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Apresentação: autonomia e heteronomia no estudo das trajetórias artísticas e intelectuais

Enquanto categoria de avaliação moral, a autonomia se baseia na capacidade de autorregulação e autoavaliação, ganhando destaque no pensamento iluminista e kantiano. Nessa perspectiva, “o poder de conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade” (Kant, 1996b, p. 34) deixa ver os polos que organizam o trabalho da razão, cristalizando a dualidade entre heteronomia e autonomia. Essa problemática, elaborada, inicialmente, no campo da filosofia, é convertida em categorias científicas de análise empírica pela sociologia da cultura, tornando-se elemento fundamental para o estudo das trajetórias de indivíduos e grupos.

Tendo como pano de fundo o dilema entre autonomia e heteronomia, este dossiê se dedica ao estudo de experiências e processos de consagrações em diversas modalidades, esferas e registros – música, literatura, carnaval, ideias e discursos políticos –, seja no campo da produção erudita ou do popular massivo, cujas fronteiras se atravessam constantemente. O tema da consagração expõe o conflito entre autonomia e heteronomia, definido e redefinido por sistemas de classificação cultural – consagrações, fracassos, sucessos, notoriedades, visibilidades, ostracismos etc. – que orientam os processos de funcionamento do campo artístico e, sobretudo, reivindicações de autoria. No processo de investigação desse fenômeno, algumas perguntas podem ser aventadas: consagração para quem, sob que condições e a que custos? Quais seriam os efeitos, por exemplo, da ascensão mercadológica na carreira de artistas engajados, malditos ou vanguardistas? Como isso alteraria sua apreciação e julgamento? Analisar o choque entre os critérios de valor próprios a instâncias de difusão e legitimação, a públicos, a agentes e instituições contribui para a compreensão dos processos de consagração cultural.

Dados o crescente interesse pelos estudos de trajetórias e a dificuldade de encontrar material para recém-chegados, este texto funciona como uma introdução geral. Assim, trata-se menos de uma apresentação dos textos, que do tema do dossiê. O objetivo é explicar a gênese dos conceitos de autonomia, heteronomia, trajetória e consagração cultural e as problemáticas que eles suscitam quando mobilizados a compreender os itinerários de artistas e intelectuais, feito este colocado em pauta pelos estudos de caso presentes. Tomando a filosofia kantiana como ponto de partida, passamos agora ao debate marxista para depois dissecar o legado bourdiesiano e, por fim, analisar os dilemas particulares aos estudos de trajetórias.

Autonomia e heteronomia em Kant

Quando Immanuel Kant publicou a Fundamentação da metafísica dos costumes ([1785] 1974), uma importante ruptura epistêmica se fez na construção do seu sistema crítico. Enquanto na primeira crítica , a Crítica da razão pura (1996a), Kant se confrontava com as limitações do ato de conhecer as coisas em si mesmas, pelo puro exercício da analítica dos princípios, a segunda crítica, Crítica da razão prática (1788), partindo das noções de universalidade anteriormente constituídas na razão pura , recobrava entendimento ( Verstand ) do agir conforme leis e imperativos desenhados pela razão moral ( Vernunft ). Ou seja, as antinomias originárias da filosofia desde a antiguidade clássica repousavam na crítica kantiana como possibilidade não apenas de reconhecer as categorias estruturadoras do conhecimento e do ato reflexivo, mas de recolocar em debate o mundo secular cindido entre o particular e o universal, entre sujeito e objeto, entre o teórico e o prático e seus papéis no processo de construção das categorias filosóficas que nos permitiriam conhecer a realidade e falar dela. Foi, entretanto, na Fundamentação da metafísica dos costumes (uma obra intermediária publicada entre a primeira e a segunda críticas ) que o filósofo se defrontou com o contraste das categorias transcendentais e empíricas na formação da sua filosofia. Apesar de voltar sua atenção ao problema da experiência e dos fenômenos, Kant não deixou de considerar o problema das antinomias e sua relação com a liberdade e o livre arbítrio do sujeito.

Foi na segunda crítica, entretanto, que Kant levou às últimas consequências a análise do problema da liberdade e da autonomia e/ou heteronomia do sujeito. Nesta, o tema da autonomia e da heteronomia aparecia como elemento fundamental da constituição da razão no sujeito. A rigor, Kant constatou que os problemas da “filosofia material” ou dos costumes estavam relacionados com os temas da moralidade e, por conseguinte, com o problema da construção da autonomia do sujeito frente à determinação/heteronomia do mundo empírico. Mas, ainda assim, Kant creditava ao sujeito a capacidade de refletir e derivava desse exercício um grau suficiente de autonomia da razão frente aos aspectos fenomênicos. O problema da distinção entre autonomia e heteronomia levaria à ampliação do escopo de análise na forma de uma “crítica do gosto”. Assim, a terceira crítica recolocava o problema da autonomia e da heteronomia do sujeito numa “ciência estética”, ainda que isso não tenha sido o propósito do filósofo. Conforme afirma Ricardo Terra, “trabalhando várias questões (como a sistematicidade das leis empíricas, o organismo, o gosto), Kant encontra uma maneira de unificar as figuras da reflexão na medida em que chega a um juízo meramente reflexionante, podendo, então, ampliar o projeto crítico-transcendental” (Terra, 1995, p. 25).

Talvez por isso a terceira crítica tenha impactado tão fortemente a geração de leitores imediatamente posteriores a sua publicação. Primeiro, porque o sistema kantiano dava mostras de um entendimento mais amplo (dialético) entre as duas instâncias constituintes do conhecimento. Filosofia e natureza pareciam convergir na construção da autonomia do sujeito (na forma do gênio artístico), em detrimento da heteronomia marcada pela ordem consuetudinária. Segundo, porque a Crítica do juízo apontava para formas possíveis de realização do gênio, sobretudo no que dizia respeito às artes e à estética, faculdades assumidas por Kant como realização do gênio artístico.

