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Marcelo Caetano, do idealismo da juventude à política real (1906-1944) Uma teorização histórico-sociológica

Marcelo Caetano, from youth idealism to real politics (1906-1944): a historical-sociological theorization

Resumo

Este artigo apresenta uma teorização histórico-sociológica do percurso político de Marcelo Caetano desde a sua infância até a sua chegada ao governo como ministro das Colônias em 1944. O artigo desenvolve uma análise entrecruzada dos contextos sociais, políticos e ideacionais da vida pessoal, profissional e política de Marcelo, com o objetivo de desenvolver uma análise relacional da sua ascensão como personalidade política incontornável do Estado Novo português. O artigo identifica as principais influências sociais e ideacionais na formação intelectual inicial de Marcelo e explica o processo de transição do jovem Marcelo idealista para o Marcelo maduro que aposta numa carreira política dentro do Estado Novo. Seu principal argumento é que é necessária uma visão histórica mais reflexiva sobre o percurso político de Marcelo, sublinhando a sua capacidade de acumular capital social.

Palavras-chave:
Marcelo Caetano; Estado Novo; Carreira política; Elites; Capital social

Abstract

This article presents a historical-sociological theorization of Marcelo Caetano’s political career from his childhood until his arrival in government as minister of the Colonies in 1944. The article develops a crossed analysis of the social, political and ideational contexts of Marcelo’s personal, professional and political life with the objective of developing a relational analysis of his rise as an inescapable political personality of the Portuguese New State. The article identifies the main social and ideational influences in Marcelo’s initial intellectual formation and explains the transition process of the idealistic young Marcelo to the mature Marcelo who invests in a political career within the New State. Its main argument is that a more reflexive historical view of Marcelo’s political career is needed, underlining his capacity to accumulate social capital.

Keywords:
Marcelo Caetano; New State; Political career; Elites; Social Capital

Introdução

Este artigo apresenta uma teorização histórico-sociológica do percurso profissional e político de Marcelo Caetano, com base num modelo de ascensão política e acumulação de capital social. Partindo desse modelo, apresenta uma contextualização reflexiva dos ambientes sociais, políticos e ideacionais que marcaram a formação de Marcelo Caetano na sua juventude e demonstra quando e por que Marcelo começa a traçar um caminho de aproximação ao Estado Novo. Através dessa teorização, o artigo introduz uma interpretação mais reflexiva sobre a importância dos contextos sociais nas decisões de Marcelo ao longo da sua vida até chegar ao governo. Neste quadro, parte da problemática relativa à dialética entre estrutura e agência na explicação da história política das elites decisoras. Como sublinhou Marx: “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1852).

Inspirado nessa ideia, o artigo analisa as circunstâncias, materiais e ideacionais, em que Marcelo nasceu e cresceu ao longo da sua formação inicial, bem como suas decisões e estratégias no sentido de integrar a elite do Estado Novo. Assim, demonstrando a ascensão social de Marcelo e sua capacidade adaptativa para gerir tática e estrategicamente a carreira, identifica a realização de uma importante transição pessoal e política dele: de jovem idealista radical para um homem maduro próximo da política real.

O artigo dialoga criticamente com as principais obras biográficas já publicadas sobre Marcelo (Castilho, 2012Castilho, José T. (2012), Marcelo Caetano: uma biografia política. Coimbra, Almedina.; Leitão, 2014Leitão, Luís M. (2014), Marcelo Caetano: um destino. Lisboa, Quetzal.; Martinho, 2016Martinho, Francisco P. (2016), Marcelo Caetano. Uma biografia, 1906-1980. Lisboa, Objectiva.; Mendes, 2020aMendes, Pedro Emanuel. (2020a), “Marcelo Caetano”. In: Sousa, F. & Meireles, C. Os primeiros ministros de Portugal. Lisboa, incm.) e, sobretudo, com as suas próprias memórias biográficas - diretamente escritas por ele (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo.) ou com base em suas cartas (Prieto, 1992Prieto, Maria, H. (1992), A porta de marfim. Lisboa, Verbo.; Antunes, 1993Antunes, José F. (1993), Salazar e Caetano: cartas secretas: 1932-1968. Lisboa, Círculo de Leitores.) -, a fim de apresentar uma interpretação reflexiva sobre as circunstâncias com que Marcelo se confrontou.

No atual momento de relativa banalização da verdade, e consequente produção de narrativas pós-verdadeiras sobre a memória histórica dos períodos autoritários, é importante que as ciências socias manifestem a sua função de guardiãs da verdade. Isso não significa a defesa de uma verdade única e monista sobre os fatos, isso é impossível. O que é possível e desejável é que as ciências sociais demonstrem que os fatos não falam por si, e que é necessária uma interpretação compreensiva e rigorosa para explicar a verdade histórica, que é sempre uma interpretação, mas que se baseia em critérios e fundamentos epistemológicos1 1 . A História, sobretudo a política, é sempre uma construção reflexiva face ao objeto de estudo, bem como face às próprias preconcepções do investigador e aos seus habitus científicos. Em períodos autoritários, mas não só, muitas vezes os políticos refugiam-se na “verdade documental” (Caetano, 1977, p. 4), mas é imperioso perceber que os líderes, não raras vezes, documentam “verdades arredondadas” (Mendes, 2019), limitando a própria expressão documental da verdade. Porém, na memória autobiográfica, o autor tem a tentação de se tornar o “ideólogo da sua própria vida” (Bourdieu, 2006, p. 184). Essa precaução metodológica não impede a importância das memórias biográficas (Bertaux, 2001). Contudo, além dos fatos narrativos, a compreensão histórica deve ser relacional. Portanto, é necessário compreender os vários microepisódios do percurso biográfico e político de Marcelo face aos contextos sociais e ideacionais do seu tempo. .

Mais do que a simples apresentação dos fatos sobre o percurso pessoal e político de Marcelo até chegar ao governo, o artigo desenvolve uma interpretação sobre quais os principais fatos sociais, ideacionais e políticos que, em primeiro lugar, marcaram a formação inicial de Marcelo e, em segundo lugar, determinaram o seu caminho rumo ao governo. Assim, introduz uma abordagem histórico-sociológica que aplica relacionalmente o conceito de acumulação de capital social de Bourdieu (1980Bourdieu, Pierre. (1980), “Le capital social”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 31: 2-3.; 1986; 1989) para compreender melhor a ascensão social e política de Marcelo.

O principal objetivo deste artigo é identificar compreensivamente os atores, as ideias e os contextos que foram as principais influências na formação inicial de Marcelo e na progressão da sua carreira profissional e política. O texto está organizado em quatro partes: uma teórica e as restantes históricas. Na primeira, partindo da adaptação da visão original de Bourdieu sobre as formas de capital, apresenta um modelo de análise interpretativo que utiliza o capital social como hipótese intelectual para explicar a ascensão social e política de Marcelo. As três partes históricas seguintes - “As origens e os anos de juventude”; “A Universidade, o jornalismo e a política radical”; “A maturidade e a política real” - correspondem à análise histórico-sociológica sobre os três ciclos sucessivos da vida pessoal e política de Marcelo até chegar ao governo do Estado Novo como ministro das Colônias.

Teorizando a ascensão social e política de Marcelo: aproveitamento dos contextos, acumulação de capital social e cultural e construção de relações interpessoais

Partindo de uma narrativa biográfica, este trabalho dialoga com categorias analíticas ligadas à abordagem da sociologia histórica. Nomeadamente, é a ideia matricial de que, para compreendermos qualquer evento ou fenômeno social e político, temos de entender a sua temporalidade e historicidade (Abbot, 2001), bem como a relação dialética entre agência e estrutura (Sewell Jr., 2005Sewell Jr., William H. (2005), Logics of history: social theory and social transformation. Chicago, University of Chicago Press.).

Isso significa que, para além de uma narrativa analítica (Mendes, 2020bMendes, Pedro Emanuel. (2020b), “Os dilemas da renovação na continuidade e o legado de Marcello Caetano: do outono ao inverno”. Tempo e Argumento, 12 (29): e0205.) que procura identificar a interligação sequencial e processual dos fatos históricos da vida de Marcelo, procuramos sublinhar as dinâmicas de mudança na sua vida social e política. É indispensável pensar a biografia política de Marcelo em termos relacionais e dinâmicos, identificando as dimensões de continuidade e mudança da sua trajetória. Por isso, desenvolvemos uma análise dos diferentes ciclos de vida de Marcelo e procuramos explicar os seus principais pontos de transição, em especial a transição entre os anos da sua juventude e formação ideológica radical e o início da sua maturidade, que se reflete na sua conversão ao corporativismo e na consequente entrada no mundo da política real.

O fio condutor da nossa narrativa histórico-sociológica é a demonstração da capacidade de Marcelo de ascender social e politicamente até entrar nos corredores do poder do Estado Novo e, finalmente, assumir um cargo de ministro.

