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Dios nos salve de las ciencias sociales: Os relatórios de Ernesto Quesada e o debate sobre as humanidades nas universidades argentinas

God save us from social sciences: the reports by Ernesto Quesada and the debate about humanities in Argentine universities

Resumo

A partir da análise de três relatórios elaborados pelo professor Ernesto Quesada, este artigo almeja refletir acerca das tensões entre os principais projetos intelectuais em debate na Argentina das primeiras décadas do século XX: as análises de orientação positivista (reivindicando, duplamente, uma aposta teórica e uma visão de organização universitária) e aquelas ligadas à preservação de uma “cultura do espírito”, conectada aos discursos fundacionais do campo universitário argentino. Observou-se que, através da análise dos relatórios, é possível capturar uma dimensão do debate que ultrapassa as contendas teóricas e aciona a necessidade de reflexão acerca das disputas disciplinares no campo universitário.

Palavras-chave:
História intelectual; Sociologia Argentina; Ernesto Quesada; Positivismo; Campo universitário

Abstract

From the analysis of three reports prepared by professor Ernesto Quesada, this article aims to reflect about the tensions between the most important intellectual projects in debate in Argentina in the first decades of the twentieth century: the positivist orientation (doubly claiming a theoretical and university´s organization vision) and those likened to the preservation of a “culture of the spirit” (connected to the foundational discourses of the Argentine university field). It was observed that, through the analysis of the reports, it is possible to capture a dimension of the debate that goes beyond the theoretical contentions and triggers the need for reflection on the disciplinary disputes in the university field.

Keywords:
Intellectual History; Argentine Sociology; Ernesto Quesada; Positivism; University Field

Outrora o poeta considerava-se como um profeta, era honroso; depois tornou-se pária e maldito, o que ainda era aceitável. Mas hoje caiu no grupo dos especialistas, e não é sem certo mal-estar que menciona, nos registros de hotel, a profissão “homem de letras” a seguir do nome. JEAN-PAUL SARTRE, Le temps modernes.

No campo científico, é absolutamente certo que carece de “personalidade” quem entra em cena como “empresário” da causa a que se deveria consagrar, ou tenta legitimar-se mediante a sua “vivência” e continuamente pergunta: Como demonstrarei que sou algo mais do que um simples “especialista”? MAX WEBER, “A ciência como vocação”.

A proposta deste artigo é, com base nos relatórios de observação de universidades francesas (1906), alemãs (1910) e inglesas (1912) feitos por Ernesto Quesada1 1 Ernesto Quesada ocupou, além de outros cargos centrais da gestão universitária argentina, a cadeira de Sociologia na Facultad de Derecho y Ciencias Sociales da Universidad de Buenos Aires e, a partir de 1904-1905, na Facultad de Filosofia y Letras da mesma universidade, onde leciona até 1912. , abordar os debates acerca da conformação do espaço das humanidades no campo intelectual argentino, por meio de um corpo de procedimentos que conjuga a análise documental com a inserção desse conjunto de fontes num quadro amplo de disputas pela delimitação de um espaço de fala específico para os intelectuais frente à política durante as primeiras décadas do século XX na Argentina. Os relatórios nos quais embaso a análise foram encomendados pelos reitores das universidades de La Plata (no caso alemão) e Buenos Aires e pretendiam, conforme exposto nas requisições dos documentos, ajudar a elaborar o currículo e os planos de ensino dos cursos de história, direito e filosofia, bem como matizar as discussões sobre o funcionamento das cátedras e os exames de rendimento universitário.

Parto da hipótese de que é possível localizar, nas disputas do campo intelectual argentino do começo do século XX, um conflito de projetos intelectuais, para além das desavenças teóricas entre positivistas e seus críticos. A historiografia sobre a produção e a circulação das ideias engloba uma série de correntes interpretativas, desde aquelas informadas pela história política renovada (Remond, 1996REMOND, R. (org.). (1996), Por uma história política. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ/Fundação Getúlio Vargas.), passando pelas abordagens da histoire croisée2 2 É possível consultar, exemplarmente, Werner e Zimmerman (2003, pp. 7-36). , até as inspiradas no diálogo com os linguistas ingleses, que ganharam forma a partir dos aportes de Pocock (2003POCOCK, J. G. (2003), Linguagens do ideário político. São Paulo, Edusp.), Skinner (2000SKINNER, Quentin. (2000), “Significado y comprensión en la historia de las ideas”. Prismas: Revista de Historia Intelectual, 4: 149-191.) e, em nível continental, Reinhardt Koselleck (2006KOSELLECK, R. (2006), Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, UFRJ/Contraponto.). No entrecruzamento dessas vertentes, como salienta Altamirano (2007 ALTAMIRANO, Carlos. (2007), “Ideias para um programa de história intelectual”. Trad. Norberto Guarniello. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, 19 (1): 9-17. Disponível em Disponível em http://ref.scielo.org/3f3vtb , consultado em 15/11/2017.
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), a história intelectual aparece como possibilidade de considerar a materialidade das ideias e de seus sistemas de circulação. A aproximação com a abordagem bourdiesiana, no caso deste artigo, supõe uma desconfiança em relação ao potencial autoexplicativo das ideias. Aposta, por outro lado, na importância de considerar as práticas que circunscrevem os sistemas de pensamento, o que possibilita que a análise se descole de uma perspectiva imanente e traga as tensões da recepção e ressignificação das ideias para a linha de frente da análise. Essa opção metodológica envolve, ainda, uma leitura atenta dos processos de institucionalização das disciplinas acadêmicas, no caso a sociologia, na medida em que supõe que a formalização da atividade de pesquisa sociológica circunscreve a própria possiblidade de circulação das ideias produzidas e veiculadas por determinados projetos intelectuais3 3 Sobre a institucionalização da sociologia na Argentina é possível consultar, por exemplo, a análise recentemente publicada por Blanco e Jackson (2014). Muito embora a bibliografia sobre o tema seja relativamente extensa, o diferencial comparativo da abordagem dos autores permite compreender o panorama continental dos processos de institucionalização, bem como as disputas no campo intelectual que envolveram os praticantes mais antigos dos “debates sobre o mundo social”, como jornalistas e ensaístas. .

Posto esse debate, portanto, este artigo aposta na ideia de projetos intelectuais como categoria viabilizadora de uma análise que não se restringe ao sentido conferido às ideias por sua própria significação imanente. Por projetos intelectuais almejo circunscrever uma análise que leve em conta três dimensões concomitantes: (a) uma dimensão propriamente teórica, referente aos conteúdos e dispositivos valorativos de determinada corrente de pensamento; (b) uma dimensão institucional das disputas, que envolve a relação de autonomia variável do mundo intelectual com relação à política e, internamente, às tensões disciplinares no campo universitário; e (c) uma dimensão autorreferencial, ou seja, relativa aos combates pelo significado e alcance do papel do intelectual que emerge das duas dimensões iniciais e que incide, diretamente, sobre um tipo de autoimagem intelectual e sobre os contornos desejáveis da função de “cientista” que advém de uma ou outra aposta teórica, circunscrevendo dessa forma as tomadas de posição teórica. Considero que, com base nessas três dimensões pensadas em conjunto, é possível entender as dinâmicas de produção, recepção e significação das posições que Ernesto Quesada expressa nos relatórios. Sinteticamente, trata-se de matizar, a partir do recorte argentino, a asserção de Florestan Fernandes de que “ao importar novos padrões de produção e de avaliação do saber, importamos também novos padrões de organização da personalidade do sábio” (1979FERNANDES, F. (1979), A universidade brasileira: reforma ou revolução? 2. ed. São Paulo, Alfa-Omega., p. 32), processo que não pode ser dissociado da estruturação institucional das universidades e da relação de heteronomia variável que essas mantêm com a esfera privada de produção da cultura.

Central nessa discussão é a posição ambígua da elite que frequentava a universidade nesse contexto, especialmente em Buenos Aires: por um lado, encontrava-se diante da necessidade de resguardar uma distinção estatutária frente às demandas dos filhos da primeira geração de imigrantes que começavam, já então, a adentrar no sistema de ensino; por outro lado, impunha-se a necessidade de repensar as limitações sistêmicas de um conjunto universitário que, tendo até então operado como local de sociabilização das elites autóctones, ganhava, já na década de 1910, um verniz profissionalizante, que seus críticos costumavam entender nos termos de uma “mera fábrica de diplomas”, destituída, nesse sentido, de um prestígio intelectual específico. O movimento da Reforma de Córdoba, em 1918, será a pedra de toque dessas tensões que, no entanto, já estavam postas na década anterior, contexto de elaboração e recepção dos relatórios de Quesada.