Assim as análises de Schiller, Schlegel, Novalis, Fichte, Schelling e do ainda jovem Hegel sedimentaram uma tese já anteriormente esboçada na terceira crítica: se, para Kant, “os princípios segundo os quais fazemos experimentações têm sempre de ser extraídos, eles mesmos, do conhecimento da natureza, portanto da teoria” (Kant, 1995, p. 34), seria preciso, então, situar o lugar onde essa relação se daria efetivamente. O filósofo alemão demonstrou que o seu sistema, ao menos no plano das três críticas , deixava de ser esse “lugar”. A elaboração de uma educação estética e sentimental se transformaria no princípio organizador e sistematizador do conhecimento e de sua relação com a imaginação e a criação artísticas. Nesse sentido, a Crítica da faculdade do juízo não apenas deu solução – ainda que provisória – às antinomias fundantes do conhecimento, mas, e sobretudo, propôs novo entendimento sobre a natureza da autonomia (liberdade) e da heteronomia (determinação) sobre o sujeito.

É essa dimensão da liberdade subsumida do sujeito kantiano que, determinado pela prática, forjaria o entendimento ( Verstand ) e daria contornos de unidade à razão ( Vernunft ). Na esteira dessa compreensão, teóricos como Friedrich Schiller assumiram a obra de arte e propriamente a criação artística como lugar de realização dessa unidade que Kant buscou no percurso das três críticas . Schiller, ao elevar as artes como lugar de realização da autonomia do artista (em especial do gênio), indagava se não haveria melhor uso para a liberdade que não o empreendido pelas belas-artes e se não haveria maior obra de arte que a construção de uma liberdade política; concluía, assim, asseverando: “a arte, pois, é filha da liberdade e quer ser legislada pela necessidade do espírito, não pela privação da matéria” (Schiller, 2002, pp. 21-22).

De fato, constata-se aqui uma ruptura importante entre Kant e seus leitores. Isso porque a dimensão estética, longe de reproduzir as analíticas e a lógica do sistema kantiano, resultou numa extensão do debate filosófico à cena política. O romantismo, seguido do idealismo alemão, mais que um movimento literário ou uma tendência estética, transformou-se num vocabulário político de amplo espectro ideológico que representou uma visão de mundo na busca pela autonomia e pela liberdade – resquícios políticos da Revolução Francesa e, posteriormente, das invasões napoleônicas1 1 . Sobre o romantismo como visão de mundo e suas representações anticapitalistas, consultar Löwy e Sayre (1995) . . Esses elementos políticos e sociais se perderam na história da filosofia, mas revelam a complexidade do debate sobre a estética como espaço de construção da liberdade e da autonomia de criação dos indivíduos.

Marx, marxismos e a cultura

Em Hegel, e em seguida em Marx, essa perspectiva da filosofia clássica alemã tornar-se-ia relevante, visto que o problema da estética adquiria contornos mais fortes ao conceber a criação artística e intelectual no continuum histórico e na consideração dos processos sociais que as engendraram. Nessa perspectiva, teoria e prática seriam interpretadas a partir do devir histórico, e a filosofia e as artes seriam o resultado da operação dialética do sujeito e das contradições, da qual ele próprio era resultante.

Para Hegel, a arte é expressão importante da criatividade humana, mas que não se mantém limitada, como em Kant, ao plano do conhecimento, estendendo-se ao plano do próprio ser ( Konder, 1991KONDER, Leandro. (1991), Hegel ou a razão quase enlouquecida . Rio de Janeiro, Campus. , p. 69). Com isso, a arte e – num segundo momento – a religião ocupavam uma centralidade na dinâmica da edificação do Espírito ( Geist ). De certo modo, Hegel se confrontava com a escola romântica que tinha na genialidade artística a criatividade e a imaginação como formas espontâneas de representação do “dom”. Para o autor, “sem reflexão, sem escolhas conscientes, sem comparações, o artista é incapaz de dominar o conteúdo que deseja expressar. É um equívoco pensar que o verdadeiro artista não sabe o que faz” ( Konder, 1991KONDER, Leandro. (1991), Hegel ou a razão quase enlouquecida . Rio de Janeiro, Campus. , p. 72).

Ainda que em Marx e Engels o papel das artes – ou da produção artística – não ganhe centralidade, é possível detectar o esforço em compreender artistas e intelectuais como sujeitos históricos submetidos à lógica do capital. Eis, assim, o exemplo de uma cantora e de um palhaço que trabalhando por conta própria são trabalhadores improdutivos, mas que, empregados pelos detentores dos meios de produção, geram mais-valia. Da mesma forma, toma-se o escritor por operário produtivo, não porque produz ideias, mas porque vende sua força de trabalho ao editor que, por sua vez, se encarrega da impressão e da venda de livros (Marx e Engels, 1974, pp. 75-76).

O trabalho artístico e intelectual seriam representações sociais de um determinado contexto político e social, traduzidos pelo léxico marxista nos termos de base e superestrutura no interior do sistema capitalista de produção. Filósofos, escritores, artistas não seriam portadores inatos da autonomia (frente à heteronomia imposta pela materialidade histórica), mas seriam produtores dessa autonomia no decorrer dos processos históricos, favorecendo circunstâncias para tal. A autonomia, por sua vez, seria fortalecida na mesma proporção em que a totalidade social fosse a representação do movimento dialético – e revolucionário – entre teoria e prática, ou da práxis .

Entretanto, após a morte de Marx, essa abordagem sofreu inúmeros influxos pelas mãos das correntes marxistas. No decorrer do século XX, intelectuais como György Lukács, Walter Benjamin, Antonio Gramsci, Lucien Goldmann, Raymond Williams buscaram retomar inúmeros aspectos da teoria marxista sob o enfoque dos problemas culturais. Uma questão bastante específica permitiu a aproximação desses intelectuais num cenário de politização da cultura: compreender o papel dos intelectuais e dos artistas na construção de uma vanguarda revolucionária.

A discussão em torno das vanguardas e do papel político desempenhado por artistas e intelectuais no processo de renovação dos debates em torno da autonomia e da heteronomia foi um dos temas centrais das análises de Raymond Williams. Grande parte de seus estudos deteve-se sobre o marxismo ou, mais especificamente, sobre o problema do materialismo histórico e dialético como instrumento de análise da produção artística e cultural no decorrer do século XX. Williams retomou, em grande parte, as discussões sobre as relações entre base e superestrutura na teoria da cultura marxista como forma possível de ampliar o debate sob uma perspectiva materialista da cultura, a exemplo de Walter Benjamin quando discutiu a forma mercadoria das obras de arte para além de sua representação aurática e de autenticidade dos produtos culturais.

