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Apresentação

Cara leitora, caro leitor, o Dossiê apresentado neste número da revista Tempo Social adota por tema a “teoria crítica”. Denominação corrente no âmbito das ciências humanas, esse termo designa a produção teórica do grupo de intelectuais alemães, reunidos, inicialmente, em torno do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt. O Instituto foi criado com o objetivo de atualizar e renovar o marxismo, numa direção destoante e independente da doutrina formulada pela Segunda e pela Terceira Internacionais. Esse propósito só é desenvolvido plenamente a partir de 1930, quando Max Horkheimer assume a direção do Instituto. Horkheimer congrega, como pesquisadores ou como colaboradores da Revista de Pesquisa Social, uma plêiade de autores que se notabilizarão por contribuições decisivas para a compreensão da sociedade capitalista: Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm, Friedrich Pollock, Leo Löwenthal, Kurt Albert Gerlach, Otto Kirchheimer e Franz Neumann, entre outros.

O Dossiê, dadas as suas dimensões, não se propõe a tarefa de apresentar estudos sobre cada um desses autores ou mesmo de reconstituir trajetórias individuais. Tampouco seria factível contemplar as inúmeras tendências que orientam os comentários sobre o pensamento dos autores da Escola de Frankfurt. Procurou-se aqui, sobretudo, trazer à tona pesquisas representativas, muitas delas pouco divulgadas, da recepção atual da teoria crítica no Brasil. Nos dois últimos decênios, Jürgen Habermas, apesar de sua reconhecida relevância, deixou de ser considerado como o autor mais importante dessa linhagem (ou ainda como o comentador mais abalizado de seus antecessores). Abriu-se caminho, assim, para um movimento de revalorização da primeira teoria crítica. As obras e os conceitos de Horkheimer (1988aHORKHEIMER, Max. (1988a [1931]), “Die gegenwärtige Lage der Sozialphilosophie und die Aufgaben eines Instituts für Sozialforschung”. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main, Fischer, vol. 3, pp. 20-35.; 1988bHORKHEIMER, Max. (1988b [1937]), “Traditionelle und kritische Theorie”. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main, Fischer, vol. 4, pp. 162-216.), Marcuse (1964)MARCUSE, Herbert. (1964), One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society. Boston, Beacon. e Adorno (Horkheimer e Adorno, 1987HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. (1987) [1944]), Dialektik der Aufklärung. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main, Fischer, vol. 5, pp. 16-290.), reavaliados e atualizados, foram adotados como guias para a compreensão do presente histórico.

O presente Dossiê reúne sete artigos e uma entrevista. Congrega autores com extensa produção sobre a teoria crítica, desenvolvida nas últimas décadas; importantes pesquisadores estrangeiros, ainda pouco conhecidos no Brasil; e também contribuições de uma jovem geração de intelectuais, a maioria com doutorados defendidos recentemente.

O entrevistado desse Dossiê é Gabriel Cohn, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A partir dos anos de 1960, ele concentrou parte de suas atividades intelectuais na apresentação, organização e tradução de livros de Theodor Adorno. A trajetória de Cohn, no entanto, não se destaca apenas por esse esforço de divulgação. Em sua vasta produção teórica dedicou uma série de artigos à compreensão da teoria crítica. A originalidade de seus comentários, dotados de uma sutileza e de um refinamento ímpar, exerceu forte influência sobre os estudos da nova geração. Na entrevista, discorre, entre outros tópicos, sobre a recepção da teoria crítica entre nós, sobre a compreensão e a atualidade do conceito de indústria cultural, a relação entre Theodor Adorno e Max Weber, sobre a Minima moralia e o potencial de contribuição do frankfurtiano para a interpretação do Brasil.

O artigo “Racionalismo e reificação em História e consciência de classe” ressalta a especificidade que esses conceitos adquirem no livro de Georg Lukács. Mostra sua singularidade por meio de uma comparação com seu significado na filosofia de Kant e na sociologia de Weber. Apresenta também os vínculos entre “racionalismo” e “reificação”, salientando o modo como Lukács se apropriou do conceito de “fetichismo da mercadoria”, desdobrado por Marx em O capital. Publicado em 1923, História e consciência de classe (2003LUKÁCS, Georg. (2003 [1923]), História e consciência de classe. São Paulo, Martins Fontes.) é considerado, quase consensualmente, como um dos marcos de fundação do marxismo ocidental. Ricardo Musse destaca, assim, a contribuição desse livro para a gênese da teoria crítica, privilegiando tópicos e conceitos que se tornaram centrais no arcabouço teórico da Escola de Frankfurt.

