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Apresentação Legitimidades, conhecimento e dominação política

Legitimacies, knowledge and political domination

Resumo

O texto apresenta o dossiê “Legitimação e legitimidades”, que teve como objetivo contribuir para os debates contemporâneos sobre legitimidade e para a reflexão sobre os problemas teórico-metodológicos e empíricos que permanecem em debate no estudo desse tema. A partir de um panorama das principais formulações sociológicas da questão da legitimidade, discutem-se os textos que compõem o dossiê, organizados a partir de dois temas principais: (i) a legitimidade do conhecimento científico e acadêmico na contemporaneidade; e (ii) as relações entre legitimidade, dominação e obediência.

Palavras-chave:
Legitimidade; Legitimação; Dominação; Obediência

Abstract

The text presents the special edition “Legitimation and legitimacies” which aimed to contribute to the contemporary debates on legitimacy and to the theoretical, methodological and empirical issues still under debate in the study of this topic. From an overview of the main sociological developments of the discussion on legitimacy, we discuss the articles of the special edition, organized around two main themes: (i) the legitimacy of scientific and academic knowledge in contemporary society; and (ii) the relationships between legitimacy, domination and obedience.

Keywords:
Legitimacy; Legitimation; Domination; Obedience

A legitimidade das instituições sociais e políticas, de autoridades públicas e civis, bem como dos sistemas de crenças e valores, é questão presente na história do pensamento ocidental desde a antiguidade. Essa preocupação intelectual com suas implicações políticas firmou-se com a emergência da modernidade, no último quartel do século xviii, em grande medida devido ao desafio de pensar a natureza mesma das organizações sociais internamente diferenciadas, cada vez mais complexas, dotadas de subsistemas que se articulam entre si na composição da cosmologia social. Objeto de interesse da filosofia política, converteu-se em matéria de investigação teórica, conceitual e empírica nas nascentes ciências sociais.

Desde o nascimento da sociologia, em meados do século xix, já se perguntava como uma sociedade - a moderna - fundada na divisão social do trabalho e no individualismo lograva manter um projeto de vida em comum. Conhecemos as respostas da sociologia clássica e de seus desdobramentos na sociologia pós 1920, ano da morte de Max Weber. Certamente, falar em legitimidade na sociologia clássica significa falar em processos de integração social, sedimentados por diferentes universos simbólicos, como também em processos de dominação social e política.

A partir dessas perspectivas introdutórias, diferentes tendências da sociologia contemporânea procuraram criticar o alcance das teorias clássicas e sua pertinência para explicar as dinâmicas de legitimidade e legitimação, sobretudo nas primeiras décadas do século xx, em face das profundas transformações impulsionadas pela industrialização, pela urbanização, pela incorporação da ciência e tecnologia à produção, pelas inovações introduzidas nos processos de comunicação social e política. Ao mesmo tempo, as discussões contemporâneas sobre legitimidade permanecem motivadas pelo problema clássico do reconhecimento das diferentes formas de autoridade e das condições sociais que tornam justificável a distribuição desigual de poder entre grupos e indivíduos.

A reflexão sobre legitimidade continua extremamente atual e ajuda a compreender muitos dos desafios e problemas públicos enfrentados pelas sociedades contemporâneas. Debates recentes sobre a possível crise da democracia em diferentes contextos nacionais analisam os efeitos do acirramento do conflito público entre múltiplas ordens valorativas e do processo de polarização política para a legitimidade das instituições democráticas. De maneira semelhante, as atuais disputas entre diferentes sistemas de conhecimento na esfera pública podem ser relacionadas a possíveis crises de legitimidade que incidem na razão e na ciência. Especificamente no caso brasileiro, o problema permanente de controle da violência interpessoal e estatal na administração de conflitos sociais tem sido vinculado por muitos pesquisadores à falta de confiança e legitimidade das instituições do sistema de justiça (Adorno, 2002Adorno, Sérgio. (2002), “Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea”. In: Miceli, Sérgio (org.). O que ler nas ciências sociais brasileira. São Paulo, Anpocs, Editora Sumaré; Brasília, Capes.; Adorno & Pasinato, 2007; Adorno & Dias, 2014; Sinhoretto, 2010Sinhoretto, Jacqueline. (2010), “Campo estatal de administração de conflitos: múltiplas intensidades da justiça”. Anuário Antropológico, 35 (2): 109-123. Disponível em https://journals.openedition.org/aa/930, consultado em 01/12/2021.
https://journals.openedition.org/aa/930...
, 2014).

