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Mobilidades, espaços e identidades na economia eletrônica global. Entrevista com Anthony Elliott.

Anthony Elliott é professor de sociologia e decano de relações exteriores na Universidade da Austrália Meridional, em Adelaide. Foi diretor-executivo do Hawke EU Institute e professor visitante na Universidade Keio, em Tóquio, e na University College, em Dublin.

Esta entrevista foi realizada em julho de 2017, por ocasião de sua vinda ao Brasil como conferencista do 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Brasília, no qual Elliott proferiu a palestra intitulada “A sociologia do novo individualismo: sobre a arte da reinvenção”. Desde nosso primeiro contato, o sociólogo australiano mostrou-se extremamente receptivo à possibilidade de participar de um dossiê que reuniria colegas com quem ele conviveu em sua passagem pelo Center for Mobilities Research (CEMORE), na Universidade de Lancaster, e que teria, no cardápio de suas intenções, divulgar o Paradigma das Mobilidades para além da academia anglofônica.

Entre livros monográficos e coletâneas, Elliott esteve à frente de mais de quarenta projetos editoriais, com destaque para Concepts of the self, que tem sido impresso continuamente há mais de 20 anos, e Mobile lives, em coautoria com John Urry. Assim como em seus escritos, nesta entrevista Elliot versa sobre uma grande variedade de temas: teoria social e psicanálise, vidas móveis, elites globais, cirurgias plásticas, reinvenções em diferentes escalas, inteligência artificial, aeroportos entre outros. Suas ponderações sobre os desafios e alcances de uma sociologia pública em meio a exigências cada vez mais prementes por “produtividade”, ainda que tomem contextos acadêmicos que nos são alheios, por certo não deixam de ressoar entre nós.

Em muitos dos seus trabalhos, há uma aceitação das premissas da teoria da individualização reflexiva tal qual proposta, com variantes significativas, por Ulrich Beck, Anthony Giddens e Zigmunt Bauman. Por outro lado, você questiona alguns aspectos dessa teoria ao argumentar que é preciso ir além e incorporar as dimensões afetivas e imaginárias do self. Nesse contexto, você se volta para os achados das teorias psicanalíticas e defende seriamente que o foco dirigido à autorreflexividade precisa ser complementado por uma abordagem sensível às emoções e ao inconsciente. Por que as emoções seriam tão importantes para se entender o impacto dos novos processos globais?

Essa é uma ótima questão porque toca tanto nos aspectos socioinstitucionais quanto nos aspectos psíquicos individuais. Nos limites desta entrevista, o que posso fazer é tecer algumas observações como uma primeira aproximação ao tema. Sobre a individualização reflexiva e, em particular, sobre a teoria da reflexividade tal como desenvolvida por Anthony Giddens, devo dizer que fui muito influenciado por esse tipo de abordagem. Considero que esta tem sido uma das contribuições mais significativas à teoria social moderna, isto é, a maneira pela qual Giddens desenvolve a ideia de que a reflexividade social se intensifica nas condições da modernidade tardia. Todas as sociedades, ao longo da história, são necessariamente reflexivas: ser ator é ter a capacidade de prosseguir na vida social, de fazer diferente, de refletir sobre as próprias condições sociais nas quais se está enredado, por mais imperfeitas que sejam essas reflexões. Alguma coisa aconteceu, porém, no final do século XX e no começo do século XXI que transformou substancialmente as condições da reflexividade social. Giddens dá o exemplo das estatísticas de divórcio. Ele demonstra de maneira eloquente que, quando se vive em sociedades como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, em que as taxas de divórcio em alguns estados chegam a 50%, as condições de reflexividade vêm realmente à tona (Giddens, 1991GIDDENS, Anthony. (1991), Modernity and self-identity. Cambridge, Polity.). Nesses casos, as estatísticas de divórcio não são incidentais em relação à prática do casamento, assinala Giddens. Elas reconstituem a própria natureza do que de fato é o casamento, porque as pessoas tomam conhecimento dessas estatísticas e isso muda as expectativas e as próprias condições e os contornos do casamento. Eu não tenho nenhum problema com tal diagnóstico. Considero-o absolutamente preciso. A perspectiva de Ulrich Beck (1994BECK, Ulrich. (1994), “The reinvention of politics: towards a theory of reflexive modernization”. In: BECK, U. et al. (eds.). Reflexive modernization: politics, tradition and aesthetics in the modern social order. Stanford, Stanford University Press.) sobre a reflexividade é substancialmente diferente da de Giddens, na medida em que, ao meu ver, Beck enfatiza mais o elemento “por reflexo” presente na reflexividade, enquanto Giddens enfatiza o automonitoramento crônico. A noção de reflexividade em Giddens é bastante influenciada não apenas por alguns psicanalistas, mas por Goffman e Garfinkel. A abordagem de Beck é muito mais sistêmica, como se sabe, o que abre espaço para todos aqueles efeitos colaterais que Beck procura descortinar - fenômenos como mudança climática, aquecimento global, Chernobil, explosões nucleares etc.

E toda a sociedade de risco...

