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Vocação deambulatória e convivência com deserdados: caminhadas de Lima Barreto pelo centro do Rio de Janeiro

Walking vocation and familiarity with the poor: Lima Barreto’s walks through Rio de Janeiro’s downtown

Resumo

Através de uma incursão no passado numa perspectiva etnográfica, pretende-se reconstituir aspectos antropologicamente relevantes das vivências do escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1921) na cidade do Rio de Janeiro. Lançaremos um olhar atento às relações entre os citadinos e destes com os espaços urbanos, com base naquilo que emerge das crônicas do autor em questão. Nesse âmbito, também abordaremos aspectos decorrentes das discriminações sociais e raciais sofridas por Lima Barreto, com ênfase na forma como ocorreram em interações na vida urbana.

Lima Barreto; Rio de Janeiro; Crônicas; Caminhadas; Racismo

Abstract

Through an incursion into the past from an ethnographic perspective, our goal is to reconstitute anthropologically relevant aspects of the experiences of the writer Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1921) in the city of Rio de Janeiro. We will take a close look at the relations between city dwellers and at these between city dwellers and urban spaces, taking into account what emerges from the chronicles of this author. In this context, we will also address issues arising from the social and racial discrimination suffered by Lima Barreto, with emphasis on how they occurred in interactions in urban life.

Lima Barreto; Rio de Janeiro; Chronicles; Walks; Racism

Lima Barreto, escritor inusitado

Este artigo dialoga com a proposta desse Dossiê de se pensar, sob um prisma conceitual e empírico, a cidade brasileira através de cotejos específicos entre as dimensões do tempo e do espaço. Nesse sentido, o desafio consiste, através de uma incursão no passado, com certa atitude etnográfica, em reconstituir aspectos antropologicamente relevantes de vivências citadinas de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1921). Com base em referências da antropologia urbana1 1 . Sem percorrer um vasto campo, ver principalmente Arantes (2000), Frúgoli Jr. (2007) e Agier (2011). , lançaremos um olhar atento às relações entre os citadinos e destes com os espaços urbanos, a partir daquilo que emerge em escritos do autor em questão2 2 . “A literatura de Lima Barreto se distribui por seis gêneros: romance, sátira, conto, crônica, epistolografia e memórias” (Sevcenko, [1983] 2003, p. 194). . Nesse âmbito, também abordaremos aspectos decorrentes das discriminações sociais e raciais sofridas por Lima Barreto, com ênfase na forma como emergiram em determinadas interações na vida urbana. Sua vida e obra, já bastante estudadas, têm sido alvo de abordagens intensificadas nos últimos anos, dado que exprimem dimensões e dramas de longa data na vida nacional, com forte repercussão no presente3 3 . Não há espaço aqui para reconstituir a forte repercussão de Lima Barreto na realidade brasileira contemporânea; cabe apenas lembrar que o autor foi o homenageado da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, a chamada Flip (2017). Não é fortuito que o autor e seus escritos constem da abertura de Brasil: uma biografia (Schwarcz e Starling, 2015, pp. 13-15). , e este artigo busca contribuir à luz dos referenciais já delineados.

Isso suscita uma circunscrição inicial concisa sobre Lima Barreto, sem a intenção de um quadro totalizante, com aspectos que serão parcialmente retomados ao longo do texto: trata-se de um escritor, jornalista, cronista e ensaísta que se assumia como negro, à época classificado sobretudo como “mulato”, tendo sofrido uma série de discriminações ao longo de toda a vida. Sua trajetória expressa singularidades ligadas à sua condição de negro (ou mulato), pobre e suburbano, que todavia se tornou funcionário público e intelectual, tendo adquirido uma forte erudição, com a criação de uma pequena biblioteca particular, com centenas de obras4 4 . Seu pai também foi funcionário público, mas perdeu o emprego por motivos políticos e depois enlouqueceu, tendo falecido um pouco depois do próprio Lima Barreto. . Foi um crítico radical do Estado, da Primeira República, das elites, dos arrivismos, dos protecionismos, das reformas urbanas modernizantes, mas também de diversos hábitos e práticas populares, embora em sua obra sejam assinaláveis os personagens dessas classes populares. O reconhecimento desejado de sua obra literária, assinalada por certo estilo crítico sem concessões, não lhe ocorreu em vida, incluindo a frustração pela impossibilidade de pertencer à Academia Brasileira de Letras5 5 . Essa temática é de forte atualidade também para mulheres negras, se pensarmos na candidatura frustrada da escritora Conceição Evaristo à Academia Brasileira de Letras em agosto de 2018. . Por fim, ele sofria de alcoolismo, o que acarretou gradativos problemas de saúde e sucessivas internações, culminando em sua morte precoce, aos 41 anos6 6 . Múltiplas referências foram utilizadas neste parágrafo, com destaque para Francisco de Assis Barbosa ([1952] 1975), Needell (1993), Resende ([1993] 2016), Schwarcz (2017) e Sevcenko ([1983] 2003). .

Lima Barreto residiu num subúrbio do Rio de Janeiro e ao longo da vida realizou trajetos cotidianos ao centro da cidade, sendo que tanto aspectos dos subúrbios quanto da área central carioca foram abordados em seus escritos. Seus textos sobre o Rio da época, presentes num conjunto heterogêneo de produções, reconstituíam cenas significativas da vida urbana, o que transparece sobretudo em suas crônicas; seus escritos eram em geral atravessados por uma ironia advinda da dor7 7 . Ver, a respeito, Resende ([1993] 2016, pp. 84 e 134). , dados os dilemas e dramas enfrentados pelo próprio autor – aqui brevissimamente apresentados.

Dado que a cidade constitui um tema fundamental, o artigo principia a partir do contexto histórico do Rio de Janeiro do início do século XX, vislumbrado nas obras de Lima Barreto e nas similaridades e diferenças do autor em relação a outros escritores contemporâneos, na forma de abordar as transformações pelas quais a cidade passava e no modo de fazer literatura. Em um segundo momento, passa-se a uma sucinta revisão de estudos sobre cronistas que retrataram a vida urbana carioca no período da Primeira República, como João do Rio (Paulo Barreto, 1881-1921), aliada a comparações com a produção de Lima Barreto. Nesse aspecto, as crônicas de Barreto revelam uma descrição perspicaz do cotidiano da cidade a partir de espaços e práticas, que colocam em evidência uma população pouco retratada em obras literárias da época. Nessa parte, pode-se atentar ao modo como aspectos urbanos assinaláveis emergem das deambulações e interações do autor. Por fim, o texto busca refazer trajetos cotidianamente realizados por Lima Barreto no centro da cidade, além das relações estabelecidas por ele nesses espaços, incluindo o olhar de amigos sobre o próprio escritor, buscando recuperar percursos regulares, imersos numa sociabilidade predominantemente masculina, na qual o autor cerrava solidariedade com figuras comuns frequentadoras de bares. Vale ressaltar nosso diálogo com a ideia do caminhar como uma prática do espaço, a partir da qual se podem compreender aspectos urbanos que escapam a uma visão apenas panorâmica (Certeau, [1980] 2014CERTEAU, Michel de. ([1980], 2014), “Caminhadas pela cidade”. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 22 ed. Petrópolis, Vozes, pp. 157-177., pp. 157-177). Em outras palavras, alinhamo-nos ao argumento de que “o conhecimento da cidade é, portanto, um conhecimento produzido pelos percursos” (Silva, 2009SILVA, Hélio Raymundo. (2009), “A situação etnográfica: andar e ver”. Horizontes Antropológicos , 32: 171-188., p. 174).