A organização do dossiê Legitimação e legitimidades, publicado na presente edição da Tempo Social, teve como objetivo contribuir para os debates contemporâneos sobre legitimidade e para a reflexão sobre os problemas teórico-metodológicos e empíricos que permanecem em debate no estudo desse tema. O dossiê é composto por seis artigos e uma entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro, que se organizam em torno de duas questões fundamentais: (i) a legitimidade do conhecimento científico e acadêmico na contemporaneidade; e (ii) as relações entre legitimidade, dominação e obediência. São questões que permitem fazer avançar a compreensão de aspectos fundamentais dos estudos da legitimidade: os conflitos e as disputas de legitimidade e a dinâmica entre consentimento e coerção nas relações de dominação. O objetivo do dossiê é também aprofundar a reflexão sobre as questões centrais do programa de pesquisa que vem sendo desenvolvido desde 2013 pelo Núcleo de Estudos da Violência no âmbito do projeto Cepid-Fapesp “Construindo a democracia no cotidiano: direitos humanos, violência e confiança institucional”1 1 . Trata-se de um projeto amplo e interdisciplinar que tem produzido uma grande quantidade de dados obtidos por meio de surveys, entrevistas qualitativas e análises de discurso com resultados que apontam a relevância do modo de exercício da autoridade para o funcionamento das instituições democráticas. O projeto investiga o tema da legitimidade a partir das relações que os cidadãos estabelecem com as autoridades policiais e judiciárias e contempla diferentes perspectivas: o processo de formação de jovens no que tange às figuras de autoridade e ao respeito às leis e regras; a percepção dos cidadãos sobre as leis e autoridades às quais estão submetidos; e a percepção daqueles que atuam na aplicação da lei (como policiais e juízes), a respeito de seu papel e autoridade. Nessas pesquisas, tem-se argumentado a respeito da importância que a confiança nas autoridades e o reconhecimento de sua legitimidade desempenham no sentido de obter e garantir a adesão voluntária dos cidadãos e promover o sentimento de dever de obedecer a despeito de possíveis ganhos pessoais. As pesquisas contemplam ainda o processo de formação da legitimidade das instituições a partir de análises da construção da opinião pública e dos discursos sobre punição e direitos humanos. Processo Fapesp n. 2013/07923-7. . Apresentamos a seguir um breve panorama de algumas das principais formulações sociológicas do problema da legitimidade e, em seguida, discutiremos os artigos do dossiê.

Reflexões sociológicas sobre legitimidade

A sociologia, em suas diferentes vertentes, manteve-se interessada pela questão da legitimidade ao longo de sua história. Esse interesse permanente parece indicar que a legitimidade tem sido formulada como um aspecto fundamental das diferentes formas de organização social. De maneira muito geral, podemos dizer que esse termo se refere ao processo coletivo de apoio e aceitação de algum aspecto da vida social como válido por uma audiência (Johnson et al., 2006Johnson, Cathryn; Dowd, Timothy J. & Ridgeway, Cecilia L. (2006), “Legitimacy as a social process”. Annual Review of Sociology, 32 (1): 53-78.). Max Weber (2015Weber, Max. (2015), Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4 ed. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; revisão técnica de Gabriel Cohn. Brasília, Editora Universidade de Brasília, vol. i., pp. 19-20), em suas formulações clássicas a respeito da ordem legítima, remete o conceito à ideia de obrigatoriedade, ao sentimento de dever ou ao caráter modelar das ordens na orientação das ações. Em sua sociologia geral da ação social, a vigência de uma ordem legítima descreveria a situação em que a ação social não é exclusivamente condicionada pelo costume ou por interesses, mas também pelo “sentimento de dever”. A vigência de uma ordem não significaria que todas as ações serão o resultado da obediência às máximas daquela ordem, mas somente que existe a probabilidade de que a ação efetivamente se oriente por ela. Em Weber, portanto, a legitimidade descreveria não somente a aceitação dos sentidos de uma ordem, mas também a orientação efetiva da ação por esses sentidos, ainda que as ações não precisem ser exclusivamente orientadas por uma única ordem e assumindo que a orientação da ação pelos sentidos de uma ordem não significa necessariamente obediência.

