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Gérard Duménil e Dominique Lévy. Managerial capitalism: ownership, management and the coming new mode of production

Duménil, Gérard; Lévy, Dominique. Managerial capitalism: Ownership, management and the coming new mode of production. Londres: Pluto Press, 2018. 240

As questões

Capitalistas e gestores são termos correntes do linguajar popular e acadêmico. Qualquer pessoa movida pela noção de classes sociais, não no formato de classes funcionais, definidas pela sociologia em razão das atividades que exercem seus membros, mas por meio de grandes forças sociais que respondem pelo movimento histórico da sociedade mundial, ficaria intrigada com a afirmação de que na sociedade atual prevalece um capitalismo de gestores ( managerial capitalism ).

O livro Managerial capitalism torna mais complexo o cenário ao empregar também a expressão modo de produção. Classes e modos de produção são termos da teoria marxista e crítica da história. Se escrever um livro exerce o papel de provocar espanto, o livro de Gérard Duménil e de Dominique Lévy preenche essa função.

Os autores afirmam peremptoriamente que a sociedade contemporânea está organizada na forma de um novo modo de produção, o capitalismo gerencial, vitorioso no embate sobre o comunismo e o socialismo. Não é o capitalismo tal como estamos acostumados a reconhecer, mas um capitalismo híbrido, composto por uma combinação dos proprietários dos meios de produção com os gestores de negócios privados e administradores estatais. Donde a expressão, facilmente traduzida em inglês por management capitalism e, mais dificilmente, em português por capitalismo gerencial, expressão limitativa como se percebe de imediato por reduzir-se a gerentes.

As questões principais suscitadas pelo livro são: (1) se a sociedade mundial entrou em momento de um novo modo de produção e (2) e se classes sociais que fariam parte dele seriam os gestores, para além das organizações da burguesia e do proletariado (ou classes populares na acepção dos autores).

Desenvolvimentos

Vejamos a seguir as principais teses desenvolvidas, as fontes de informações empregadas, como os autores organizam o escrito e o desenvolvem, deixando para a parte final desta resenha o esboço de elementos críticos.

O livro está organizado em quatro grandes partes, sendo a primeira ‘modos de produção e classes’. Começa apresentando evidência empírica sobre desigualdade de rendimentos, surpreendentemente, antes de tratar da teoria da história. A evidência empírica é o ponto alto de todo o livro. Ela é produzida por econofísicos, físicos que trabalham problemas de economia, no caso a distribuição dos rendimentos por domicílios norte-americanos para um período de um século aproximadamente iniciando no começo do século XX e indo até o início do século XXI, publicados anualmente pelo Internal Revenue Service dos Estados Unidos da América do Norte. Estes dados permitem aos analistas estudar separadamente o rendimento auferido por meio de salários assim como por meio de capital. Segundo a análise dos dados teria aumentado a proporção de rendimentos de salários (bônus, vantagens e benefícios) em relação à de capital. Salários e capital são indicadores fundamentais para o estudo de classes sociais, sendo rendimentos de capital denotadores do agrupamento dos proprietários de capital e rendimentos de salários do agrupamento dos gestores.

Esse longo período estudado por meio de dados referentes aos domicílios (não aos indivíduos) norte-americanos possibilita aos autores do livro organizar uma periodização do século estudado, suas características e evolução em relação a políticas sociais progressivas e a políticas sociais regressivas. São estabelecidos quatro períodos nesse século considerado, a saber: (a) a crise financeira do final do século XIX; (b) a crise de lucro dos anos 1930; (c) a crise de lucro dos anos 1970-1980; e (d) a crise financeira de 2007-2008.

Tal periodização confere base à interpretação histórica que os autores fazem a respeito da transição do modo de produção capitalista, no sentido explícito de produção de sobretrabalho e exploração por meio do capital enquanto propriedade, para o modo de produção do capitalismo gerencial. Os quatro períodos possibilitam uma interpretação histórica da dinâmica de participação no modo de produção capitalista assim como a discussão da possibilidade de os movimentos sociais realizarem ganhos ou não, o que faz de tal período alcançar políticas progressivas ou os movimentos sociais serem atingidos por políticas regressivas.