O Rio de Janeiro da época e especificidades da obra de Lima Barreto

A cidade do Rio de Janeiro do fin de siècle já foi, evidentemente, abordada por um conjunto abrangente de estudos, dado ter sido a capital do país e, assim, condensado diversos fenômenos políticos assinaláveis da chamada Primeira República. A localidade foi alvo de diversas reformas urbanas, decorrentes de intervenções modernizantes durante a gestão do prefeito Francisco Pereira Passos (1903-1906), inspiradas nos bulevares parisienses do Barão de Haussmann, que todavia se concentraram na criação da avenida Central (atual Rio Branco). Isso levou à demolição de aproximadamente setecentos imóveis, que abrigavam uma população pobre e proletária, ali residente em cortiços e estalagens, muitos dos quais trabalhavam no pequeno comércio e em oficinas artesanais (Benchimol, 1982BENCHIMOL, Jaime Larry. (1982), “O Rio de Janeiro na época de Lima Barreto”. In: PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. O Rio de Janeiro de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro , pp. 11-24 (Catálogo da Exposição)., p. 13). Tal processo foi identificado popularmente como “bota-abaixo”, sobretudo pelas vítimas de tal arrasamento, sem falar da perspectiva sanitarista e moralizante articulada a tais reformas (Marins, 1998MARINS, Paulo César Garcez. (1998), “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras”. In: SEVCENKO, Nicolau. (org.). História da vida privada no Brasil , n. 3: República: da Belle époque à era do rádio. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 131-214., p. 145). A avenida Central, inaugurada em 1904, passou a concentrar construções grandiosas, como o Theatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola Nacional de Belas Artes, o Palácio Monroe, além de hotéis, sedes de empresas etc., vindo a ser o novo espaço da elegância burguesa, da moda, da pretensa concretização do bordão “o Rio civiliza-se” (Sevcenko, [1983] 2003SEVCENKO, Nicolau. ([1983] 2003), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Companhia das Letras., pp. 43-58).

Nas abordagens sobre a cidade desse período, de um modo esquemático, articulam-se: (a) o contexto político nacional (na sua capital federal); (b) a paisagem urbana – com especial destaque à rua do Ouvidor, espécie de representação metonímica da capital rumo à modernidade, com sua concentração de cafés, livrarias, sedes de jornais, boutiques, salões (Walty, 2014WALTY, Ivete Lara Camargos. (2014), A rua da literatura e a literatura da rua. Belo Horizonte, Editora da UFMG., p. 41), sobretudo durante o Império, antes da sua substituição como referência de modernidade pela já referida avenida Central; (c) o modo como essas dimensões (políticas e urbanas) foram sintetizadas pelos escritores cariocas mais proeminentes, em geral analisadas posteriormente em conjuntos comparativos, a partir do que se ressaltam as diferentes trajetórias, posições políticas e obras literárias.

Numa exposição concisa, pode-se dizer que tais enfoques ganharam densidade através do estudo referencial de Nicolau Sevcenko ([1983] 2003)SEVCENKO, Nicolau. ([1983] 2003), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Companhia das Letras., ao assumir a “literatura como missão”, frente ao conjunto de desafios e tensões sociais da época, com atenção especial a Lima Barreto ( Idem , pp. 189-234), num contraponto a Euclides da Cunha ( Idem , pp. 153-188). As obras de ambos, marcadas por antinomias, aproximavam-se quanto a uma formação positivista comum, à crença num humanitarismo cosmopolita e a uma espécie de nacionalismo intelectual ( Idem , pp. 140-144), algo presente, dentre outros aspectos – e para o que interessa mais diretamente ao presente texto –, nas críticas do primeiro “ao cosmopolitismo e ao esnobismo arrivista da rua do Ouvidor” ( Idem , p. 145). Para Sevcenko ([1983] 2003SEVCENKO, Nicolau. ([1983] 2003), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Companhia das Letras., p. 234), “Durante todo esse mergulho vertiginoso na sombra da miséria, da insegurança, da abominação social, Lima Barreto deixou seus colegas de boemia e academia pelos companheiros de bar ou de desfortuna”8 8 . Voltaremos a isso adiante. . Pôde “ver o centro da cidade embelezar-se durante suas idas e vindas para o subúrbio […]. Assistiu ao crescimento do preconceito social e racial como um discriminado. Sentiu a repressão e o isolamento dos insociáveis como vítima”.

Ainda segundo Sevcenko ( Idem , p. 190), perscrutava-se, em Lima Barreto, o “anseio de revelar em seus textos um retrato maciço e condensado do presente, carregado do máximo de registros e notações dos vários níveis em que o saber do seu tempo permitia captar e compreender o real […]. Com esse método contundente, o autor podia transmitir direta e rapidamente aos seus leitores a sua concepção e o seu sentimento relativo aos eventos que o circundavam” ( Idem , p. 191). De fato, “tudo concorre para compor um imenso mosaico, rude e turbulento, que despoja a Belle époque de seus atavios de opulência e frivolidade” ( Idem , ibidem ).

Pode-se assim delinear um panorama próximo ao que Jeffrey Needell (1993)NEEDELL, Jeffrey. (1993), Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo, Companhia das Letras. denominou “ Belle époque tropical”, ao tomar o Rio como “capital do século XIX brasileiro”, com os desdobramentos das reformas urbanas, das instituições formais da elite e a ascensão do fetichismo de consumo, e cujo cotejo, por parte da literatura da época, passaria por autores como Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto e Paulo Barreto – pseudônimo de João do Rio (1881-1921) –, até chegar a Euclides da Cunha e Lima Barreto. Sobre o último, Needell ( Idem , p. 256), sob certa inspiração de Sevcenko ( Idem , pp. 224-249), lembra que

[…] mesmo com as oportunidades mencionadas, que permitiram a seus pais, ambos mulatos, casar, fundar uma família, dar uma educação ao filho, e assistir à sua entrada na escola secundária […] o fardo do racismo afinal levou Lima Barreto à ruína. Impedido de se formar pelos preconceitos de um professor, teve a sorte de conseguir uma colocação “decente” como pequeno burocrata ministerial. Para Lima Barreto, o emprego era uma espécie de morte mental lenta. A grandeza literária tornou-se sua obsessão particular, sua única esperança de vingança em uma sociedade cujas pretensões eurófilas, racismo e preconceitos de classe ele assimilara e sofria diariamente ( Idem , p. 256).

Maria Alice Rezende de Carvalho (1994)CARVALHO, Maria Alice Rezende. (1994), Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro, 7Letras., por sua vez, ao tratar da construção intelectual do Rio de Janeiro a partir do final do século XIX, chama atenção para a constatação de um processo inédito de transformações urbanas, o questionamento de determinada noção oficial de progresso, certa proximidade ou identificação de intelectuais “sem lugar” com os excluídos, dos quais, entretanto, não nasceria uma alternativa social consistente (Carvalho, 1994CARVALHO, Maria Alice Rezende. (1994), Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro, 7Letras., pp. 41-42). Numa comparação de Lima Barreto com a visão cética e pessimista de Machado de Assis e com a observação das ruas assinalada por certa desilusão estética de João do Rio, a autora vê em nosso autor uma obra “centrada na denúncia do que considerava a decadência moral e intelectual dos ‘falsos’ modernos, transparente na competição desenfreada, no arrivismo reinante, no conflito bestial entre homens sem a marca da solidariedade” ( Idem , p. 38).

No campo das relações multifacetadas da produção literária com os acontecimentos políticos e urbanos relevantes desse período, Ivete Lara Camargos Walty (2014WALTY, Ivete Lara Camargos. (2014), A rua da literatura e a literatura da rua. Belo Horizonte, Editora da UFMG., pp. 41-42, 72-85) pondera como, em meio a escritos sobre a rua do Ouvidor por autores como José de Alencar, Olavo Bilac, Machado de Assis e João do Rio e Lima Barreto, o último é “uma voz dissonante”: ele “explode o continuum da história da cidade moderna no Brasil, denunciando que a rua asfaltada esconde a diferença, camufla as rupturas, escamoteia a diversidade, afastando tudo aquilo que impede sua uniformidade” (Walty, 2014WALTY, Ivete Lara Camargos. (2014), A rua da literatura e a literatura da rua. Belo Horizonte, Editora da UFMG., p. 83).

