, merece destaque a noção de espaço estruturado. Esse conceito refere-se aos limites legais, culturais e materiais dos espaços, que demarcam e favorecem determinados tipos de interação. Ao propor esse conceito, Sampson chama atenção para as estruturas sociais que envolvem e limitam ou, inversamente, criam possibilidades e oportunidades aos marinheiros migrantes e potenciais transnacionais, indo além das abordagens predominantes na literatura que focalizam as redes, práticas e comportamentos de indivíduos e grupos. Para compreender de fato a vida a bordo, argumenta a autora, é crucial que se enxerguem e se reconheçam os arranjos estruturais que regulam e constrangem a experiência de vida e trabalho dos marinheiros. São fatores como os termos e condições de trabalho, a hierarquia ocupacional, a falta de regulamentação estatal nas embarcações no tocante aos regimes de vida, as políticas de gestão da força de trabalho das companhias operadoras, dentre outros, que criam a estrutura espacial a bordo, que então passa a ser habitada e colonizada pelos atores individuais, personalidades e personagens.

O livro de Helen Sampson permite visualizar e compreender a transformação profunda nas estruturas que conformam os espaços sociais em cujo marco se realiza a atividade laboral de trabalhadores da moderna indústria naval mundial resultante do assim chamado processo de globalização. A autora analisa de forma atenta e criteriosa as mudanças resultantes da globalização da indústria naval e suas consequências para a vida dos marinheiros contemporâneos, não deixando margem para dúvidas sobre o caráter negativo desse processo para essa categoria, vítima da substituição de contratos permanentes por temporários e do rebaixamento de salários e benefícios: de muitas maneiras, afirma, a globalização do setor trouxe uma deterioração geral nas condições de trabalho e vida dos marinheiros.

Nas cadeias produtivas “em terra firme”, um dos principais mecanismos de imposição do rebaixamento salarial foi o movimento a que assistimos nas últimas décadas de realocação de plantas fabris de um país para outro (ou entre regiões de um mesmo país, como no caso brasileiro) em busca de força de trabalho barata visando à obtenção de vantagem competitiva. No mundo da navegação, esse processo corresponde à transferência ou abertura de registro do navio, o qual estabelece o Estado sob cuja jurisdição e regime regulatório irá se operar, definindo a bandeira da embarcação. A recessão econômica da década de 1970 intensificou a adesão dos operadores de navio aos chamados registros abertos, ou registros de conveniência, facilitando o emprego de tripulações multinacionais e desencadeando o desenvolvimento de um mercado de trabalho globalizado para os marinheiros. Com o registro aberto, os operadores de navio tornaram-se desobrigados dos compromissos previstos nos acordos nacionais em relação a remuneração, contratos e outras cláusulas, podendo, nas palavras de Sampson, “varrer o mundo” em busca de trabalho barato num esforço de redução de custos: “isso produziu um mercado de trabalho ‘livre de tudo’, onde os empregadores perseguem as fontes de trabalho mais baratas e buscam desenvolver vantagem competitiva via controle sobre os custos variáveis”. A situação que se estabeleceu, conforme a autora, é que hoje “os marinheiros podem ser recrutados de qualquer nação, por qualquer operador, de qualquer parte do mundo, para trabalhar a bordo de qualquer embarcação regida por qualquer bandeira”. No terceiro capítulo do livro, Sampson aborda essa questão a partir de entrevistas realizadas com operadores de navio e seus empregados, que revelam os diversos e complexos fatores intervenientes na decisão sobre a escolha da bandeira do navio, dentre os quais sobressai claramente a pressão constante pela redução de custos com tripulação. Vale mencionar, a título de ilustração, o trecho de uma entrevista que revela que a transferência de registro de um navio para a China resultou em uma redução de 50% no custo de pessoal, o que, segundo o empregado entrevistado, foi feito pelo operador para evitar o desmantelamento do navio diante do cenário imposto pela concorrência: “ou descartávamos o navio, devido ao preço de frete no mercado de navios cargueiros, ou tínhamos que encontrar outra maneira de tripulá-lo”.