Para compreender melhor a trajetória de continuidade e mudança de Marcelo, recorremos a alguns dos conceitos clássicos do pensamento de Bourdieu, em especial das formas de acumulação de capital. Embora a visão inicial de Bourdieu seja mais centrada nos aspetos estruturais da reprodução do poder entre os atores dominantes e os atores dominados dentro dos vários campos sociais (Ortiz, 1983Ortiz, Renato, (1983) “A procura de uma sociologia da prática”. In: Bourdieu, Pierre. Sociologia. São Paulo, Ática, pp. 7.-37.; Bourdieu, 1983), a sua visão também sublinha os aspetos dinâmicos e transformativos do social, nomeadamente a importância da interligação e conversão dos diversos tipos de capital e, em especial, do capital social2 2 . Como explica Daniel Bertaux, que trabalhou com ele, “apesar da sua conversão tardia ao construtivismo”, Bourdieu sempre esteve interessado nas relações sociais e nas suas redes” (Costa & Santos, 2020, p. 342). (Bourdieu, 1980; 1986). Existem vários tipos e subtipos de capital3 3 . Capital econômico; capital cultural e capital social. Embora o capital econômico seja preponderante, e as outras formas de capital possam ser convertidas neste capital, Bourdieu sublinha que o capital não é redutível à sua forma econômica capitalista material, guiada pelo simples interesse econômico. O capital cultural e social são formas imateriais de capital que não se resumem à lógica de maximização de ganhos econômicos, mas constituem poderosos instrumentos de acumulação de poder simbólico e de hierarquização dos campos sociais (Bourdieu, 1986; 1989). , mas a distribuição e a acumulação das várias formas de capital são caraterísticas constitutivas da estrutura social. Nesse sentido: “O mundo social é história acumulada” (Bourdieu, 1986, p. 241)4 4 . “The social world is accumulated history.” .

Com base nessas ideias, reutilizamos imaginativamente as categorias de capital cultural e social5 5 . “O capital social é o agregado dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede duradoura de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento mútuo” (Bourdieu, 1980, p. 2; 1986, p. 248). , adaptando-as ao nosso caso. Desse modo, utilizamos os conceitos de capital cultural e social para explicar a ascensão dos atores políticos, em particular desses momentos especiais e decisivos de transição ideacional e de entrada nos círculos de poder. O nosso modelo sublinha a importância da conversão de capital cultural e social em capital político e poder simbólico (Bourdieu, 1989Bourdieu, Pierre. (1989), O poder simbólico. Lisboa, Difel.) e demonstra como essas categorias analíticas ajudam a explicar o percurso profissional e político de Marcelo.

O capital cultural é tradicionalmente associado à capacidade de acumular competências educacionais e intelectuais que derivam dos sucessivos e cumulativos graus e níveis de educação e formação intelectual. Em regra, o capital cultural está reservado a uma elite que perpetua e reproduz a sua posição dominante dentro dos vários campos sociais. Por outro lado, essa reprodução tende a hierarquizar distintivamente os membros de cada campo social (Bourdieu & Passeron, 1992Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loic. (1992), An invitation to reflexive sociology. Chicago, University of Chicago Press.; Bourdieu, 2007). Nesse quadro, convém recordar que o Estado Novo português era um regime político que reproduzia uma sociedade hierarquizada, elitista e com fraca mobilidade social. Isso significa que, em termos comparativos, nesse período era relativamente difícil ultrapassar as barreiras sociais.

Todavia, como demonstramos, podem existir exceções à regra. Com efeito, é possível a um ator situado numa posição relativamente modesta dentro da hierarquia social e política ascender ao círculo elitista dominante dentro de uma determinada sociedade política. Mas como isso é possível? E quais os fatores determinantes dessa possibilidade?

Conforme nosso caso exemplifica, isso é possível quando o ator consegue ultrapassar as barreiras sociais através de uma capacidade excepcional de acumulação de capital cultural e social. Essa capacidade excepcional resulta da interligação virtuosa de três fatores cumulativos. Primeiro, o aproveitamento das oportunidades sociais e culturais que se apresentam ao ator. Como o caso de Marcelo mostra, isso pode passar por conseguir integrar-se bem, e ser reconhecido, em círculos sociais e culturais elitistas e sofisticados6 6 . Essa capacidade de integração social também é relacional com o terceiro fator, a criação de fortes relações interpessoais. Como aqui se prova, ela é melhor conseguida através das amizades e do próprio casamento. . Segundo, o ator deve ter capacidades intelectuais e de trabalho capazes de provar o reconhecimento do seu mérito, nomeadamente através da obtenção de graus elevados e prestigiados de educação e de produção de obras culturais e científicas7 7 . Esse é outro ponto interessante do nosso caso. Marcelo investe muito na publicação de livros, quer acadêmicos, quer didáticos e de difusão geral das suas ideias como intelectual, político e doutrinador. Isso aumenta a sua capacidade de atrair seguidores. Por outro lado, atesta a nossa ideia relativa ao segundo fator: a prova e o reconhecimento do mérito intelectual de Marcelo constituíram instrumento importante na sua ascensão e acumulação de capital social. . Por último, mas não menos importante, o ator deve ter a capacidade de construir fortes relações interpessoais. Esse terceiro fator parece ser o mais decisivo, uma vez que, em última análise, potencia os outros dois.

Por outro lado, ao nível do campo político, é este fator que possibilita a criação de redes sociais de seguidores e de reconhecimento social e intelectual, que depois é passível de ser convertido em capital político. Também é este fator que se interliga com outras categorias analíticas e práticas importantes na vida política, como a amizade, a lealdade e a confiança políticas. Todas essas categorias políticas têm uma importância decisiva na prática política e estão inter-relacionadas com a capacidade de os atores políticos desenvolverem fortes relações interpessoais.

Como o nosso caso comprova, vários e significativos momentos de transição da vida profissional e política de Marcelo não podem ser explicados sem recurso a esse fator, nomeadamente às suas amizades pessoais e aos contextos sociais e familiares. Foram esses fatores que desempenharam um papel determinante no reconhecimento do seu mérito e na construção de um capital cultural de confiança que lhe permitiu o acesso a contatos sociais e políticos que se revelaram fundamentais para a acumulação de capital social e a consequente entrada e ascensão no campo político autoritário português.

Finalmente, é importante sublinhar a capacidade de Marcelo de ir acumulando capital social através da construção de uma rede de contatos sociais e políticos que vai estabelecendo ao longo dos diversos cargos que desempenha até chegar ao governo. Como este trabalho revela, Marcelo vai construindo, interessada e desinteressadamente, uma rede de contatos e conhecimentos que se irão revelar decisivos na sua afirmação como “intelectual orgânico” do corporativismo do Estado Novo e seu líder político8 8 . Como nota Bourdieu: “O volume do capital social possuído por um determinado agente depende assim da dimensão da rede de ligações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital (econômico, cultural ou simbólico) possuído por direito próprio por cada um daqueles a quem ele é conectado” (Bourdieu, 1986, p. 248). . Será precisamente esta rede que estará na base da emergência de uma corrente política marcelista dentro do Estado Novo.

Em síntese, através de um duplo e interligado movimento analítico, este artigo pretende explicar compreensivamente a importância do capital social na ascensão da carreira profissional e política de Marcelo. Assim, por um lado, desenvolve um movimento de microanálise empírico, realizando uma emersão histórica no sentido de identificar e contextualizar as particularidades específicas dos vários episódios da vida de Marcelo. Por outro lado, o artigo empreende um movimento teórico reflexivo e relacional (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loic. (1992), An invitation to reflexive sociology. Chicago, University of Chicago Press.) que pretende alcançar uma teorização a respeito da ascensão política de Marcelo com base na reutilização de conceitos e argumentos de Bourdieu, que ilustramos sinteticamente nas figuras 1 e 2.

Modelo de ascensão política: contextos, ator, relações pessoais e capital cultural e social

Figura 1
Inter-relacionamento entre Agência e Estruturas Sociais e Políticas

Figura 2
O Capital Social na Ascensão Política de Marcelo

As origens e os anos de juventude: 1906-1922

Marcelo José das Neves Alves Caetano nasceu em Lisboa no dia no dia 17 de agosto de 1906, ainda no período da monarquia constitucional portuguesa. Nasce no bairro da Graça em casa da família. Seus pais eram ambos humildes católicos originais da Serra da Lousã. Cresceram e viveram a sua infância em pequenas povoações rurais. Todavia, mesmo nesse meio social modesto, os Alves Caetano distinguiam-se das outras famílias serranas por terem o hábito de ensinaram os filhos a ler e a escrever. O que faziam nos serões à luz da vela, pois não existia eletricidade na Serra da Lousã nesse período.