Dessa forma, pretendo propor, neste artigo, uma perspectiva oposta àquela que localiza, na constituição de um espaço para as humanidades no mundo intelectual argentino, um relativo consenso institucional, fissurado apenas em termos teórico-programáticos pelos debates entre positivistas e antipositivistas4 4 Exemplo dessa perspectiva encontra-se em González, 2000. . Um dado relevante para dimensionar esse consenso é a origem social da camada de letrados que, nesse contexto, protagoniza os debates. É possível consultar nas obras de Bruno (2009BRUNO, P. (2009), “La vida literaria porteña entre el 1860 y el fin de siglo”. Anuario IEHS, 24: 339-368.), Buchbinder (2012BUCHBINDER, P. (2012), Los Quesada: letras, ciencia y política en Argentina, 1850-1934. Buenos Aires, Edhasa.), Caldelari e Funes (1998CALDELARI, M. & FUNES, P. (1998), Escenas reformistas de la reforma universitaria 1918-1930. Buenos Aires, Eudeba.), González (2011GONZÁLEZ, G. P. (2011), “Razones del positivismo y el antipositivismo sui géneris en América Latina”. Cuadernos Americanos, 137 (3): 125-149.) e Miceli (2014) uma análise mais detalhada acerca da biografia dos contendentes, bem como de suas ligações familiares. No entanto, é possível ressaltar, de modo genérico, que tais relações familiares são um dado estruturante do mundo cultural portenho. As famílias das primeiras ondas imigratórias, estabelecidas principalmente em Buenos Aires, encontram-se razoavelmente bem integradas - ao menos socialmente - na estrutura da classe média portenha. Embora nos anos de 1940, como salienta Gino Germani, um novo fluxo imigratório reconfigure algumas dessas adesões, a virada do século é marcada por um crescimento da vida urbana em Buenos Aires e pela abertura de possibilidades ocupacionais e políticas para esses imigrantes de segunda geração. Essa configuração permite, ainda, localizar os positivistas (como José Ingenieros e Carlos O. Bunge, por exemplo) como membros dessa classe média ascendente, que partilha de alguns acessos à cultura com as elites criollas mas que tem sua plena integração vedada, em termos culturais, por esses grupos mais tradicionais. Os nomes de proa da corrente espiritualista são, como ficará demonstrado ao longo do artigo, vinculados às antigas famílias estabelecidas em Buenos Aires que, tanto cultural quanto politicamente, encontram-se, nas primeiras décadas do século XX, diante da necessidade de refundar as fronteiras de distinção social ameaçadas pelo acesso maciço dos imigrantes aos meios de cultura. Assim, se as elites tradicionais continuam dominando, com sua ampla rede de solidariedade familiar (em instituições como o Jockey Club e o Ateneo), a vida cultural portenha, não é um dado menor o fato de que o acesso dos jovens letrados de classe média às instituições culturais promova uma comunhão de expectativas e, em alguma medida, de hábitos compartilhados entre grupos teoricamente divergentes sem, contudo, equipararem-se em termos de prestígio temporal no campo cultural de Buenos Aires.

O próprio Ernesto Quesada encontra-se, se levarmos em conta sua trajetória bibliográfica, numa zona híbrida entre ambas as tendências. É a partir dessa condição, inclusive, que a reivindicação de uma universidade moderna e profissional que ele elabora nos documentos pode ser dimensionada: dificilmente seus reclamos seriam capturáveis por ortodoxias de uma ou outra vertente, mas caminhamos em território mais firme se o alocamos, precisamente, nessa intersecção entre disputas teóricas e disputas por projetos institucionais de organização da ciência, trazendo a tensão para a linha de frente da análise.

Para tanto, pretendo sustentar, analisando as problemáticas levantadas pelos relatórios de Quesada, que os estilos de pensamento5 5 Karl Mannheim, em “Conservative thought” (1971b), delimita o uso da categoria de “estilo de pensamento”, valendo-se de uma comparação com a ideia de “estilo” na história da arte, qual seja, a existência de uma matriz identificável que perpassa as apostas de autores individuais. Opondo-se assim tanto à proposta de que o pensamento de uma época possa ser analisável isoladamente, a partir de um indivíduo específico, quanto à relação mecânica entre contexto e produção intelectual, Mannheim sugere capturar a pauta comum das ideias de determinada conjuntura com base na análise dos grupos portadores desse “estilo”, circunscrevendo assim sua intenção básica, por meio da qual eles expressam “a ideia de que diferentes modos de abordagem do mundo são, em última análise, baseados em diferentes modos de pensá-lo. Essa unidade básica determina o caráter de um estilo de pensamento” (Mannheim, 1971a, pp. 223-261). predominantes numa época ou em outra estão necessariamente relacionados com determinado modo de produzir e conceber o conhecimento, modo esse que esteve vinculado, no recorte que me proponho observar, às experiências e demandas dos grupos sociais que estiveram na proa do processo de organização universitária na Argentina do começo do século XX. A proposta é capturar, dessa forma, a interface política do discurso do “saber puro”, especialmente evidente no contexto em que a Argentina passa por transformações culturais profundas e o próprio papel do intelectual naquela sociedade é alvo de debates os mais diversos.

A analogia com a famosa conferência de Weber publicada em 1919 não pretende, evidentemente, transformar Quesada num profeta do pensador alemão. Pelo contrário, procura indicar um aspecto fundamental que perpassa as discussões sobre a universidade alemã e que constitui precisamente a experiência social a partir da qual Quesada escreve: o debate sobre como defender a profissão de cientista (inclusive no campo das humanidades) como uma produtiva autolimitação ascética que pudesse resguardá-la (a ciência) dos francos ataques que estava recebendo, no âmbito mundial, nas primeiras décadas do século XX. Trata-se, em suma, de discutir a possibilidade de combinar uma bildung (ideia de formação, tão cara aos debates argentinos do contexto que me proponho abordar) com o inevitável processo de profissionalização e especialização universitária, que é também um dos pontos sensíveis do debate entre positivistas e antipositivistas argentinos, grupos que polarizavam então os debates sobre a relação entre os homens de letras e a política e, ao mesmo tempo, protagonizavam esse vínculo. O uso do termo, portanto, reitera a hipótese de que as formulações teóricas emergem, sempre, atreladas a um determinado modo de produzir e de conceber a produção do saber.

As primeiras décadas do século XX são marcadas por uma série de mudanças estruturais na sociedade argentina, irradiadas de Buenos Aires6 6 Entre 1869 e 1970, a população de Buenos Aires cresceu treze vezes, e a densidade passou de 0,62 h/km para 8,4 h/km. Buenos Aires em 1947 tinha 0,07% da área do país e 46% da população. Porcentagem de estrangeiros: em 1869 eram 13,8%, em 1914 eram 42,7%. Entre 1857 e 1957 chegaram pelo porto de Buenos Aires 4,5 milhões de imigrantes. Dados compilados por Vasquez-Rial, 1966. . O afluxo de imigrantes, a lei Saenz Pena, de 1912 (sufrágio masculino), e o crescimento vertiginoso da vida urbana, especialmente na capital, constituem o panorama social da circulação do famoso “discurso de crise”7 7 Carlos Altamirano em “Um mundo em crise” (2009) mapeia a circulação desse discurso até a década de 1930, com destaque para o que chama de “fator Ortega”, ou seja, a ampla reverberação das defesas de uma reação generacional à decadência. Nesse sentido, é um dado importante que o prefaciador da obra de Spengler, um dos grandes informantes do “discurso de crise” na Argentina, foi, precisamente, Ortega. . A leitura positivista, em termos sucintos, partia de uma hipótese que passava pela aceleração do processo de desenvolvimento visando à superação do estágio anômico que seu entretempo gerava. Por sua vez, as leituras espiritualistas, numa chave arielista, concentravam suas propostas na recuperação de alguns elementos de vínculo comunitário que, segundo eles, haviam sido deixados para trás ao longo do processo de modernização. Sustentar-se-á que para além de uma confluência temática há, ainda, uma coincidência social entre as duas propostas: a ideia de que só uma elite letrada, ungida por distinções natas e socializada num determinado modo de vida de cultivo do espírito, seria capaz de, via sistema de ensino, domar essas “forças telúricas” - para usar a expressão de Lugones - que tomavam as ruas de Buenos Aires.