Ao lado do registro aberto, e afinada a ele, outra mudança significativa que vem redesenhando o setor naval foi o surgimento das companhias de administração de navios, que assumem tarefas anteriormente da alçada do capitão ou do proprietário do navio. Nesse novo cenário, companhias de “navio único” operadas por seus donos tornaram-se economicamente inviáveis e incapazes de lidar com a complexidade da indústria naval contemporânea, tendo seu lugar ocupado por proprietários que ingressam no setor naval exclusivamente pelo interesse de investimento, sem expertise ou know-how no ramo e portanto não qualificados para a tarefa de operar embarcações cargueiras, necessitando recorrer aos serviços de administradoras.

Se tripulações multinacionais não são uma característica propriamente nova na navegação, os modos de recrutamento e contratação vigentes nesse início de século contrastam abertamente com aqueles típicos de meados do século XX. Predomina hoje o trabalho terceirizado, recrutado por agências intermediárias que substituíram o recrutamento direto de marinheiros, bem como o recrutamento baseado em recomendações pessoais. Com isso, o contato pessoal entre proprietários e suas tripulações é praticamente inexistente e muitas vezes não é nem mesmo possível para o marinheiro identificar de quem é o navio e, portanto, quem são seus empregadores. Essa situação afetou drasticamente o que Sampson chama de comprometimento dos operadores de navio para com as tripulações. Certo senso de lealdade (ou simplesmente responsabilidade) que possa ter existido outrora parece haver-se esvaído completamente. Na indústria globalizada de hoje, denuncia a autora, é nítido o desprezo dos operadores em relação ao bem-estar, saúde e segurança de suas tripulações, e são assustadoramente comuns nos registros oficiais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) casos de marinheiros deixados sem pagamento e abandonados quando um operador de navio se depara com problemas financeiros, chegando a situações-limite de não fornecimento de água e comida. Não raro os proprietários “desaparecem”, impedindo a responsabilização judicial.

Coincide com a emergência de novas práticas de recrutamento a tendência de piora do espaço físico das embarcações, como expressão da tendência geral de deterioração das condições de trabalho na navegação. Sampson detectou que os projetistas de navio têm priorizado os espaços relacionados diretamente com o transporte de cargas, reduzindo as áreas de acomodação e lazer dos marinheiros, que se mostram hoje em geral inferiores aos dos navios construídos na década de 19803 3 . Não se trata, contudo, de uma tendência absoluta, pois se tornou comum a projeção de suítes para todos os marinheiros, não mais obrigados a compartilhar banheiros e lavatórios. . O uso de placas de aço mais finas para baratear a construção das embarcações, por exemplo, tem como consequência – para os trabalhadores – o aumento do barulho e da vibração. Para a autora, a distância social objetiva que se estabeleceu entre proprietários de navio e trabalhadores do mar, tornando esses grandemente invisíveis aos operadores, é um fator importante nesse processo de indiferença em relação ao ambiente de vida e trabalho no mar.