Olhares das crônicas sobre a vida urbana carioca da Primeira República

É também relevante dialogar pontualmente com trabalhos que auxiliam na contextualização deste artigo, mas que seguem caminhos um pouco distintos de nosso enfoque antropológico prioritário. O primeiro deles é o estudo de Julia O’Donnell (2008)O’DONNELL, Julia. (2008), De olho na rua: a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., que toma o escritor, cronista e jornalista João do Rio como uma espécie de pioneiro na observação de múltiplos fenômenos sobre os quais escrevia, sobretudo nas ruas, antecipando-se certa dimensão etnográfica, avant la lettre , do autor. João do Rio – que era mulato, gordo, homossexual e se caracterizava como dândi e flâneur9 9 . Lima Barreto teve várias desavenças com João do Rio (Schwarcz, 2017, pp. 223-225), cuja figura despertava troças do autor: “O escritor [L. Barreto], que assumia papel tão significativo na denúncia do racismo vigente no país, não parecia se comover muito com outras minorias que também sofriam preconceito e exclusão social” (Schwarcz, 2017, p. 225). – desenvolveu, a seu modo, outro olhar profundamente crítico ao Rio da Belle époque:

Completamente voltada para os olhos da rua, sua figura e sua observação tinham com o universo do público uma relação de intimidade quase simbiótica, uma vez que a rua assumia para ele o papel de referência, eixo de convivalidade e centro do cosmopolitismo inescapável. O ambiente urbano era, para João do Rio, uma inevitabilidade existencial. E nessa entrega aos olhos e às almas das ruas (que ele afirma existirem)10 10 . Isso é explícito no título A alma encantadora das ruas (Rio, [1909] 1997). o cronista teve sua própria imagem maculada pelas ambiguidades e paradoxos que a cidade guardava (O’Donnell, 2008O’DONNELL, Julia. (2008), De olho na rua: a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., p. 51).

Sob esse prisma, os escritos de João do Rio ocorreriam sob uma forma primordialmente dialógica: “ao invés de defender sua posição de forma linear e assertiva, ele vale-se de sua observação participante para inscrever sua opinião num plano dialógico que deixa clara a negociação da realidade que a convivência entre vários universos socioculturais num mesmo espaço físico impunha” ( Idem , pp. 98-99). Tais observações e os escritos decorrentes levariam, assim, a certa superação específica da “dicotomia entre desprezo e adesão institucional que marcavam a relação de muitos dos pensadores de seu tempo sobre os ícones do ‘progresso’” ( Idem , p. 167).

Ainda que Lima Barreto possa estar dentre os escritores que, a priori , repudiariam diversas marcas modernas da época, tais como veiculadas pelas elites dominantes, ou seja, cujo olhar se distanciaria parcialmente daquele lançado por seu contemporâneo João do Rio – mais nuançado e afeito às surpresas e descobertas de quem se propõe à flânerie –, vale a pena aprofundar tal questão.

Numa linha próxima à de O’Donnell (2008)O’DONNELL, Julia. (2008), De olho na rua: a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., embora sob outras argumentações, Jorge P. Santiago (2008)SANTIAGO, Jorge P. (2008), “A obra literária de Lima Barreto, uma protoantropologia da cidade”. In: JUNQUEIRA, Ivan et al . Ensaios premiados: a obra de Lima Barreto (2° Concurso Internacional de Monografias). Brasília, Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, pp. 19-85. defende que também Lima Barreto teria produzido uma espécie de protoantropologia da cidade11 11 . “A literatura de Lima Barreto é efetivamente outra forma de acesso à antropologia histórica da cidade do Rio” (Santiago, 2008, p. 71). , ao tomar as ruas numa “perspectiva estética singular” (Santiago, 2008SANTIAGO, Jorge P. (2008), “A obra literária de Lima Barreto, uma protoantropologia da cidade”. In: JUNQUEIRA, Ivan et al . Ensaios premiados: a obra de Lima Barreto (2° Concurso Internacional de Monografias). Brasília, Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, pp. 19-85., p. 28), buscando abordá-las como “produto de construções negociadas entre atores sociais”, mesmo que “móvel e complexa, como um espaço que escapa às definições rígidas, como uma realidade que se remodela à medida que acreditamos apreendê-la” ( Idem , p. 30). O escritor, portanto, teria partilhado com a antropologia (antes da sua existência ampliada) “a intenção de apreender a cidade através daquilo que vivem os citadinos” ( Idem , p. 58), o que ganharia corpo e expressão no conjunto múltiplo e heteróclito de suas obras, sobretudo quanto a um olhar fortemente impregnado pelas margens da cidade ( Idem , pp. 71-85).

É importante aprofundar esse aspecto, no espaço deste artigo, através do detalhamento de certas crônicas de Lima Barreto que constituiriam “a faceta mais pública de sua produção” ( Idem , p. 84). A princípio, poder-se-iam tomar as crônicas como um gênero que registra aspectos da vida cotidiana, em diálogo com as reportagens da época, sem abordar aqui suas dimensões ficcionais intrínsecas12 12 . “Os aspectos literários das crônicas de Lima Barreto atravessam, cortam e recortam essa argumentação pelo uso da ironia, pela utilização da linguagem que recusa o ornamental mas não deixa de assumir peculiaridades que fornecem estilo, pela introdução de elementos ficcionais e recursos narrativos” (Resende, [1993] 2016, p. 84). . Isso nos remete, como detalha Beatriz Resende (2017RESENDE, Beatriz (org.). (2017), Lima Barreto: cronista do Rio. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Autêntica/FBN., pp. 17-21), a aspectos de sua conhecida “mania deambulatória” ou “perambulatória”, explicitada por ele próprio: “Sou andarilho de vocação”, tendo “gosto de estar em lugares em que as cenas variem e venham a se representar, às vezes, algumas imprevistas” (Barreto, [1922] 2017BARRETO, Lima ([1922] 2017), “Será sempre assim?” [7/1/1922]. In: RESENDE, Beatriz (org.). Lima Barreto: Cronista do Rio. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Autêntica/FBN, pp. 216-219., p. 216)13 13 . Acrescenta ele em outro momento: “O isolamento faz-me mal à alma e ao pensamento. Mergulho no barulho dos outros, deixo de pensar em mim e nas fantasmagorias que eu mesmo criei para o meu padecer. A embriaguez que a multidão traz é a melhor e a mais inofensiva de todas que se tem até agora inventado” (Barreto, [2/1920] 2017, p. 117). .

Tal circulação constante se relaciona, a princípio, com a própria cotidianidade de seus trajetos entre a residência no subúrbio, no bairro de Todos os Santos – em meio a lugares populares e precários, embora com paisagens heterogêneas, que delineiam suas origens e memórias –, e a área central carioca, incluindo os espaços tidos como símbolos do moderno, como as já citadas rua do Ouvidor e a sucedânea avenida Central, cuja morfologia e cenas de usos são sistematicamente criticadas por suas crônicas (Walty, 2014WALTY, Ivete Lara Camargos. (2014), A rua da literatura e a literatura da rua. Belo Horizonte, Editora da UFMG., pp. 72-85; Resende, 2017RESENDE, Beatriz (org.). (2017), Lima Barreto: cronista do Rio. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Autêntica/FBN., pp. 17-21). Mas tais trajetos se desdobram em outras andanças, por exemplo aos fins de semana.

Um exemplo significativo da observação de Lima Barreto, em que se destaca um olhar arguto – embora não decorrente de interações explícitas – pode ser visto em “O trem de subúrbios” (Barreto, [1921b] 2017BARRETO, Lima ([1921b] 2017), “O trem de subúrbios” [21/12/1921]. In: RESENDE, Beatriz (org.). Lima Barreto: Cronista do Rio. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Autêntica/FBN, pp. 227-232., pp. 227-232)14 14 . Para uma ampla contextualização desse tema, ver. Schwarcz (2017, pp. 162-187). . Leem-se descrições detalhadas dos vagões de segunda e primeira classe que denotam uma visão irônica dos “magnatas suburbanos”: “a presunção, o pedantismo, a arrogância e o desdém em que olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta” ( Idem , p. 228)15 15 . Entrever-se-ia em passagens como essa um racismo não explicitado de suburbanos para com o mulato Lima Barreto? . Tal autoimportância (são em geral pequenos funcionários, que se destacam de um enorme contingente de desempregados, mas incultos, cujas posições teriam advindo de protecionismos), todavia, se dissolveria em meio ao anonimato da cidade: “Chegam na rua do Ouvidor, e desaparecem” ( Idem , p. 229). Uma atenção especial é dada às diferentes frequências do trem ao longo do dia. Entre 9h30 e 10h30: “cupins de secretarias e escritórios” ( Ibidem ); ao longo do dia: moças e rapazes, os últimos sem profissão consistente, cuja esperança de alguma ascensão social reside num casamento de conveniência ( Idem, pp. 229-230); nas primeiras horas da tarde: novas ações de tais “namorados profissionais” em vagões mais esvaziados, além de conversas esparsas sobre o “execrável football ” ( Idem , p. 230); mais à tarde: “se misturam burocratas, militares, ‘almofadinhas’, meninas de Normal e da Música, tudo de cambulhada, ficando a fisionomia do trem muito confusa” ( Idem , p. 231), cuja cena se conclui com nova crítica moral a cavalheiros que, mesmo com fortes dores nos calos, cedem seus lugares a duas jovens galantes ( Idem , pp. 231-232).