Seu pai, José Alves Caetano, ficou órfão aos onze anos e no ano seguinte, apenas com doze anos, emigra para Lisboa para tentar a sorte e fugir à vida difícil da serra. Inicia a sua vida laboral como marçano e passa em seguida para a vida militar, chegando a primeiro-sargento. Depois concorre para a Guarda Fiscal, passa por Évora e pelo Porto, e, finalmente, fixa-se em Lisboa, onde, regressado à vida civil, trabalhará na Alfândega até chegar a ser subinspetor (Castilho, 2012Castilho, José T. (2012), Marcelo Caetano: uma biografia política. Coimbra, Almedina.; Leitão, 2014Leitão, Luís M. (2014), Marcelo Caetano: um destino. Lisboa, Quetzal.; Martinho, 2016Martinho, Francisco P. (2016), Marcelo Caetano. Uma biografia, 1906-1980. Lisboa, Objectiva.).

Três características importantes marcam o percurso de vida de José Alves Caetano que, de algum modo, influenciaram a formação e o trajeto de Marcelo Caetano - aquilo a que Bourdieu chama o habitus primário (Bourdieu & Passeron, 1992Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loic. (1992), An invitation to reflexive sociology. Chicago, University of Chicago Press., p. 55)9 9 . O habitus primário (hp) está ligado à inicial socialização familiar e às primeiras experiências educativas e pedagógicas. O hp vai depois evoluir e interligar-se com o habitus transformado pela escola, nomeadamente pela sua evolução adaptativa face aos sucessivos graus de ensino e consequentes experiências e trabalhos pedagógicos. Apesar dessa evolução, o hp tem uma influência decisiva na estruturação de todas as outras experiências posteriores (Bourdieu & Passeron, 1992). . A primeira é a noção de que a instrução e o esforço nos estudos são muito importantes10 10 . Todos os seus filhos aprenderam cedo a ler e assumiram esta ideia. Aqui o destaque vai para as suas filhas, que, ao contrário do que era comum na época, foram todas estudar. Arminda e Emília foram professoras primárias; Olga, a irmã que acompanhou Marcelo no Brasil, conclui o sétimo ano do liceu e trabalhou no Instituo de Odivelas; a mais nova, Lucinda, apesar de também ter estudado, foi a única que não seguiu uma carreira profissional. Arminda chegou mesmo a escrever para o jornal local, Comarca de Arganil, estreando, aos dezenove anos, com um artigo singular: “A influência da mulher na política, não votando”. . A segunda é a capacidade de ambição social e a procura de uma progressão organizada e exemplar na carreira de serviço público. A terceira é a sua aptidão para se afirmar como líder local, associativo e espiritual.

Desse modo, quer inicialmente, na Graça, quer posteriormente, na freguesia dos Anjos, o pai de Marcelo desempenhou o papel de patriarca solidário, nomeadamente para os seus conterrâneos migrantes em Lisboa. Também por isso esteve ligado à Sociedade São Vicente de Paulo, onde, na sua freguesia, foi fundador e tesoureiro. Finalmente, de um ponto de vista ideológico, convém ressaltar as suas raízes conservadoras católicas e a sua consequente aversão ao anticlericalismo republicano. Essas ideias constituem a base do seu pensamento monárquico, antiliberal e antirrepublicano que, naturalmente, irá influenciar os primeiros anos de Marcelo (Mendes, 2020aMendes, Pedro Emanuel. (2020a), “Marcelo Caetano”. In: Sousa, F. & Meireles, C. Os primeiros ministros de Portugal. Lisboa, incm.).

Marcelo vive a sua infância num ambiente familiar profundamente católico e conservador. Por outro lado, era o mais novo e o primeiro varão dos cinco filhos do casal, o que originou que a família, sobretudo o pai, depositasse nele muitas expectativas. Para além da Igreja Católica, outras importantes dimensões marcam a vida inicial de Marcelo: a aposta na educação e a crítica à subversão da ordem tradicional monárquica imposta pelo regime do republicanismo democrático. Deus, a monarquia e a ordem serão as ideias que formarão o seu carácter inicial. Serão, aliás, ideias que marcarão o seu percurso posterior, embora o seu fervor monárquico e integralista da juventude tenha sido substituído pelo corporativismo do Estado Novo na idade adulta, e tenha perdido a fé na última fase da sua vida (Prieto, 1992Prieto, Maria, H. (1992), A porta de marfim. Lisboa, Verbo.).

A ordem é que nunca foi verdadeiramente substituída na sua hierarquia central de ideias. Os tempos conturbados do contexto histórico da juventude de Marcelo ajudam a perceber a importância da ordem. É importante sublinhar que o ambiente social e político dos seus primeiros anos é marcado por tensões e rupturas da ordem política e social, ligadas à crise final da monarquia, à difícil transição da Monarquia para a República e à entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial (Mendes, 2019Mendes, Pedro Emanuel. (2019), “História, discurso político e liderança em Portugal: um diálogo interpretativo entre presente e passado à luz do Diário de Governo”. População e Sociedade, 32: 182-203.; 2020a).

Marcelo finaliza a sua instrução primária na escola n. 68, na Penha de França, em 15 de agosto de 1916, obtendo a classificação de aprovado com distinção. É nessa altura, com nove anos, que conhece a segunda referência intelectual no período da sua formação: Monsenhor José Manuel Pereira dos Reis. Pereira dos Reis era licenciado pela Faculdade de Teologia de Coimbra, onde preparava doutoramento e futura carreira acadêmica. Com o Governo Provisório da República, a Faculdade de Teologia é extinta. Pereira Reis suspende a sua carreira acadêmica e vai para Lisboa como assistente eclesiástico da Juventude Católica e secretário pessoal do Cardeal Mendes Belo. Torna-se pároco da freguesia dos Anjos em 1917 e desenvolve uma forte relação com a família Caetano, que, em 1914, se mudara para a freguesia dos Anjos e onde passou a residir junto à igreja. Marcelo conheceu-o muito jovem, quando seu pai frequentava a sede da Juventude Católica. A partir daí, Pereira Reis foi a principal fonte da sua educação católica e intelectual, nomeadamente “da doutrina ecumênica do Corpo Místico de Cristo” (Caetano, 1977, p. 14).

A cultura intelectual de Pereira dos Reis - politicamente nacionalista e espiritualmente ecumênica - e o seu exemplo de vida influenciaram profundamente o jovem Marcelo, que nutriu uma enorme admiração pelo clérigo. Tão grande que pensou mesmo seguir-lhe o exemplo. Nas suas palavras: “Mentiria se negasse ter surgido no meu espírito a ideia de seguir na esteira desse homem admirado que mais que nenhum outro me impressionou.” (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo., p. 14). Todavia, confessa que não sentiu uma verdadeira vocação interior que lhe permitisse ir para o seminário (Caetano, 1977, p. 14).

Aos dez anos, entra no Liceu Camões em Lisboa, mas passados meses a sua mãe morre de insuficiência cardíaca, a 1º de março de 1917. Em novembro, seu pai volta a casar11 11 . Nesta altura as suas três irmãs mais velhas deixam a casa paterna e Marcelo teve de se adaptar a sua nova situação familiar com a madrasta. Do novo casamento do pai, vão nascer quatro filhos: Nuno José (1921), José Pedro (1922), Manuel José (1926) e António José (1931). . Essas alterações familiares tiveram influência nas fracas notas que obtém nos primeiros anos. A entrada no Camões, liceu de elite, significou a entrada de Marcelo num novo mundo social. No Camões, Marcelo irá encontrar colegas que, ao contrário da sua relativamente humilde condição social, pertenciam na sua maioria a estratos médios e altos da sociedade lisboeta (Mendes, 2020aMendes, Pedro Emanuel. (2020a), “Marcelo Caetano”. In: Sousa, F. & Meireles, C. Os primeiros ministros de Portugal. Lisboa, incm.).

As amizades que aqui trava com alguns deles irão revelar-se importantes na sua ascensão social e no seu percurso acadêmico e político. Entre essas amizades iniciais, uma merece especial destaque: a de Henrique de Barros. Henrique era filho de João de Barros12 12 . Henrique foi amigo de Marcelo no Camões, nos Escuteiros e depois na Universidade de Lisboa. Embora aqui com percursos estudantis e políticos divergentes. Henrique seguiu Agronomia, onde com dificuldades políticas conseguiu ser professor catedrático no Instituto Superior de Agronomia. Ao contrário de Marcelo, Henrique seguiu as convicções políticas do pai e foi um oposicionista do Estado Novo. No período da transição democrática, em 1975-1976, foi Presidente da Assembleia Constituinte (Mendes, 2012). , poeta, pedagogo e político na Primeira República, e irmão de Teresa de Barros, futura mulher de Marcelo. Foi a grande amizade com Henrique de Barros13 13 . Esta amizade se manteve ao longo da vida de Marcelo. Apesar das diferentes convicções políticas e ideológicas, ele sempre teve uma relação de amizade e admiração intelectual com o sogro. Suas discussões eram sobretudo sobre cultura e literatura. Não só ao nível cultural e literário, João de Barros inicialmente influenciou Marcelo na sua admiração pelo Brasil. Para além da literatura e do Brasil, é possível que tenha sido também com João de Barros que Marcelo aprendeu a admirar António Sérgio. O próprio Marcelo admite que, para além “do nacionalismo lírico de Sardinha, influiu em mim o racionalismo sereno de Sérgio, o tal “humanismo imparcial e crítico” de que me ria” (Caetano, 1977, p. 364). Por tudo isto, é possível considerar que, para além do pai e de Pereira Reis, João de Barros foi a terceira figura paternal da sua juventude. que lhe proporcionou frequentar a casa da família Barros e conviver com várias personalidades da intelectualidade e alta burguesia portuguesa que a utilizavam como ponto de encontro e tertúlia.