Compondo um quadro dos impactos da globalização sobre o setor, Sampson traz ao leitor o emblemático caso de Hamburgo, outrora um pujante centro de navegação buscado por muitos marinheiros transmigrantes, hoje povoado de marinheiros empobrecidos e cronicamente desempregados, vivendo à base de benefícios, majoritariamente envoltos em uma nuvem de desolação, vítimas da segregação e do racismo. Nas décadas de 1960 e 1970 muitos imigrantes buscaram a Alemanha atraídos pelas condições de trabalho nas embarcações de bandeira germânica, com seu sistema de seguridade social que oferecia garantias ao trabalhador, nas palavras de um entrevistado, “quando estiver doente, quando tiver que ir a um hospital… quando ficar velho”, bem como nos períodos de espera por outra embarcação. No quarto capítulo do livro, a autora retrata o drama atual de marinheiros transmigrantes cuja situação de pobreza os leva a residirem na antológica “Pousada dos Marinheiros” em uma espécie de regime asilar, vivendo vidas isoladas e institucionalizadas, confinados ao convívio com uns poucos compatriotas em situação afim, com quem assistem a jogos de futebol, frequentam a igreja e eventualmente confraternizam. Desejando permanecer no território alemão para não perder a pensão que podem vir a pleitear pelo acumulado de anos de contribuição, ao mesmo tempo afetados pela drástica redução de oportunidades de trabalho no mar e sem permissão para contrair vínculo empregatício em terra, muitos se veem obrigados a “se virar”, o que significa enveredar pelas brechas do trabalho informal, tarefa na qual alguns se dão melhor, outros nem tanto – inclusive com diferenças entre grupos étnicos/nacionais, evidenciadas na comparação entre a experiência de marinheiros ganenses e cabo-verdenses na Alemanha atual. O retorno para a terra natal é uma perspectiva temerária para esses personagens de meia-idade, como evidencia um marinheiro entrevistado pela pesquisadora: “quando eles me mandarem para casa não sei o que farei para sustentar minha família… O que farei lá? Não há empresas que me empregariam… Eu não tenho um histórico.”.

Sampson explora, em suas entrevistas, o fenômeno do pertencimento, perscrutando onde está o coração de seus depoentes, onde se sentem em casa. Tendo realizado entrevistas em diferentes cidades europeias, como Hamburgo e Brake, no norte da Alemanha, e Roterdã, na Holanda, a autora é capaz de nos oferecer um quadro comparativo sobre a experiência da transmigração, demonstrando que, por diversas e complexas determinações, alguns grupos se afastaram mais de suas comunidades de origem, integrando-se mais firmemente na sociedade holandesa, enquanto outros, no norte da Alemanha, viviam uma existência notadamente marginal e precária, sentindo-se aprisionados a um território estranho, projetando seus sonhos e aspirações a outro espaço geográfico e psicossocial. Curiosamente, os dados colhidos pela pesquisadora abriram o questionamento sobre a própria caracterização de tais sujeitos como propriamente transmigrantes – dado que, a rigor, o conceito pressupõe o pertencimento concomitante a dois espaços sociais. O conceito de espaço estruturado se mostra especialmente relevante nessa discussão, aparecendo como variável estruturante da experiência da transnacionalidade primariamente o (não) direito ao trabalho em terra, bem como as (im)possibilidades de integração cultural na sociedade alemã.

A partir do quinto capítulo, Sampson dedica-se propriamente à vida a bordo. O quadro apresentado pela pesquisadora permite situar os marinheiros como um grupo vulnerável de trabalhadores, que vivem no local de trabalho, em espaços confinados e controlados, sem poderem ir para casa no final do expediente e sem acesso ao continente, submetidos à vigilância constante de seus superiores, sujeitos a constantes ameaças de demissão sumária e a “listas negras” por parte de agentes de recrutamento de suas terras natais, não raro por vinculação a atividade sindical.

A hierarquia e a priorização irrestrita do trabalho – em detrimento do descanso, sono, lazer e saúde dos marinheiros – são identificadas na pesquisa como características universais no mundo da navegação. O trabalho predomina sobre todas as experiências de vida a bordo. As horas extra são extremamente comuns e os marinheiros chegam a trabalhar vinte horas sem descanso – ou mais que isso em situações excepcionais, conforme testemunhado pela investigadora.