Considero, ainda, que a discussão sobre as tensões entre a produção científica e a política foi parte constitutiva das celeumas que orientaram as reflexões mundiais sobre o tema a partir da virada do século XIX. A conferência de Max Weber acerca da Ciência como vocação é o debate mais canônico de uma discussão que mobilizou uma geração de intelectuais no começo do século XX (Lepenies, 1996LEPENIES, W. (1996), As três culturas. São Paulo, Edusp.). Nos termos weberianos, o irreversível processo de intelectualização do mundo e seu correlato desencantamento não poderiam, ao custo de sacrificar a tradição da universidade alemã, redundar na discricionariedade valorativa que transformaria, se consumada, professores em propagandistas, ferindo assim o âmago da própria função destes. Essa é a discussão matricial de Ernesto Quesada: é a problemática que atravessa seus relatórios e embasa seus pareceres.

Dificilmente seria possível superestimar o papel de Quesada nessas discussões, tanto por sua vinculação institucional e seu círculo familiar, quanto pela sua inserção específica nos debates sobre a questão universitária. Ernesto Quesada era filho de Vicente Quesada, homem de cultura que trabalhou, entre outras funções, como diplomata, e participou, a partir de sua posição enquanto membro de um setor ilustrado das famílias criollas tradicionais, da reivindicação de um campo de possibilidades para o intelectual na Argentina. Representante desse setor consolidado da sociedade portenha, a família Quesada esteve próxima, desde o início do xix, desse setor ilustrado da elite criolla. Vicente proporcionou ao filho uma educação rebuscada na Europa (Ernesto estudou na França e na Alemanha), convencido de que “os elementos distintivos de uma autêntica elite estavam então no conhecimento e, consequentemente, a aquisição de uma sólida formação intelectual era um impulso de primeira ordem na consolidação do status social” (Buchbinder, 2012BUCHBINDER, P. (2012), Los Quesada: letras, ciencia y política en Argentina, 1850-1934. Buenos Aires, Edhasa., p. 65).

Como pesquisador e historiador, Ernesto Quesada publicou uma série de artigos e um famoso livro sobre Rosas8 8 La época de Rosas: su verdadero carácter histórico, publicada em 1898, é a obra mais conhecida de Quesada, que, segundo analistas como Terán (2008) e Buchbinder (2012), inaugurou uma tradição que terá seu ápice duas décadas depois com Leopoldo Lugones: a revisão da era Rosas e a revalorização de seu legado para a formação da cultura argentina. , além de uma série de relatos de viagens e trabalhos de crítica literária (inserido também no famoso debate sobre o criollismo). Interessa abordar neste momento, no entanto, seus relatórios técnicos, que fornecem indicativos acerca de sua função como organizador e mediador do campo das letras argentino. Além da já mencionada cátedra de Sociologia na Facultad de Derecho y Ciencias Sociales e na Facultad de Filosofia y Letras (doravante FFYL) da Universidade de Buenos Aires, ele ocupou também outros cargos-chave no sistema universitário do começo do século: foi professor de economia política na recentemente fundada universidade de La Plata, atuou como conselheiro e interventor da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires no contexto da reforma de 1918 e foi também vice decano da FFYL. É durante seu período de maior atividade institucional que Quesada produz os três relatórios que analiso em seguida: sobre a Faculdade de Direito de Paris, de 1906, sobre 22 universidades alemãs, de 1910, e sobre o sistema de avaliação da Universidade de Londres, publicado em 1912 mas redigido três anos antes. Para que o impacto dos informes e sua circulação no mundo universitário argentino possam ser considerados, abordarei os relatórios em ordem de publicação.

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De uma missão confiada a Quesada por Juan Garro, decano da Universidade de Buenos Aires, resulta, em 1906, a publicação La Facultad de Derecho de Paris: estado actual de su enseñanza, pela Imprenta y Casa Editora de Coni. A parte inicial do relatório é dedicada a uma recapitulação histórica do sistema universitário francês. Retomando a situação anterior a 1789, Quesada destaca a existência de muitas escolas de direito, fragmentadas e herméticas, desorganização que gerava, em sua análise, o fenômeno de que “os títulos acadêmicos eram considerados uma mera formalidade e haviam adquirido uma tal reputação de facilidade que caíam no ridículo” (1906QUESADA, E. (1906). La crisis universitaria (discurso na colação de grau da Faculdade de Direito da UBA. Buenos Aires, Librería de J. Menéndez., p. 8), apesar de revestidos de certa importância performática9 9 Langlois, em Cuestions d’histoire et d’enseignement, promove uma síntese da evolução do ensino francês, partindo do pressuposto de que a ideia de universidade como “ensino universal” não é necessariamente o oposto de ensino especializado. Embora seja um texto crítico ao estado do ensino francês na virada do século, ele registra, sobre as universidades alemãs, que “elas se organizaram, no início, sob influência do protótipo parisiense, numa época em que o triunfo do sistema colegial havia alterado profundamente as características desse protótipo [de instituição]” (1902, p. 10). No mesmo sentido a obra de Durkheim (1918) destaca os fatores positivos dessa fragmentação, contrastando, assim como Langlois, com a análise de Quesada. . Sucintamente, Quesada sustenta que, apesar dessas tentativas, o século XIX é marcado todo ele por um modelo técnico, composto por aulas que serviam unicamente como preparação para os exames. Conclui seu panorama histórico de forma contundente ao afirmar que, até 1870, “a educação superior na França havia sido medíocre” (1906QUESADA, E. (1906). La crisis universitaria (discurso na colação de grau da Faculdade de Direito da UBA. Buenos Aires, Librería de J. Menéndez., p. 55).

Para que a crítica de Quesada ao modelo francês possa ser melhor dimensionada é preciso ter em conta que a estruturação do sistema universitário argentino, e latino-americano de forma geral, foi projetada à luz desse modelo napoleônico que, em síntese, é descrito por Durkheim como um projeto no qual “as diferentes ciências não eram senão instrumentos profissionais e é somente a esse título que lhes era designado um lugar no ensino superior” (Durkheim, 1918DURKHEIM, E. (1918), La vie universitaire à Paris. Paris, Armand Colin., p. 15). Tunnerman (1981TUNNERMANN, C. (1981), Ensayos sobre la universidad latinoamericana. San José, Editorial Universitaria Centroamericana. ) destaca, por outro lado, que o caso argentino carrega ainda uma tensão subjacente: a influência do neotomismo e do conservadorismo espanhol acabou confinando as experiências universitárias do país a um discurso escolástico, refratário à introdução de métodos experimentais, o que teria redundado numa tradição de “ensino livresco”. Dessa forma, sustenta, criou-se um sistema universitário que operou historicamente como um conjunto de escolas professorais carentes de um núcleo aglutinador, burocratizado, sujeito à tutela governamental e, de um ponto de vista teórico, extremamente conservador e heterônomo em relação à Igreja e, posteriormente, ao Estado, o que fez com que as atividades de investigação migrassem para as academias e centros privados de produção da cultura10 10 Além de Tunnerman é possível recuperar, nesse debate sobre a universidade latino-americana, as leituras de Florestan Fernandes (1979), Darcy Ribeiro (1978), José Gaos e Echavarría (1999). .

A dificuldade de abandonar os modelos “livrescos” de ensino, sugere Quesada, tem a ver com uma resistência do próprio corpo docente mais tradicional, que também obteve seu espaço na universidade a partir de um modelo não profissionalizado de recrutamento (nesse sentido, parece natural que se tome em conta a aporia de Bourdieu de que os eleitos costumam eleger, para garantir sua própria reprodução, os critérios de eleição que os elegeram). No caso de Paris, apesar de a direção dessas mudanças apontar, já em meados da década de 1910, para uma germanização das instituições, para Quesada, o sistema universitário francês segue sendo, ainda, um lugar de preparação para exames, “por isso, sem dúvida, é tão radicalmente diferente a atmosfera intelectual que se respira em qualquer universidade alemã comparada com a que impera nas aulas universitárias francesas, pelo menos na Faculdade de Direito” (p. 166).