E toda a sociedade de risco. Minha objeção - ou mais do que uma pequena objeção, trata-se de um desconforto teórico e sociológico - com a noção de reflexividade: não acredito que os indivíduos estejam apenas operando por reflexo ou pelo contínuo monitoramento de si. Eu acredito que as pessoas fazem ambas as coisas, mas penso que há muito mais em jogo e que a sociologia precisa de uma compreensão mais sofisticada acerca dos sujeitos individuais e da constituição dos sujeitos. Muito já foi discutido sobre o tema das subjetividades descentradas, sobre o fato de que nós somos descentrados em razão da nossa inserção na linguagem, de que somos descentrados em razão da nossa inserção em processos sociais preexistentes, e assim por diante. A meu ver, isso está correto. Mas enquanto sujeitos individuais, na verdade, somos duplamente descentrados. Nós somos descentrados devido a nossa inserção em processos sociais e linguísticos, e internamente nós somos descentrados devido à força daquilo que Freud chamou de “inconsciente reprimido”. Se levarmos a sério essa ideia de que como indivíduos somos duplamente descentrados, torna-se bastante desafiador para a análise social mapear as condições da socialidade, sobretudo quando passamos por períodos de intensa e extensa mudança social, como agora. Então essa é uma primeira aproximação ao problema. Isso me leva ao campo das emoções. Foi Vladimir Lenin quem afirmou que “as emoções não são trabalhadores qualificados”, e é um equívoco pensar que somente uma sociologia orientada pela reflexividade possa captar esse ponto. Acredito que podemos construir um entendimento analítico mais sofisticado e denso sobre a relação entre self e sociedade, porque considero que a vida emocional - ou aquilo que a psicoterapeuta britânica Susie Orbach (1999ORBACH, Susie. (1999), Towards emotional literacy. Londres, Virago.) chama de “alfabetização emocional” - está no cerne das lutas culturais mais amplas de mulheres e homens, bem como de suas práticas sociais cotidianas.

Você está começando um novo projeto de pesquisa coletivo sobre robótica e inteligência artificial. Se as emoções importam, que desenho futuro você antecipa para as nossas subjetividades e identidades, tendo vista um mundo no qual o afeto e o cuidado passam a ser providos, cada vez mais, por robôs e outros dispositivos inteligentes?

De novo, essa é uma ótima questão e a primeira coisa a dizer é: ninguém pode afirmar com convicção para onde a revolução digital está nos levando. O fenômeno da alfabetização oferece um contraponto interessante. Por um lado, a alfabetização levou dez mil anos para instituir a escrita como prática social, e mesmo depois de um período incrivelmente longo, apenas as elites eram capazes de implementar a escrita como mecanismo de poder social e político. Só depois de um período igualmente longo, a escrita foi disseminada para populações mais amplas. Por outro lado, não faz mais de 25 anos que temos Internet e mídias sociais! E sabemos que é apenas uma questão de tempo até que dispositivos eletrônicos [de comunicação] sejam implantados em nós. É realmente uma revolução! Então, sim, estou interessado nessas coisas e a revolução digital é absolutamente decisiva. A revolução digital é ubíqua: passa pelos dispositivos móveis, o Facebook, o Twitter, as mídias sociais, todas essas coisas. Mas também é muito mais do que isso. Penso que o próximo grande desafio para as Ciências Sociais é se envolver seriamente com a robótica, com a inteligência artificial, com a aprendizagem das máquinas e com a automação crescente não só da vida econômica, mas de inúmeros aspectos da vida social. E como se não bastasse, também é necessário entender que essas transformações estão acontecendo em um contexto de desenvolvimentos científicos surpreendentes em torno da nanotecnologia, da biotecnologia e da ciência da informação. Quando falo com engenheiros e cientistas da computação, eles estão sempre pontuando que esses campos devem ser desatados uns dos outros. É evidente que, do ponto de vista das ciências tecnológicas, isso faz sentido. Entretanto, se o propósito for, como no meu caso, desenvolver uma teoria social abrangente da revolução digital, isso não é decisivo. Penso que estamos apenas no alvorecer dessa revolução. Pelo menos em sociedades como os Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, onde vivo, existe todo um debate público sobre robótica e inteligência artificial, ou seja, sobre o futuro dos empregos e sobre a ansiedade em torno da substituição da mão de obra. Qual a porcentagem de pessoas que serão afetadas e em quais tipos de empregos? Em certa medida, todo o domínio ocupacional será transformado em função da revolução digital. Obviamente, isso envolve muito mais do que apenas empregos, porque me parece que essas transformações de que estamos falando - computação em nuvem, Internet das Coisas, supercomputadores, e outras novidades tecnológicas - irão impactar a maneira como a vida social é conduzida. Por esse motivo, os sociólogos, ao lado de outros pesquisadores das ciências sociais e humanas, têm muito a contribuir. O problema é que muito do debate está sendo confiscado pelos especialistas das áreas técnicas, que costumam revirar os olhos quando escutam que um sociólogo está trabalhando com robótica e inteligência artificial.

Uma coisa vai se tornar bastante clara, ou já é evidente: se observarmos as diferenças entre os países - por exemplo, Alemanha, Estados Unidos, Austrália e Japão - verificamos que há diferentes orientações nacionais e culturais em relação aos objetos inanimados e às novas tecnologias. A razão pela qual nosso projeto sobre a relação entre robótica e cuidado de idosos se concentrou tão vigorosamente no Japão é que lá, para além da liderança no desenvolvimento tecnológico da robótica e do enorme problema demográfico, tem-se uma espécie de predisposição cultural para tecnologias e robótica. Tudo isso terá implicações seríssimas em como o self e os outros se relacionam. Existem algumas abordagens interessantes, por exemplo, a da sociologia da intimidade e seu debate emergente sobre robôs sexuais, uma área em que o Japão parece ser pioneiro. Além disso, muitas feministas e pós-feministas também estão trazendo questões realmente decisivas não apenas acerca da reconfiguração da relação entre o self e o robô, mas de como isso irá repercutir na relação entre o self e o outro. Isto é, qual será o impacto sobre o que entendemos por sexualidade, intimidade, gênero e corpo.