Ao mesmo tempo que essa análise era realizada, teciam-se críticas severas a certa ortodoxia marxista que preconizava um entendimento estático sobre base e superestrutura. O próprio Williams reforçava a importância dessas categorias na construção de uma crítica cultural, desde que estas não fossem compreendidas a partir de uma noção de “determinação”. Segundo ele, a proposição da “base determinante e da superestrutura determinada tem sido comumente considerada a chave para uma análise cultural marxista, […] mas é importante estarmos cientes de que o termo que marca essa relação – isto é, determinar – é de grande complexidade teórica e linguística” ( Williams, 2011WILLIAMS, Raymond. (2011), “Base e superestrutura na teoria da cultura marxista”. In: Cultura e materialismo . São Paulo, Edunesp. , p. 43). Ou seja, pensar a determinação como expressão de uma heteronímia na mera contraposição à autonomia da agência à revelia das estruturas sociais é pressupor uma liberdade que não se manifesta de modo efetivo e concreto, e que só existe como recurso retórico. Williams chamava a atenção para a necessidade de uma leitura mais sofisticada desse esquema analítico, afirmando que a superestrutura não se constituía como mero “reflexo” da sua base social, mas uma “resposta” destinada a ela. Noutras palavras, uma produção cultural, mais que mero reflexo/determinação da conjuntura histórica ou dos componentes econômicos, é uma forma de responder à heteronímia e afirmar a autonomia do intelectual ou artista que pensa desde a sua obra para além da determinação. Do mesmo modo, no sentido inverso, segundo Williams, “devemos dizer que, quando falamos de base, estamos falando de um processo, e não de um estado; e não podemos atribuir a esse processo algumas propriedades fixas a serem posteriormente traduzidas aos processos variáveis da superestrutura” (Williams, 2011, p. 47).

Nesse sentido, Williams estava em diálogo íntimo com o debate que o antecedia, sobretudo aquele expresso nas obras de Lukács, Gramsci, Benjamin e Goldmann. Nestes teóricos, o ajuste dos termos do debate era também entendido como uma reformulação de compromisso dos intelectuais com a teoria social, sobretudo no esforço de estabelecer uma interpretação mais ampliada da tradição marxista, em que se apontavam caminhos possíveis para a realização da liberdade (autonomia) artística e intelectual, à revelia das determinações mais ortodoxas. Assim, a vanguarda revolucionária tornava-se a expressão do comprometimento social e da construção de uma cultura política democrática, no interior dos movimentos de esquerda, em que o intelectual ocuparia lugar de prestígio, forjando permanentemente sua autonomia.

Consagração e mercado

A questão da autonomia também ocupa papel importante na obra de Pierre Bourdieu (2005)BOURDIEU, Pierre. (2005), As regras da arte . São Paulo, Companhia das Letras. , estando intimamente conectada a outro tema que nos interessa, o da consagração cultural. Segundo Bourdieu, a autonomia da arte é conquistada por meio da linguagem e de um sistema de valores próprios que definem objetos e regras específicas de disputa simbólica, da qual participam agentes e instituições organizados hierarquicamente. Isso significa que, quanto mais autônomo é um campo de produção simbólica, menor é a interferência de determinantes externos. No caso da arte, o processo é conquistado pela libertação econômica e política da tutela aristocrática e eclesiástica, que historicamente lhe ditava as regras e valores éticos e estéticos. Entre os séculos XVII e XIX, agentes posicionados em um universo propriamente artístico construíram, através de um processo de lutas, critérios próprios de produção e julgamento.

A autonomia, no entanto, só faz sentido quando apreendida em relação ao mercado, pois é a submissão a um público de compradores que garante ao artista a independência em relação ao mecenas ( Bourdieu, 2005BOURDIEU, Pierre. (2005), As regras da arte . São Paulo, Companhia das Letras. ; Sapiro, 2004SAPIRO, Gisèle. (2004), “Elementos para uma história do processo de autonomização”. Tempo Social , 16 (1): 93-105. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702004000100005&lng=en&nrm=iso>, consultado em 14/4/2020.
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). Com isso, o campo da arte configura dois polos de produção e consumo das obras: um autônomo, que aspira à pureza e enxerga em outros artistas seus consumidores em potencial; e outro, heterônomo, destinado ao gosto massivo e dirigido a um hipotético público mediano. Esses polos se organizam um em relação ao outro, conformando-se dialeticamente.

Nesse sentido, falar de consagração artística implica considerar a profissionalização da arte, o que pressupõe a construção de um mercado regulado por critérios de valor. A questão, portanto, é situar esse mercado, sua história, estratificações e agentes, compreendendo de que forma a construção do campo, através de um processo de lutas simbólicas, incide na criação individual e no valor das obras. Isso nos permite apreender a dimensão propriamente social e simbólica da arte, revelando o sem número de sujeitos, instituições e regras que atuam na concretização, circulação e produção de valor das obras de arte.

Segundo Renato Ortiz (1988)ORTIZ, Renato. (1988), A moderna tradição brasileira . São Paulo, Ática. , o mercado de bens simbólicos no Brasil, até os anos 1960, era caracterizado por uma estrutura precária e por uma mentalidade pré-capitalista, marcada pelo empreendedorismo individual, e não por uma racionalidade contábil e divisão clara do trabalho, elementos que, em Weber, são fundantes da racionalidade moderna. Essa estrutura, afirma Ortiz, invalida a existência de uma cultura de massas no Brasil até o fim daquela década. Embora o rádio, o cinema e a TV fossem já uma realidade, eles ainda não funcionavam como mediadores culturais de espectro amplo. Ao não se integrarem em um sistema em que as mídias atuam em conjunto, impulsionando umas às outras, seu poder de influência era limitado espacialmente.