Lembra-se Quesada, de Leipzig, “diante de 400 a 500 estudantes, ávidos por escutá-lo, reinando um silêncio religioso e assistindo o velho sábio expor sua conferência com um ardor e um zelo contagiosos […] via-se formar, a cada dia, por assim dizer, a própria ciência que se estudava, tão intensamente pleno era aquele curso” (1906QUESADA, E. (1906). La crisis universitaria (discurso na colação de grau da Faculdade de Direito da UBA. Buenos Aires, Librería de J. Menéndez., p. 174). A interferência do estado nas avaliações, argumenta, também impede que o professor possa ir além do essencialmente protocolar. Sua descrição sobre os exames parisienses é sintomática nesse sentido: “Os exames parciais e anuais não são senão provas de memorização, ao passo que no sistema alemão são a pedra de toque para obter um título acadêmico” (Idem, p. 230). Muitos professores mais modernos pleiteiam, no entanto, um regime de autonomia tal como há na Alemanha, “onde a ingerência do ministro é mais moral do que real e cada Faculdade governa, com exclusividade, seus planos de estudos” (Idem, p. 253) e onde o Estado deve estar, pois, afastado da ciência pura: “isso é, de forma cabal, o que se passa na Alemanha e esse é o segredo da vida fecunda e vigorosa de suas várias universidades e da influência decisiva destas no desenvolvimento intelectual do país” (Idem, p. 261).

O teor do relatório parisiense de Quesada pode ser melhor dimensionado se confrontado com o relatório que fez sobre a Alemanha, a pedido da então recém-fundada Universidade de La Plata, publicado com o título La Enseñanza de la História en las Universidades Alemanas. Quesada anota, na Advertência do relatório, que a investigação provém de uma viagem à Alemanha no inverno de 1908 e 1909, e que se refere a seu percurso por 22 universidades daquele país. O pedido foi feito, também em caráter honorífico, pelo corpo de gestão da universidade de La Plata: “na medida em que essa informação (sobre a organização do ensino nas universidades alemãs) poderia ser útil para estabelecer o curso de história que será fundado nessa universidade [...] destinado à cultura superior desinteressada” (1910QUESADA, E. (1910). La enseñanza de la historia en las universidades alemanas. La Plata, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, p. VII); são palavras de Rodolfo Rivarola, decano da Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales da referida universidade. Quesada destaca, como ponto de partida e justificativa, a hegemonia da universidade alemã mundialmente. Recomendando vivamente, pois, o paradigma alemão, cita o professor Bassermann, de Heidelberg:

[…] se respira nelas uma atmosfera especial e, para quem realmente as frequentou, fica a imperecível recordação dos anos em que pode pertencer à alma mater, como a joia mais preciosa, até seus últimos anos: esse tempo deve ser recordado como se saboreia uma taça de vinho envelhecido, autêntico, dourado e delicioso, que não volta e cuja importância, no resto da vida, é insubstituível (1910QUESADA, E. (1910). La enseñanza de la historia en las universidades alemanas. La Plata, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, p. XVII).

Para que a juventude argentina possa um dia dizer coisa análoga, sustenta Quesada, é preciso atualizá-la nesses critérios. Elaborar um tipo de organização universitária em que a ciência não seja cultivada só por ela mesma, mas pela vida. Só assim, argumenta, a universidade argentina será, como nos institutos mais avançados da Europa,

[…] uma colmeia em plena efervescência, com as grandes aulas transbordando de estudantes, nas quais os professores dão suas conferências públicas, e com as salas menores cheias de trabalhadores, onde aqueles guiam a flor e a nata de cada curso na investigação da verdade, inculcando-lhes métodos, ensinando-lhes critérios, fiscalizando suas produção e habilitando-os assim a estudar cada matéria de forma intensiva. O resultado será, sem dúvida, brilhante: depende apenas de nós que ele se realize sem demora, porque já é tempo de incorporar nossa vida universitária na corrente do progresso de instituições análogas, em vez de continuar mantendo-a na rotina de outras épocas, como se os tempos não tivessem mudado e não fossem outras as exigências do presente (1910QUESADA, E. (1910). La enseñanza de la historia en las universidades alemanas. La Plata, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, p. XIX).

Os anfiteatros universitários, segue Quesada, têm que ser laboratórios de vida, a ciência cultivada neles deve ser vibrante, atrelada a problemas concretos da existência, fincada no cultivo do horror pelo respeito supersticioso ao texto: “em sua aula, o professor exerce um verdadeiro sacerdócio […] a grave responsabilidade de seu apostolado fortalece seu espírito e involuntariamente faz arder nele o desejo de dar resplendores de sabedoria” (Idem, p. XX). O docente, portanto, para que exerça seu sacerdócio, deve sempre estar atento à observação do mundo; nesse sentido, cita Fichte:

[…] os professores deviam se considerar, sobretudo, como homens de ciência e basear sua autoridade na investigação metódica de sua matéria, ensinando os estudantes a praticá-la; daí a grande característica do século XIX: a instituição dos seminários universitários para aprofundar a investigação científica e apropriar-se de métodos e critérios, buscando apenas a verdade e o exercício da crítica personalíssima, sem estar acossado por exames escolares e por planos de estudos obrigatórios, como no século XIV (Idem, p. 73).

Sua ênfase numa universidade de pesquisa envolve concebê-la como um verdadeiro templo do saber, onde a cada especialidade está reservado um altar, distante das exigências do mundo da formação profissional: “as carreiras profissionais são estabelecidas pelo estado, fora da universidade: para outorgar diplomas o estado impõe determinados exames diante de comissões próprias, sem contaminar assim a universidade com a carga de ser, ao mesmo tempo, escola profissional” (Idem, p. 74). Essa separação entre o cultivo do saber puro na universidade e o ensino técnico a cargo do estado fora defendida por Quesada, já em 1906, em entrevista publicada no Diario Nuevo, datada de 2 de julho. Nessa ocasião Quesada tece já uma crítica feroz ao sistema francês e propõe que o Estado gerencie os diplomas técnicos, separando essa tendência profissionalizante dos estudantes vocacionados que “estão animados pelo amor desinteressado de poder” (1906QUESADA, E. (1906). La crisis universitaria (discurso na colação de grau da Faculdade de Direito da UBA. Buenos Aires, Librería de J. Menéndez., p. 49)11 11 É importante salientar, nesse ponto, que a Universidade alemã cresce vertiginosamente, a partir do começo do século XIX, com uma aliança direta com o Estado. A liberdade de cátedra a que se refere Quesada, nesse sentido, não estava acompanhada de uma liberdade de gestão ou mesmo de uma liberdade de posicionamento político. Essa nuance da “autonomia” desejada por Quesada precisa ser levada em conta já que, como pontua Ben-David (1974), quando o modelo de universidade alemão passa a ser exportado para a Europa e para os Estados Unidos, esse tipo de vinculação não é, via de regra, observado ou criticado por seus propagandistas. .

O princípio básico da universidade alemã segundo Quesada, que ele recomenda vivamente para a Argentina, pode ser condensado em: investigação científica independente dos julgamentos das massas, dos governos, das agrupações sociais de forma geral e “de tudo o que possa obedecer a um propósito interessado” (1910QUESADA, E. (1910). La enseñanza de la historia en las universidades alemanas. La Plata, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, p. 260). A independência do corpo docente é assim um direito fundamental, não pode haver exigências teológicas de nenhuma espécie. Alerta, nesse sentido, que, se o governo intervier na classe de um só professor, provocará uma cisão incontornável no corpo docente; por isso, “ninguém terá a ousadia de pretender fazer a menor indicação a um professor sobre o que ele cogita ensinar e de como o faz, seja em sua aula ou em seu seminário” (Idem, p. 263).

Na Alemanha, argumenta, quase não há sábio fora da universidade. Tal afirmação é especialmente reveladora se confrontada, por exemplo, com o caso da França (Lepenies, 1996LEPENIES, W. (1996), As três culturas. São Paulo, Edusp.; Ringer, 1999RINGER, F. (1999), O declínio dos mandarins alemães. São Paulo, Edusp.), onde grande parte do recrutamento intelectual era feito na esfera das revistas culturais, na imprensa de modo geral e nas profissões liberais. Conforme indicado anteriormente, essa esfera privada, no caso argentino, era organizada a partir de uma relação hermética entre famílias criollas, os “gentleman-escritores”, para usar a expressão de David Vinãs, composição que dificultava, em larga medida, a presunção de que a universidade pudesse atuar como árbitro exclusivo das consagrações intelectuais (inclusive porque, como desenvolverei em seguida, os frequentadores das universidades são, em sua maioria, membros da aristocracia urbana de Buenos Aires, já vinculados entre si por relações familiares e socializados no âmbito dessas relações pessoais de prestígio).