Voltando àquele aspecto que levantei há pouco, sobre a velocidade em que isso está se desenrolando, pode-se dizer que estamos à beira de uma espécie de tsunami tecnológico. É uma formulação muito forte, mas me parece que é absolutamente fundamental que comecemos a nos envolver com essas questões. Obviamente, já existe todo um programa de estudos em ciência e tecnologia e a teoria do ator-rede, programas fortes que estão sendo mobilizados para analisar esses tipos de desenvolvimento, em particular em torno da biotecnologia e da nanotecnologia.

Uma das expressões que aparece com frequência em seus textos recentes é “economia global eletrônica”. Mas em que medida, efetivamente, as novas tecnologias digitais e os sistemas sociotécnicos móveis constituem novas formas de fabricação e reinvenção de si? E aqui enfatizamos a palavra “reinvenção”.

É importante abordar diferentes pontos dessa questão. Quando trabalhei com John Urry no que veio a ser o livro Mobiles lives (Elliott e Urry, 2010ELLIOTT, Anthony ; URRY, John. (2010), Mobile lives. Oxford, Routledge.), estávamos realmente interessados no modo pelo qual os dispositivos móveis, no âmbito cotidiano, começavam a transformar, de um lado, o trabalho e o emprego e, de outro, a vida pessoal e os estilos de vida. Nossa abordagem enfatizou a importância do agendamento [scheduling] e da programação do tempo [timetabling], examinando em que medida a revolução digital representou um deslocamento do “tempo pontual” para o que chamamos de “tempo negociado”. Imaginemos a seguinte situação: se, antes do advento desses dispositivos móveis, eu concordasse em encontrá-los para o almoço e se, nesse caso, marcássemos do outro lado da rua às 13 horas, nós precisaríamos ser pontuais. Não havia uma maneira fácil de avisar ‘olha, estou atrasado’, nem de fazer uma mudança de plano etc. Na era do tempo negociado, nossos planos estão sempre sendo re-agendados, re-programados, ajustados just-in-time1 1 Segundo o Dicionário Financeiro, “Just in time, também conhecida pela sigla JIT, é uma técnica de administração da produção industrial cuja principal característica é a busca pela redução máxima dos estoques […] Na tradução para o português, a expressão just in time significa ‘na hora certa’ […]: cada estágio da linha de produção deve fabricar apenas a quantidade necessária e no momento exato para atender a essa necessidade”. Ver https://www.dicionariofinanceiro.com/just-in-time/ [n.t.]. . No livro também falamos sobre os serviços de entrega just-in-time da nova economia mas, em termos das relações sociais, torna-se claro que agora vivemos uma espécie de existência just-in-time. E não é de se surpreender, porque carregar um desses iPhones que está aqui me gravando falar equivale a transportar uma espécie de minissupercomputador no bolso. Como consequência, tem-se um poder algorítmico incrível. O problema é que a maioria de nós só usa uma fração do que está disponível. Quanto à relação entre as tecnologias digitais e as relações sociais e, em especial, à questão da mobilidade, é interessante constatar quão rapidamente se alteram as formas pelas quais agendamos e re-agendamos, programamos e re-programamos nossas atividades, em tempos cada vez mais individualizados. É o que Barry Wellman (2001WELLMAN, Barry. (2001) “Physical place and cyber place: the rise of networked individualism”. International Journal of Urban and Regional Research, 25 (2): 227-252.) denomina “tempos individualistas ligados em rede” [networked individualist times]. No livro Mobile lives, dedicamos um capítulo a observar - tanto no âmbito das relações de trabalho quanto das relações íntimas - o modo como os casais agendam e re-agendam suas atividades por meio desses dispositivos e como, por sua vez, mobilidades são construídas e reconstruídas.

A reinvenção - tanto de corpos e identidades, quanto de corporações - tem sido uma temática significativa no seu trabalho. Mas há um aspecto dessa “mania de reinvenção” que chama atenção a nós, brasileiros, que fomos recentemente afetados pelas renovações urbanas dos chamados megaeventos: a “reinvenção dos lugares” (Elliott, 2013ELLIOTT, Anthony . (2013a), Concepts of the self. Cambridge, Polity.).