Com o advento da indústria cultural no Brasil, na década seguinte, como ilustra Sérgio Miceli (2005)MICELI, Sérgio. (2005), A noite da madrinha . São Paulo, Companhia das Letras. , assistimos à configuração de um sistema de mediação condizente com os valores e o gosto de uma classe média apta a consumir bens simbólicos audiovisuais e massivos. Sob pressão das demandas de um mercado que tomava impulso, as definições legítimas por parte de agentes especializados, sobretudo a crítica de cultura na grande imprensa, confrontavam-se com parâmetros de gosto orientados pela recepção massiva. As lutas e reivindicações de autonomia da literatura e da edição são emblemáticas das redefinições operadas entre os polos restrito e ampliado da produção cultural brasileira. Na década de consolidação da indústria cultural, portanto, embaralhavam-se as fronteiras entre conhecimento e reconhecimento, promoção midiática e crítica, visibilidade e legitimidade, autonomia e heteronomia ( Le Guerne, 2003LE GUERNE, Philippe. “Presentation”. (2003), Réseaux , 1 (117): 9-44. , p. 9), de modo que os próprios critérios e instituições árbitras dos valores da arte e do artista se colocam em processo de redefinição ( Lizé, 2016LIZÉ, Wenceslas. (2016), “Cultural consecration and legitimation: Modes, agents and processes”. Poetics , 59: 1-4. ).

Por esse ângulo de análise, a discussão sobre as modalidades da consagração diz respeito aos mecanismos da produção simbólica e, por conseguinte, aos efeitos da aplicação de princípios de julgamento, mediação e valorização. Se instituições e agentes especializados, notadamente os centrais e hegemônicos, são detentores legítimos do poder de consagrar, o conjunto de artigos deste dossiê problematiza a entrada em cena da mídia e do mercado, da recepção e dos projetos de formação de público que, como observa apropriadamente Anna Boschetti (2010BOSCHETTI, Anna. (2010), L’espace culturel transnational (Sous la direction). Paris, Nouveau Monde Éditions, 2010. , p. 20), redirecionam o olhar para as inovações nas vias de acesso ao reconhecimento. Vindas, muitas vezes, de espaços periféricos, essas inovações revelam o jogo assimétrico de poder que se desenha no universo cultural. Para apreender essa lógica, cabe considerar as trajetórias e deslocamentos de agentes em escala nacional e transnacional, bem como as diferenças entre os campos da produção e da recepção. Os mediadores e as mediações ganham protagonismo, e boa parte dos artigos opera com esse par conceitual.

A consagração também concerne ao acúmulo de capital simbólico e às consequentes modalidades de distinção social, como lembra apropriadamente Wencelas Lizé (2016)LIZÉ, Wenceslas. (2016), “Cultural consecration and legitimation: Modes, agents and processes”. Poetics , 59: 1-4. . Trabalhar com trajetórias é perscrutar o maior ou menor peso das estruturas sociais nas disposições que orientam a ação individual. Mozart e Beethoven são dois artistas cujas trajetórias nos ajudam a compreender o mecanismo de atuação da dicotomia entre autonomia e heteronomia. Norbert Elias (1995)ELIAS, Norbert. (1995), Mozart, sociologia de um gênio . Rio de Janeiro, Jorge Zahar. mostra como Mozart, mesmo consciente do seu talento, não conseguiu realizar-se como um “gênio”, ou seja, aquele que logra impor os padrões de definição de sua própria excelência, já que sua época não conhecia esse conceito e, portanto, não tolerava artistas que se insurgissem contra a tutela aristocrática. Já Tia DeNora (1995)DENORA, Tia. (1995), Beethoven and the construction of genius . Londres, University of California Press. faz ver como Beethoven, ao contrário de Mozart, pôde reivindicar sua genialidade poucas décadas depois, em uma Viena na qual se observaram as primeiras manifestações da ideia. Assim, o compositor teve papel ativo em sua consagração, que ao mesmo tempo dependeu da construção da categoria moderna de “gênio” e contribuiu para ela.

A análise da consagração de artistas ou grupos de artista nos faz ver um problema caro às biografias e histórias de vida no que concerne a seu aspecto narrativo. Como é possível narrar uma vida?, indaga Giovanni Levi (1989). Qual é o estatuto epistemológico e a natureza da narrativa e como ela se relaciona com o objeto narrado? Nesse debate, insere-se o conhecido texto de Bourdieu sobre a “ilusão biográfica”: a crença na possibilidade de reconstituir o passado como um conjunto coerente, ordenado e linear de acontecimentos orientados para um fim e propósito predeterminados (Bourdieu, 1996, p. 184).

O crescimento dos estudos que acompanham os percursos de indivíduos e grupos é justamente uma ocasião privilegiada para debater essas questões. Trajetórias, carreiras, biografias, itinerários são termos – cada qual a partir de premissas particulares – que, desde os anos 1980, têm sido cada vez mais utilizados nas Ciências Humanas e Sociais para entender de que forma o percurso de indivíduos e grupos pode esclarecer as dinâmicas que governam a vida em sociedade. Sem cair nas armadilhas já conhecidas dos relatos de vidas célebres, tratava-se de combater o que o cientificismo positivista, em sua pretensão de estudar a sociedade a partir de cima, parecia ter relegado ao esquecimento: o indivíduo, sua vida e suas experiências. Doravante, a análise dos percursos de grupos e indivíduos tinha o desafio de equacionar duas ordens de problema: uma que pensa o detalhe, a experiência, o indivíduo e o pessoal; outra que pensa a estrutura, as leis e as regras, ou seja, tudo o que organiza, situa, constrange, enquadra e hierarquiza os sujeitos e os grupos.

A ilusão biográfica

Junho de 1986 data a publicação de “A ilusão biográfica”. O artigo de poucas páginas, escrito por Pierre Bourdieu, integrava uma edição homônima da Actes de la Recherche en Sciences Sociales , que também contava com contribuições de Michael Pollak, Howard Becker e Natalie Heinich. O texto, no entanto, não figurava na abertura, nem na conclusão do dossiê. A escolha buscava atenuar o efeito de deslegitimação que o texto de Bourdieu conferia à biografia, justamente o método validado por grande parte dos articulistas presentes (Heinich, 2010).

“A ilusão biográfica” é uma crítica ferrenha ao estatuto epistemológico das histórias ou relatos de vida. Para Bourdieu, a história de vida é uma noção do senso comum que, apropriada pelo discurso científico, manteve seu problema de origem, a saber: a crença de que a vida é uma história. Assim considerada, ela poderia ser narrada como um percurso, um caminho linear com início, meio e fim. Disso se depreende uma concepção finalista e teleológica, já que a história é contada com vistas a explicar um desfecho previamente conhecido. A ordem cronológica dos acontecimentos afirma-se como ordem lógica, já que subsumida a uma razão de ser que cabe explicar.