Percebe-se, nesse ponto, a existência de uma zona híbrida no projeto de Quesada: seu reclamo de profissionalização vem atrelado a uma crítica ao que seria seu exagero, a profissionalização levada até seu último grau, que acabaria levando a uma extrema racionalização dos estudos, convertendo-os num mero aporte técnico da visão utilitarista da vida que é, segundo a análise canônica dos seus contemporâneos e do próprio Quesada, o protótipo do estilo de vida estadunidense. Nesse sentido, ele ressalta que, embora os Estados Unidos tenham conseguido criar excelentes condições materiais para os seminários e para o desenvolvimento de pesquisas (por vezes melhores que as alemãs, inclusive), lhes faltava o espírito:

[…] não possuem ainda o que caracteriza o mundo universitário alemão: sua legião de pesquisadores sábios, de professores modelo, de estudos admiráveis, que cultivam a tradição secular do ensino da ciência pura e a ela dedicam sua vida inteira, razão pela qual estão na liderança do mundo intelectual. Isso o dinheiro não proporciona: é preciso de um longo sedimento secular e um poderoso atavismo e os Estados Unidos, todavia, carecem de ambas as coisas (1910QUESADA, E. (1910). La enseñanza de la historia en las universidades alemanas. La Plata, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, p. 555).

Antes de analisar o relatório de Londres, é interessante ter em vista os pontos centrais do reclamo institucional do autor: a pesquisa como organizadora dos planos de ensino e sua aposta numa vocação docente que não pode sofrer constrangimentos externos para que se desenvolva em plenitude. O recurso supracitado de associar a figura do professor à figura do sacerdote é um dos pontos nevrálgicos da proposta de Quesada12 12 Retomando ainda Max Weber, essa associação ganha tonalidades ainda mais vivas se a categoria de “sacerdote” for considerada a partir de seu privilégio na interpretação simbólica de uma sociedade. Nesse sentido, a figura do sacerdote pode ser definida como “aqueles funcionários professorais que influem nos deuses mediante a adoração, em oposição aos bruxos, os quais, graças a meios mágicos, exercem uma coerção sobre os demônios, os conjuram” (1944, p. 345). O profeta, na tipologia weberiana, por outro lado, é o portador do carisma: “o sacerdote se legitima mediante seu cargo como membro de uma organização socializada de salvação; ao contrário, o profeta, tal como o mago ou o carismático, atua unicamente graças a seu dom pessoal” (Idem, p. 356). Dessa forma, se seguirmos com a tipologia weberiana, a Argentina poderia ser pensada, idealmente, no contexto de Quesada e inclusive depois dele, como um universo repleto de profetas, com intelectuais falando a partir de zonas extrínsecas à universidade. Além disso, vale ressaltar, a profecia é sempre gratuita, não é profissional, não gera espírito de corpo: “é específico dos profetas o fato de que não recebem sua missão por encargo dos homens, mas que a usurpam” (Idem, p. 359), estando portanto mais próximos do demagogo do que do professor num sentido profissional. .

Retomamos, nesse sentido, a fala de Weber de que nas humanidades o problema valorativo se coloca em termos de que “a tomada de posição político-prática e a análise científica das estruturas e dos partidos são duas coisas muito distintas […] mas o genuíno docente coibir-se-á de forçar, do alto da cátedra, a qualquer tomada de posição, quer expressamente, quer por sugestão, pois esta seria, sem dúvida, a forma mais desleal, se é que se trata de ‘deixar falar os fatos’” (2005, p. 21). Segundo essa leitura, é preciso separar, pois, dois aspectos: o conteúdo lógico de algo e o valor que se atribui a ele. Por isso, o profeta e o demagogo não devem ocupar cátedras, já que “sempre que um homem de ciência surge com o seu próprio juízo de valor, cessa a plena compreensão dos fatos” (Idem, p. 23).

Essa reivindicação do professor como profissional vocacionado, embora pareça contraditória (pois é, ao mesmo tempo, ligada a uma vocação que, nos termos de Quesada, “está como que agregada ao próprio ser”, e a um reclamo de profissionalização), é um dos pontos norteadores do combate ao que ele diagnostica na Argentina como uma perniciosa confusão entre os intelectuais e a política. Ressaltamos, por exemplo, as trajetórias de Carlos O. Bunge, José Ingenieros, Paul Grossac e Miguel Cané como representantes paradigmáticos de um modelo de homme de lettre que provém de campos os mais diversos (médicos, advogados, periodistas, funcionários públicos) e que se encontram, mesmo com base em posições teóricas refratárias entre si, comungados pelo tipo de relação híbrida que mantêm entre o campo da política e o campo das letras.

Procedo, nesse ponto, a algumas considerações sobre o relatório Los sistemas de promoción en la Universidad de Londres, publicado em 1912, no qual a tensão entre cultura professoral, campo político e projeto institucional é, considero, ainda mais evidente. Assim como nas solicitações anteriores, os relatórios não são demandados simplesmente a título de informes; pelo contrário, os pedidos contemplam a avaliação, o juízo de Quesada sobre sua observação, indicativo do grau de prestígio do autor em relação às discussões internas na universidade.

Quesada parte, mais uma vez, de uma recapitulação histórica, retomando a formação das universidades inglesas. Oxford e Cambridge, relata, as mais prestigiosas, se desenvolveram sob o modelo francês, eram independentes, privadas, o Estado não havia contribuído com aportes financeiros, e a ingerência em termos estatutários era mínima. No fim do século XIX, contudo, se inicia um processo de profissionalização a partir do qual “de 1858 a 1900 a Universidade de Londres se converteu em uma enorme fábrica de títulos, ditando programas de exames, todos escritos e que podiam ser efetuados ali mesmo ou em diversos pontos do império, tanto nas ilhas como nas coroas” (1912, p. 12). Esse sistema organizou então a expansão do modelo de ensino e orientou a fundação dos colleges por todo o país, numa reação ao conservadorismo e ao viés religioso de Oxford e Cambridge.

A Universidade de Londres funda-se, contudo, como uma instituição para exames, e não para ensino, o que, na leitura de Quesada, perde de vista todos os possíveis objetivos pedagógicos da avaliação:

[…] convertendo a promoção em uma espécie de corrida intelectual, pois é manifesto o propósito de acumular dificuldades, apoiando-se no mais estrito tecnicismo e convertendo a prova de suficiência em um exercício de acrobacia mental, na qual o menor vacilo deixa escapar o trapézio móvel e produz uma queda segura na rede: é um espetáculo de circo (1912, p. 63).

Os informantes institucionais de Quesada, no entanto, defendem seu modelo baseados num apego à tradição política do país, segundo a qual ninguém trabalha sem esperar recompensa. Dessa forma, se a sociedade inglesa julga a partir desse critério de mérito, de eficiência e de autoformação, o modelo universitário não faria mais do que responder a uma cultura nacional. Além disso, argumentam, o fato de a avaliação para conferência de títulos não ser feita pelos professores a tornaria mais neutra. Quesada questiona, numa entrevista relatada por ele com um dos decanos da Universidade de Londres, se esse modelo não levaria a uma destruição da espontaneidade do estudante, “atrofiando seu pensamento e desenvolvendo apenas sua memória e sua destreza, ao se preocupar unicamente com as soluções e não com a razão que as informa […] corre-se o risco de formar uma geração de autômatos e não de pensadores” (1912, p. 105). A essa questão contundente, a resposta é reveladora: a destreza do autômato revelaria, exatamente, o resultado de uma combinação inteligentíssima de fatores e, sendo assim, melhorar os exames (torná-los mais rígidos) seria suficiente para que a distinção entre bons e incapazes se tornasse paulatinamente mais eficaz.

Os títulos acadêmicos, nesse tipo de universidade, são adornos, não têm nenhum valor específico porque a sociedade não os reconhece. Trata-se, portanto, nos reclamos de Quesada, de reiterar a necessidade de criar um espaço de validação da fala universitária, de consolidação de sua autonomia e, com isso, de seu prestígio. Essa situação, como tenho buscado relatar, é análoga, em larga medida, à situação das universidades argentinas e, especialmente, à Universidade de Buenos Aires.