Mais do que periodização, o livro pretende fazer uma análise da evolução da categoria dos gerentes até o ponto em que seu poder é tão grande que permite serem avaliados como uma classe se organizando e criando um modo de produção. O ponto de corte entre o capitalismo e o capitalismo gerencialista estaria no fato de que o capitalismo teorizado por economistas e sociólogos referir-se à acumulação de capital e à formação de propriedades, despojando os trabalhadores do trabalho livre e transformando toda a força de trabalho em mão de obra assalariada. Desde o começo, os capitalistas proprietários de meios de produção serviram-se de administradores do capital, que eram incorporados aos negócios como profissionais que atuam em diversos níveis das empresas e dos negócios. Até hoje uma determinada sociologia das classes sociais atém-se ao problema de como classificar os gestores como profissionais. Os autores do livro em resenha não caminham por essa trilha. Eles pretendem demonstrar o crescimento do número dos gestores através do tempo e especialmente o aumento do seu poder de decisão no mundo dos negócios a ponto de disputarem espaços com os proprietários do capital.

O fenômeno do surgimento e do crescimento dos gestores no mundo dos negócios já foi descrito por autores anteriores, entre eles Burnham, Galbraith e Schumpeter. Mas nenhum deles jamais ousou afirmar que os gestores já consolidam em torno a si tal quantidade e qualidade de poderes que ousariam entendê-los como uma classe social em si. Os escritos, quando têm a preocupação de discutir classe sociais, costumam colocar os gestores junto aos proprietários dos meios de produção, não separadamente, mas como partilhando de interesses semelhantes. A classe burguesa seria formada conjuntamente por proprietários e por gestores, sendo os gestores um grupo novo e em ascensão que se agrega aos proprietários de meios de produção e reforça a resolução de seus interesses, mas em hipótese alguma a literatura afirma constituírem uma nova classe social. O que qualifica os autores do livro em resenha é dar esse passo à frente e ousadamente afirmar o que ninguém afirmou. Não por espontaneísmo e sim em razão da evidência empírica de que salários prevalecem sobre capitais da captura de valores excedentes nos dias de hoje. A evolução em termos de número e de poder de decisão que retêm em suas mãos é de tal modo significativa que transforma os gestores numa classe com interesses próprios, distintos dos proprietários dos meios de produção. Dessa forma, não mais está em formação um grupo social de gestores que, como todos sabem, operam nas empresas e nos governos dos estados-nação, mas em plena operação uma classe social, cujos interesses distanciam-se tanto dos burgueses proprietários quanto dos trabalhadores assalariados e demais agrupamentos sociais assemelhados em renda. O ponto crucial da discussão sobre gestores centra-se, pois, na interpretação que os coloca ou como fazendo parte conjuntamente da mesma classe burguesa na qual ocupam posições de mando, mas sempre subordinadamente aos proprietários, ou se já ultrapassaram esse limite de partilhar o poder com os burgueses proprietários e passaram a ter seus próprios interesses arvorados inclusive contrariamente aos interesses desses proprietários.

Como arguem os autores de Managerial capitalism em favor de sua tese de que os gestores já constituíriam uma nova classe social? Empiricamente eles apresentam informações (2018, figura 2.2, p. 13) a respeito da camada mais elevada de gestores que vem sistematicamente durante um século elevando seus rendimentos, enquanto outras categorias de assalariados têm seus rendimentos constantes ou até mesmo declinantes. Ambos os casos, rendimentos crescentes para o grupo mais elevado de gestores e rendimentos constantes ou declinantes para os demais assalariados, observam-se no momento atual do neoliberalismo mundial.

O segundo argumento consiste em desenvolver a noção de managerialism , seja por meio da gestão das empresas privadas, que necessariamente precisam valer-se de administradores, por mais que concentrem capital em suas mãos – a que os autores chamam de “revolução da gestão privada” –, seja na gestão das inúmeras políticas públicas e atividades dos estados-nação, bem como das empresas estatais que são mantidas pelos governos, cujas mudanças intitulam de “revolução nos governos” (ver capítulo 6). As mudanças na administração das empresas e dos governos alteraram-se a tal ponto que podem ser definidas como tendo um caráter “revolucionário”. Novamente aqui se coloca a questão das fronteiras: se devem ser consideradas como fenômenos revolucionários, ou se são avanços e mudanças próprias do crescimento da administração dos negócios e dos estados. Ressalta-se que os autores colocam o sistema autoproclamado socialista ou comunista, que prevaleceu entre a revolução de 1917 na Rússia até pelo menos a queda do Muro de Berlim em 1989, como parte da constituição da classe dos gestores, o que nos parece um argumento frágil.