Foi aqui que Marcelo começou a socializar formas de viver e de pensar relativamente distintos dos meios católicos conservadores e de classe média baixa a que estava habituado na sua família. Na casa da família Barros, Marcelo teve acesso a um ambiente político e social relativamente distinto, mais elitista, urbano e intelectual. Portanto, a família Barros foi importante no acesso de Marcelo a um círculo social com contatos e conhecimentos na elite social e política lisboeta que se tornarão relevantes na acumulação de capital social de Marcelo e na sua consequente entrada no poder.

No quinto ano do liceu, ele precisou optar entre Letras ou Ciências. Depois de ter desistido da ideia inicial de ser padre, Marcelo estava mais inclinado para as Ciências e aspirava a seguir Medicina. Contudo, começou a destacar-se na Literatura e no Português e, no meio dos seus condiscípulos, a que não será alheio o referido convívio na casa Barros, decidiu-se que melhor do que Letras era o curso de Direito, que lhe permitiria ser advogado e “rendia muito dinheiro” (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo., p. 12).

Para abreviar a entrada na Faculdade, Marcelo propôs-se a realizar o exame do sétimo ano como aluno externo. Para tal, para além de se preparar com três colegas do liceu, beneficiou-se do apoio de João de Barros que, como exigia a lei, foi o professor que o propôs a exame.

A Universidade, o jornalismo e a política radical 1922-1929

Marcelo ingressa com sucesso na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1922, tem apenas dezesseis anos. Novamente acede a um meio que tradicionalmente era difícil de alcançar pelas classes mais modestas. Por outro lado, era uma oportunidade para conseguir provar seu espírito de trabalho e suas capacidades intelectuais. Assim, desde cedo começou a destacar-se na Faculdade de Direito como aluno exemplar14 14 . Importa também sublinhar que, na Faculdade de Direito, Marcelo encontra Armindo Monteiro como seu professor de Economia Política. Ainda aluno do liceu, Marcelo conhece-o através da leitura das crônicas que assinava no Diário de Notícias sobre Economia e Finanças. Dez anos mais velho que Marcelo, Monteiro, para além de professor, foi ministro das Colônias e dos Negócios Estrangeiros. Não foi amigo de Marcelo, mas terá contribuído, como role model, para ele solidificar a ideia da importância de ser professor universitário e acumular “capital cultural” para alcançar o poder. .

Para além das aulas, Marcelo começa a dar explicações, a escrever em jornais e a integrar-se nos círculos associativos acadêmicos conservadores, nomeadamente católicos, monárquicos e integralistas. Esta é outra característica de Marcelo que importa notar: o seu espírito de trabalho e a vontade de escrever e opinar sobre o mundo que o rodeia, o que também se traduz no início de acumulação de capital social.

Embora o catolicismo conservador monárquico e mesmo algumas ideias defendidas pelo Integralismo Lusitano (il), como a restauração heroica da portugalidade, tivessem já sido uma influência paterna, a socialização ideacional com Pedro Teotónio Pereira15 15 . Ao contrário de Marcelo, Pedro era filho de uma família empresarial tradicional. Com dezoito anos já se correspondia com António Sardinha e frequentava os jornais A Monarquia e A Época, não por acaso também frequentados por Marcelo. Foi o primeiro dos Integralistas a colaborar com Salazar no ministério das Finanças e a desenvolver uma carreira política no Estado Novo, que se cruza com a de Marcelo, a começar pelo seu primeiro cargo no governo, não aceito por Marcelo e ocupado por Pedro. na Universidade fará com que Marcelo passe a ser militante de movimentos políticos conservadores radicais. A amizade com Pedro foi decisiva para que Marcelo se tornasse um dos jovens líderes de movimentos ideológicos conservadores que gravitavam em torno da ideologia do catolicismo conservador e do il. Em 1924 Marcelo é já um dos principais colaboradores do Instituto de Estudantes Católicos de Lisboa e irá participar com Pedro no congresso da União dos Estudantes Católicos Portugueses (Pereira, 1973; Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo.).

Nesse período existiram vários movimentos antirrepublicanos e antiliberais em Portugal que eram herdeiros de uma importante fratura ideológica e civilizacional. Por um lado, os conservadores, de feição autoritária, conservadora-monárquica e católica. Por outro, os liberais, laicos e republicanos com uma orientação progressista de feição democrática. Os primeiros não aceitavam a ordem republicana e conspiravam contra a instabilidade e a decadência parlamentarista que, na sua opinião, o regime republicano tinha instalado (Mendes, 2020aMendes, Pedro Emanuel. (2020a), “Marcelo Caetano”. In: Sousa, F. & Meireles, C. Os primeiros ministros de Portugal. Lisboa, incm.).

Nesse contexto, surgiram vários movimentos ideacionais e políticos de cariz conservador e restauracionista que tinham uma pulsão idealista-reacionária e almejavam instaurar uma nova ordem política em Portugal. O jovem Marcelo, de espírito crítico da situação16 16 . Marcelo assume: “Na minha juventude assisti à experiência democrática da i República e fiquei elucidado sobre a capacidade portuguesa para praticar esses regimes” (Prieto, 1992, p. 97). e de inegável curiosidade intelectual, será seduzido pelo idealismo monárquico-tradicionalista, nacionalista, orgânico e antiparlamentar do il teorizado, entre outros, por António Sardinha17 17 . Político, ensaísta e fundador do il. Morreu jovem (37), mas como doutrinador e comunicador político das ideias do il exerceu forte influência nos jovens reacionários. O il foi um movimento elitista e nacionalista, política e ideologicamente contrarrevolucionário, antirrepublicano, antiliberal e tradicionalista. Pretendia acabar com a decadência republicana em Portugal através da restauração de uma ordem monárquica tradicionalista, orgânica e municipalista. Para uma visão geral e sobre a influência do il no Brasil, ver: Silva, Gonçalves & Parada, 2010. .

Para além de aderir ao il, Marcelo exerce em simultâneo uma forte atividade jornalística: constituindo uma forma de rendimento extra, foi importante também para ele ser reconhecido junto dos meios católicos e monárquicos que conspiravam contra a República. Estreou no jornal católico A Época, com trabalho de pouca expressão, mas que funcionou como uma escola e lhe permitiu conhecer, entre outros, o seu diretor, o conselheiro Fernando de Sousa, figura de destaque do Centro Católico Português.

Em 1925 inicia a sua colaboração na revista Nação Portuguesa, órgão oficial do il, da qual será secretário de redação entre 1928 e 1932. Será aqui que publicará o seu primeiro trabalho: Um grande jurista Português: Frei Serafim de Freitas. Em março de 1926, com apenas vinte anos, torna-se cofundador e diretor da revista Ordem Nova, que se autodefine como “antimoderna, antiliberal, antidemocrática, antiburguesa e antibolchevista”, além de “contrarrevolucionária, reacionária; católica, apostólica e romana; monárquica; intolerante e intransigente” (Ordem Nova, 1926). Em abril, um grupo de jovens monárquicos radicais funda o Instituto António Sardinha. Marcelo e Pedro fazem parte da sua direção. Estes foram os tempos do jovem Marcelo militante radical, que não tiveram repercussão política efetiva, mas serviram como relevante escola de formação intelectual e ideológica.

No dia 28 de maio de 1926 dá-se o golpe militar que derruba a República e instaura a Ditadura Militar em Portugal. Suprimem-se os partidos e encerra-se o parlamento. Toda coligação negativa contra a República do centro à extrema direita - republicanos conservadores, monárquicos, católicos e integralistas - rejubila. Todos concordavam no que não queriam, outra coisa muito diferente seria o acordo sobre qual o rumo a seguir. Desse modo, a Ditadura Militar constituiu um período de transição difícil em que várias facções vão tentar impor o seu modelo político até que, finalmente, sob a égide de Salazar, e com o apoio de Marcelo, se funda a nova ordem política autoritária e corporativa: o Estado Novo.