A proposta formal dos idealizadores da Facultad de Filosofía y Letras- todos eles vinculados à elite criolla - era viabilizar um espaço de cultivo humanista, que pudesse favorecer o aparecimento de uma leitura original, especificamente argentina, das tensões do processo de modernização (Buchbinder, 1997BUCHBINDER, Pablo (1997), Historia de la Facultad de Filosofia y Letras: Universidad de Buenos Aires. Buenos Aires, Eudeba.). Até então, os espaços prioritários de sociabilização das elites eram as sociedades privadas e as redes familiares. Ainda que muitos dos jovens autodidatas (ou gentleman escritores) cursassem as carreiras de Direito ou Medicina e lá estreitassem laços de convívio, a discussão humanística não se dava no espaço institucional. Os primeiros anos de funcionamento da FFYL são marcados pela dificuldade de estruturar um espaço universitário atraente para os jovens argentinos: a maior parte dos alunos não almejava o título de doutor e não se interessava por uma carreira de pesquisa, pois não havia nenhum prestígio específico em ostentar um doutorado em filosofia numa sociedade que funcionava com base na rede, já referida, de mecenato privado13 13 Em 1940 Ricardo Levene, presidente da Academia Nacional de História e professor de Sociologia na uba, publicou uma compilação de documentos sobre a fundação da Universidade de Buenos Aires. Alguns deles, especialmente os redigidos por Rivadavia nos primeiros anos de funcionamento da instituição, referem-se diretamente à diminuição de verbas destinadas à uba nos primeiros anos, tendo em vista “el corto numero de alunos que se presentan en el día a la enseñanza” (1940, p. 38). Consta, na série documental, que a Faculdade de Medicina contava, em 1824, com apenas quatro inscritos e a Faculdade de Jurisprudência, com nove. . Após a época de Rosas, quando a universidade esteve à míngua, ressurge, a partir de 1890, a discussão acerca do papel daquela instituição como aglutinadora da produção intelectual do país (Buchbinder, 1997). Começa a explicitar-se nesse contexto a necessidade de produzir seus próprios professores, de estimular um recrutamento entre os pares, já que, até então, os professores catedráticos provinham de fora do âmbito acadêmico, revelando a relação de heteronímia da universidade em relação às esferas privadas.

Outro aspecto relevante que circunscreve a tomada de posição de Quesada e seus pares em relação à organização universitária diz respeito ao nacionalismo cultural que informava os debates intelectuais argentinos da geração do centenário (1900-1910). A disputa simbólica entre elites criollas e classe média imigrante é um dado estrutural do campo intelectual argentino da primeira metade do século XX. É o contexto de divulgação, por exemplo, de um amplo movimento de nacionalismo cultural, de retorno às raízes e de apelo à história nacional. Encampado de formas distintas pelas mais diversas vertentes do campo intelectual, tal apelo nacionalista se projetava enquanto instrumento de distinção diante de uma sociedade cada vez mais complexa e heterogênea14 14 Nesse sentido, ver Sarlo (2010). . Tal configuração é importante para compreender de que modo as posições tomadas em relação à universidade estão matizadas, também, pelas inflexões políticas e sociais dessa necessidade de fomentar fronteiras distintivas entre o setor mais antigo da elite portenha e a classe média imigrante que começava, então, a ter acesso às formações técnicas e às profissões consagradas.

Tendo esse dado em mente, é possível circunscrever a crítica de Quesada ao modelo de avaliação londrino. Esse tipo de ensino, argumenta o autor, que converte a ciência em livro-texto, “é o procedimento escolástico da Idade Média, estranhamente perpetuado” (1912, p. 278). Nesse mundo de mercadores, o relatório termina com um apelo para que a Argentina cultive um sentido nacional do cultivar-se, que pudesse fazer frente, através de uma cultura de ensino humanista e técnica, à “jaula de ferro do utilitarismo” representada, nas leituras sobre a crise, pelos Estados Unidos. Trata-se, enfim, de garantir que a modernização se dê de forma segura e sem sobressaltos, reiterando e refinando as distinções que, tanto na leitura positivista como na sua crítica, eram essenciais para que a Argentina pudesse superar a “crise civilizatória”.

***

A discussão sobre os reclamos de autonomia para o intelectual atravessa, conforme Miceli, uma questão nevrálgica da vida cultural argentina, na medida em que a prática intelectual autônoma estava, desde a virada do século, intimamente ligada às fortunas pessoais e às relações de mecenato privado. Nas décadas de 1910 e 1920, com quase nulo incentivo à cultura, o verdadeiro circuito é o das editoras, num composto de “rebeliões autorais, demandas da indústria cultural e exigências de pedágio político” (2012MICELI, S. (2012), Vanguardas em retrocesso. São Paulo, Companhia das Letras., p. 27), o que dá muita força aos constrangimentos ligados aos vínculos de classe, e de status, no sentido weberiano. Com a já mencionada ampliação do público leitor e dos postulantes ao sistema de ensino, coloca-se, nos termos de Terán (2004TERÁN, Oscar. (2004), “Ideas e intelectuales en la Argentina. 1880-1980”. In: TERÁN, Oscar (coord.), Ideas en el siglo: intelectuales y cultura en el siglo XX latinoamericano. Buenos Aires, Siglo XXI.), uma pauta aglutinadora para os debates intelectuais da virada do século: limitar os efeitos de anomia nos recém-chegados. Abre-se, com essa tarefa, um amplo cenário de atuação para os intelectuais. A nacionalização vira, também no âmbito da cultura, tarefa sua (Idem). Consideramos, dessa forma, que a tarefa de “limitar os efeitos de anomia dos recém-chegados” está na base da discussão sobre a organização do ensino na qual se insere Quesada.

O momento de elaboração do relatório de Quesada e das conferências de Weber, já apresentadas, é, contudo, o ponto de inflexão nesse sistema alemão, no qual as demandas por ampliação da base de recrutamento discente apontam para uma hipertrofia do mundo universitário. O crescimento exponencial de alunos dimensiona essa tensão: em 1876, são em torno de 16 mil matriculados, em 1892 já são cerca de 33 mil, e em 1908, 47 mil (Ben-David, 1974BEN-DAVID, Joseph. (1974), O papel do cientista na sociedade, um estudo comparado. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo, Edusp.). Diante do vulto dessa demanda começa a operar, segundo a tese clássica de Ringer (1999RINGER, F. (1999), O declínio dos mandarins alemães. São Paulo, Edusp.), uma fissura na classe dos mandarins universitários: um setor dela, onde está Weber, reflete no sentido de uma necessária, ainda que indesejável, abertura do sistema de ingresso. Por outro lado, delineia-se um setor bastante conservador do corpo docente, resistente ao que consideravam uma vulgarização do mundo da cultura ligado ao acesso mais popular ao sistema de ensino. É esse, portanto, o contexto de tensões que embasa as discussões alemãs nas quais Quesada está inserido, e que perpassa sua recomendação pela adoção do modo alemão de organizar a universidade.

Em Buenos Aires a universidade sofria inflexões semelhantes, principalmente a partir da referida pressão dos setores médios, na sua maioria compostos por filhos de imigrantes, pela ascensão ao sistema de ensino. É nesse quadro de tensões que se considera que o projeto de ciência evidenciado nos pareceres de Quesada precisa ser dimensionado. Por um lado, a aposta de Quesada é criticada pelos detratores do positivismo, como Alejandro Korn, Miguel Cané e Coroliano Alberini (todos com cargos altos na hierarquia universitária de então), na medida em que é associada à emergência de uma concepção cientificista do mundo, vinculada ao fato de que Quesada é, inclusive, professor de sociologia no momento da redação e publicação dos relatórios. Nesse sentido, a reivindicação da sociologia operada pelos positivistas deixava pouco espaço para que a profissionalização requerida nos relatórios não fosse associada ao domínio do “reino da técnica” e à desaparição do espírito, nos termos de Korn. Por outro lado, a leitura positivista, representada por nomes como Carlos O. Bunge e José Ingenieros, era refratária ao suposto de Quesada de que a política e a ciência não deveriam ser pensadas conjuntamente. Pelo contrário, na leitura positivista o caminho para a solução da crise civilizatória passava justamente pela regeneração moral, responsabilidade da sociologia, que deveria preceder e organizar a posterior regeneração política. Herbert Spencer, um dos positivistas mais lidos pelos seus correligionários argentinos, argumenta que “o homem que ignora a existência de um princípio de causalidade na ordem física provavelmente só compreenderá de forma confusa esta outra causalidade, mais sutil e mais complexa, que determina os atos de uma sociedade de homens constituídos em corpo político” (1908SPENCER, H. (1908), La science sociale. 14 ed. Paris, Félix Alcan Éditeur/Bibliothéque Scientifique Internationale., p. 4). Sendo a sociologia, justamente, a ciência que observa e diagnostica essas leis causais, estaria reservado a ela, por princípio, o diagnóstico mais preciso sobre o mundo, a partir do qual poderia pensar-se uma organização política.