Como pondera Lilia Moritz Schwarcz,

[…] se Lima ia virando um personagem da cidade, era durante o trajeto percorrido todos os dias – da rua Boa Vista, no subúrbio de Todos os Santos, até a Secretaria da Guerra, que ficava na praça da República, e vice-versa – que o escritor encontrava tempo para observar os passageiros, a arquitetura dos vários bairros e estações de trem, os tipos, os vizinhos, a “aristocracia suburbana”, os funcionários públicos como ele, os estudantes, os “humilhados”, os operários, as senhoras, as moças (2017, p. 163).

É importante frisar, como bem lembra Hélio Raymundo Silva, um princípio etnográfico de que ver é observar uma cena da qual fazemos parte: “Todo etnógrafo só pode estar em uma cena alterada pela sua presença” (2009, pp. 179-180). Embora aspire a certa invisibilidade, o flâneur , mesmo que anônimo, pode também ser alvo de observação (e interpelação) por outrem (Arantes, 2000ARANTES, Antonio Augusto. (2000), Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São Paulo, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial., p. 128). Tais aspectos por vezes se explicitam nas crônicas de Lima Barreto. Em “Feiras e mafuás” (Barreto, [1921a] 2017BARRETO, Lima ([1921a] 2017), “Feiras e mafuás” [28/7/1921]. In: RESENDE, Beatriz (org.), Lima Barreto: cronista do Rio. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Autêntica/FBN, pp. 149-155.), o autor inicia com reminiscências da infância, sobre barraquinhas das festas religiosas de junho no Campo de Santana, cujas jogatinas e sorteios de aves de galinheiro eram tolerados pelo poder público, mas criticados pelos jornais, tendo sido abolidos pela República – ocasião essa de Barreto manifestar certa simpatia pela Monarquia ( Idem , pp. 149-150). São então apresentados dois mafuás16 16 . Lima Barreto arrisca ao termo uma etimologia: “ ma foi ”, minha fé, numa corruptela do francês ([1921a] 2017, p. 151). nos subúrbios (nos bairros do Méier e do Engenho de Dentro), com rica descrição dessa “suburbana folgança domingueira” ( Idem , p. 152): o público vindo de outros subúrbios, mas também do Leme ou de Ipanema ( Idem , p 154); as vestimentas femininas e masculinas (onde dominavam, respectivamente, o branco e o cinza); o tipo de comércio: “há leitões, há carneiros, há galinhas, há cabritos, há chapéus, há bengalas; mas a barraca mais procurada é aquela em que se extraem frascos de perfumes” ( Idem , p. 152); a possibilidade de que os carregadores de aves fossem expulsos pelos condutores dos bondes na volta à casa, e ainda tomados depois, nas ruas, como ladrões de galinheiros, por policiais ( Idem , p. 153). Embora as feiras livres fossem regidas por certo princípio socialista ( Idem , ibidem ), o autor pondera que o vendedor da feira em geral não pagava impostos, e temos então certa dimensão interativa, não despida de asperezas ( Idem , pp. 153-154). Ao comprar um quilo de açúcar numa feira das vizinhanças, ele recebe o pacote e então pergunta se não havia uma balança, sendo a resposta (irônica): “Para quê? Isto aqui não é feira livre? É livre!”. Mesmo aceitando tal argumento, ele ainda indaga sobre a origem do açúcar, e a resposta é sintomática: “Não sei… Isto é: é de Pernambuco ou de Campos. Por quê?” ( Idem , pp. 153-154). Mais à frente, ele avista uma barraca com “sapatinhos de criança, toalhas de crochê, toucas, rendas de bilros, etc.” ( Idem , p. 154), algumas que ele imagina terem vindo de São Paulo ou mesmo de Bruxelas. Apesar da aparência bruta do mercador, o autor enceta um diálogo no mínimo descuidado: “É o senhor mesmo quem faz essas lindas coisas de moça prendada? – Que pergunta! Não; é minha mulher!” ( Idem , pp. 152-154).

Ainda que os episódios como esses, narrados em tais crônicas, não esgotem, como abordaremos a seguir, as dimensões interativas de Lima Barreto, inseparáveis do seu extenso caminhar pela cidade, poder-se-ia conjeturar que algumas interações citadinas com desconhecidos, destituídas de certo traquejo social, talvez não contassem com a mesma perspicácia que se flagra em João do Rio, baseando-se muito mais em olhares críticos a priori , impregnados das próprias vivências pessoais17 17 . As observações aprofundadas de João do Rio sobre as religiões afro-brasileiras (1906) eram sofisticadas e de amplo reconhecimento (O’Donnell, 2008, pp. 103-111), ao contrário dos preconceitos de Lima Barreto, que entendia (e criticava) os batuques como reminiscências de um longo sistema escravocrata (Schwarcz, 2010, p. 37). Pode-se considerar, de toda forma, que, mesmo empenhado na denúncia do racismo e da desigualdade, nesse caso o escritor se vinculava sobretudo a certo ideário de civilização eurocêntrica. . De toda forma, e restringindo-nos a suas crônicas, e a partir de uma crítica à ideia de um flâneur que apenas observa, não há dúvida de que emerge, como mostra Resende (2017RESENDE, Beatriz (org.). (2017), Lima Barreto: cronista do Rio. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Autêntica/FBN.; [1993] 2016RESENDE, Beatriz. ([1993] 2016), Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Belo Horizonte, Autêntica.), um quadro urbano potente e multifacetado sobre o Rio de Janeiro, suas cenas suburbanas, feiras, bailes, residências, o centro da cidade, suas ruas, avenidas, parques, esquinas, demolições, enchentes, carnavais, livrarias, bibliotecas, bares, cafés, bondes, trens e estações.

Pode-se fechar esta parte com uma síntese sobre as especificidades da observação apurada de Lima Barreto, ligada a suas origens e forjada durante suas locomoções cotidianas entre os subúrbios e o centro da cidade do Rio de Janeiro, com base em um estudo antropológico recente e abrangente sobre o autor:

[…] quando Lima fala dessas populações o afeto que ele guarda não distingue os personagens urbanos dos suburbanos. No entanto, se a cidade do Rio será palco de tantos romances e contos de época, é bem mais raro achar quem eleja moradores dos subúrbios como heróis da narrativa; miseráveis como protagonistas; “negros”, “mestiços” e “pardos” como personagens centrais. É esse universo extenso que o autor vai construindo por meio de seus romances, crônicas e contos. Um Rio de Janeiro alargado é seu posto de observação, e os subúrbios, seu ambiente privilegiado de inspiração. Região e espaço são marcas fundamentais de tal literatura. Não há subúrbio sem centro, e vice-versa (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 187).

Trajetos e relações de Lima Barreto com os mais “chegados”, no centro do Rio

Ainda que tenhamos apontado certos traços por vezes limitantes das interações do autor quanto a um conhecimento mais aprofundado sobre determinados sujeitos das cenas cariocas, o próprio Lima Barreto concebe-se como alguém bastante sociável: “Passo, das vinte e quatro horas do dia, mais de catorze na rua, conversando com pessoas de todas as condições e classes” (Barreto, “O destino da literatura” apudSchwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 187).