No início de 1927, Marcelo integra também a redação do vespertino A Ideia Nacional, em que desenvolve uma coluna intitulada “Vida Literária”. Esse jornal integralista teve vida curta, sendo encerrado pelos militares. Ainda em 1927, Marcelo passa a ser redator de A Voz. Seguindo as linhas programáticas de A Época, um dos principais redutos das ideias que inspiraram o movimento do 28 de Maio, A Voz passou a ser um importante jornal católico, novamente dirigido por Fernando de Sousa. Após o golpe militar, esse periodico foi um relevante centro de debate político de católicos e integralistas. Aqui, Marcelo teve a oportunidade de viver de perto o ambiente político-conspirativo sobre o novo rumo a dar a Portugal. Para além das relações interpessoais e políticas que adquire, a experiência da sua ligação ao jornalismo revelar-se-á igualmente importante ao nível do seu conhecimento e interesse com a comunicação social, bem como na sua capacidade de comunicar, de forma ágil, “verdades arredondadas”. Em junho de 1927, Marcelo conclui a sua licenciatura em Direito na Universidade de Lisboa com a classificação final de 18 valores, ainda não tinha completado 21 anos.

Nesta fase, do jovem Marcelo integralista, importa ressaltar três ideias básicas. Primeiro, a sua militância política radical reflete o gosto pelo confronto intelectual e o interesse na participação política. Segundo, a sua atitude integralista assentava na ideia clara de que era necessário instaurar um novo regime em Portugal que resgatasse o país da sua situação pantanosa. Terceiro, a sua militância no il foi também uma forma de reconhecimento e acumulação de capital intelectual e social e de integração no meio intelectual elitista antirrepublicano. Ao contrário da sua origem social modesta, o il era um movimento de elitismo social e cultural (Pinto, 1994Pinto, António C. (1994), Os Camisas Azuis: ideologias, elites e movimentos fascistas em Portugal, 1914-1945. Lisboa, Editorial Estampa.).

Assim, neste período, Marcelo solidifica o seu pensamento político através de ideias nacionalistas, reacionárias, orgânico-corporativistas e elitistas, defensoras de um projeto político que restituísse a Portugal o seu gênio império-civilizacional e a sua organização neomedieval (Mendes, 2020aMendes, Pedro Emanuel. (2020a), “Marcelo Caetano”. In: Sousa, F. & Meireles, C. Os primeiros ministros de Portugal. Lisboa, incm.).

Isso significa que Marcelo foi um dos jovens intelectuais que sucumbiram ao encanto reacionário e nacionalista das palavras de Sardinha e ao seu projeto integralista de restaurar a grandeza de Portugal. Nesse período, Marcelo via em Sardinha um “mestre” (Caetano, 1941Caetano, Marcelo. (1941), Problemas da revolução corporativa. Lisboa, Império: Acção., p. 2.) Portanto, importa compreender a importância e a influência do pensamento de Sardinha no jovem Marcelo, nomeadamente as suas ideias heroicas sobre a missão especial de Portugal no mundo. Ideias fortes e ideologicamente apelativas para todos os nacionalistas conservadores, a saber:

O que se nos impõe é restituir à Pátria o sentimento da sua grandeza, - não duma grandeza retórica ou enfática, mas naturalmente, da grandeza que se desprende da vocação superior que a Portugal pertence dentro do plano providencial de Deus, como nação ungida para a dilatação da Fé e do Império. Dilatar a Fé e o Império equivale a sustentar o guião despedaçado da Civilização. Os motivos de luta e de apostolado que outrora nos levavam à Cruzada e à Navegação, esses motivos subsistem. (Sardinha, 1924Sardinha, António. (1924), Ao princípio era o verbo. Ensaios e estudos. Lisboa, Portugália Editora.)

Terminada a licenciatura, Marcelo tem êxito no concurso para oficial do Registo Civil de Óbidos, onde inicia funções a 20 de dezembro de 1927. A saída da Universidade e o início da sua vida profissional começam a esmorecer o seu idealismo ideológico. A partir daí a vida de Marcelo irá entrar numa nova fase. Assim, começa a temperar o radicalismo integralista e a aproximar-se da política real. Desse modo, apesar de como integralista ter defendido, dois anos antes, que o il era incompatível com um regime republicano, acaba por participar na campanha eleitoral de Carmona ao lado do administrador do concelho de Óbidos (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo.; Castilho, 2012Castilho, José T. (2012), Marcelo Caetano: uma biografia política. Coimbra, Almedina.). O que é revelador da sua gradual adaptação à política real.

No dia 25 de Março de 1928, Carmona é eleito Presidente da República e no dia 18 de abril de 1928 entra em funções o novo ministério presidido pelo general José Vicente de Freitas. Nove dias depois, após ter assegurado as condições de autonomia técnica e política que exigiu, Salazar toma posse como ministro das finanças. Inicia aí o seu invulgar percurso no governo que fará dele presidente do ministério em 1932 e, finalmente, presidente do conselho em 1933, lugar que ocupará até ser substituído por Marcelo em 1968.

No dia 27 de julho de 1928, é nomeado subdelegado do Procurador da República na Comarca das Caldas da Rainha, funções que passa a acumular com as de Óbidos até 1929. O ano de 1929 marca definitivamente a transição do jovem Marcelo radical para o mundo da política real. Incentivado pela noiva, Teresa de Barros, Marcelo começa a preparar o seu doutoramento na recém-restaurada Faculdade de Direito de Lisboa e, por convite do seu amigo Pedro Teotónio Pereira, torna-se chefe do contencioso da Companhia de Seguros Fidelidade, empresa da família de Pedro. Em março de 1929, em representação de toda a direção, os dois acabam com o Instituto António Sardinha, o que simbolicamente marca o fim da fase integralista de Marcelo.

A partir desse momento, Marcelo e Pedro solidificam a sua cumplicidade e começam a conjugar interesses profissionais e políticos. Como acontecera já anteriormente com a militância antirrepublicana e integralista, será Pedro quem liderará a aproximação de Marcelo a Salazar. Assim, foi pela mão de Pedro que Marcelo conheceu o poderoso novo ministro das Finanças.

Conhecedor das qualidades políticas de Pedro Teotónio Pereira e da sua tradição familiar ligada aos seguros, Salazar se reúne com ele a propósito da reforma dos seguros. Nesse quadro, Marcelo colabora com o seu amigo e é ele quem prepara meticulosamente as propostas jurídicas que Pedro apresenta a Salazar. O novo ministro das Finanças não deixa de reparar na qualidade jurídica das propostas e, novamente, a oportunidade bate à porta de Marcelo.

Após a conveniente recomendação de Pedro Teotónio Pereira, Salazar chama Marcelo a sua casa e, após uma conversa, convida-o para auditor jurídico do Ministério das Finanças, lugar de que toma posse em 13 de novembro de 1929. Será o início de uma longa colaboração com Salazar e a porta de entrada da sua carreira política.

A maturidade e a política real: a assunção do corporativismo do Estado Novo: 1929-1944

Como funcionário do Ministério das Finanças, Marcelo sente alguma frustração em não ser mais aproveitado. Contudo, nesta altura está concentrado na preparação do seu doutoramento e no seu casamento. Todavia, em meados de 1932, irá surgir uma nova oportunidade para se aproximar de Salazar. Marcelo vai começar a secretariar Salazar no seu projeto de Constituição para o Estado Novo.

Antes disso, no dia 27 de outubro de 1930, Marcelo casa com Teresa de Barros. Se o ano de 1929 marca o abandono institucional do Integralismo, o ano de 1930 marca o início da viragem para a sua ligação institucional ao corporativismo e à construção do Estado Novo.

Assim, em maio de 1931, por intermédio do seu sogro, João de Barros, Marcelo inicia uma colaboração com o Jornal do Comércio e das Colónias, agora como analista. Aqui vai começar a assinar crônicas sobre a política nacional, o sistema colonial, a doutrina corporativista e assuntos de política internacional. O grande objetivo da sua coluna de opinião, intitulada “Notas Económicas e Financeiras”, era a defesa das políticas do ministro das finanças, Oliveira Salazar. Podemos dizer que essas suas crônicas foram um instrumento de acumulação de capital simbólico e consequente reconhecimento social e político, nomeadamente junto de Salazar.

Em 17 de junho de 1931, Marcelo presta provas de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com a tese A depreciação da moeda depois da Guerra. Aos 25 anos torna-se o primeiro doutor da Faculdade de Direito de Lisboa na especialidade de Ciências Político-Econômicas.

Durante o ano de 1932, fruto da sua colaboração na redação do projeto da Constituição do Estado Novo e dos artigos de apoio a Salazar no Jornal do Comércio e das Colónias, é notória a cumplicidade política com Salazar. As reuniões na residência do ministro a propósito do projeto da Constituição resultaram numa importante aproximação política entre Marcelo e Salazar. Assim, após se tornar Presidente do Ministério, Salazar convida Marcelo para Membro da Junta Consultiva da recém-criada União Nacional.