É justamente a intenção de explicar o fim que se torna o critério de seleção de todos os “eventos significativos” que contribuem para explicá-los. Bourdieu considera que há, no relato biográfico, uma criação artificial de sentido pela seleção e concatenação de fatos. Tudo o que parece estranho ao fim do percurso seria, assim, descartado. Com a cumplicidade do biógrafo, é estabelecida uma trajetória de vida harmoniosa e ausente de contradições, ruídos e descontinuidades. Dessa forma, inaugura-se um pacto de mútua identificação entre biógrafo e biografado, já que o primeiro dota a vida do segundo de uma intenção e sentido. A narrativa de vida seria a desse sentido pelo cumprimento de metas predeterminadas pelo biógrafo, que, por sua vez, tenderia a forçar conexões entre eventos, a fim de criar uma harmonia. Nesse sentido, o relato de vida seria comparável a um romance tradicional em sua estrutura linear.

Assim, Bourdieu sinalizava um dos problemas centrais das narrativas de vida: encontrar um princípio unificador que permite apreender a vida enquanto uma totalidade. Para narrar uma vida, supõe-se a permanência de um agente ao longo de todo o percurso narrado. É justamente essa estabilidade do sujeito que se torna um problema, pois, a despeito de conservar o nome próprio, ele ocupa diferentes posições e espaços ao longo da vida, donde resultam diferentes histórias de vida. Totalidade e sentido ganham centralidade na análise de Bourdieu; a noção de estrutura se tornava a chave para escapar à ilusão biográfica.

A estrutura se afirma em termos de campo, espaço social estruturado e habitus , matriz estruturada e geradora de formas de ação e interpretação do mundo. É nesse sentido que registra a já célebre imagem do percurso de vida como um trajeto em um metrô, o qual, para se fazer compreensível, tem que levar em conta a estrutura da rede e a relação entre diferentes estações (Bourdieu, 1996, p. 189). A partir de então, trabalhos de inspiração bourdieusiana, ao invés do recurso a biografias, optam pela noção de “trajetória”, metáfora retirada da balística, que obriga a mensurar os campos de força, direções e interações que incidem em um corpo em seu estágio inicial e que necessitam ser recalculadas a todo instante, dado o balanço mutante de pressões ao longo do tempo ( Passeron, 1995PASSERON, Jean Claude. (1995), “Biografia, fluxos, itinerários e trajetórias”. In: O raciocínio sociológico: o espaço não-popperiano de raciocínio natural . Rio de Janeiro, Vozes. , p. 226).

O estudo de Mozart, realizado por Elias, é um caso para testagem da hipótese de escape à ilusão biográfica. O dilema de Mozart estava no desajuste entre um sujeito que reconhecia sua excepcionalidade, mas não conseguia ainda manejá-la como credencial de afirmação de sua autonomia. Na análise de Elias, tanto o agente quanto o espaço social são encarados como um devir, “sujeito a sucessivas transformações” (Bourdieu, 1996, p. 184), o que levou o autor a reconstruir as relações objetivas que estruturavam o campo e, ao mesmo tempo, organizavam as tomadas de posição dos indivíduos. Isso evidencia como os agentes são, a um só tempo, efeitos da produção de um campo e construtores de suas estruturas, moldando-as e sendo por elas moldados.

Narrativa de vida em debate

A metade da década de 1980 é um momento de reavaliação do legado estruturalista nas Ciências Sociais, o que resultou na querela ação versus estrutura, ou micro versus macro, que até hoje tem seus desdobramentos. Bourdieu participou ativamente desse debate, quando releu os clássicos à luz de Lévi-Strauss, a fim de elaborar sua teoria da prática. Através da noção de estratégia, buscava equacionar estruturas e disposições, promovendo uma “ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente que o estruturalismo supõe (recorrendo, por exemplo, à noção de inconsciente)”, sem, no entanto, “cair no subjetivismo” (Bourdieu, 2004, pp. 79-81). Compreender o mecanismo por trás das estratégias e tomadas de posição era, assim, a maneira de escapar à ilusão biográfica.

O debate se torna ainda mais complexo pela importância variável de alguns conceitos, a considerar a tradição sociológica a que nos filiemos. A mesma edição do Actes de la Recherche , que continha “A ilusão biográfica”, dispunha de um artigo de Howard Becker (1986)BECKER, Howard. (1986), “Biographie et mosaique scientifique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 62-63: 105-110. que explicava como o interacionismo concebia a noção de estrutura. Tratava-se da tradução de um texto publicado em inglês havia vinte anos, mostrando que o debate articulado nos anos 1980 vinha germinando fazia tempos. Nele, Becker esclarecia que “conceitos como ‘organização’ ou ‘estrutura social’ provêm de um processo contínuo de ajuste mútuo das ações de todos os atores envolvidos” (Becker, 1986, p. 108). Para os interacionistas, interessava lidar com as regras e convenções sociais, menos como preexistiam aos sujeitos e constrangiam suas ações, e mais como eram atualizadas na prática e como se cristalizavam em categorias e rótulos que os indivíduos manejavam em contextos de ação específicos.

O que os interacionistas chamavam de “carreiras” ou “histórias de vida” eram maneiras de compreender os percursos de grupos ou sujeitos enquanto um processo. Esse paradigma estava lastreado pelo trabalho empreendido desde o início do século XX pela Escola de Chicago. The polish peasant in Europe and America , de William Isaac Thomas e Florian Znaniecki (1918), e The Jack Roller: A delinquent boy’s own story , de Clifford R. Shaw (1930), valiam-se das histórias de vida para captar o ponto de vista dos atores em questões caras à sociologia urbana, como a migração e a delinquência, respectivamente. A fim de investigar a elasticidade das normas sociais no contexto das sociedades complexas, os estudos de caso de indivíduos “deslocados”, como o imigrante e o delinquente, eram de grande valia.