A questão dos lugares é crucial para todo o léxico e vocabulário da reinvenção, porque o lugar - ou o espaço - está aos poucos se tornando um dos principais idiomas pelo qual a economia eletrônica global opera, a meu ver. Sim, existe a reinvenção do self, dos corpos, das mentes. Em seguida, os vários estágios intermediários: a reinvenção das relações interpessoais, da intimidade, da sexualidade. Por fim, a reinvenção dos lugares, das regiões - ao que estamos assistindo com o Brexit e a União Européia. Estamos assistindo à reinvenção das formas de governo transnacionais. Não obstante, no que diz respeito aos lugares, o que mais me interessa, e foco aí muito da minha pesquisa, são os aeroportos. Isso deriva de alguns dos trabalhos realizados no âmbito do Paradigma das Mobilidades, que foi elaborado por John Urry (2000URRY, John . (2000), Sociology beyond societies: mobilities for the twenty-first century. Nova York, Routledge.; 2007URRY, John . (2007), Mobilities. Cambridge, Polity.), Sven Kesselring (2006KESSELRING, Sven. (2006), “Pioneering mobilities: new patterns of movement and motility in a mobile world”. Environment and Planning A, 38 (2): 269-279.), junto a outros colegas. Fiquei realmente interessado no tema, bem como no sistema de carros, na maneira em que as automobilidades se cruzam com a reinvenção dos lugares. Especialmente fascinante é a reinvenção dos lugares que surge das aeromobilidades, porque quanto mais eu estudava os aeroportos mais eu me dava conta de que as cidades estão crescentemente sendo reinventadas à sombra dos aeroportos. Os aeroportos são, pois, esses notáveis compêndios de cidades futuras que os arquitetos, os urbanistas e os analistas de políticas sociais parecem ter absorvido de algum modo e que agora estão sendo reproduzidos em suas concepções do que deve ser a cidade. Passei um longo período tentando observar os modos de se morar nos espaços e lugares dos aeroportos. Fiquei muito interessado nas ideias de “experimentação” e de “atmosfera” (Elliott e Radford, 2015ELLIOTT, Anthony & Radford, David. (2015), “Terminal experimentation: the transformation of experiences, events and escapes at global airports”. Environment and Planning D: Society and Space, 33 (6): 1063-1079.; Elliott et al., 2016ELLIOTT, Anthony ; URRY, John ; RADFORD, David & PITT, Nicola. (2016), “Globalisations utopia? On airport atmospherics”. Emotion, Space and Society, 19: 13-20.).

No tocante à experimentação, fui influenciado pelos escritos de Nigel Thrift sobre experimentalismo e “economia experimental” (Thrift, 2011THRIFT, Nigel. (2011), “Lifeworld Inc - and what to do about it”. Environment and Planning D: Society and Space, 29 (1): 5-26.). Com frequência isso pode soar pretensioso e até um pouco abstrato, mas penso que é tudo menos isso. Se voltarmos ao argumento de Francis Fukuyama de que chegamos ao fim da história (Fukuyama, 1992FUKUYAMA, Francis. (1992), The end of history and the last man. Nova York, Free Press.), claramente ele se mostrou equivocado. Não somente a crise financeira global, mas o surgimento de Trump, do Brexit e de muitas outras coisas que apontam para as limitações desse ponto de vista. Não estamos no fim da história, mas antes no que Tony Giddens chamou de “à margem da história”. Estamos entrando em tempos cada vez mais experimentais, nos quais homens e mulheres provam e testam as coisas como nunca. E agora vemos isso nos aeroportos. Na conferência de ontem, comentei que os aeroportos antes limitavam-se à provisão de serviços e a instalações aeronáuticas, enquanto hoje a maior parte de suas rendas advém de serviços e instalações não aeronáuticas. Evidentemente, sabemos que os aeroportos são compostos, em grande medida, pelo varejo especializado, pelo duty free etc. Esse tem sido o caso há bastante tempo. Agora, porém, eles são muito mais do que isso, são destinos em si mesmos. As pessoas entram no TripAdvisor e são capazes de descobrir para qual aeroporto elas querem ir, qual o melhor aeroporto para se passar o tempo. Quer seja para se hospedar nos hotéis de luxo ou para visitar a galeria de arte dos mestres holandeses no aeroporto Schiphol, em Amsterdã, ou fazer uma cirurgia cosmética na AirportClinic M, em Munique, ou então jogar golfe no aeroporto de Incheon, na Coreia do Sul. Tudo isso faz parte de um mundo sobredeterminado pela viagem, pelo transporte e sobretudo pelo turismo. É interessante notar que, sendo o turismo a maior indústria do planeta, estamos assistindo a um novo tipo de consumismo ou a chegada de “transumidores” [transumers] que se deslocam através dos aeroportos (Elliott e Radford, 2015ELLIOTT, Anthony & Radford, David. (2015), “Terminal experimentation: the transformation of experiences, events and escapes at global airports”. Environment and Planning D: Society and Space, 33 (6): 1063-1079.).

Em alguns dos seus trabalhos, pode-se dizer que a internet emerge como um campo relevante para a pesquisa sociológica, especialmente no que diz respeito aos efeitos da globalização sobre a experiência pessoal. Os sociólogos deveriam utilizar mais o mundo digital como fonte de dados? Como isso poderia ser feito? Há implicações metodológicas e éticas, por certo.