Marcelo passará a admirar as qualidades de liderança de Salazar e as suas certezas políticas e ideológicas. Por outro lado, as modestas origens sociais de Salazar, a sua capacidade de trabalho e suas qualidades carismáticas intelectuais serão caraterísticas que Marcelo aprecia e também reconhece como suas. Marcelo começa a ser um importante e leal apoiante do líder do Estado Novo e um fervoroso defensor do corporativismo do Estado Novo. Assim, apesar de considerar o nacional-sindicalismo fascizante de Rolão Preto um movimento que continha virtualidades, na relativa luta política que se seguiu entre o Estado Novo de Salazar e as ideias dos camisas azuis (Pinto, 1994Pinto, António C. (1994), Os Camisas Azuis: ideologias, elites e movimentos fascistas em Portugal, 1914-1945. Lisboa, Editorial Estampa.), Marcelo optou decididamente pelo Estado Novo.

Em abril de 1933, Marcelo recusa o convite de Salazar para subsecretário de Estado das Corporações, uma vez que o seu objetivo primordial era tornar-se professor na Faculdade de Direito de Lisboa. Em junho concorre e é aprovado no concurso de provas públicas para a vaga de professor do 3º grupo (Ciências Políticas) com a dissertação O poder disciplinar no Direito Administrativo português. Em outubro desse ano inicia a sua carreira docente como regente das cadeiras de Direito Administrativo, Direito Internacional Público, Direito Corporativo e do Curso de Administração Colonial18 18 . Foi ainda professor do Instituto do Serviço Social e, entre 1942 e 1945, no Instituto Superior Técnico. Ser professor foi importante na acumulação de capital social e significou um passaporte para várias ligações e missões políticas, como comprova o exemplo do cruzeiro às Colônias. .

Em outubro de 1933 aceita o convite de Salazar e torna-se, com Albino dos Reis e Carneiro Pacheco, membro da primeira Comissão Executiva da União Nacional. Depois de ter desenvolvido relações pessoais com os autores da Constituição (Salazar, Quirino de Jesus, Fezas Vital, Teotónio Pereira) e de já ser o mais jovem teórico do corporativismo na Junta Consultiva da un, agora afirma-se na cúpula dirigente da un e passa a ter relações com mais duas figuras políticas importantes do Estado Novo. Contudo, Marcelo demite-se da un em virtude de Salazar ter preterido os seus projetos para a un, e não o ter recebido em momento oportuno. Escreve a Salazar justificando a sua demissão com a dificuldade de compatibilizar o cargo com a “vida ocupadíssima e metódica […] o trabalho que tenho de realizar para a escrita […] junto às muitas preocupações de espírito, absorve-me por inteiro” (Caetano, 1933Caetano, Marcelo (1933) “Carta dirigida a Exmo. Sr. Dr. Oliveira Salazar, C3”. In: Antunes, José F. (1993), Salazar e Caetano, cartas secretas (1932-1968). Lisboa, Círculo de Leitores, p. 93.).

A partir daqui as relações pessoais e de proximidade com Salazar esfriam. Isto se reflete na sua menor participação direta no núcleo duro da decisão de Salazar. Contudo, isto lhe proporciona outro tipo de afirmação. Marcelo vai apostar na acumulação de capital cultural e social. Essa aposta foi uma forma de acumular capital político e de marcar a sua posição de líder intelectual com ideias autônomas e com capacidade de poder simbólico para se dirigir critica e diretamente a Salazar através das suas cartas, que passa a assinar como “Professor da Faculdade Direito” (Antunes, 1993Antunes, José F. (1993), Salazar e Caetano: cartas secretas: 1932-1968. Lisboa, Círculo de Leitores.). Marcelo vai começar a publicar com um ritmo impressionante, e o próprio Salazar reconhece esse mérito, enviando-lhe cumprimentos e felicitações. Por vezes parece que Marcelo escreve para Salazar, o que prova o nosso argumento da aposta no reconhecimento e na acumulação de capital social, quer junto dos seus seguidores, quer junto do líder do Estado Novo.

Em 1934 torna-se diretor da Companhia de Seguros Fidelidade e aceita o convite de Salazar para, juntamente com Fezas Vital, elaborar a reforma do direito administrativo português e organizar o novo Código Administrativo. Este é outro marco importante no reconhecimento das suas qualidades acadêmicas, com impacto na acumulação do seu capital cultural e social19 19 . Aqui podemos relacionar com o que Bourdieu chama de “capital científico” uma especial espécie de capital social assente na “autoridade científica” […] e na sua visibilidade e reconhecimento (Bourdieu, 1983, pp. 127-132). .

Devido ao ensino do seu curso de Administração Colonial, que começou a reger a partir de 1934 na Faculdade de Direito de Lisboa, Marcelo torna-se um especialista na matéria. Em agosto de 1935 é convidado pelo ministro das colônias para diretor cultural do primeiro cruzeiro de Férias dos Estudantes da Metrópole às Colônias. Essa viagem de dois meses foi a primeira experiência real do jovem acadêmico no ultramar português. Esse primeiro contato com o ambiente ultramarino, onde se encenava uma política de assimilação idílica, terá contribuído para a construção da visão africanista de Marcelo e suas futuras reticências em alterar a política externa de “resistência imperial” de Portugal (Mendes, 2018Mendes, Pedro Emanuel. (2018), “Identidade, ideias e normas na construção dos interesses em política externa: o caso português”. Análise Social, 227, liii (2): 458-487.; 2020c). Em novembro de 1935 é procurador à Câmara Corporativa, na qualidade de presidente da direção do Grémio dos Seguradores. Em 1936 é eleito, por cooptação, membro do Conselho do Império Colonial, cargo que ocupará até 1947. Em dezembro é promulgado o Código Administrativo e, por convite de Nobre Guedes, torna-se diretor dos Serviços de Formação Nacionalista da Mocidade portuguesa.

Em 1937 publica o Manual de Direito Administrativo - que conhecerá dez edições, todas revistas, datando a última de 1973 - e no dia 28 de maio, 11º aniversário da Revolução, recebe a grã-cruz da Ordem Militar de Cristo, consagração simbólica da sua defesa do corporativismo do Estado Novo. Em 1938 faz uma viagem acadêmica à Itália fascista para inaugurar a cátedra de Estudos Portugueses na Universidade de Roma. Regressado da sua experiência fascista, realiza conferências e publica, em italiano e em português (Caetano, 1938aCaetano, Marcelo. (1938a), “La dottrina politico-sociale di salazar e lo spirito del nuovo stato portoghese”. Sep. de: Rivist Internazionale di Filosofia del Diritto, Roma, 18: 4-5.; 1938b), trabalhos em que explicita a sua preferência pelo corporativismo do Estado Novo face ao fascismo italiano; Salazar agradeceu (Salazar, 1938Salazar, Oliveira. (1938), “Carta dirigida a Marcelo Caetano, S4”. In: Antunes, José F. (1993), Salazar e Caetano, cartas secretas (1932-1968). Lisboa, Círculo de Leitores, p. 98.).

Em 1940, seu amigo Carneiro Pacheco, ministro da Educação, o nomeia Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa (mp), cargo que exercerá até 1944. Aqui vai ganhar projeção para além dos círculos acadêmicos e políticos de Lisboa. Será neste cargo que iniciará a sua vocação política nacional no terreno, organizando e dirigindo iniciativas por todo o país. É aqui que a sua acumulação de capital social começa a ganhar velocidade de cruzeiro.

Marcelo irá modernizar a ação da mp, incutir-lhe princípios mais escutistas e menos totalitários, sem nunca descurar o principal papel de doutrinação da juventude e de formação dos futuros dirigentes do Estado Novo. Marcelo está convencido de que a mp é um importante pilar de educação ideológica dos princípios autoritários, nacionalistas e imperiais do corporativismo do Estado Novo.

Também será nesta organização que Marcelo irá conhecer e recrutar muitos dos seus apoiantes e seguidores, aquilo a que mais tarde se chamará de marcelismo (Mendes, 2020bMendes, Pedro Emanuel. (2020b), “Os dilemas da renovação na continuidade e o legado de Marcello Caetano: do outono ao inverno”. Tempo e Argumento, 12 (29): e0205.). Neste período de teórico do corporativismo e doutrinador da juventude portuguesa publica, em 1941, Problemas da revolução corporativa, A missão dos dirigentes e, em 1944, Por amor à juventude.

Em 1943 publica Do Conselho Ultramarino ao Conselho do Império e faz na Emissora Nacional um discurso comemorativo do 11º aniversário da tomada de posse de Salazar como Presidente do Conselho. Apesar do tom geral de elogio ao governo e às suas “virtudes políticas”, Marcelo ousa afirmar que “Salazar tem defeitos como toda a gente”. Contudo, conclui afirmando que “a permanência de Salazar é, além de tudo mais, a garantia segura de que a Revolução continua” (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo., pp. 157-161).