O terceiro argumento é retirado da literatura marxista que é empregada como base para a discussão teórica. Os autores mostram que o desenvolvimento da questão da administração dos negócios era ainda uma parte limitada na discussão marxista de classes e não apenas que o tratamento teórico sobre classes em Marx encontra um limite, já que o texto em que começa a trabalhar a questão rompe-se subitamente após uma enigmática indicação de três classes sociais no capitalismo do século XIX. Três classes sociais são também o que os autores de Managerial capitalism afirmam e interpretam: a classe burguesa dos proprietários, a classe dos assalariados em geral e a classe dos gestores. A análise que a literatura marxista conduz ao tratamento de classe é tomada como insuficiente pelos autores, que pretendem avançar na proposição de uma nova classe de gestores.

O último argumento desenvolvido no capítulo 11 versa sobre estrutura de classe e de poder imperial. Esse capítulo, embora não seja o mais importante do livro, é um dos que mais atrai a atenção do leitor por apresentar indicações fáticas sobre as redes de relações tecidas entre as grandes corporações mundiais. Os achados são fascinantes. Existe uma enorme estrutura conectada mundialmente. A concentração de poderes nas mãos das corporações mundiais é a ordem: o centro da rede é feito de 1.318 corporações, uma minoria; o grau de controle das corporações pode ser avaliado pelo fato de que 737 corporações ou indivíduos controlam 80% do valor econômico no mundo. As corporações são administradas por gestores, que prestam conta a conselhos de administração. Ocupar tal posição lhes permite aumentar ganhos, quando bem sucedidos nas decisões tomadas, seja por meio de bônus seja por meio de benefícios.

A terceira parte do livro mostra que os autores não apenas fazem análise econômica como têm domínio da flecha do tempo, da história. Reforçados dessa maneira, voltam-se para analisar duas grandes revoluções: a francesa e a inglesa, que representam os grandes momentos em que a ordem capitalista instalou-se como modo de produção hegemônico. A análise desses fatos históricos projeta o início do capitalismo no século XVIII ou XVII e, em Marx, no século XV. Tal análise histórica envolve as alianças tecidas por trabalhadores e a construção da hegemonia pelas forças burguesas. A revolução industrial é avaliada como um período de enorme regressão social, como se sabe, pelo uso do trabalho de crianças e de mulheres, pelas jornadas laborais com durações excessivas e pela exploração do trabalho das maneiras mais vis.

A história faculta aos autores o encerramento do livro com belos capítulos sobre a emancipação humana e alianças no porvir. Para eles, alianças que foram construídas no passado apontam para possibilidade de tessitura de alianças futuras. Se aconteceram no passado, alianças e enfrentamentos entre classes ou segmentos delas, no futuro também poderão tomar lugar, ainda que compostas por outros atores. A luta das classes populares, assim as chamam, é um vetor imprescindível para políticas a serem adotadas no futuro, se progressivas ou regressivas. Sociólogos e economistas europeus são atraídos pelos avanços sociais alcançados durante os “trinta anos gloriosos”, traçando um período de crescimento econômico e social com políticas progressivas. Já o neoliberalismo representa a reversão do sentido das políticas sociais e um período regressivo em termos de concentração das rendas nas mãos de proprietários e gestores do capital, desconstrução de direitos do trabalho, rejeição a migrantes. Portanto, os autores olham para o futuro com olhar crítico, mas também apontando para possibilidades de transformação, uma vez que no passado também as lutas sociais resultaram em períodos progressivos, donde resultou o Estado de Bem Estar Social e o keynesianismo após a Segunda Guerra Mundial.

Sob o olhar da crítica

De partida, avalio este livro como sendo de especial interesse para as áreas de sociologia, economia, administração e ciências humanas em geral. Ainda que muito bem escrito, infelizmente a tradução inglesa não coopera com a qualidade da obra. O texto é fortemente argumentado, detalhado teoricamente e revisor da obra de autores, entre os quais, Marx, Engels, Schumpeter, de filósofos e autores contemporâneos que inclui pelo menos Bourdieu, Foucault, Althusser, Bolstanski e Chiapello e Eric Olin Wright. É embasada em fatos, informações quantitativas e qualitativas, e em uma consistente análise histórica, que retrocede no tempo até a Revolução Inglesa, passando pela Revolução Francesa.