Para o campo da sociologia da cultura, que nos interessa em particular, a noção de carreira integra os estudos de Becker sobre o mundo da arte, que, antes mesmo de serem sistematizados em Art worlds ( Becker, 1982BECKER, Howard. (1982), Art worlds . Berkeley/Los Angeles, University of California Press. ), mantinham uma relação próxima com o tema do desvio. Os músicos de jazz eram um caso particular de outsiders , já que se rotulavam como alheios ao sistema normativo dominante ( Becker, 1963BECKER, Howard. (1963), Outsiders: Studies on the sociology of deviance. Nova York, The Free Press. ). A análise de suas vidas em termos de “carreiras” era uma maneira de apreender os encontros, desencontros, negociações, interações e ajustamentos que os indivíduos compartilhavam no processo de tornarem-se artistas. A noção de processo, do “tornar-se”, é o que interessava sublinhar, bem como a ideia de que os mundos da arte eram produções coletivas, forjadas por indivíduos, grupos e instituições, unidas por laços formais e informais.

O estudo de Becker realizado no espaço das casas noturnas mostrava que a carreira de um músico de jazz era um processo através do qual o indivíduo adentrava um universo simbólico e, de forma compulsória, tomava parte em seus dilemas. Um embate, em especial, ganhava centralidade: aquele que opunha músicos de jazz profissionais e os “quadrados” ( squares ), categoria criada pelos próprios artistas para designar todos que os pressionavam a ceder ao gosto popular. Sendo utilizado para demarcar as fronteiras entre nós – os portadores de um dom e um estilo de vida singular – e eles – uma massa indiferenciada incapaz de nos compreender –, “quadrado” é uma categoria representativa do embate entre autonomia e heteronomia, tema que nos interessa neste dossiê. Ceder ou não às demandas dos “quadrados” era o dilema que se apresentava a todos os músicos de jazz . Gerenciar os graus de submissão ao mercado e liberdade de escolha tornava-se uma questão estruturante e inescapável que se afirmava de forma compulsória e definia os rumos que as carreiras profissionais iriam tomar.

A questão das biografias tem na história um campo de reflexão privilegiado, já que participou da definição mesma do caráter científico de sua disciplina ( Renders e De Haan, 2014RENDERS, Hans & DE HAAN, Binne (eds.) (2014), Theoretical discussions of biography: approaches from history, microhistory, and life writing . Leyden, Brill Academic Publishing. ; Dosse, 2009DOSSE, François. (2009), O desafio biográfico: escrever uma vida . Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo, Edusp. ; Loriga, 2011LORIGA, Sabina. (2011), O pequeno x: da biografia à história . Belo Horizonte, Autêntica. ). Em texto contemporâneo a “A ilusão biográfica”, Giovanni Levi ([1989], 2014), partidário da micro-história, mostrava o seu incômodo com a possibilidade de se reportar a eventos históricos sem levar os indivíduos em consideração. Para ele, a então popularidade das biografias respondia a duas ordens de problemas: de um lado, o foco no cotidiano e na experiência, na vida tal qual experimentada, mostrando que os comportamentos não se reduzem a sistemas normativos; do outro, uma maneira de testar os limites das regras e convenções sociais.

Questões centrais da historiografia e das ciências sociais, de maneira mais ampla, pareciam se condensar na problemática das biografias: o problema das escalas analíticas de investigação, das relações entre regras e práticas sociais e, também, dos limites da liberdade e da racionalidade humana. A análise do sujeito, portanto, tornava-se um microcosmo para discutir questões de fundo das ciências humanas e sociais.

Apoiado em Arnaldo Momigliano, Levi mostra a vantagem da biografia: ela nos permite analisar o social em escala reduzida, já que o estudo de um indivíduo encontra seus limites na quantidade de relações significativas que este consegue tecer. No entanto, isso acaba por deixar a critério do biógrafo definir o que seriam as relações significativas. Assim, a possibilidade de estudar o real em escala reduzida convive lado a lado com a ambição de abarcar o indivíduo em sua totalidade. A possibilidade de conhecer a sociedade com suas leis e estruturas na singularidade de uma vida individual faz com que nada seja desprezado. Detalhes, singularidades, manias; tudo parece ter um significado social capaz de ser revelado pelo analista. Nessa perspectiva, o indivíduo parece encerrar um mundo em miniatura, doravante bastaria “compreender um homem para haver compreendido o mundo” ( Passeron, 1995PASSERON, Jean Claude. (1995), “Biografia, fluxos, itinerários e trajetórias”. In: O raciocínio sociológico: o espaço não-popperiano de raciocínio natural . Rio de Janeiro, Vozes. , p. 212).

Se a crítica historiográfica acumulada desautorizava um retorno ingênuo à análise das vidas célebres, autorizava o que parece ser o seu exato oposto: as biografias modais. Aqui o objeto de estudo não é um indivíduo excepcional, mas, antes, um sujeito comum; e quanto mais comum, tanto melhor, pois o que se quer explicitar são os traços singulares de um grupo. Como exemplo, tem-se a biografia de Joseph Sec, um filho de camponês que ascendera ao posto de burguês na França do século XVIII. Escrita por Michel Vovelle, sua vida interessava pelo fato de ilustrar um caso de mobilidade social bastante típico nas décadas que antecederam a revolução ( Dosse, 2009DOSSE, François. (2009), O desafio biográfico: escrever uma vida . Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo, Edusp. ). A vivacidade do exemplo, que encerraria o mérito dessa análise, pode levar à tentação de tratar indivíduos de carne e osso como tipos ideais – construções mentais que, no entender de Max Weber (2003WEBER, Max. (2003), Economia e sociedade , vol. I. Brasília, Editora da UnB. , pp. 12-13), deveriam funcionar para fins comparativos – ou, pior, como estereótipos ( Passeron, 1995PASSERON, Jean Claude. (1995), “Biografia, fluxos, itinerários e trajetórias”. In: O raciocínio sociológico: o espaço não-popperiano de raciocínio natural . Rio de Janeiro, Vozes. ). No intuito de ilustrar o funcionamento prático das convenções sociais, há também o risco de conformar o indivíduo à norma a tal ponto que ele se torne uma peça intercambiável em um grupo de unidades uniformes.

O estudo das relações entre norma e desvio não se nutre apenas das análises do que é típico, como visto no clássico trabalho de Ginzburg (1987)GINZBURG, Carlo (1987), O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição . São Paulo, Companhia das Letras. , O queijo e os vermes . O caso do moleiro Menochio, ao se mostrar como exceção, ajudava justamente a compreender as regras das quais se desviava. Mas não só. Esse estudo nos faculta explorar também as linhas de fuga, as diferentes racionalidades em jogo e as estratégias que fogem ao senso comum: nesse ponto a dimensão do imprevisível e a autonomia do sujeito podem atuar. Isso leva a biografia a fugir da teleologia e sublinhar o que há de plural nos indivíduos.