É interessante ouvir alguns dos meus trabalhos caracterizados dessa forma. Eu nunca pensei estar privilegiando a Internet. Em termos do paradigma das mobilidades, a globalização da vida social opera por meio de quatro campos que se intersectam: mobilidades físicas; mobilidades comunicativas; mobilidades virtuais; e o que é absolutamente crucial, mas que muitas vezes é deixado de lado, mobilidades imaginativas. Ora, na minha pesquisa eu tento reunir esses quatro campos. Mas é obviamente impossível dar conta de tudo ao mesmo tempo. Em Mobile lives (Elliott e Urry, 2010ELLIOTT, Anthony ; URRY, John. (2010), Mobile lives. Oxford, Routledge.), por exemplo, investigamos um casal que estava vivendo junto, mas que durante a semana não coabitava por conta de seus empregos. Nesse relacionamento, a mulher gastava uma enorme quantidade do seu tempo viajando a trabalho em seu carro. Ela reformou o carro, em parte via Internet, para poder realizar todo tipo de conexões pessoais e íntimas, justamente porque ela estava sendo levada para longe de sua família e de seus amigos mais chegados. E não é de se surpreender que, naquele caso, uma grande ênfase fosse colocada nas mobilidades virtual e comunicativa, embora também tivéssemos necessariamente que olhar para a física e para a imaginativa.

Entendo que essas coisas levantem enormes questões metodológicas. Essa não é uma área, porém, na qual tive uma contribuição muito significativa. Lembro quando John Urry, Monika Büscher e outros trabalhavam no livro Mobile methods (Büscher et al., 2010BÜSCHER, Monika; URRY, John & WITCHGER, Katian (eds.). (2010), Mobile methods. Abingdon, Routledge.), e pensei comigo “uau, esse é um empreendimento tão corajoso!” A maior parte do meu trabalho é muito mais impulsionada por preocupações ontológicas do que metodológicas.

No paradigma das mobilidades, a mobilidade não é tratada como mero tema, quer da sociologia, quer de outras disciplinas. Entende-se que ela é parte intrínseca de uma profunda transformação na própria definição de sociedade e do papel da teoria social. Como você vê o futuro da sociologia diante dos desafios de uma vida móvel e da aceleração dos processos sociais?

Bem, eu adoraria ser otimista e lhe dizer que as coisas estão indo bem, mas infelizmente esse não é o caso. Estou ligeiramente pessimista por estarmos vivendo um contexto fora do comum. Há toda uma confluência de forças na qual o paradigma das mobilidades com certeza desempenha um papel importante ao nos fazer visualizar melhor o fenômeno atual, assim como nos debates sobre a globalização, sobre identidade e sobre outras temáticas interdisciplinares. Uma questão relevante hoje é a crescente profissionalização das disciplinas. Trabalhei por muito tempo no Reino Unido e lá tínhamos que fazer um exercício de avaliação de pesquisa [Research Assessment Exercise] que, nos departamentos de sociologia, influenciou drasticamente os tipos de trabalho e os tipos de pesquisa que eram considerados dignos de serem realizados2 2 O Research Assessment Exercise foi implantado no Reino Unido pela primeira vez na segunda metade da década de 1980, durante o governo de Margaret Thatcher. Era, então, aplicado aproximadamente a cada cinco anos para avaliar a qualidade das instituições de ensino superior britânicas. Os resultados serviam para determinar o montante de financiamento disponível para cada instituição. O último ano de aplicação foi 2008, quando foi substituído por outro método de avaliação [n.t.]. . Eram promovidos principalmente projetos de curto prazo, de rápido retorno, episódicos e feitos em equipe. Tempos depois, o Research Assessment Exercise chegou à Austrália numa feição semelhante. Minha preocupação é que os desafios impostos por esse padrão de produtividade podem levar à perda da capacidade de se realizar uma ciência social verdadeiramente crítica. Isto é cada vez mais recorrente: cientistas sociais que escrevem artigos e livros apenas para outros cientistas sociais e que não estão suficientemente engajados no debate público e político. Digo isso com a plena consciência de que existem verdadeiras e admiráveis exceções. Tive a sorte de viver e trabalhar no Reino Unido no momento em que, por exemplo, não se podia folhear o jornal The Guardian sem se deparar, na seção de opinião, com as contribuições de Ulrich Beck, Zygmunt Bauman, Jürgen Habermas, Julia Kristeva etc. Foi um período extraordinário. E não apenas na seção de opinião, pois tínhamos sociólogos proeminentes influenciando a política, como Giddens o fez. Ele aconselhava o governo Blair, ele aconselhava Bill Clinton… Tudo parecia possível! Era realmente um tipo de sociologia re-energizada. Quando viajo para a América do Norte e vejo o estado atual das conferências na área, com frequência o que me preocupa - eu sei que é uma afirmação forte - é que acabamos conversando apenas entre nós. Estamos tendo diálogos que são diálogos produzidos por sociólogos para sociólogos. É claro que, em parte, as coisas estão como deveriam ser, pois todas as profissões e áreas implicam cortes analíticos profundos para que possam fazer aquilo que devem fazem: gerar um campo de conhecimento e compartilhar esse campo entre os profissionais da área. Contudo, eu acho que precisamos desenvolver maneiras de reconhecer que tais cortes analíticos profundos deveriam ser trazidos de volta, por assim dizer, à esfera pública e política e, desse modo, ser reconectados às mulheres e aos homens com os quais estamos envolvidos, tentando extrair sentido de suas vidas. Ou seja, ser capaz de ter um tipo de diálogo mais amplo. Simplesmente não estamos nos dando o trabalho de fazer isso, e mesmo quando a profissão tenta fazer, ela o faz dizendo ‘pois bem, teremos uma edição especial do periódico sobre o futuro da sociologia pública’. Muitas vezes essas pessoas sequer imaginam o que seja sociologia pública. Mas há livros que têm conseguido cruzar essas barreiras. Zygmunt Bauman, por exemplo, procurou popularizar a sociologia, levá-la para um público mais amplo. Não surpreende que sua morte tenha tido um grande impacto, muito além do mundo acadêmico. No Brasil, sei que sua morte impactou não apenas a academia, mas mobilizou homens e mulheres em todo o país.