Situamos o pomo da discórdia no tratamento dos managers na estrutura de classes na sociedade contemporânea. Ele se localiza, segundo nossa leitura, exatamente em saber se managers constituem uma classe em si ou se são uma parcela da burguesia, que ainda não conseguiu ascender ao mundo das propriedades, mas está a caminho.

A despeito de o livro ser bem construído e arguido, resta uma dificuldade na tese sobre a classe dos managers . A saber, os managers amealham cada vez mais rendas e se convertem em proprietários de capital, sob a forma de acumulação de renda, bônus, vantagens, benefícios sob a forma de parcelas de ações de empresas e corporações a que pertencem. Convertem-se em proprietários. Managers e proprietários. Ponto. Permanecem como managers e se tornam proprietários de inimagináveis quantias de capital. Em algum momento, passam de managers a proprietários. Ou existe uma razão mais forte que faz com que eles não se convertam em proprietários? Tal questão não aparece resolvida no livro. A dificuldade tem repercussão muito forte na concepção de classe. Inclusive não impede previamente que segmentos de managers possam organizar alianças com segmentos das camadas populares ou da classe burguesa.

Um empreendimento tão gigantesco, quanto o autoproposto pelos autores do livro, de fazer uma compreensão em escala mundial, de fato situa-se no âmbito de uma equipe que conseguisse retratar o sistema mundo como conjunto de todas as classificações que podem ser feitas relativamente à compreensão de como se organiza tal sistema. Aquela página escrita sobre a China (pp. 195-196) seria suficiente para contemplar bilhões de pessoas que trabalham diariamente alimentando o mecanismo de captação mundial de sobretrabalho que se espalha pelo mundo todo? Com efeito, desde antes do período da globalização, fortemente constante no colonialismo que vigorou desde o século XVI em diante, observa-se que a mundialização tem como componente inseparável a produção de sobretrabalho e de mais-valia envolvendo milhões de braços de trabalhadores e de trabalhadoras da “periferia”. Formaram-se assim os canais da dependência entre países que ocupam o círculo central do modo de produção capitalista e as nações que ocupam os outros espaços. O sobretrabalho carreado de todas as partes do mundo sustentam os baixos salários pagos aos trabalhadores dos países do circuito de fogo do capital. Sendo assim, a construção de um livro com interpretação de alcance mundial tem que tratar sobre o suor e o sangue dos trabalhadores e das trabalhadoras do Leste Europeu (a revolução russa é subestimada) da América Latina, da África, da Ásia na construção e consolidação do modo de produção capitalista gerencial global.

Em relação à metodologia e técnicas de pesquisa, o livro é rico e assume uma posição de vanguarda. O leitor pode apreciar a discussão teórica deslizando pelas 240 páginas que compõem o livro ou então lendo pelo menos a primeira parte. Duménil e Lévy utilizam dados trabalhados por outros pesquisadores, sejam aqueles que eles denominam de econofísicos ou, os já bem conhecidos no Brasil, Pikety e Saez. Uma parte significativa da fundamentação empírica dos autores do livro é, portanto, de fonte secundária organizada por terceiros. Isto implica, em determinados momentos, tal qual na análise dos dados de rendimentos do capital, sua exclusão por razão desconhecida. Toda a parte de análise da literatura, assim como de estudo das dinâmicas históricas e o desenvolvimento teórico é de responsabilidade dos autores, representando um desafiador estudo sobre história universal.