Mas talvez se possa afirmar, em diálogo com o que já foi tratado aqui, que tal sociabilidade se manifestava de forma mais inequívoca quando da reconstituição de certos trajetos reiterativos do autor pelo centro do Rio, à luz sobretudo de memórias daqueles mais próximos a ele, que integravam círculos de relação, durante a frequência a determinados bares e cafés, além de livrarias, embora alguns fossem parceiros do serviço público, revistas ou jornais. Fragmentos dessa reconstituição já estão presentes na primeira biografia sobre Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa ([1952] 1975)BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., com depoimentos de pessoas próximas, como Antonio Noronha dos Santos, Márcio Tibúrcio Gomes Carneiro e Mário Galvão18 18 . O primeiro, jornalista, escritor e amigo do escritor (Schwarcz, 2017, p. 194 e 503); o segundo, estudante de Direito e também integrante, tal como Noronha dos Santos, da revista Floreal (Schwarcz, 2017, p. 196); o terceiro, amanuense e jornalista, conheceu-o no Colégio Paula Freitas (Schwarcz, 2017, p. 553): Lima Barreto inclusive dedicou o livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá a Noronha dos Santos (Schwarcz, 2017, p. 608). . Na direção contrária do estigma decorrente do alcoolismo, eles buscavam frisar as qualidades relacionais do escritor: “na roda em que estivesse, Lima Barreto não permitiria jamais que a conversa descambasse para a pornografia. Da sua boca, mesmo nas horas de bebedeira, nunca ninguém ouviu uma palavra de baixo calão” (Barbosa, [1952] 1975BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., p. 219).

Barbosa também extrai, de uma crônica de José Nava de 12 de junho de 1949NAVA, José. (12/6/1949), “Recordações do escritor Afonso Henriques”, Folha de Minas , Belo Horizonte. 19 19 . Adiantamos aqui que se trata de uma abordagem já tratada por Antonio Arnoni Prado (1999). , um depoimento de Aldo Borgatti, amigo de Lima, cujo teor é de interesse:

Não me lembro de pessoa mais descuidada e só o vejo com os sapatos cambotas, palheta suja, roupa azul marinho muito manchada e duas placas de suor e poeira nas costas. Vinha do Ministério da Guerra à tarde e parava em nossa roda, formada no bar vizinho da Casa Heim, na rua da Assembleia. Bebericávamos e palestrávamos. [...] Nunca o vi bêbado, mas sempre tomado. Não perdia o propósito. Voltava e continuávamos a bebericar. Depois íamos à Estrada de Ferro, numa verdadeira procissão de Passos20 20 . Trata-se de menção às celebrações organizadas pela Irmandade dos Passos. pelas tascas do caminho. Na estação ainda emborcávamos uma cervejota e ele nos largava para tomar o trem. Conhecia todo o mundo e aquela gente toda que ia passando o cumprimentava. Às vezes ia embora em companhia de uns tipos parecidíssimos com os da trinca do Cassi (personagem de Clara dos Anjos ), malandros e capadócios; outras, com gente humilde, mas correta e boa – guardas, carteiros, mata-mosquitos, pequenos funcionários. Este pessoal está todo de personagem nos seus livros ( Idem , p. 220)21 21 . Em outro trecho, Barbosa ([1952] 1975, p. 271) reconstitui vivências de Barreto no subúrbio, elaboradas a partir dos seus próprios escritos: “O botequim era seu clube […]. Em torno do escritor, formava-se quase sempre uma roda de conhecidos, gente simples, que ia conversar com ele simplesmente pelo prazer de conversar ou pedir-lhe conselhos […]. Todos o estimavam. Tratavam-no com simpatia e respeito”. .

Avancemos no tempo: entre maio e junho de 1970, o escritor João Antônio (1937-1996), que abordou de forma profunda e inovadora o universo da marginalidade de ruas paulistanas e foi grande admirador de Lima Barreto – sua obra (e vida) dialoga com múltiplos aspectos dos escritos barretianos (Prado, 1999PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167.) –, teve encontros, no Sanatório da Muda da Tijuca, com Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, professor, jornalista e ex-diretor político do Diário de Notícias22 22 . Segundo Duarte (2013, p. 7), Nóbrega da Cunha conviveu com intelectuais como Monteiro Lobato e Emílio de Menezes. . Nóbrega da Cunha, já idoso, lhe narrou seu convívio com Barreto a partir de 1916, o que ensejou a João Antônio a reconstituição de um roteiro por bares urbanos e suburbanos frequentados pelo escritor (Antônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 17; 1997ANTÔNIO, João (1997), “Lima Barreto aqui e lá fora”. In: BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Edição crítica. Antonio Houaiss e Carmen L. Negreiros (coords.). Madri/Paris/México/Buenos Aires/São Paulo/Lima/Guatemala/San José de Costa Rica/Santiago de Chile, ALLCA XX, pp. 485-488., p. 486). Isso, por sua vez, levou à publicação de Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (Antônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.), em que, basicamente, Lima Barreto se torna um personagem de João Antônio (Prado, 1999PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167.).

É impossível, neste artigo, uma análise sistemática da trajetória de João Antônio e da estrutura de tal livro, abordados detidamente por Antonio Arnoni Prado (1999)PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167.. Em tal publicação, basicamente se intercalam trechos do depoimento de Nóbrega da Cunha com passagens de diversos escritos de Lima Barreto, sob procedimentos como que cinematográficos por parte de João Antônio (1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 17): “não há aqui uma palavra minha. Como um montador de cinema, tesoura em punho, dei ritmo e respiração ao trabalho alheio. Participei, se muito, na linguagem da versão final do depoimento”23 23 . Nóbrega da Cunha é apresentado como “caduco, maníaco e esclerosado” (Antônio, 1977, p. 17), mas isso constitui uma condição de estigma que, de certa forma, também poderia ser atribuída tanto a João Antônio, como ao próprio Lima Barreto (após suas primeiras internações). .

Bem sabemos, pela antropologia (sobretudo a pós-moderna), que a reconstituição de um outro nunca exclui algum aspecto autoral, mesmo quando se procura atenuar (ou pretender excluir) a própria autoria. Há inclusive análises que, no campo das letras, buscam frisar a estrutura pós-moderna do já mencionado romance de João Antônio (1977)ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.. É o caso de Bruno Marques Duarte, que, nesse itinerário arquipoético de Lima Barreto pelo Rio, aponta procedimentos de reprodução mimética de períodos históricos, a ficcionalização de personagens, comentários do narrador sobre o processo de criação e a presença constante da intertextualidade (Duarte, 2013DUARTE, Bruno Marques. (2013), “ Calvário e porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto , de João Antonio e o novo romance histórico brasileiro”. Revista de Letras , Curitiba: 17 (15), 1-16., pp. 9 e 14-15).

Todavia, revela-se factível, com todos os desafios concernentes quanto a graus de ficcionalidade, a reconstituição espacial de certos percursos regulares de Lima Barreto pelo centro do Rio e de interações ali estabelecidas, a partir da própria narrativa de Nóbrega da Silva, adicionada às já mencionadas falas de outros “chegados” ao escritor – e presentes em Barbosa ([1952] 1975)BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., incorporadas por João Antônio (1977)ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., analisadas por Prado (1999)PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167. e parcialmente detalhadas em Duarte (2013DUARTE, Bruno Marques. (2013), “ Calvário e porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto , de João Antonio e o novo romance histórico brasileiro”. Revista de Letras , Curitiba: 17 (15), 1-16., pp. 9-11) e também no estudo de Camila Marcelina Pasqual sobre a leitura de Lima Barreto por João Antônio, quanto a um certo roteiro da boemia (Pasqual, 2016PASQUAL, Camila Marcelina. (2016), “Lima Barreto: um pingente entre a literatura e a realidade”. Caderno de Letras , Pelotas: 27, 155-166, jul.-dez., pp. 162-164). Em tais percursos por bares e cafés do centro do Rio, no mínimo verossímeis, revelam-se dimensões relacionais assinaláveis tanto sobre o escritor, como sobre a cidade.

A definição de Lima Barreto fornecida por Nóbrega da Cunha é digna de nota. Afirma ele que “visto em qualquer lugar, ou sentado ou em pé ou passando no meio do grupo, ninguém veria em Lima um homem fora do comum. Era mesmo, à primeira vista, o tipo do mulato comum brasileiro, de situação modesta e, deveria presumir-se senão um inculto, um indivíduo de instrução elementar” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 70). A passagem dá elementos que possibilitam entender como a raça delimitava e ainda delimita no Brasil um marcador de diferenças (Simões; França; Macedo, 2010SIMÕES, Júlio Assis; FRANÇA, Isadora Lins & MACEDO, Márcio. (2010), “Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, sexualidade e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo”. Cadernos Pagu , 35: 37-78.), que pressupõe noções de desigualdade inerentes a brancos e negros, sendo que os últimos são subalternizados, numa lógica que anula a individualidade, classificando a todos como inferiores. Todos veriam primeiro o “mulato” e somente depois o “Lima Barreto”.