As histórias de vida, portanto, nos ajudam a testar o limite dos sistemas normativos e como eles operam na prática. Mas é possível ir além, já que não se trata apenas de apreender a contradição entre normas e práticas, e sim, acima de tudo, de reconhecer a incoerência das próprias normas. Isso nos permite apostar na autonomia e liberdade dos sujeitos frente ao constrangimento dos sistemas. Bourdieu concebe os mecanismos de ação dos indivíduos como produtos de disposições incorporadas, portanto do habitus . Levi (2014)LEVI, Giovanni. ([1989] 2014), “The uses of biography”. In: RENDERS, Hans & DE HAAN, Binne (eds.). Theoretical discussions of biography: approaches from history, microhistory, and life writing. Leyden, Brill Academic Publishing. concorda com Bourdieu no sentido de que é necessário conceber a ação como fruto de uma racionalidade que não vise à maximização dos lucros, mas discorda das normas coletivas como elemento de solidificação das condutas individuais sob o guarda-chuva do grupo. Para Levi, estabilidade, coerência e coesão do grupo não devem ser assumidas de antemão.

Ao contrário de Bourdieu, Levi aposta nas fissuras da racionalidade. Ele não acredita na existência de sistemas normativos suficientemente estruturados a ponto de impossibilitar a negociação e manipulação de regras. Porém, novamente à diferença de Bourdieu, entende que essa manipulação é feita de forma consciente, o que não quer dizer que seja puramente racional e calculada. Nessa perspectiva, indivíduos diferentes agiriam a partir de disposições diferentes. É na incoerência do social que a margem de manobra individual atua.

Isso nos leva a uma pergunta central no debate sociológico: como um grupo se faz grupo? Como as normas se depositam nos indivíduos e com que peso? Questão clássica na sociologia que retoma debates tão antigos como o que opõe classe em si e para si ( Marx, 1976MARX, Karl. (1976), Miséria da filosofia . São Paulo, Grijalbo. ), ela traz à baila problemas que muitas vezes passam despercebidos por aqueles que trabalham com trajetórias e histórias de vida, individuais ou coletivas. Problemas que dizem respeito ao grau de solidariedade dos grupos, sua duração, extensão e força diferencial dos laços estabelecidos por seus membros ( Levi, 2014LEVI, Giovanni. ([1989] 2014), “The uses of biography”. In: RENDERS, Hans & DE HAAN, Binne (eds.). Theoretical discussions of biography: approaches from history, microhistory, and life writing. Leyden, Brill Academic Publishing. ).

Chartier (1990CHARTIER, Roger. (1990), A história cultural entre práticas e representações . Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. , p. 18), remetendo a Durkheim – e propondo uma acepção bem próxima da de Bourdieu –, entende que a dualidade entre a subjetividade das representações e a objetividade das estruturas é um falso problema, uma vez que as representações coletivas funcionam como instituições sociais, sistemas de classificação e percepção que orientam as tomadas de posição. No entanto, para Levi, a questão da estabilidade do grupo deve ser posta em xeque.

É necessário lidar com a dinâmica de formação dos grupos e compreender como os indivíduos agem por e a partir de regras partilhadas, sendo, no entanto, mais do que a materialização de tipos sociais. Os processos individuais e coletivos não podem estar situados no mesmo nível. A dificuldade é considerar que os grupos possuem propriedades que não se esgotam nas histórias dos indivíduos ( Passeron, 1995PASSERON, Jean Claude. (1995), “Biografia, fluxos, itinerários e trajetórias”. In: O raciocínio sociológico: o espaço não-popperiano de raciocínio natural . Rio de Janeiro, Vozes. ), mas ao mesmo tempo perceber que um indivíduo não dispõe da mesma racionalidade de seus pares pelo simples fato de estar situado no mesmo grupo. É nesse ponto que a questão da autonomia se coloca, ou seja, do grau de liberdade em relação às regras, dos modos de exercê-las e das possibilidades de negociação em contextos específicos. Isso nos leva a investigar a extensão do poder e de que maneira ele circula no corpo social. Os conflitos que lidam com classificação, distinção e representação são casos privilegiados que revelam as margens da liberdade e coerção dentro das quais as formas de solidariedade operam. Assim mostram o jogo entre a liberdade e o constrangimento.

O estudo das trajetórias, assim, é um caso privilegiado para colocar à prova todas essas questões que são de importância central para a investigação sociológica. Contar uma vida supõe selecionar, ordenar e dar unidade a uma série de eventos que se desenrolam no tempo, criando o desafio de dar sentido a ações contraditórias e carentes de uma unidade a priori . Para tanto, as questões que acabamos de levantar de maneira sumária servem como um guia para aprofundar as reflexões acerca da natureza da ação individual e de sua relação com as estruturas sociais.

Os trabalhos que se seguem nos ajudarão nesse sentido. Eles se compõem de estudos de caso centrados na análise dos determinantes conjunturais e estruturais que incidem na conformação de trajetórias artísticas centrais e periféricas, colocando em xeque os efeitos dos campos, de seus graus de autonomia e/ou heteronomia, sobre a consagração ou profanação de carreiras, obras, instituições, ideias, estilos; sobre as formas de classificação e hierarquização que as definem, levando ainda em conta a ação dos próprios artistas, que não raro dirigem a construção de sua persona pública de modo a controlar os termos de sua recepção.

Apresentação dos artigos

Os artigos que compõem este dossiê se organizam em dois blocos. O primeiro, composto pelos textos de Michel Lowy, Vania Markarian, Vinicius Madureira em parceria com Kadma Marques, além de Rodrigo Bordignon, dialoga principalmente com a sociologia dos intelectuais e busca compreender o liame social que subjaz aos debates teóricos, mostrando que, para além de ideias e conceitos, a disputa gira ao redor de grupos cuja sobrevivência e autoridade dependem das estratégias pelas quais legitimam suas visões de mundo em relação a seus concorrentes. O segundo, composto pelos trabalhos de Marcelo Garson, Andrea Borges Leão, em parceria com Edson Farias, além de Rodrigo Czajka, expõe de que maneira a inserção mercadológica incide diretamente na produção simbólica, deixando claro o conflito entre autonomia criativa e submissão ao mercado, presente no universo da cultura.