Embora o livro tenha sido publicado recentemente, as principais teses dos autores já eram conhecidas anteriormente em outros textos. Cabe examinar então, para concluir, como a literatura recente reagiu sobre algumas proposições dos autores. Tem-se repetido a crítica de que o livro tem seu ponto forte no conjunto de informações empíricas que apresenta. Além disso, os autores se organizaram com base em uma firme análise de fenômenos históricos, também estes de natureza empírica. Isso significa que o principal argumento do livro também se calca sobre fundamentos empíricos cuja contestação se torna um elemento difícil de ser desenvolvido, uma vez que supõe que sejam apresentados dados e informações que permitam contestar as interpretações realizadas. É o que tenta realizar Michael Roberts (2018)ROBERTS, Michael. (2018), “Managers rule, not capitalists?” Michael Roberts Blog. Disponível em thenextrecession.wordpress.com.
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com uma tabela que desconstruiria a tese dos autores de Managerial capitalism . A tabela contém informações de sete momentos: 1918, 1929, 1944, 1973, 1979, 2007 e 2011 nos Estados Unidos da América do Norte, com a distribuição de salários e capitais que apresentaria uma visão contrária aos autores de Managerial capitalism . Importante é o argumento de que se os managers recebem salários muito elevados eles também são proprietários. Esse não seria um caminho certeiro para separar os managers dos capitalistas proprietários, porque ambos são capitalistas e proprietários. A tabela replicada por Michael Roberts tem seus problemas. Primeiramente, não indica a fonte dos dados apresentados ao leitor. Em segundo lugar, não esclarece se as informações dos salários se referem ao estrato considerado o cerne do gerencialismo contemporâneo, o 1% superior específico dos managers . Em terceiro lugar, é apenas uma tabela posta em relação a uma plêiade de informações, procedentes de várias fontes, e apresentadas em Managerial capitalism . Portanto, é uma disputa empírica que entra pelo caminho certo, o da contestação real, fato a fato aos dados empíricos apresentados, mas que também tem seus problemas a resolver, como indicamos acima, analisando pontos elementares para uma crítica vigorosa. Parece-nos que a via da crítica empírica e histórica não deveria ater-se somente às informações referentes aos Estados Unidos da América do Norte ou ao contexto dos países desenvolvidos da Europa e sim trazer uma visão global, mundial, em que aparecesse o contexto dos países ditos do Terceiro Mundo, porquanto o Sistema Mundo é composto de um Centro e de uma Periferia e não pode ser visto somente a partir do ponto de vista do Centro.

Se a via empírica apresenta possibilidades reais de crítica, embora de difícil desenvolvimento, a via teórica tem sido mais trilhada. Tomaremos apenas um exemplar dessa crítica, o artigo de Eleutério F. S. Prado, intitulado Do neoliberalismo ao neogerencialismo: de uma crítica classista ao neoliberalismo , publicado no blog do autor . Do título do artigo pode-se ver que se trata de uma crítica relativa ao tema classe social. Classe social, não no sentido das lutas e dos movimentos que se travam entre capitalistas e proletários e sim no sentido do evolver (ou não) a classe dos capitalistas em direção a uma classe de gestores. Para Eleutério Prado tal transição não ocorreu nem ocorrerá. “Duménil e Lévy […] julgam que se encontram já na presença da crise do neoliberalismo. Avaliando, em consequência, que a continuidade dessa ‘ordem’ se afigura como insustentável, chegam à conclusão que ela será substituída por um nova ‘ordem social’, o neogerencialismo” (2015, p. 15). A argumentação de Eleutério Prado recupera a concepção teórica de Marx para interpretar o movimento da história. Em Marx, inexiste a categoria de “ordem” ou “ordem social” e existe, embora presente em capítulo minúsculo, a categoria de classe. Eleutério Prado vale-se de uma discussão longa sobre o lugar do capital financeiro, em suas manifestações de capital portador de juros e de capital fictício, esta última função ocupando espaço significativo no entendimento das crises financeiras que abalaram o mundo das nações desenvolvidas, a exemplo da crise iniciada em 2007-2008. Na interpretação desse evento, o autor se baseia na posição desenvolvida por Lohof e Trenkle (2014) a respeito das mercadorias financeiras e por intermédio deles conecta-se ao grupo Krisis alemão. Embora não seja possível desenvolver aqui tal interpretação, vale destacar a informação veiculada pela grande imprensa sobre o impacto da referida crise no governo de um país. O custo dessa crise somente para o caso dos Estados Unidos da América do Norte consumiu de três a quatro trilhões de dólares no governo de Barack Obama para estabilizar de alguma maneira o funcionamento da economia norte-americana, sendo um entre outros indicadores das crises cujo fundamento se encontra nas contradições do sistema. Fica a ser estabelecido o impacto financeiro da crise no restante dos países do mundo.