A posição hierárquica é o princípio organizador mais evidente a bordo, que transparece nas mais simples interações diárias: os marinheiros se referem aos colegas seniores pelo cargo (capitão, oficial, chefe), como sinal de deferência, enquanto aos de status inferior se referem pelo nome. A hierarquia define e limita os espaços que podem ser ocupados pelos marinheiros, tanto de modo físico quanto social, bem como o acesso aos recursos no navio. Oficiais podem utilizar o refeitório dos marujos quando não desejam se aprumar para o jantar, mas o inverso é invariavelmente interditado. As acomodações nas partes mais altas do convés são via de regra ocupadas por oficiais seniores, e, na medida em que se desce para níveis mais baixos do navio, desce também o status hierárquico dos ocupantes. A diferença na qualidade da alimentação oferecida é gritante: queijos, frutas, biscoitos e sobremesas para os oficiais, contrastando com mesas “que mal têm café” para os marujos.

O espaço social a bordo é estruturado num cenário de confinamento e isolamento do resto do mundo em que normas legais de qualquer ordem têm pouco ou nenhum efeito. O capitão ocupa posição marcadamente dominante no navio, controlando os arranjos vitais a bordo, exercendo influência também sobre o tempo livre dos trabalhadores, incluindo a realização de competições e festas: “nada de natureza pública acontece a bordo de um navio sem o consentimento do capitão e os navios são espaços onde pouco de natureza privada pode acontecer”. Toda a vida a bordo acaba sendo determinada pela atitude do capitão, o que forja um fosso entre oficiais e o restante da tripulação, abrindo brechas para um tratamento por vezes infantilizado dos marujos, e mesmo para o abuso sistemático contra estes. Sampson relata no livro diferentes estilos pessoais de dominação exercida por capitães – tirânico, colaborativo, paternalista, desinteressado –, examinando suas consequências para a dinâmica dos processos grupais que se produzem a bordo.

Se o capitão é a figura de autoridade absoluta no navio, estendida secundariamente ao corpo de oficiais, os cargos técnicos também conferem autoridade a seus ocupantes, e fatores como a idade e a experiência, que, percebidas como mérito, são valorizadas e respeitadas, influenciam e medeiam os arranjos hierárquicos na embarcação. Sampson destaca ainda o quanto o fator nacionalidade interfere de modo importante nessa delimitação, demonstrando que, nos barcos pesquisados, nacionalidade e hierarquia interagiam de forma a reconfigurar os espaços a bordo: as distinções hierárquicas se amalgamavam às distinções de nacionalidade – cuja vivência era com frequência atravessada por preconceitos, estereótipos, hostilidade, rivalidade e ressentimentos –, aprofundando cisões.

Quando os oficiais são de uma nacionalidade e os subalternos de outra, situação bastante típica na navegação, os entrecruzamentos entre origem étnico-nacional e hierarquia nem sempre são evidenciados. Mormente interessante se mostra, nesse sentido, a configuração em uma das embarcações acompanhadas por Sampson, composta por tripulação majoritariamente filipina, oficiais seniores suecos e oficiais juniores filipinos. A autora observou que os oficiais juniores filipinos eram excluídos dos espaços comuns designados aos oficiais e lhes eram interditados o uso de computadores e o acesso a treinamentos a bordo, impactando negativamente inclusive em suas possibilidades de progressão na carreira, como atesta trecho do diário de campo da pesquisadora: “no navio, o acesso aos terminais de computação é inteiramente cindido por linhas étnicas, não se relacionando à posição hierárquica”. Em suma, os oficiais juniores filipinos foram relegados a uma espécie de limbo social, excluídos do corpo principal de oficiais e ao mesmo tempo socialmente separados dos marujos de mesma nacionalidade, o que demonstra que a posição hierárquica pode atuar como barreira entre as nacionalidades também entre iguais. Em outra situação relatada no livro, um marujo indiano tinha permissão para partilhar da comida dos oficiais indianos, conquanto permanecesse à mesa com seus pares hierárquicos filipinos. Nessa complexa imbricação de determinações, a autora identifica que a introdução de tripulações de nacionalidade mista na indústria naval não enfraqueceu a hierarquia; ao contrário, parece tê-la fortalecido: segundo a percepção dos depoentes, diferentes nacionalidades fazem com que as pessoas se submetam mais facilmente à hierarquia, pois a condição de compatriota é geradora de um senso de igualdade que ameaça a distância profissional e social e abala o princípio de obediência. Tripulações de nacionalidade mista são consideradas menos propensas a tensões e, consequentemente, a situações de eclosão de violência, dado que aparece no relato de um cozinheiro entrevistado por Sampson, que conta que “facas e objetos são arremessados” em navios de nacionalidade única, em contraste com o ambiente pacífico em navios com múltiplas nacionalidades.