Com base nesse quadro, considera-se que há, nas discrepantes leituras teóricas, distintos projetos e modos de conceber o intelectual, que estão ligados, de muitas formas, às tensões disciplinares. São essas tensões de recepção que abordaremos, a título de conclusão, para circunscrever a recepção dos relatórios de Quesada. Miguel Cané, por exemplo, decano da Facultad de Filosofía y Letras e catedrático de Filosofia no contexto de recepção dos relatórios de Quesada, representava uma tendência amplamente aceita nos meios docentes, ligada à defesa de um diletantismo francamente inspirado nas reflexões de Rodó, que conclamava a juventude latino-americana à sua “tarefa histórica” através de “uma atitude ética que se enraíze na estética, uma concepção de democracia que exclua o utilitarismo e preserve o melhor da aristocracia do espírito” (Rodó, 2003RODÓ, José H. (2003), Ariel. Biblioteca Virtual Universal. Disponível em Disponível em http://biblioteca.org.ar/libros/70738.pdf , acessado em 25/5/2016.
http://biblioteca.org.ar/libros/70738.pd...
, p. 197).

Catedrático de Filosofia em La Plata, Alejandro Korn é também uma voz ativa nesses debates nos quais se inserem os relatórios de Quesada. Em 1918, defendendo a “liberdade criadora”, Korn dá forma às leituras de “crise” que tanto matizaram as discussões argentinas ao perguntar: “Vale a pena empregar longos anos de cálculos teóricos e de ensaios heroicos para construir o avião e logo destiná-lo ao assassinato com a mesma brutalidade ancestral?” (Korn, 1944KORN, A. (1944), La libertad creadora. Buenos Aires, Losada., p. 15). Em sua leitura, a difusão do positivismo na Argentina passou por uma apropriação indevida da ideia de ciência, alocando no campo das humanidades um tipo de racionalidade que é, por definição, estranha a ela, na medida em que era refratária à construção de uma “ética”, princípio da liberdade humana. Korn procura delinear uma zona híbrida que pudesse escapar tanto à redução positivista que confina a filosofia aos paradigmas científicos quanto ao extremo oposto, a reação espiritualista que identifica imediatamente filosofia com metafísica.

Um dado importante das falas de Cané, Groussac e Korn é, como indicamos, sua resistência à sociologia, disciplina ministrada por Quesada. Para esses críticos do cientificismo positivista, a sociologia nada mais era que um tentáculo comtiano alçado à pretensão de cosmologia. A associação, operada por eles, entre sociologia e positivismo é decisiva para que se possa dimensionar a resistência argentina em adotar um modo de produção da cultura profissionalizante, como o que propunha Quesada, na medida em que a resistência das disciplinas mais canônicas no campo universitário, como a história e a filosofia, se configura também como uma defesa de espaços acadêmicos reais. As leituras positivistas alocavam-se mormente nos cursos de Direito e de Medicina, disciplinas mais profissionais em oposição às humanidades clássicas, onde estaria supostamente o espaço do pensamento puro, francamente ameaçado pelas pretensões totalizadoras da “nova ciência”. A sociologia é associada diretamente a esse setor emergente na Argentina que, por mais que comungasse com a elite criolla na necessidade de controlar a “multidão”, estava marcada pela sua condição de outsider. Decorrente disso é que ela foi gerada, com poucas exceções, no bojo das Faculdades de Direito e Medicina que, embora prestigiosas em termos de inserção econômica e social dos egressos, eram vistas com certa desconfiança pelos setores letrados “clássicos”, na medida em que, como indicamos anteriormente, se assemelhavam mais a uma “fábrica de diplomas” do que a uma universidade stricto sensu.

A recepção dos relatórios de Quesada, portanto, precisa ser situada num campo fissurado por essas tensões institucionais e disputas teóricas. Por um lado, a resistência disciplinar à sociologia e o declínio do positivismo; por outro, a proeminência de nomes como Cané e Korn, defensores de uma aristocracia da virtude, que governa por poder tutelar, “cultivada mediante uma prolongada educação que permita adquirir isso que chama de ‘uma concepção de vida’” (Terán, 2008TERÁN, Oscar. (2008), Vida intelectual en el Buenos Aires fin de siglo (1880-1910): derivas de la cultura científica. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica., p. 62). Os positivistas que compunham o campo de debates, muitos deles inseridos nas próprias universidades, ainda que nas disciplinas “técnicas”, confluem com seus críticos, apesar das discrepâncias teóricas, nessa necessidade de contenção social das massas de imigrantes. Essa zona híbrida pode ser dimensionada, inclusive, nos planos de curso das cadeiras de Filosofia e História desse contexto nas quais conviviam, sem contradição aparente, defesas apaixonadas de Spencer e elogios igualmente convictos sobre Kant. Além disso, como pontua Terán, uma série de leituras compartilhadas entre os positivistas e seus críticos, notadamente Renan e Taine, são indicativas desse elemento de concordância na discordância: trata-se, em ambos os casos, de, diagnosticada a ineficácia da quantidade como instrumento de coesão social, apelar à qualidade.

Dessa forma, situando os relatórios de Quesada nessa circulação internacional de propostas de organização do mundo intelectual, tornam-se mais compreensíveis a perenidade dessas querelas sobre os modos de produção do saber e, paralelamente, o impacto dessas disputas nas discordâncias teóricas e epistemológicas do campo intelectual argentino. Sustento, por fim, que Quesada inaugura um debate que será fundamental nas décadas seguintes, principalmente a partir das reiteradas intervenções do Estado nas universidades (em 1930 e, mais fortemente, em 1946, durante o governo peronista) e que será retomado, em outros matizes, por Gino Germani, na década de 1950, momento no qual o paradigma de universidade estadunidense já é, contudo, francamente dominante. Algumas das reivindicações expressas no relatório de Quesada, principalmente aquelas que se referem ao regime de liberdade de cátedra e de profissionalização do corpo docente, são retomadas, nesse contexto, pelo sociólogo ítalo-argentino, também a partir de um enfrentamento de vernizes disciplinares, em que a sociologia, através desses elementos de profissionalização, inscreve então sua reivindicação por um espaço de fala autônomo e autoconsagratório, de cujas escolhas de enquadramento teórico se projetaram, também, discussões sobre a prática intelectual e a dimensão autorreflexiva do cientista.

A aposta de Gino Germani, através da qual foi canonizado por grande parte da historiografia sobre o tema como o grande pai fundador da sociologia argentina, não operou, portanto, em um vazio de discussões. Quando o sociólogo ítalo-argentino encampa, já na década de 1950, um debate sobre a necessidade de modernização da pesquisa e de alinhamento com os padrões internacionais de investigação, recupera, em muitos aspectos, uma discussão já pontuada por Ernesto Quesada, a saber, a finalidade da instituição em contextos de mudança social. Muito embora a historiografia mais recente sobre o tema (Blanco, 2006BLANCO, A. & GERMANI, G. (orgs.) (2006), La renovación intelectual de la sociología. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes.; Noé, 2005NOÉ, Alberto. (2005), Utopía y desencanto: creación e institucionalización de la carrera de sociología de la Universidad de Buenos Aires, 1955-1966. Buenos Aires, Miño y Dávila. ) já parta dessa revisão da trajetória fundadora de Germani, é importante reconstruir essa cadeia de debates já que, mesmo numa disciplina nova, como é a sociologia em meados dos anos de 1950, as tensões sociais que delimitam a hierarquização do campo acadêmico são, inequivocamente, históricas, motivo pelo qual a historicização das posições no campo intelectual, operada a partir do cotejamento dos projetos intelectuais em debate, ajuda a elucidar as linhas de força que operam na hierarquização das disciplinas, dos saberes e das práticas intelectuais.