Segundo Nóbrega da Cunha, o início do roteiro de Lima Barreto, depois de entregar sua colaboração à revista Careta , se dava num pequeno bar da rua Sachet (entre a Sete de Setembro e a Ouvidor), em cujo prédio havia uma livraria também frequentada por ele; no local, onde também se vendiam refrescos e sorvetes, nosso autor só tomava parati (aguardente de cana), numa convivência, em geral entre as 15 horas e as 17 horas, com a chamada “roda do Cavalcanti” – devido à presença de Coelho Cavalcanti, jornalista e advogado, bastante conhecido e mais idoso –, frequentada também pelo poeta Moacir de Almeida, o caricaturista Jordano da Mata, o jornalista e poeta Emílio de Menezes, Rubens Trinas, Bastos Tigre, Raul Pederneiras, Álvaro Moreyra, Luiz Peixoto e (apressados) estudantes de Direito. Somente os mais velhos tomavam bebidas alcoólicas; não havia frequentadoras femininas; os temas ali discutidos – política, literatura, direito, biologia, filosofia, teosofia – tanto enriqueciam os conhecimentos adquiridos por Lima Barreto, quanto faziam parte do repertório de suas falas, que encantavam os ouvintes (Antônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., pp. 21-24, 27-30; Duarte, 2013DUARTE, Bruno Marques. (2013), “ Calvário e porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto , de João Antonio e o novo romance histórico brasileiro”. Revista de Letras , Curitiba: 17 (15), 1-16., p. 9; Pasqual, 2016PASQUAL, Camila Marcelina. (2016), “Lima Barreto: um pingente entre a literatura e a realidade”. Caderno de Letras , Pelotas: 27, 155-166, jul.-dez., p. 162).

A partir dali, Lima Barreto seguia rumo à estação de trem (que ia até Todos os Santos, e de lá, de bonde, o escritor ia para Inhaúma), ao contrário de outros da “roda do Cavalcanti”, cuja maioria residia em bairros acessíveis por bondes ou mesmo em Niterói (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 30). A caminho da estação, o autor “passava pela esquina da rua do Ouvidor, seguindo pela Miguel Couto e rua do Rosário, indo até o largo de São Francisco. No Beco do Rosário, Lima Barreto fazia uma parada mais prolongada, para encontrar companheiros habituais desse roteiro. Nesse Beco, havia pequenos bares propícios para reuniões de amigos” (Pasqual, 2016PASQUAL, Camila Marcelina. (2016), “Lima Barreto: um pingente entre a literatura e a realidade”. Caderno de Letras , Pelotas: 27, 155-166, jul.-dez., pp. 162-163, com base no depoimento de Nóbrega da Cunha). Por vezes, entrava na Livraria Garnier, que ficava nessa esquina, embaixo da sede do Jornal do Commercio ; passava na Livraria Alves, na rua do Ouvidor, para deixar ou receber algum recado; parava vez ou outra no largo São Francisco, ambiente de meetings políticos, para ouvir o orador, caso fosse bom (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 31).

Numa “série de pequenos bares de duas portas” do Beco do Rosário, ele passava a se relacionar, nitidamente, com suburbanos: “Modestos, alguns funcionários públicos, que vegetavam nas frisas mais baixas das carreiras burocráticas por insuficiência de instrução, embora não de inteligência” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 35). Ali, “eram uns cinco ou seis que esperavam Lima Barreto para tomarem a talagada e formarem a roda […]. Não se pode dizer que fossem vagabundos, eram criaturas perdidas no mundo” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 39)24 24 . Havia um, “conhecido pelo apelido que o próprio Lima lhe aplicou – Huberto, o Pavoroso […] rapaz magro, longilíneo, moreno-branco, que não havia passado da instrução primária, não tivera convívio social […] raramente conseguia emitir um juízo plausível […]. E, no entanto, era um bom rapaz. Rapaz de chorar diante da miséria de um desconhecido […]. Vivia um drama de família […]. Ele vivia de pequenas dádivas dos amigos, entre os quais, o mais constante, isto é, o mais procurado, era Lima” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977, pp. 39-40). . Depois de alguma interação – “assuntos comuns, alguma piada, algum comentário sobre matéria literária” –, seguiam para outros bares: rua dos Andradas, Buenos Aires e Conceição (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 35). Na rua da Conceição, num bar também modesto, com três ou quatro amigos, “tomava uma talagada de parati, coisa barata, uns quinhentos réis” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 47).

Dali, nosso autor ainda passava por um bar na rua José Maurício, onde permanecia por pouco tempo, seguindo para outro, próximo à Estação Dom Pedro II, com três portas e quatro mesas, bastante frequentado (já ao fim da tarde, por volta das 18 horas), onde em geral revia companheiros que trabalhavam na Central do Brasil ou no Ministério da Guerra, mas por onde também passavam pequenos funcionários, pobres, anônimos: “Era um típico ponto de encontros no Rio de Janeiro de 1916” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 48). Ali, Lima Barreto “completava a sua bebericagem” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 50), antes de tomar o trem25 25 . Há menções a interações de Lima Barreto em bares de outras regiões do Rio, adicionais ao itinerário aqui abordado, que não serão tratadas. .

Ao contrário de Da Rocha, escriturário e poeta, que também passava por tal bar, mas nunca saía da medida, e que, chefe de família, se recolhia cedo (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., pp. 50-51), o retorno do escritor não era imediato:

Vivia na Zona Norte e ia todos os dias para casa, embora chegasse de madrugada. Nunca chegava antes das duas ou três da madrugada e, às vezes, ao raiar do dia. Acordava-se ali por volta dos compromissos que tinha. Às vezes, foi visto antes do almoço, antes do meio-dia, na cidade. Da casa ao centro, a sua condução era o bonde Inhaúma-Todos os Santos, vinte minutos, e de Todos os Santos à Pedro II, trinta minutos. Os trens eram a óleo diesel. Em seu roteiro de andanças, dificilmente passava da Zona Centro do Rio ( Idem , p. 51-52).

Nesse ponto, podem-se retomar aspectos da fala de amigos de Lima Barreto, presentes em Barbosa ([1952] 1975BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., pp. 220-221) e na conclusão do artigo de Prado (1999PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167., pp. 164-165), ligados a certa ética de Lima Barreto nesse âmbito de relações masculinas, populares e ligadas ao consumo de álcool: ele não “saía da linha”, mantinha certo equilíbrio, não gritava, não brigava, pagava a bebida dos mais pobres, era generoso, sensato. Havia toda uma dimensão de melancolia e sofrimento em tal hábito.

Guardadas as devidas proporções, estaríamos diante de trajetos por bares marcados por uma sociabilidade predominantemente masculina – e também popular, à exceção da citada “roda do Cavalcanti” – cujas interações incluem o consumo praticamente obrigatório de bebidas alcoólicas, com certas regras de reciprocidade, temas (e tabus) recorrentes e certo grau de jocosidade, que pode por vezes resultar em conflitos pessoais (Machado da Silva, [1969] 2016MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. ([1969] 2016), “O significado do botequim”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas . Rio de Janeiro, Mórula, pp. 48-69.)26 26 . Supomos aqui um caráter durável de tal forma de sociabilidade, já que Machado da Silva se refere a observações ao final dos anos de 1960, de toda forma não distantes do depoimento de N. da Cunha a J. Antônio. . Nesse ethos , uma regra básica e incontornável consistiria em saber beber, embora com forte estigmatização daquele que se embriaga, já que assim abandona certa ética recíproca da sociabilidade, pois em geral não se responsabiliza pelo que diz ou faz ( Idem , p. 54). As falas já citadas indicam que Lima Barreto soube se relacionar dentro de tal ética.

Sabemos também, por meio de Georg Simmel ([1917] 2006), que uma das condições básicas de sociabilidade reside na suspensão temporária de diferenças de várias ordens em determinadas interações. Os amigos e colegas de Lima Barreto apontam-lhe tal qualidade quando frisam que ele não rechaçava (e até cultivava, ao pagar-lhes a bebida) todo um rol de relações com um séquito de suburbanos, “desclassificados”, que por vezes mal se expressavam, algo nítido em boa parte do trajeto já reconstituído, em termos interativos.