O livro de Sampson convida o leitor a uma imersão no dia a dia do navio, que oscila entre momentos pacíficos e agradáveis, repletos de brincadeiras e conversas amenas, e momentos cheios de tensão e estresse. A obra permite compreender que a estrutura do espaço social habitado pelo marinheiro favorece o estabelecimento de interações superficiais e impõe obstáculos à formação de vínculos significativos a bordo. Em agrupamentos de trabalhadores migrantes que se podem juntar temporariamente a bordo de navios para uma única viagem e que são às vezes empregados de contrato em contrato por diferentes operadoras de navio, amizades duradouras nascidas a bordo são exceções. Os registros em diário de campo da autora revelam que a conversação cotidiana é em geral limitada a um conjunto de temas genéricos e superficiais como sexo, problemas da companhia operadora e contação de estórias (da infância ou da vida laboral pregressa). A vida familiar nas comunidades de origem é um tema tabu, havendo um entendimento tácito entre os marinheiros de que não se devem inquirir a esse respeito, como mecanismo sociopsíquico de proteção contra o sofrimento da separação. O tédio é também um sentimento que parece acometer os marinheiros e ameaçar seu equilíbrio emocional: depoentes se ressentem de que “não acontece muita coisa no navio”, de que “não há muito o que contar” nas comunicações com os familiares.

Já a caminho da conclusão da exposição da pesquisa realizada, o oitavo capítulo apresenta a incursão de Sampson em Mumbai e Goa, na Índia, em busca dos impactos da migração dos marinheiros para os pormenores da vida familiar, transportando o leitor a um novo território geográfico e psicossocial. Duas questões podem ser destacadas da análise a respeito da relação dos marinheiros com suas famílias que permanecem em terra. A primeira refere-se à “grande ausência do parceiro homem [que] dá margem a mudanças de comportamento entre as mulheres em terra, que frequentemente não têm escolha a não ser aprender a se virar sozinhas”, o que envolve administrar as finanças, lidar com elétrica e encanamentos, negociar com gerentes de banco e toda uma sorte de funções tradicionalmente masculinas. Isso concorre para o afastamento da conduta feminina dos padrões de gênero tradicionais, o que elicia pressões da comunidade e do próprio marido sobre a mulher nos períodos de retorno. A segunda questão é o contato com valores culturais estrangeiros proporcionado pela experiência da transmigração. Por paradoxal que possa parecer, as entrevistas de Sampson indicam que o contato com normas de gênero de outras culturas tornava por vezes os marinheiros mais propensos a demandar de suas esposas uma observância rígida do papel tradicional de mulher na Índia. A hipótese da pesquisadora é que “a exposição a visões alternativas acerca do ‘lugar’ a ser ocupado pelas mulheres pode ser experienciada como ameaça por alguns homens que trabalham duramente para manter os valores conservadores em suas residências”4 4 . Exceções foram detectadas, em especial nas famílias de oficiais indianos, que têm a oportunidade de levar suas mulheres a bordo, o que se mostrou uma experiência de ampliação de perspectivas de vida e comportamento. .