E é esse tipo de trabalho de “popularização da ciência” que você realiza no Hawke eu Institute?

Sim e não. Sim pelo fato de que pessoas como Tony Giddens, meu orientador de tese, e Zygmunt Bauman, amigo pessoal, me influenciaram bastante. Quando escrevi Reinvention (2013ELLIOTT, Anthony . (2013b), Reinvention. Londres, Routledge.), meu editor na Routledge, Gerhard Boomgaarden, me encorajou a ter em mente um público mais amplo, ‘para além da academia’, como ele disse. Eu também busquei fazer isso nos livros Making the cut (2008ELLIOTT, Anthony. (2008), Making the cut: how cosmetic surgery is transforming our lives. Londres, Reaktion.), The new individualism (2009ELLIOTT, Anthony & LEMERT, Charles. (2009), The new individualism: the emotional costs of globalization. Londres, Routledge.) e alguns outros, tentei escrever livros nessa linguagem acessível. Não sei em que medida fui bem-sucedido, mas estou realmente feliz por ter tido a oportunidade. Ampliei os horizontes e entrei em contato com a indústria e com os negócios, com outras comunidades, de uma forma com que jamais havia me defrontado. Junto à equipe em que trabalho na Universidade da Austrália Meridional, há muitos projetos de pesquisa financiados e muitos projetos científicos diferentes. Nós somos financiados pelo Conselho Australiano de Pesquisa (ARC), pela Fundação Toyota, no Japão, e pela Comissão Europeia através das ações do Erasmus+ Jean Monnet.

Mas você também está influenciando as políticas públicas.

Sim, nós tentamos fazer isso, o que de fato é importante. Na Universidade da Austrália Meridional isso se dá em parte devido à influência do ex-Primeiro Ministro Bob Hawke. Fui diretor do Hawke Research Institute por muitos anos, um dos maiores institutos de pesquisa australianos em ciências sociais, humanidades e artes criativas. Nele trabalhei com pessoas fantásticas, incluindo Eric Hsu (especialista em teoria social e aceleração social), e David Radford (especialista em superdiversidade e multiculturalismo). No instituto, comecei um grande programa de conferências, trazendo vários intelectuais públicos para ministrar palestras tanto em Adelaide como em outras cidades da Austrália - nomes tais como Germaine Greer, Nigel Thrift, Helga Nowotny, John Urry, Charles Lemert.

Você hoje é diretor executivo do Hawke eu Centre em “Mobilidades, migrações e transformações culturais”, um centro de pesquisa interdisciplinar preocupado com muitos dos temas das mobilidades tratados nesta entrevista. Como é trabalhar com uma equipe transdisciplinar de pesquisa que tem por meta influenciar o debate público mais amplo e repensar as políticas públicas?

Sim, o Hawke EU Centre, como o nome já diz, é uma iniciativa da Comissão Europeia em parceria com a Universidade da Austrália Meridional. A criação do Centro propiciou uma situação de “tábula rasa” para que pudéssemos montar uma notável equipe de sociólogos, de cientistas políticos, de pesquisadores das relações internacionais, de pesquisadores dos estudos culturais e de muitos outros que trabalham na área das ciências humanas e também das artes criativas. O centro surgiu do já existente Hawke Research Institute, que agregava cerca de 125 pesquisadores - um instituto muito grande. Nem todos esses pesquisadores vieram trabalhar no Hawke eu Center, mas, na condição de centro financiado pela União Europeia, nós tivemos a sorte de poder montar vários nódulos ou plataformas de pesquisa. Estamos trabalhando com múltiplos tópicos, desde a superdiversidade e a migração forçada até a questão das mobilidades globais e do Paradigma das Mobilidades. Existe, pois, uma grande ênfase nas viagens, no transporte, no turismo, no surto de migrações forçadas, na globalização e na nova economia, dentre outros temas. O financiamento pela Comissão Europeia estabeleceu os parâmetros para que pudéssemos nos envolver em trabalhos interdisciplinares de alcance global. Foi extraordinário! Ao mesmo tempo, por ter sido financiado pela Comissão Europeia, existe um foco na diplomacia pública. Temos procurado desenvolver fóruns de debate de alto nível. Para o Centro, trata-se de um papel diplomático que se encaixou bem com o interesse mais amplo da Universidade em questões de justiça social e de inclusão e assim por diante. O Centro é realmente capaz de fazer essas duas coisas paralelamente, tanto a diplomacia científica como a diplomacia pública. Quando me encontro com os outros diretores do Centro, nós observamos o que está acontecendo na instituição e, algumas vezes, achamos que aquilo está indo bem, outras nós simplesmente pensamos que ‘está acontecendo coisa demais’. Acredito que deve ser assim também em outros centros e institutos de pesquisa…