“Unhappy consciousness, one-dimensionality, and the possibility of social transformation” retoma a teoria crítica de Herbert Marcuse, destacando fatores e conceitos que iluminam as contradições e os embates da sociedade unidimensional. Privilegia, entre outros tópicos, uma constelação conceitual em torno do que denomina “consciência infeliz”, mostrando sua pertinência para a compreensão do capitalismo atual. Para tanto, Arnold Farr reconstrói parte do diálogo crítico de Marcuse com a psicologia social de Sigmund Freud. Sua atualização desses e de outros elementos do pensamento de Marcuse permite pensar as condições e possibilidades da mudança social na contemporaneidade.

“Critical theory and social inequality” desdobra a relação entre a teoria crítica e a desigualdade social, conectando duas perspectivas em princípio independentes. De um ponto de vista epistemológico, salienta que, uma vez que os cientistas sociais não podem ser isolados de seu objeto de estudo – a sociedade –, molda-se uma interdependência na qual a estrutura da sociedade influencia as modalidades de compreensão social. Boike Rehbein associa essa situação com uma inevitável dimensão ética, inerente aos posicionamentos e ações numa sociedade desigual. Essa reflexão caracteriza a teoria crítica desde os seus primórdios.

“Unfettered capitalism: on rackets, cronies and mafiosi” parte da exposição do conceito e da teoria dos rackets. Desenvolvida nas pesquisas sobre relações entre determinados grupos, na Chicago dos anos de 1930, essa teoria foi desdobrada por Horkheimer e Adorno em estudos e esboços prévios à redação de Dialética do esclarecimento. Por meio de uma apropriação crítica dessas reflexões, Stefan Klein e Ricardo Pagliuso Regatieri procuram compreender as dinâmicas de desmonte do assim chamado “Estado de Bem-Estar Social”, destacando as articulações hodiernas dessas formas de dominação. Estas, que também se manifestam por meio de grupos de mafiosos e do cronyism, constituem fatores importantes na configuração do capitalismo contemporâneo.

“Estática e dinâmica do capitalismo tardio na teoria crítica” debruça-se sobre os diagnósticos de época que Theodor Adorno e Herbert Marcuse formularam durante a prevalência dos regimes nazifascistas e, posteriormente, no pós-guerra. Trata-se do ponto de partida para uma interpretação de determinados aspectos da teoria social de Theodor Adorno e Herbert Marcuse. Caio Vasconcellos e Vladimir Puzone destacam que Adorno e Marcuse comungam o propósito de compreender o capitalismo, valendo-se da dialética entre aspectos dinâmicos e certa invariância estática, que lhe é característica. Para tanto, estabelecem um diálogo com sociólogos como Auguste Comte e Émile Durkheim que concedem relevância a essa polaridade em suas teorias. Na parte final desenvolvem breves reflexões sobre como os conceitos da teoria crítica podem contribuir para a interpretação de fenômenos sociais contemporâneos.

“O fetichismo na ciência e a crise da razão” destaca a crítica do empreendimento científico moderno desenvolvida por Theodor Adorno e Max Horkheimer, notadamente em Dialética do esclarecimento. Por meio dessa exposição desdobra, na contramão da versão predominante, uma interpretação própria da teoria crítica. Fábio De Maria e Carlos Henrique Pissardo salientam “uma continuidade de fundo” entre as reflexões desses autores nos anos de 1930 e as que formulam durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, mediada pelas transformações do capitalismo, sobretudo, no que concerne à integração do proletariado e à reconfiguração do uso da técnica. Defendem, ainda, o teor histórico-materialista da interpretação de Adorno e Horkheimer dos processos de subjetivação da razão e de inversão da ciência em magia.

Por fim, “Socialização e dominação: a Escola de Frankfurt e a cultura” debruça-se sobre textos de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse que, com peculiaridades e nuances, partilham um diagnóstico geral a respeito do funcionamento da cultura no “mundo administrado”. Bruna Della Torre de Carvalho Lima e Eduardo Altheman Camargo Santos destacam que a cultura, especialmente no pós-guerra, passa a ser investigada, por esses autores, como uma instância privilegiada de socialização e subjetivação.

Referências Bibliográficas

  • HORKHEIMER, Max. (1988a [1931]), “Die gegenwärtige Lage der Sozialphilosophie und die Aufgaben eines Instituts für Sozialforschung”. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften Frankfurt am Main, Fischer, vol. 3, pp. 20-35.
  • HORKHEIMER, Max. (1988b [1937]), “Traditionelle und kritische Theorie”. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften Frankfurt am Main, Fischer, vol. 4, pp. 162-216.
  • HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. (1987) [1944]), Dialektik der Aufklärung In: HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften Frankfurt am Main, Fischer, vol. 5, pp. 16-290.
  • LUKÁCS, Georg. (2003 [1923]), História e consciência de classe São Paulo, Martins Fontes.
  • MARCUSE, Herbert. (1964), One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society Boston, Beacon.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2018
  • Aceito
    23 Out 2018
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