As observações etnográficas, aliadas às entrevistas com mulheres indianas, deixam claro que, de modo geral, as relações em terra se ressentem da distância por longos períodos, tornando o retorno do marinheiro a casa um período que exige readaptação e ajustes, ou certo “malabarismo”, como se pode notar pelo depoimento de uma esposa: “eu estou tão acostumada a fazer as coisas sozinha que, às vezes, me esqueço que ele está por aqui e que pode fazer as coisas”. Vale notar que, durante o período em que estão em alto-mar, as esposas não podem nem mesmo deixar seus cônjuges a par de certos problemas e acontecimentos que poderiam deixá-los perturbados e ansiosos diante da impotência imposta pela distância física. Assim, no retorno a casa, não é raro que o homem se sinta uma presença desimportante ou inútil, por vezes um estorvo, experienciando um sentimento de marginalização. Quando os marinheiros voltam ao mar, suas mulheres ao mesmo tempo se lamentam e se sentem aliviadas, embora não o declarem abertamente. A mesma esposa que abordara a dificuldade de se reajustar à presença do marido dirá que: “então eles se vão e você se sente sem chão… é legal quando ele está por perto e você pode depender dele”. De modo sensível e perspicaz, Sampson consegue captar o drama vivido por esses homens e mulheres, desvelando suas dualidades e dilemas.

Se parte da literatura, conforme adverte a autora, retrata o transnacionalismo como emancipatório, esse livro desvela suas contradições, limites, nuances e, com efeito, sua face sombria na indústria naval. A aura sedutora e romântica em que por vezes se faz envolta a possibilidade de se estar presente simultaneamente em mais de um mundo social é desconstruída quando Sampson nos apresenta a vida concreta dos marinheiros, sujeitos ao risco de se tornarem ausentes, podendo converter-se em presença espectral tanto em sua comunidade de origem quanto na comunidade anfitriã. A distância, a vigilância, os abusos de poder, as experiências de exclusão e rebaixamento, o preconceito, o medo, o tédio, o labor extenuante, a saudade, a ambiguidade no retorno: a vida de carne e osso de uma importante categoria de trabalhadores atuantes na esfera da circulação capitalista é mote para a abordagem crítica e sensível de questões universais da vida social contemporânea. Por meio de tal abordagem, a autora contribui para desnudar alguns dos fetichismos em torno da assim chamada globalização, evidenciando que o movimento de abertura global não é essencialmente includente, denunciando suas consequências para a vida das pessoas, e aclarando o labor oculto que movimenta as cargas comerciais no fluxo de mercadorias que oxigena o capitalismo global.

Referências Bibliográficas

  • Burawoy, Michael. (1979), Manufacturing consent: changes in the labor process under monopoly capitalism. Chicago, University of Chicago Press.
  • Beynon, Huw. (1995), Trabalhando para Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. São Paulo, Paz e Terra.
  • Nichols, Theo & Beynon, Huw. (1977), Living with capitalism: class relations and the modern factory. Londres, Routledge & Kegan Paul.
  • Roy, Donald. (1959), “‘Banana Time’: job satisfaction and informal interaction”. Human Organization, (4): 158-168.
  • Linhart, Robert. (1980), Greve na fábrica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.
  • 1
    . Prêmio anual organizado pelo programa Thinking Allowed da rádio BBC 4, em parceria com a Associação Britânica de Sociologia, enaltecendo estudos que representem contribuição significativa para a análise em profundidade da vida cotidiana de uma cultura ou subcultura. Para a lista dos trabalhos premiados, ver www.bbc.co.uk.
  • 2
    . A tradução está sendo realizada por Fernando Ramalho Martins e revisada por Juliana Campregher Pasqualini, ambos autores desta resenha, com revisão técnica do professor Rodrigo Santos, para publicação pela Editora da Unicamp.
  • 3
    . Não se trata, contudo, de uma tendência absoluta, pois se tornou comum a projeção de suítes para todos os marinheiros, não mais obrigados a compartilhar banheiros e lavatórios.
  • 4
    . Exceções foram detectadas, em especial nas famílias de oficiais indianos, que têm a oportunidade de levar suas mulheres a bordo, o que se mostrou uma experiência de ampliação de perspectivas de vida e comportamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2017
  • Aceito
    20 Out 2017
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