Grande parte dos pesquisadores - pelo menos esta é a nossa impressão - que se identificam com o paradigma das mobilidades tem elegido objetos que se encontram em um de dois extremos: ou se voltam para as hipermobilidades das elites ou para o que você chama de “lado obscuro das mobilidades”, isto é, os refugiados, os que buscam asilo etc. Como sociólogos que fazem sociologia e vivem numa megacidade como São Paulo, parece-nos que, entre esses dois extremos, há um universo inteiro de mobilidades ordinárias que, como tais, marcam a vida cotidiana dos que residem no Sul Global. A contrapelo da ideia de que os pobres urbanos estão aprisionados em guetos, o que observamos empiricamente são pessoas em movimento pela cidade. Essas pessoas logram se movimentar pelos espaços digitais - isso apesar dos altos níveis de exclusão digital que enfrentamos no Brasil. Elas conseguem se deslocar pelos espaços públicos - a despeito dos altos níveis de vigilância e de discriminação. Você acredita que o conceito de “capital de rede”, desenvolvido no livro Mobile lives (Elliott e Urry, 2010ELLIOTT, Anthony ; URRY, John. (2010), Mobile lives. Oxford, Routledge.), pode ser utilizado como uma chave importante para a compreensão das mobilidades como uma das principais bases da desigualdade social? Acreditamos que seja o caso e gostaríamos de ouvi-lo a respeito. Como podemos usar o “capital de rede” para compreender esse tipo de relação mais nuançada entre as mobilidades e as imobilidades em contextos urbanos marcados por dinâmicas profundamente desiguais?

Outra vez, essa é uma grande questão. A dicotomia reproduzida nas diferentes pesquisas em ciências sociais, essa espécie de dualismo a que vocês se referem, entre as mobilidades das elites globais (há um capítulo em Mobile lives no qual nós olhamos para “os globais”) e os tipos de mobilidades forçadas e de imobilidades daqueles que estão nas margens, nas extremidades, isto é, a vida dos excluídos, é lamentável. Uma das grandes contribuições de John [Urry] ao Paradigma das Mobilidades, como eu entendo, foi substituir esse dualismo por uma dualidade. John insistia recorrentemente que as mobilidades só podiam ser entendidas em relação às imobilidades. Eu abordaria essa questão da seguinte forma: para um executivo fazer check-in em um lounge da classe executiva, com seu laptop e celular, o que torna esse mundo possível, o que o torna passível de mobilidade é o mundo relativamente fixo - mas não necessariamente imóvel - do carregador de bagagens e do faxineiro do aeroporto. É claro que há toda diferença do mundo entre esses dois tipos de mobilidades, entre as formas de mobilidades que essas vidas móveis produzem, assim como as desigualdades que delas decorrem.

Faço aqui um corte da academia para outra realidade, algo que tive a sorte de observar no mundo das consultorias. Acho que a seguinte cena diz muito: eu estava trabalhando como consultor para uma grande empresa na Finlândia, refletindo sobre a mobilização das mentes - baseando-me muito no paradigma das mobilidades, mas não necessariamente usando seu vocabulário. Eles foram muito educados comigo, me escutaram falar, tivemos uma longa discussão naquela manhã. Em seguida, durante a pausa do almoço, o CEO da empresa me disse, na cantina dos funcionários, lugar onde a maioria dos trabalhadores almoçavam: ‘sim, o que você está falando é fascinante e tudo, mas é evidente que não se aplica seriamente às pessoas que aqui trabalham, e você sabe, eles não são assim tão móveis’. Por eu ter viajado da Austrália para a Finlândia para dar aquela palestra, talvez parecesse que eu era uma pessoa supermóvel. A julgar pelo estilo de vida do CEO, todos aqueles diretores eram supermóveis. Mas, em sua concepção, aqueles outros trabalhadores eram profundamente fixos e até mesmo imóveis. No mesmo momento em que ele me falava aquilo - e aqui voltamos ao ponto de que as mobilidades estão sempre entrelaçadas com as imobilidades -, era possível observar todas aquelas pessoas, aqueles trabalhadores, trocando mensagens de texto enquanto esperavam pelo almoço. De repente um deles está em outro lugar, certamente sonhando com o próximo feriado e planejando uma viagem a Phuket ou a Las Vegas, Suécia, Noruega, onde quer que seja. Eu olhei para ele e pensei: “é incrível que existam noções tão fixas sobre quem é móvel e quem não é móvel”. Eu só quis lhes contar esse caso porque sempre permaneceu comigo como uma forma muito concreta de materialização do problema das mobilidades - e que nos remete ao modo como John Urry insistia que entendêssemos essas coisas.

Mas voltemos ao conceito de “capital de rede”. É claro que o dinheiro sempre foi importante e não estou sugerindo, de forma alguma, que seja menos importante agora do que era no passado. Possivelmente, estamos entrando numa etapa do capitalismo e da economia eletrônica global em que o dinheiro, como significante, foi deslocado à segunda potência, por assim dizer. O que é interessante com relação à estratificação social é que, atualmente, as mobilidades compartilham o mesmo poder, estão lado a lado com o dinheiro, com o poder econômico, ambos têm a mesma capacidade de influência. Assim, a capacidade de se mover e, em particular, o poder e a capacidade de estar em qualquer lugar que se queira é fundamental. Isso é evidente em muitos âmbitos da vida. Acabei de refletir sobre a universidade, onde passo a maior parte do tempo. Quando se vai a qualquer reunião de comissão universitária ou de diretores (presumo que seja o mesmo no Brasil), as pessoas sentam e podem até dar um ‘oi’ rápido, mas em seguida a primeira coisa que fazem é enviar mensagens de texto e checar seus e-mails. Não é algo ponderado, mas irrefletido - um “reflexo”, para usar a terminologia de Beck. Trata-se, com efeito, da capacidade de estar em outro lugar, de ser outro e de ser capaz de se erguer acima de ambientes crescentemente experimentados como aprisionantes, problemáticos, difíceis, sobrecarregados. É assim que vejo a contribuição de Bauman e a noção de “modernidade líquida”: a capacidade de ser leve passou a ser valorizada. Vemos isso em tantos planos, não apenas na esfera dos corpos, mas nas práticas institucionais e nas organizações: a capacidade de ser adaptável, de ser flexível e de se transformar constantemente, tudo isso adquiriu uma centralidade incomensurável.