O seguinte trecho de Nóbrega da Cunha sintetiza aspectos assinaláveis: “Jamais foi visto beber a crédito. Nas rodas, ou os amigos pagavam a rodada ou ele pagava. E, sobretudo nos maiores grupos de paus-d’água, era sempre Lima Barreto quem pagava, pois os beberrões eram prontos e ficavam aguardando o escritor, exatamente para lhe beliscar algumas doses” ( inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 54). Assim, a maioria dos bares do centro frequentados por Lima Barreto constituíam espaços de uma sociabilidade boêmia, pobre e rudimentarmente intelectualizada. Lima Barreto, uma figura literária relativamente pouco reconhecida no universo das letras naquela época, exercia nesses ambientes uma referência de sofisticação e integridade, a despeito de sua pobreza, em interações com pessoas que mantinham com ele relações de proximidade, com certa regularidade.

O ponto forte de um olhar elogioso sobre fundamentos éticos de Lima Barreto passa pelo episódio que fecha o artigo de Prado (1999PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167., pp. 164-165), com base na narrativa já citada de Borgatti (Barbosa, [1952] 1975BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., pp. 220-221), razoavelmente conhecida dentre os estudiosos do escritor. Certa feita, numa roda de amigos que bebiam na já mencionada Casa Heim, um “almofadinha” intrometido e desavisado, desconfortável com a presença de um mulato “mal vestido e enxovalhado”, passou a desdenhar dos presentes, e foi alvo de indiretas jocosas de Lima Barreto, para alegria dos boêmios. Enfurecido, tal pessoa “atirou um copo na cara do Lima, abrindo um talho na sobrancelha direita, bem acima do olho” (Borgatti apudBarbosa, [1952] 1975BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., p. 220). Com todos estarrecidos e a chegada de um policial que poderia prender o agressor por tal ato infame, Lima Barreto explicou “ao investigador que escorregara e caíra com o copo, ferindo-se daquele modo”. E se retirou, limpando o rosto com um guardanapo, enquanto alguns o seguiam e outros pagavam a conta (Prado, 1999PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167., pp. 164-165; Barbosa, [1952] 1975BARBOSA, Francisco de Assis. ([1952] 1975), A vida de Lima Barreto (1881-1922). 5 ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Instituto Nacional do Livro., pp. 220-221). Maior nobreza de espírito não poderia haver, mesmo que tal episódio possa estar revestido de alguma ficcionalidade.

Não se trata, obviamente, de idealizar tal consumo regular de álcool, dada sua intensidade27 27 . Em conformidade com a cronologia de Schwarcz (2017, p. 607), segue um trecho de seu diário , de abril de 1914: “Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver cotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa a outra, e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos”. . Tais depoimentos não abarcam fases de agravamento do alcoolismo de Lima Barreto, nem as várias doenças decorrentes do mesmo, as sucessivas internações hospitalares, as crises de delírio alcoólico, a aposentadoria por invalidez, os períodos de maior reclusão doméstica28 28 . Em 4 de novembro de 1918, “[Lima] Fratura uma clavícula durante uma bebedeira. Encontrado pelo amigo Noronha Santos numa rua de Todos os Santos, é levado para o Hospital Central do Exército, no centro da cidade. Permanecerá dois meses internado” (Schwarcz, 2017, p. 608). . Mas isso não invalida tudo o que diz respeito a uma sobriedade melancólica de Lima Barreto, quando da sua convivência com amigos, “chegados”, deserdados e até desconhecidos, bastante evidente nos trajetos interativos pelo Rio, aqui reconstituídos.

Breves conclusões

Como vimos, haveria múltiplas formas de se estabelecerem relações entre Lima Barreto e a cidade do Rio de Janeiro, dado o caráter multifacetado da vida e das obras do autor – que têm passado por significativas atualizações –, bem como os diversos recortes possíveis de se abordar o tema da cidade, sobretudo uma metrópole com a densidade histórica do Rio de Janeiro.

Examinamos concisamente como Lima Barreto participou – ainda que de forma marginalizada, por conta de sua condição social e racial29 29 . Poderíamos mesmo encarar Lima Barreto como uma espécie de precursor dos(as) chamados(as) escritores(as) das periferias, como ressaltado ultimamente numa série de eventos, inclusive a Flip de 2017. – de um conjunto de escritores que forjou intelectualmente uma série de representações críticas sobre as transformações urbanas em andamento na Rio de Janeiro da época, bem como de projetos de nação e mesmo de horizontes da condição humana.

Em tais obras ressaltam-se as crônicas, gênero específico que permite abordagens contundentes da vida urbana cotidiana, com circulação efêmera mas espraiada pelos jornais da época. Através delas, escritos que guardavam entrelaçamentos com seus contos e romances, Lima Barreto obteve maior visibilidade.

Buscamos analisar crônicas e trajetos de Lima Barreto pelo Rio de Janeiro a fim de explorar antropologicamente a cidade do ponto de vista da sociabilidade das classes populares, mapeando práticas de masculinidade vigentes em espaços como bares, cafés e livrarias, bem como a manifestação de dinâmicas que reproduziam o preconceito em relação a negros e pobres. Mas as crônicas em si também possibilitam abordagens antropológicas quanto aos diversos sentidos nelas contidos, seja quanto à produção de Lima Barreto e aos mundos sociais por ele reconstituídos, seja no cotejo com obras de outros escritores, como no caso de João do Rio – que possuiria, por assim dizer, um olhar talvez mais etnográfico e menos apriorístico sobre o real. Nossa ênfase sucinta voltou-se a algumas crônicas como reveladoras de dimensões de interação e de observação do autor em situações urbanas específicas.

Por fim, este texto valeu-se de olhares de outrem sobre o próprio Lima Barreto, principalmente daqueles que conviviam com ele com certa regularidade, para, em diálogo com trechos de obras do próprio autor, reconstituir perambulações por certos espaços da cidade do Rio de Janeiro. O intuito foi revelar temporalidades, espacialidades e sociabilidades populares da capital brasileira no início do século XX. A cidade, nessa parte mais substancial do texto, torna-se um espaço concreto de caminhadas, interações, trocas, partilhas.

Lima Barreto produziu uma literatura que colocava no centro personagens negras, mestiças e pobres, que não eram tão retratadas por outros autores à época. Além disso, sua solidariedade com essa população estava evidente na própria maneira de circular e interagir pelos espaços urbanos.

Sua frequência e experiência em bares e livrarias do centro da cidade apontam para aspectos de um ethos partilhado nesses espaços, delineados por formas específicas de beber, de se portar, do que discutir e de como pagar pela bebida, e que evidenciam o cotidiano de um estilo de vida boêmia. Mas tal frequência e experiência também indicam a ideia de que, nesses percursos, Lima Barreto se movia de espaços de encontro (no centro do Rio de Janeiro) – onde, de certa forma, se elaboravam dimensões da opinião pública, com alguma densidade de intelectuais, em que ele era uma referência de sofisticação e integridade –, para outros bares (em direção à estação) – de caráter mais popular, em que cultivava relações com suburbanos, pobres, deserdados, remediados, para os quais, sob outro prisma, ele constituía uma espécie de modelo. As mudanças na composição social e racial, com inflexões em certas dinâmicas de sociabilidade, são assinaláveis nesse caminhar pelas ruas centrais cariocas.

De toda forma, diversas marcas raciais e signos de pobreza acompanhavam tanto Lima Barreto como diversas pessoas que com ele frequentavam tais bares. Nóbrega da Cunha, como vimos, foi um dos que sinalizaram algo nesse sentido ao afirmar que, num primeiro olhar, Lima Barreto passaria despercebido como um mulato inculto. Aspecto sintomático de como a raça se antecipa às pessoas, e que informa um drama enfrentado ao longo de sua vida, cujos escritos e vivências registradas nos deixam um precioso conhecimento.