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  • QUESADA, E. (1910). La enseñanza de la historia en las universidades alemanas. La Plata, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales
  • 1
    Ernesto Quesada ocupou, além de outros cargos centrais da gestão universitária argentina, a cadeira de Sociologia na Facultad de Derecho y Ciencias Sociales da Universidad de Buenos Aires e, a partir de 1904-1905, na Facultad de Filosofia y Letras da mesma universidade, onde leciona até 1912.
  • 2
    É possível consultar, exemplarmente, Werner e Zimmerman (2003WERNER, Michel & ZIMMERMAN, B. (2003), “Penser l’histoire croisée: empirie et reflexivité”. Anales Revue, 1: 7-36., pp. 7-36).
  • 3
    Sobre a institucionalização da sociologia na Argentina é possível consultar, por exemplo, a análise recentemente publicada por Blanco e Jackson (2014BLANCO, A. & JACKSON, Luis C. (2014), Sociologia no espelho: ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo, Editora 34.). Muito embora a bibliografia sobre o tema seja relativamente extensa, o diferencial comparativo da abordagem dos autores permite compreender o panorama continental dos processos de institucionalização, bem como as disputas no campo intelectual que envolveram os praticantes mais antigos dos “debates sobre o mundo social”, como jornalistas e ensaístas.
  • 4
    Exemplo dessa perspectiva encontra-se em González, 2000GONZÁLEZ, Horacio (org.). (2000), Historia crítica de la sociología argentina: los raros, los clásicos, los científicos, los discrepantes. Buenos Aires, Colihue..
  • 5
    Karl Mannheim, em “Conservative thought” (1971bMANNHEIM, Karl. (1971b), “Conservative thought”. In: WOLFF, Kurt H. (ed.). From Karl Mannheim. Nova York, Oxford University Press, pp. 132-222.), delimita o uso da categoria de “estilo de pensamento”, valendo-se de uma comparação com a ideia de “estilo” na história da arte, qual seja, a existência de uma matriz identificável que perpassa as apostas de autores individuais. Opondo-se assim tanto à proposta de que o pensamento de uma época possa ser analisável isoladamente, a partir de um indivíduo específico, quanto à relação mecânica entre contexto e produção intelectual, Mannheim sugere capturar a pauta comum das ideias de determinada conjuntura com base na análise dos grupos portadores desse “estilo”, circunscrevendo assim sua intenção básica, por meio da qual eles expressam “a ideia de que diferentes modos de abordagem do mundo são, em última análise, baseados em diferentes modos de pensá-lo. Essa unidade básica determina o caráter de um estilo de pensamento” (Mannheim, 1971aMANNHEIM, Karl. (1971a), “Competition as a cultural phenomenon”. In: WOLFF, Kurt H. (ed.). From Karl Mannheim. Nova York, Oxford University Press, pp. 223-261., pp. 223-261).
  • 6
    Entre 1869 e 1970, a população de Buenos Aires cresceu treze vezes, e a densidade passou de 0,62 h/km para 8,4 h/km. Buenos Aires em 1947 tinha 0,07% da área do país e 46% da população. Porcentagem de estrangeiros: em 1869 eram 13,8%, em 1914 eram 42,7%. Entre 1857 e 1957 chegaram pelo porto de Buenos Aires 4,5 milhões de imigrantes. Dados compilados por Vasquez-Rial, 1966VASQUEZ-RIAL, Horacio. (1966), Buenos Aires 1880-1930: la capital de un imperio imaginario. Madrid, Alianza,.
  • 7
    Carlos Altamirano em “Um mundo em crise” (2009ALTAMIRANO, Carlos. (2009), “Um mundo em crise”. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, 21 (2): 11-34. Disponível em < Disponível em http://ref.scielo.org/jb4zjg >, consultado em 15/11/2017.
    http://ref.scielo.org/jb4zjg...
    ) mapeia a circulação desse discurso até a década de 1930, com destaque para o que chama de “fator Ortega”, ou seja, a ampla reverberação das defesas de uma reação generacional à decadência. Nesse sentido, é um dado importante que o prefaciador da obra de Spengler, um dos grandes informantes do “discurso de crise” na Argentina, foi, precisamente, Ortega.
  • 8
    La época de Rosas: su verdadero carácter histórico, publicada em 1898QUESADA, E. (1898), La época de Rosas, su verdadero carácter histórico. Buenos Aires, A. Moen., é a obra mais conhecida de Quesada, que, segundo analistas como Terán (2008TERÁN, Oscar. (2008), Vida intelectual en el Buenos Aires fin de siglo (1880-1910): derivas de la cultura científica. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica.) e Buchbinder (2012BUCHBINDER, P. (2012), Los Quesada: letras, ciencia y política en Argentina, 1850-1934. Buenos Aires, Edhasa.), inaugurou uma tradição que terá seu ápice duas décadas depois com Leopoldo Lugones: a revisão da era Rosas e a revalorização de seu legado para a formação da cultura argentina.
  • 9
    Langlois, em Cuestions d’histoire et d’enseignement, promove uma síntese da evolução do ensino francês, partindo do pressuposto de que a ideia de universidade como “ensino universal” não é necessariamente o oposto de ensino especializado. Embora seja um texto crítico ao estado do ensino francês na virada do século, ele registra, sobre as universidades alemãs, que “elas se organizaram, no início, sob influência do protótipo parisiense, numa época em que o triunfo do sistema colegial havia alterado profundamente as características desse protótipo [de instituição]” (1902LANGLOIS, C. H. (1902), Cuestions d’histoire et d’enseignement. Paris, Hochette., p. 10). No mesmo sentido a obra de Durkheim (1918DURKHEIM, E. (1918), La vie universitaire à Paris. Paris, Armand Colin.) destaca os fatores positivos dessa fragmentação, contrastando, assim como Langlois, com a análise de Quesada.
  • 10
    Além de Tunnerman é possível recuperar, nesse debate sobre a universidade latino-americana, as leituras de Florestan Fernandes (1979FERNANDES, F. (1979), A universidade brasileira: reforma ou revolução? 2. ed. São Paulo, Alfa-Omega.), Darcy Ribeiro (1978RIBEIRO, D. (1978), A universidade necessária. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra.), José Gaos e Echavarría (1999ECHAVARRÍA, J. M. & GAOS, J. (1999), Responsabilidad de la universidad. México, El Colegio de Mexico.).
  • 11
    É importante salientar, nesse ponto, que a Universidade alemã cresce vertiginosamente, a partir do começo do século XIX, com uma aliança direta com o Estado. A liberdade de cátedra a que se refere Quesada, nesse sentido, não estava acompanhada de uma liberdade de gestão ou mesmo de uma liberdade de posicionamento político. Essa nuance da “autonomia” desejada por Quesada precisa ser levada em conta já que, como pontua Ben-David (1974BEN-DAVID, Joseph. (1974), O papel do cientista na sociedade, um estudo comparado. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo, Edusp.), quando o modelo de universidade alemão passa a ser exportado para a Europa e para os Estados Unidos, esse tipo de vinculação não é, via de regra, observado ou criticado por seus propagandistas.
  • 12
    Retomando ainda Max Weber, essa associação ganha tonalidades ainda mais vivas se a categoria de “sacerdote” for considerada a partir de seu privilégio na interpretação simbólica de uma sociedade. Nesse sentido, a figura do sacerdote pode ser definida como “aqueles funcionários professorais que influem nos deuses mediante a adoração, em oposição aos bruxos, os quais, graças a meios mágicos, exercem uma coerção sobre os demônios, os conjuram” (1944WEBER, M. (1944), Economía y sociedad: tipos de comunidad religiosa. Trad. Imaz Echeverría. México, Fondo de Cultura Económica. , p. 345). O profeta, na tipologia weberiana, por outro lado, é o portador do carisma: “o sacerdote se legitima mediante seu cargo como membro de uma organização socializada de salvação; ao contrário, o profeta, tal como o mago ou o carismático, atua unicamente graças a seu dom pessoal” (Idem, p. 356). Dessa forma, se seguirmos com a tipologia weberiana, a Argentina poderia ser pensada, idealmente, no contexto de Quesada e inclusive depois dele, como um universo repleto de profetas, com intelectuais falando a partir de zonas extrínsecas à universidade. Além disso, vale ressaltar, a profecia é sempre gratuita, não é profissional, não gera espírito de corpo: “é específico dos profetas o fato de que não recebem sua missão por encargo dos homens, mas que a usurpam” (Idem, p. 359), estando portanto mais próximos do demagogo do que do professor num sentido profissional.
  • 13
    Em 1940 Ricardo Levene, presidente da Academia Nacional de História e professor de Sociologia na uba, publicou uma compilação de documentos sobre a fundação da Universidade de Buenos Aires. Alguns deles, especialmente os redigidos por Rivadavia nos primeiros anos de funcionamento da instituição, referem-se diretamente à diminuição de verbas destinadas à uba nos primeiros anos, tendo em vista “el corto numero de alunos que se presentan en el día a la enseñanza” (1940LEVENE, R. (1940), La fundación de la universidad de Buenos Aires (su vida cultural em los comienzos y la publicación de los cursos de sus profesores). Buenos Aires, Academia Nacional de la Historia., p. 38). Consta, na série documental, que a Faculdade de Medicina contava, em 1824, com apenas quatro inscritos e a Faculdade de Jurisprudência, com nove.
  • 14
    Nesse sentido, ver Sarlo (2010SARLO, B. (2010), Modernidade periférica. Buenos Aires 1920 e 1930. Trad. Julio Pimentel, prólogo de Sergio Miceli. São Paulo, Cosac Naify. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2016
  • Aceito
    10 Ago 2017
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br