Para encerrar, e evocando novamente o nome de John Urry, que esteve presente em tantos momentos desta nossa conversa: qual é o principal legal de Urry para a sociologia e para tudo isso que discutimos aqui?

Vou dividir a resposta em três pontos. Primeiro, o principal legado de Urry é, acima de tudo, sua sofisticada teoria social das mobilidades. Os trabalhos iniciais sobre classe, sobretudo o trabalho que ele fez com Scott Lash sobre o capitalismo desorganizado, (Lash e Urry, 1987LASH, Scott &URRY, John . (1987), The end of organized capitalism. Madison, University of Wisconsin Press.) é interessante, mas o trabalho maduro de Urry sobre as mobilidades e sobre o paradigma das mobilidades é sua grande conquista. A meu ver, sua reescrita da ciência social, que foi se afastando de uma noção estática e fixa de sociedade e indivíduo em direção a um domínio muito mais fluido de movimentos e mobilidades, é de importância vital para o pensamento social contemporâneo. Sua segunda maior contribuição, se olharmos sua obra como um todo, foi o modo como ele cruzou os temas, tópicos e questões. Isso remonta àquele ponto sobre uma sociologia verdadeiramente engajada, do ponto de vista político e público. Urry desenvolveu uma abordagem guiada por tópicos em contínuo encadeamento, cada livro facilmente conduzindo ao seguinte. Se observarmos, por exemplo, o movimento que vai do trabalho sobre aeromobilidades (Cwerner et al., 2009CWERNER, S.; KESSELRING, S. & URRY, J. (eds.). (2009), Aeromobilities. Nova York, Routledge.) ao trabalho sobre mudanças climáticas (Urry, 2011URRY, John . (2011), Climate change and society. Cambridge, Polity.), do trabalho sobre mudanças climáticas ao trabalho sobre o petróleo (Urry, 2013URRY, John . (2013), Societies beyond oil: oil dregs and social futures. Londres, Zed Books.), e do trabalho sobre as vidas móveis (Elliott e Urry, 2010ELLIOTT, Anthony ; URRY, John. (2010), Mobile lives. Oxford, Routledge.) ao trabalho sobre futuros (Urry, 2016URRY, John . (2016), What is the future? Cambridge, Polity.), você percebe que John estava forjando um percurso sistemático em direção a problemas de grande importância na agenda global. Ao fazê-lo - e com uma competência impressionante -, John reconectou a sociologia com aquilo que mais interessa às pessoas comuns. Por fim, a terceira e última tem a ver com sua incansável disposição de ajudar os pares, em especial pesquisadores em começo de carreira. John era o “capital de rede” nele mesmo: estava sempre colocando as pessoas em contato umas com as outras, mencionando-as de forma cruzada, criando redes. Uma característica também observável em seus textos, sobretudo nas tantas referências cruzadas presentes em suas notas de rodapé. John tinha uma indisputável habilidade para falar sobre o próprio trabalho. Ao falar de si, porém, sempre fazia referência ao trabalho de outros. A grande façanha de John Urry foi ser realmente interdisciplinar. Ele lia sobre todas as ciências humanas, e existem poucas pessoas das quais se possa dizer o mesmo. E não apenas: John tinha interesse genuíno pelas ciências duras, algo evidente em seu livro sobre teorias da complexidade (Urry, 2003URRY, John. (2003), Global complexity. Cambridge, Polity.). Quando estava escrevendo o livro sobre mudanças climáticas, John passou um ano inteiro lendo relatórios técnicos, num esforço incrível para um leigo. Uma contribuição inestimável.

Sim, John Urry foi um ser humano fascinante. E lhe agradecemos muito por nos ajudar a homenageá-lo nesta entrevista.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    Segundo o Dicionário Financeiro, “Just in time, também conhecida pela sigla JIT, é uma técnica de administração da produção industrial cuja principal característica é a busca pela redução máxima dos estoques […] Na tradução para o português, a expressão just in time significa ‘na hora certa’ […]: cada estágio da linha de produção deve fabricar apenas a quantidade necessária e no momento exato para atender a essa necessidade”. Ver https://www.dicionariofinanceiro.com/just-in-time/ [n.t.].
  • 2
    O Research Assessment Exercise foi implantado no Reino Unido pela primeira vez na segunda metade da década de 1980, durante o governo de Margaret Thatcher. Era, então, aplicado aproximadamente a cada cinco anos para avaliar a qualidade das instituições de ensino superior britânicas. Os resultados serviam para determinar o montante de financiamento disponível para cada instituição. O último ano de aplicação foi 2008, quando foi substituído por outro método de avaliação [n.t.].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2017
  • Aceito
    11 Jan 2018
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