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  • WALTY, Ivete Lara Camargos. (2014), A rua da literatura e a literatura da rua. Belo Horizonte, Editora da UFMG.
  • 1
    . Sem percorrer um vasto campo, ver principalmente Arantes (2000)ARANTES, Antonio Augusto. (2000), Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São Paulo, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial., Frúgoli Jr. (2007)FRÚGOLI JR., Heitor. (2007), Sociabilidade urbana. Rio de Janeiro, Zahar. e Agier (2011)AGIER, Michel. (2011), Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, Terceiro Nome..
  • 2
    . “A literatura de Lima Barreto se distribui por seis gêneros: romance, sátira, conto, crônica, epistolografia e memórias” (Sevcenko, [1983] 2003SEVCENKO, Nicolau. ([1983] 2003), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Companhia das Letras., p. 194).
  • 3
    . Não há espaço aqui para reconstituir a forte repercussão de Lima Barreto na realidade brasileira contemporânea; cabe apenas lembrar que o autor foi o homenageado da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty, a chamada Flip (2017). Não é fortuito que o autor e seus escritos constem da abertura de Brasil: uma biografia (Schwarcz e Starling, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz & STARLING, Heloisa Murgel. (2015), Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras., pp. 13-15).
  • 4
    . Seu pai também foi funcionário público, mas perdeu o emprego por motivos políticos e depois enlouqueceu, tendo falecido um pouco depois do próprio Lima Barreto.
  • 5
    . Essa temática é de forte atualidade também para mulheres negras, se pensarmos na candidatura frustrada da escritora Conceição Evaristo à Academia Brasileira de Letras em agosto de 2018.
  • 6
    . Múltiplas referências foram utilizadas neste parágrafo, com destaque para Francisco de Assis Barbosa ([1952] 1975), Needell (1993)NEEDELL, Jeffrey. (1993), Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo, Companhia das Letras., Resende ([1993] 2016), Schwarcz (2017)SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras. e Sevcenko ([1983] 2003SEVCENKO, Nicolau. ([1983] 2003), Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Companhia das Letras.).
  • 7
    . Ver, a respeito, Resende ([1993] 2016, pp. 84 e 134).
  • 8
    . Voltaremos a isso adiante.
  • 9
    . Lima Barreto teve várias desavenças com João do Rio (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., pp. 223-225), cuja figura despertava troças do autor: “O escritor [L. Barreto], que assumia papel tão significativo na denúncia do racismo vigente no país, não parecia se comover muito com outras minorias que também sofriam preconceito e exclusão social” (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 225).
  • 10
    . Isso é explícito no título A alma encantadora das ruas (Rio, [1909] 1997).
  • 11
    . “A literatura de Lima Barreto é efetivamente outra forma de acesso à antropologia histórica da cidade do Rio” (Santiago, 2008SANTIAGO, Jorge P. (2008), “A obra literária de Lima Barreto, uma protoantropologia da cidade”. In: JUNQUEIRA, Ivan et al . Ensaios premiados: a obra de Lima Barreto (2° Concurso Internacional de Monografias). Brasília, Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, pp. 19-85., p. 71).
  • 12
    . “Os aspectos literários das crônicas de Lima Barreto atravessam, cortam e recortam essa argumentação pelo uso da ironia, pela utilização da linguagem que recusa o ornamental mas não deixa de assumir peculiaridades que fornecem estilo, pela introdução de elementos ficcionais e recursos narrativos” (Resende, [1993] 2016, p. 84).
  • 13
    . Acrescenta ele em outro momento: “O isolamento faz-me mal à alma e ao pensamento. Mergulho no barulho dos outros, deixo de pensar em mim e nas fantasmagorias que eu mesmo criei para o meu padecer. A embriaguez que a multidão traz é a melhor e a mais inofensiva de todas que se tem até agora inventado” (Barreto, [2/1920] 2017, p. 117).
  • 14
    . Para uma ampla contextualização desse tema, ver. Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., pp. 162-187).
  • 15
    . Entrever-se-ia em passagens como essa um racismo não explicitado de suburbanos para com o mulato Lima Barreto?
  • 16
    . Lima Barreto arrisca ao termo uma etimologia: “ ma foi ”, minha fé, numa corruptela do francês ([1921a] 2017, p. 151).
  • 17
    . As observações aprofundadas de João do Rio sobre as religiões afro-brasileiras (1906) eram sofisticadas e de amplo reconhecimento (O’Donnell, 2008O’DONNELL, Julia. (2008), De olho na rua: a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., pp. 103-111), ao contrário dos preconceitos de Lima Barreto, que entendia (e criticava) os batuques como reminiscências de um longo sistema escravocrata (Schwarcz, 2010SCHWARCZ, Lilia Moritz. (2010), “Lima Barreto: termômetro nervoso de uma frágil República”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Contos completos de Lima Barreto. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 15-54., p. 37). Pode-se considerar, de toda forma, que, mesmo empenhado na denúncia do racismo e da desigualdade, nesse caso o escritor se vinculava sobretudo a certo ideário de civilização eurocêntrica.
  • 18
    . O primeiro, jornalista, escritor e amigo do escritor (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 194 e 503); o segundo, estudante de Direito e também integrante, tal como Noronha dos Santos, da revista Floreal (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 196); o terceiro, amanuense e jornalista, conheceu-o no Colégio Paula Freitas (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 553): Lima Barreto inclusive dedicou o livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá a Noronha dos Santos (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 608).
  • 19
    . Adiantamos aqui que se trata de uma abordagem já tratada por Antonio Arnoni Prado (1999)PRADO, Antonio Arnoni. (1999), “Lima Barreto personagem de João Antônio”. Remate de Males , Campinas: 19, 147-167..
  • 20
    . Trata-se de menção às celebrações organizadas pela Irmandade dos Passos.
  • 21
    . Em outro trecho, Barbosa ([1952] 1975, p. 271) reconstitui vivências de Barreto no subúrbio, elaboradas a partir dos seus próprios escritos: “O botequim era seu clube […]. Em torno do escritor, formava-se quase sempre uma roda de conhecidos, gente simples, que ia conversar com ele simplesmente pelo prazer de conversar ou pedir-lhe conselhos […]. Todos o estimavam. Tratavam-no com simpatia e respeito”.
  • 22
    . Segundo Duarte (2013DUARTE, Bruno Marques. (2013), “ Calvário e porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto , de João Antonio e o novo romance histórico brasileiro”. Revista de Letras , Curitiba: 17 (15), 1-16., p. 7), Nóbrega da Cunha conviveu com intelectuais como Monteiro Lobato e Emílio de Menezes.
  • 23
    . Nóbrega da Cunha é apresentado como “caduco, maníaco e esclerosado” (Antônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 17), mas isso constitui uma condição de estigma que, de certa forma, também poderia ser atribuída tanto a João Antônio, como ao próprio Lima Barreto (após suas primeiras internações).
  • 24
    . Havia um, “conhecido pelo apelido que o próprio Lima lhe aplicou – Huberto, o Pavoroso […] rapaz magro, longilíneo, moreno-branco, que não havia passado da instrução primária, não tivera convívio social […] raramente conseguia emitir um juízo plausível […]. E, no entanto, era um bom rapaz. Rapaz de chorar diante da miséria de um desconhecido […]. Vivia um drama de família […]. Ele vivia de pequenas dádivas dos amigos, entre os quais, o mais constante, isto é, o mais procurado, era Lima” (Nóbrega da Cunha inAntônio, 1977ANTÔNIO, João. (1977), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., pp. 39-40).
  • 25
    . Há menções a interações de Lima Barreto em bares de outras regiões do Rio, adicionais ao itinerário aqui abordado, que não serão tratadas.
  • 26
    . Supomos aqui um caráter durável de tal forma de sociabilidade, já que Machado da Silva se refere a observações ao final dos anos de 1960, de toda forma não distantes do depoimento de N. da Cunha a J. Antônio.
  • 27
    . Em conformidade com a cronologia de Schwarcz (2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 607), segue um trecho de seu diário , de abril de 1914: “Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver cotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa a outra, e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos”.
  • 28
    . Em 4 de novembro de 1918, “[Lima] Fratura uma clavícula durante uma bebedeira. Encontrado pelo amigo Noronha Santos numa rua de Todos os Santos, é levado para o Hospital Central do Exército, no centro da cidade. Permanecerá dois meses internado” (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017), Lima Barreto: triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras., p. 608).
  • 29
    . Poderíamos mesmo encarar Lima Barreto como uma espécie de precursor dos(as) chamados(as) escritores(as) das periferias, como ressaltado ultimamente numa série de eventos, inclusive a Flip de 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2018
  • Aceito
    7 Nov 2018
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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