Não é possível desenvolver aqui com mínimo grau de consistência o tema do valor em suas dimensões concretas e abstratas. Mas é possível indigitar a ausência no livro de Duménil e Lévy, no artigo de Prado e de outros autores que têm se manifestado sobre o tema do neoliberalismo e seu desenvolvimento, o tratamento profundo do conceito de valor, como necessário e como excedente. Todo o valor gerado em termos de valor de uso e de mais valor depende do envolvimento de todas as capacidades que os trabalhadores e as trabalhadoras aportam ao processo laboral. É o tempo social consumido no e pelo trabalho. O envolvimento das capacidades não é um ato voluntário e sim controlado pelos capitalistas e seus gestores de modo a que o rendimento continue a crescer através do tempo. Para resumir essa proposta do envolvimento de todas as capacidades dos trabalhadores que direta ou indiretamente participam do processo de trabalho, são empregadas as horas laborais, as jornadas de trabalho. As jornadas laborais continuam sendo um elemento significativo para a compreensão das crises do capitalismo e para a compreensão das contradições do sistema financeiro mundial, isso porque não é possível entender um sistema que se mantenha somente sobre uma estrutura na qual não tenha lugar o desfrutar das capacidades totais dos trabalhadores, sejam elas capacidades físicas, intelectuais, psíquicas, culturais, sociais e outras dimensões que o envolvimento dos trabalhadores e das trabalhadoras no processo laboral mundial permite entender como produção de valor. Percebe-se na atualidade uma certa constância das horas laborais, embora as jornadas laborais tenham sido reduzidas para uma parcela de nações do mundo (Lee, McCan e Messenger, 2009) no decorrer dos séculos em razão dos movimentos sociais que alçavam a bandeira de que viver não é só trabalhar. Por outro lado, percebe-se a elevação da intensidade do esforço exigido pelos empregadores e pelos gestores de seus empregados e empregadas no processo de trabalho. Na atualidade, vigora a flexibilização do uso das capacidades dos trabalhadores e das jornadas laborais, indicando a abertura de outras frentes de desfrute das capacidades dos trabalhadores e das trabalhadoras gerarem mais valor, valor excedente. As medidas para forçar a elevação da ‘produtividade do trabalho’ vêm sendo criadas no curso da história pela ação dos gestores. Lamentavelmente não encontramos um mínimo desenvolvimento dessa questão nem no livro resenhado nem pelos autores que fazem críticas, muito embora sejam questões imprescindíveis para captar o sentido de valor abstrato. Os trabalhadores e as trabalhadoras realizam as ações públicas que detonam as crises ou que fazem a história mover-se, espera-se, num sentido de civilização crescente.

A despeito dos pontos críticos até agora suscitados, o livro merece ser lido, amplamente discutido e analisado, pelas interpretações históricas e pelas proposições políticas gerais que os autores apresentam, tal como a possibilidade de um acordo entre ‘classes’ que poderia gerar o desenvolvimento de bem estar para os trabalhadores e as trabalhadoras.

Referências Bibliográficas

  • DAL ROSSO, Sadi. (2017), O ardil da flexibilidade, os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, Boitempo.
  • LEE, S.; MCCAN, D. & MESSENGER, J. C. (2009), Duração do trabalho em todo o mundo: tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas numa perspectiva global comparada. Brasilia, OIT.
  • LOHOFF, Ernest & TRENKLE, Norbert. (2014), La grande dévalorisation: pourquoi la spéculation et la dette de l’État ne sont pas les causes de la crise. Paris, Post-éditions.
  • MARCELINO, Paula & AMORIM, Henrique. (2007), “Neoliberalismo e dominação de classe: uma análise marxista do capitalismo contemporâneo. Entrevista com Gérard Duménil”. Lutas Sociais, 17-18: 184-196.
  • PRADO, Eleutério F. S. (2015), “De uma crítica classista ao neoliberalismo”. Blog na internet: http://eleuterioprado.wordpress.com, pp. 1-16.
    » http://eleuterioprado.wordpress.com
  • ROBERTS, Michael. (2018), “Managers rule, not capitalists?” Michael Roberts Blog. Disponível em thenextrecession.wordpress.com.
    » thenextrecession.wordpress.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2020
  • Aceito
    13 Fev 2020
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