Em 1944, Salazar convida Marcelo para o governo. É comum a tese de que foi uma forma de neutralizar a sua dissidência crítica. Todavia, como argumentamos, sua entrada no governo não pode ser explicada sem as suas opções relativas à sua ascensão social e afirmação intelectual, muito menos à sua excepcional acumulação de capital social, que o tornou um ator incontornável do Estado Novo.

Embora, comparativamente, o Estado Novo e o seu líder escolhessem as suas elites de forma mais pessoal e centralizada (Pinto, 2001Pinto, António, C. (2001), “O império do professor: Salazar e a elite ministerial do Estado Novo (1933-1945)”. Análise Social, xxxv (157): 1055-1076.) - e alguns próximos do núcleo duro de Salazar do grupo conservador de Coimbra, do qual se destaca o ultramontano e cacique de Salazar nas Forças Armadas, Santos Costa, não gostassem da irreverência intelectual de Marcelo -, é evidente que Marcelo acumulou capital social a ponto de o seu amigo Pedro, na altura embaixador em Madri, o haver avisado depois de se ter reunido em Lisboa com Salazar: “Você vai ser chamado, quase todos os que foram ouvidos até aqui consideraram necessária a sua entrada no governo” (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo., p. 177).

Marcelo começa por recusar o primeiro convite para a pasta da Justiça, por achar que era um cargo subalterno e sem importância política. Seguidamente propõe, sem sucesso, a criação de um Ministério da Assistência Social e de uma pasta da presidência, coordenadora da ação governativa. A sua capacidade de discutir e argumentar com Salazar cargos no governo é uma prova da sua acumulação de capital social. Contudo, acaba por aceitar a pasta das Colônias, tomando posse no dia 6 de setembro de 1944 dessas funções que desempenhará até fevereiro de 1947. O seu apoio à política do Estado Novo, ainda que por vezes crítico, conduziu-o ao governo20 20 . Este governo reflete já uma acomodação pragmática de Salazar a tendências diversas dentro do Estado Novo, nomeadamente de ministros mais ligados ao “grupo de Lisboa”, liderado por Pedro e Marcelo, e ao “grupo de Coimbra”, liderado por Santos Costa. aos 38 anos.

Conclusão

Depois de analisados os principais contextos socias, ideacionais e políticos do percurso biográfico e político de Marcelo, estamos em condições de assumir algumas conclusões.

Em primeiro lugar, podemos dizer que as principais influências individuais para a formação inicial de Marcelo foram o seu pai, conservador, católico e antirrepublicano, e o Monsenhor José Manuel Pereira dos Reis, um intelectual católico, mas igualmente conservador. Importa ainda sublinhar que, embora com personalidades distintas, ambos tinham qualidades de liderança, associativa e cristã, bem como uma visão pessimista da (des)ordem instalada pelo regime republicano e pelas suas preferências ideológicas e políticas parlamentares, anticlericais, democráticas e progressistas. Contudo, também não é de menosprezar a influência de João de Barros, aqui mais ao nível cultural do que político.

Em segundo lugar, é importante sublinhar o percurso social e educacional de Marcelo, nomeadamente a sua entrada no Liceu Camões e as amizades que aí trava, em particular com Henrique de Barros, que lhe abre a porta para um mundo social mais sofisticado. Foi a amizade com Henrique de Barros e família que influenciou a sua escolha pelo Direito e lhe permitiu candidatar-se à Universidade, com o apoio do pai do amigo, com apenas dezesseis anos. Foi o convívio na casa da família Barros que, em última análise, permitiu a Marcelo subir no elevador social, relacionar-se com vários amigos do círculo elitista de João de Barros e passar a fazer parte da família, casando com sua filha. Essa circunstância social revelou-se importante, quer ao nível do reconhecimento e apoio das qualidades intelectuais e de trabalho de Marcelo, quer no reforço positivo da motivação da sua ambição social e profissional.

Em terceiro lugar, após ter tido a possibilidade de ingressar na Universidade, Marcelo desenvolve a sua curiosidade intelectual junto dos meios católicos conservadores e radicais e aproxima-se do Integralismo Lusitano. Aqui, novamente, sobressaem uma amizade e uma cumplicidade social e política: Pedro Teotónio Pereira. Foi com Pedro que Marcelo fez o seu percurso ideológico nacionalista radical, mas foi também com Pedro que começou a desligar-se da fase radical e aproximar-se da política real. Foi igualmente acompanhado por Pedro Teotónio Pereira que Marcelo realiza a sua transição para a maturidade profissional e política, destacando-se o próprio acesso ao relacionamento com Salazar.

Esta transição da juventude e da política radical, para a idade adulta e a aproximação da política real, é explicada de forma relacional através de um conjunto interligado e sequencial de fatos sociais e políticos: o início da sua vida profissional; o seu casamento; a cumplicidade profissional e política com Pedro Teotónio Pereira; o encontro com Salazar; a entrada no Ministério das Finanças; a conversão ao corporativismo e a adesão à liderança de Salazar.

Como aqui se demonstra, essa transição foi fundamental para que Marcelo conseguisse tornar-se um dos políticos mais consistentemente defensores do corporativismo do Estado Novo. Foi essa sua transição e a consequente assunção da defesa do corporativismo do Estado Novo, mesmo que por vezes irreverente, que permitiram o início da carreira política de Marcelo e a sua chegada ao governo com apenas 38 anos.

Após a sua entrada na política real e a assunção da necessidade da revolução corporativista e da liderança patriarcal de Salazar, Marcelo iniciou uma carreira política que se caracterizou por um forte investimento no capital cultural e, sobretudo, no capital social. Aqui, o destaque vai para a sua passagem por cargos em que estabeleceu e construiu esse duplo e simultâneo processo de conhecimento e reconhecimento social e simbólico de capital. Estamos a falar, especialmente, da sua nomeação como membro da primeira Comissão Executiva da União Nacional; da sua qualidade de procurador à Câmara Corporativa como presidente da direção do Grêmio dos Seguradores; da sua entrada no Conselho do Império Colonial; e da sua nomeação como Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. Em todos esses cargos, Marcelo foi construindo e reforçando sua rede de capital social. Simultaneamente, é necessário sublinhar a sua produção intelectual, em particular os seus livros, quer como acadêmico, quer como doutrinador. Conforme notamos, para além das razões acadêmicas e científicas, os seus livros foram um importante instrumento de reconhecimento do seu capital cultural e de influência social e política junto dos seus seguidores e da elite política do Estado Novo.

Como se analisou, Marcelo fez um percurso profissional e político irrepreensível. Como é natural, esse percurso foi, em primeiro plano, fruto do seu trabalho e das suas opções profissionais e políticas pessoais. Contudo, não é possível explicar o sucesso da sua carreira política e a sua chegada ao governo sem uma análise relacional com as suas amizades e conhecimentos sociais. Isso significa que não podemos explicar o percurso profissional e político de Marcelo sem considerar a sua capacidade de acumular capital social.

Em síntese, o caso de Marcelo demonstra que, embora excepcional, é possível ultrapassar as barreiras sociais através da acumulação de capital cultural e social. Essa capacidade excepcional resulta da interligação virtuosa de três fatores cumulativos: o aproveitamento das oportunidades sociais e culturais que se apresentam ao ator; a demonstração de capacidades intelectuais e de trabalho suficientes para provar o reconhecimento do seu mérito, quer através da obtenção de graus prestigiados de educação, quer através de produção de obras culturais e científicas; e a capacidade de construir fortes relações interpessoais.