O artigo de Michael Löwy, que abre o dossiê, traz como objeto de reflexão a produção teórica do jovem Erich Fromm e como sua obra, em concomitância com outros intelectuais de sua geração, desenvolveu um processo de secularização e sacralização simultâneo, numa espécie de combinação “dialética” entre elementos espirituais e materiais, sagrados e seculares, para além das habituais dicotomias estáticas. Assim como ele, vários pensadores importantes de origem judaica dessa fase buscaram recuperar o sentido espiritual e sua interação direta com as questões do profano. Isso porque a primeira característica comum desses autores é o seu profundo apego à cultura romântica alemã, com sua ambivalência à modernidade, e sua tentativa desesperada de reencantar o mundo através de um retorno às formas espirituais do passado. Dessa forma, ao analisar os escritos de juventude de Fromm, Löwy explicita essa relação fundamental existente em muitos intelectuais anticapitalistas.

Em seguida, Vania Markarian discute os princípios de institucionalização e autonomização das ciências sociais no que viria a se constituir um espaço latino-americano de produção intelectual. Para tanto, examina as disputas simbólicas em torno da disciplina na Universidad de la República, no Uruguai, e demais institutos de pesquisa, nas décadas de 1960 e 1970. Essas disputas incidiam na própria estrutura das correntes disciplinares, assim como dos grupos de pesquisa e agendas de trabalho nacionais e internacionais. A inscrição da renúncia na trajetória de Aldo Solari, pioneiro na institucionalização da disciplina, diretor do Instituto de Sociología de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, é confrontada à da geração que o sucede, elucidando um fio condutor nas discussões, posicionamentos e reorientações políticas em torno de temáticas como a do desenvolvimento e a da mudança social.

Na sequência, Vinicius Madureira e Kadma Marques buscam analisar a recepção, a origem e o acolhimento de Raízes do Brasil , reconstituindo as relações objetivas em referência às quais o livro foi então consagrado para se vislumbrar como obra “renovadora”. Para tanto, reconstroem as relações de amizade entre Antonio Candido de Mello e Souza e Sérgio Buarque de Holanda, decisivas para que este se construa – ou se projete, retrospectivamente à primeira edição do livro – como intelectual progressista, um “democrata radical”.

Fechando este primeiro bloco, Rodrigo da Rosa Bordignon examina as experiências sociais, escolares e culturais que basearam as estratégias de carreira e concepções do trabalho intelectual de Henrique Maximiano Coelho Netto, expoente da falange boêmia que se viu às voltas com a Abolição e a República, no período que vai de fins do regime republicano até a década de 1930. Para tanto, Bordignon mobiliza um conjunto de materiais biográficos e autobiográficos, e de “romances de formação” que plasmam a trajetória de Coelho Netto e expõem o meio político e intelectual com o qual se debateu. Alçando Coelho Netto a caso exemplar, o autor explora os condicionantes e as disposições que contribuem na conformação de uma modalidade específica de carreira e de trabalho intelectual.

O segundo bloco inicia com o trabalho de Marcelo Garson que busca apreender as mudanças operadas na música popular dos anos 1960 a partir da trajetória do cantor Roberto Carlos, desde o início de sua carreira profissional, nos anos 1950, até o fim da Jovem Guarda, em 1968. Duas questões interessam ao autor: compreender o impacto da televisão, que se torna o epicentro do mercado musical, ocupando o papel antes reservado ao rádio, e também lidar com a emergência do segmento de música jovem, que inexistia até então. A chegada da TV e da música jovem se fizeram a partir de uma estrutura já estabelecida. Dessa forma, foi no universo da música massiva e radiofônica que imperava até os anos 1950 que ele buscou uma série de estratégias que lhe permitiram se viabilizar como ídolo jovem e televisivo. Assim, o cantor Roberto Carlos aparece como um mediador cultural: um personagem que age decisivamente na consolidação dessas novas feições no mercado musical ao fazer a ponte entre convenções já assentadas e outras que estavam em emergência.

Como as obras não são para sempre estáticas e idênticas em cada modalidade de suas publicações, o artigo de Andréa Borges Leão e Edson Farias, que vem em seguida, busca cartografar a mutação da obra de José Mauro de Vasconcelos – traduzida e reinventada – por diferentes meios de difusão e escalas espaciais da circulação cultural. Com isso, impõe uma reflexão sobre o público de leitores organizado em comunidades pelos países e línguas das traduções dos livros do escritor. Os deslocamentos geográficos, linguísticos e midiáticos, nacionais e transnacionais, operados na trajetória de José Mauro de Vasconcelos impõem, sobretudo, uma reflexão sobre as novas modalidades de construção da autoria e consagração literária. Não por acaso, Vasconcelos precisou enfrentar a desclassificação crítica nacional para alcançar o público internacional, a exemplo dos jovens dos países de línguas hispano-americanas. A década de 1970 também foi marcada pelos fluxos transnacionais da literatura e edição infantojuvenil brasileira. O artigo mostra que as reapropriações do romance O meu pé de laranja lima pelo cinema, televisão e pelo espetáculo do carnaval trazem para o debate as interdependências entre literatura e audiovisual como propriedade e tendência de longo prazo na formação social brasileira. No final das contas, nossa cultura literária resulta de uma interpenetração entre o popular e o erudito, a oralidade e a escrita.

Fechando o dossiê, o trabalho de Rodrigo Czajka tematiza a produção cultural existente sob o signo da repressão e da ditadura militar no Brasil, instaurada depois de 1964. O artigo traz à discussão o processo de censura ao mercado editorial na primeira fase do governo militar no Brasil e as formas pelas quais editores e empresários do ramo editorial elaboraram estratégias para a comercialização de obras classificadas como subversivas pelos órgãos de controle da ditadura. Como objeto de análise, o autor dá ênfase ao papel da editora Civilização Brasileira, assim como de seu proprietário, Ênio Silveira, a fim de que se possam compreender as dinâmicas que se operaram no campo das esquerdas intelectualizadas, formado a partir da associação ambivalente entre engajamento e mercado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2020
  • Aceito
    25 Maio 2020
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