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  • 1
    . A História, sobretudo a política, é sempre uma construção reflexiva face ao objeto de estudo, bem como face às próprias preconcepções do investigador e aos seus habitus científicos. Em períodos autoritários, mas não só, muitas vezes os políticos refugiam-se na “verdade documental” (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo., p. 4), mas é imperioso perceber que os líderes, não raras vezes, documentam “verdades arredondadas” (Mendes, 2019Mendes, Pedro Emanuel. (2019), “História, discurso político e liderança em Portugal: um diálogo interpretativo entre presente e passado à luz do Diário de Governo”. População e Sociedade, 32: 182-203.), limitando a própria expressão documental da verdade. Porém, na memória autobiográfica, o autor tem a tentação de se tornar o “ideólogo da sua própria vida” (Bourdieu, 2006Bourdieu, Pierre. (2006) “A ilusão biográfica”. In: Amado, Janaína & Ferreira, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Editora fgv, pp. 183-191., p. 184). Essa precaução metodológica não impede a importância das memórias biográficas (Bertaux, 2001Bertaux, Daniel. (2001) “Biography and society”. In: Smelser, Neil & Baltes, Paul (Eds). The international encyclopedia of the social and behavioral sciences. Oxford, Pergamon/Elsevier Science, pp. 1210-1213.). Contudo, além dos fatos narrativos, a compreensão histórica deve ser relacional. Portanto, é necessário compreender os vários microepisódios do percurso biográfico e político de Marcelo face aos contextos sociais e ideacionais do seu tempo.
  • 2
    . Como explica Daniel Bertaux, que trabalhou com ele, “apesar da sua conversão tardia ao construtivismo”, Bourdieu sempre esteve interessado nas relações sociais e nas suas redes” (Costa & Santos, 2020Costa, L. & Santos, Y. (2020), “O ‘relato de vida’ como método das Ciências Sociais: Entrevista com Daniel Bertaux”. Tempo Social, 32 (1): 319-346. Disponível em https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2020.159702.
    https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
    , p. 342).
  • 3
    . Capital econômico; capital cultural e capital social. Embora o capital econômico seja preponderante, e as outras formas de capital possam ser convertidas neste capital, Bourdieu sublinha que o capital não é redutível à sua forma econômica capitalista material, guiada pelo simples interesse econômico. O capital cultural e social são formas imateriais de capital que não se resumem à lógica de maximização de ganhos econômicos, mas constituem poderosos instrumentos de acumulação de poder simbólico e de hierarquização dos campos sociais (Bourdieu, 1986; 1989).
  • 4
    . “The social world is accumulated history.
  • 5
    . “O capital social é o agregado dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede duradoura de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento mútuo” (Bourdieu, 1980Bourdieu, Pierre. (1980), “Le capital social”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 31: 2-3., p. 2; 1986, p. 248).
  • 6
    . Essa capacidade de integração social também é relacional com o terceiro fator, a criação de fortes relações interpessoais. Como aqui se prova, ela é melhor conseguida através das amizades e do próprio casamento.
  • 7
    . Esse é outro ponto interessante do nosso caso. Marcelo investe muito na publicação de livros, quer acadêmicos, quer didáticos e de difusão geral das suas ideias como intelectual, político e doutrinador. Isso aumenta a sua capacidade de atrair seguidores. Por outro lado, atesta a nossa ideia relativa ao segundo fator: a prova e o reconhecimento do mérito intelectual de Marcelo constituíram instrumento importante na sua ascensão e acumulação de capital social.
  • 8
    . Como nota Bourdieu: “O volume do capital social possuído por um determinado agente depende assim da dimensão da rede de ligações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital (econômico, cultural ou simbólico) possuído por direito próprio por cada um daqueles a quem ele é conectado” (Bourdieu, 1986, p. 248).
  • 9
    . O habitus primário (hp) está ligado à inicial socialização familiar e às primeiras experiências educativas e pedagógicas. O hp vai depois evoluir e interligar-se com o habitus transformado pela escola, nomeadamente pela sua evolução adaptativa face aos sucessivos graus de ensino e consequentes experiências e trabalhos pedagógicos. Apesar dessa evolução, o hp tem uma influência decisiva na estruturação de todas as outras experiências posteriores (Bourdieu & Passeron, 1992Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loic. (1992), An invitation to reflexive sociology. Chicago, University of Chicago Press.).
  • 10
    . Todos os seus filhos aprenderam cedo a ler e assumiram esta ideia. Aqui o destaque vai para as suas filhas, que, ao contrário do que era comum na época, foram todas estudar. Arminda e Emília foram professoras primárias; Olga, a irmã que acompanhou Marcelo no Brasil, conclui o sétimo ano do liceu e trabalhou no Instituo de Odivelas; a mais nova, Lucinda, apesar de também ter estudado, foi a única que não seguiu uma carreira profissional. Arminda chegou mesmo a escrever para o jornal local, Comarca de Arganil, estreando, aos dezenove anos, com um artigo singular: “A influência da mulher na política, não votando”.
  • 11
    . Nesta altura as suas três irmãs mais velhas deixam a casa paterna e Marcelo teve de se adaptar a sua nova situação familiar com a madrasta. Do novo casamento do pai, vão nascer quatro filhos: Nuno José (1921), José Pedro (1922), Manuel José (1926) e António José (1931).
  • 12
    . Henrique foi amigo de Marcelo no Camões, nos Escuteiros e depois na Universidade de Lisboa. Embora aqui com percursos estudantis e políticos divergentes. Henrique seguiu Agronomia, onde com dificuldades políticas conseguiu ser professor catedrático no Instituto Superior de Agronomia. Ao contrário de Marcelo, Henrique seguiu as convicções políticas do pai e foi um oposicionista do Estado Novo. No período da transição democrática, em 1975-1976, foi Presidente da Assembleia Constituinte (Mendes, 2012Mendes, Pedro Emanuel. (2012), Portugal e a Europa: Factores de afastamento e aproximação da política externa portuguesa (1970-1978). Porto: Cepese.).
  • 13
    . Esta amizade se manteve ao longo da vida de Marcelo. Apesar das diferentes convicções políticas e ideológicas, ele sempre teve uma relação de amizade e admiração intelectual com o sogro. Suas discussões eram sobretudo sobre cultura e literatura. Não só ao nível cultural e literário, João de Barros inicialmente influenciou Marcelo na sua admiração pelo Brasil. Para além da literatura e do Brasil, é possível que tenha sido também com João de Barros que Marcelo aprendeu a admirar António Sérgio. O próprio Marcelo admite que, para além “do nacionalismo lírico de Sardinha, influiu em mim o racionalismo sereno de Sérgio, o tal “humanismo imparcial e crítico” de que me ria” (Caetano, 1977Caetano, Marcelo. (1977), Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Verbo., p. 364). Por tudo isto, é possível considerar que, para além do pai e de Pereira Reis, João de Barros foi a terceira figura paternal da sua juventude.
  • 14
    . Importa também sublinhar que, na Faculdade de Direito, Marcelo encontra Armindo Monteiro como seu professor de Economia Política. Ainda aluno do liceu, Marcelo conhece-o através da leitura das crônicas que assinava no Diário de Notícias sobre Economia e Finanças. Dez anos mais velho que Marcelo, Monteiro, para além de professor, foi ministro das Colônias e dos Negócios Estrangeiros. Não foi amigo de Marcelo, mas terá contribuído, como role model, para ele solidificar a ideia da importância de ser professor universitário e acumular “capital cultural” para alcançar o poder.
  • 15
    . Ao contrário de Marcelo, Pedro era filho de uma família empresarial tradicional. Com dezoito anos já se correspondia com António Sardinha e frequentava os jornais A Monarquia e A Época, não por acaso também frequentados por Marcelo. Foi o primeiro dos Integralistas a colaborar com Salazar no ministério das Finanças e a desenvolver uma carreira política no Estado Novo, que se cruza com a de Marcelo, a começar pelo seu primeiro cargo no governo, não aceito por Marcelo e ocupado por Pedro.
  • 16
    . Marcelo assume: “Na minha juventude assisti à experiência democrática da i República e fiquei elucidado sobre a capacidade portuguesa para praticar esses regimes” (Prieto, 1992Prieto, Maria, H. (1992), A porta de marfim. Lisboa, Verbo., p. 97).
  • 17
    . Político, ensaísta e fundador do il. Morreu jovem (37), mas como doutrinador e comunicador político das ideias do il exerceu forte influência nos jovens reacionários. O il foi um movimento elitista e nacionalista, política e ideologicamente contrarrevolucionário, antirrepublicano, antiliberal e tradicionalista. Pretendia acabar com a decadência republicana em Portugal através da restauração de uma ordem monárquica tradicionalista, orgânica e municipalista. Para uma visão geral e sobre a influência do il no Brasil, ver: Silva, Gonçalves & Parada, 2010Silva, Giselda Brito; Gonçalves, Leandro Pereira & Parada, Maurício B. Alvarez (orgs.). (2010), Histórias da política autoritária: Integralismos, Nacional-Sindicalismo, Nazismo, Fascismos. Recife, ufrpe..
  • 18
    . Foi ainda professor do Instituto do Serviço Social e, entre 1942 e 1945, no Instituto Superior Técnico. Ser professor foi importante na acumulação de capital social e significou um passaporte para várias ligações e missões políticas, como comprova o exemplo do cruzeiro às Colônias.
  • 19
    . Aqui podemos relacionar com o que Bourdieu chama de “capital científico” uma especial espécie de capital social assente na “autoridade científica” […] e na sua visibilidade e reconhecimento (Bourdieu, 1983, pp. 127-132).
  • 20
    . Este governo reflete já uma acomodação pragmática de Salazar a tendências diversas dentro do Estado Novo, nomeadamente de ministros mais ligados ao “grupo de Lisboa”, liderado por Pedro e Marcelo, e ao “grupo de Coimbra”, liderado por Santos Costa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2020
  • Aceito
    26 Set 2020
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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