A centralidade que a legitimidade assume na sociologia weberiana se deve ao seu interesse nos fatores de estabilização e persistência das relações sociais e formas de ordenação social (Cohn, 2003Cohn, Gabriel. (2003), Crítica e resignação. Max Weber e a teoria social. São Paulo, Martins Fontes., p. 90). Para Weber, a ordenação da conduta é mais estável quando os princípios de uma ordem são tomados como obrigatórios pelos atores submetidos a ela. De maneira semelhante, a legitimidade garantiria formas mais estáveis e persistentes de dominação. A subsistência da dominação, afirma Weber (p. 197), depende da “autojustificação” do poder a partir dos princípios últimos em que se apoia a validade dessa dominação, a sua legitimidade.

As noções de legitimidade ou de legitimação permaneceram sendo mobilizadas na sociologia para explicar os processos de preservação e persistência de ordens sociais ao longo do século xx. Autores como Talcott Parsons (2005Parsons, Talcott. ([1991] 2005), The social system. Londres, Routledge.) e Peter Berger e Thomas Luckmann (2008Berger, Peter & Luckmann, Thomas. (2008), A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28 ed. Petrópolis, Vozes.) mobilizam a noção como fator fundamental da integração e estabilidade social. Ainda que Parsons não tenha desenvolvido uma formulação teórica própria para o conceito de legitimidade, na solução que o autor constrói para o chamado “problema hobbesiano da ordem”, a legitimidade desempenha um papel central. Um dos fatores que garantiriam a existência da ordem social e a coordenação da ação seria a existência de valores compartilhados que legitimam certos objetivos e os meios aceitáveis para atingi-los (Parsons, 2005, p. 80). O sistema cultural formado por esses valores compartilhados seria ancorado nos sistemas de ação, por um lado, pelo processo de internalização no sistema de personalidade e, por outro, pelo processo de institucionalização no sistema social. Nesse sentido, para Parsons, a legitimidade seria um aspecto importante da integração dos elementos motivacionais e culturais/normativos da ação.

O papel do processo de legitimação para a manutenção e transmissão de uma ordem social será desenvolvido de maneira específica na sociologia do conhecimento de Berger e Luckmann (2008Berger, Peter & Luckmann, Thomas. (2008), A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28 ed. Petrópolis, Vozes.). Na formulação dos autores, a legitimação faria parte dos processos fundamentais de construção social da sociedade como realidade objetiva. Ligada ao processo de institucionalização em que ações habituais se encontram reciprocamente tipificadas, a legitimação permitiria justificar e explicar o mundo institucionalizado transmitido como tradição entre as gerações. As novas gerações, que não participaram da construção do significado original das instituições, aderem à ordem institucional mediante “fórmulas legitimadoras” (Berger & Luckmann, 2008, p. 88). A legitimação seria, assim, um processo de “objetivação de segunda ordem”, já que consiste em tornar “objetivamente acessíveis e subjetivamente plausíveis as objetivações de primeira ordem que foram institucionalizadas” (Berger & Luckmann, 2008, p. 127). A legitimação teria tanto um componente cognitivo ao atribuir validade aos significados da ordem institucional, quanto um componente normativo, pois justifica essa ordem e seus imperativos práticos.

Outro autor que também desenvolveu a questão da preservação e persistência da ordem social a partir do problema da legitimidade é Pierre Bourdieu (2001Bourdieu, Pierre. (2001), As meditações pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.; 2012). Bourdieu, no entanto, segue a proposta weberiana de pensar a legitimidade como fator de manutenção da dominação social. Para o autor, a dominação, mesmo quando repousa sobre a força, sempre possui uma dimensão simbólica e, portanto, os atos de submissão e obediência são sempre atos de reconhecimento. Bourdieu (2001, p. 229) analisa o processo de legitimação como um dos mecanismos fundamentais de manutenção da ordem estabelecida ao proporcionar a adesão dos dominados ao mundo “tal como ele é”. Na sua reflexão sobre a dominação, Bourdieu elabora a centralidade das formas de reconhecimento como fator fundamental da naturalização e apagamento da arbitrariedade que funda a fronteira mágica entre dominantes e dominados e sustenta o ponto de vista dominante como universal. Com o conceito de violência simbólica, o autor (2012, p. 49) se propõe a oferecer uma alternativa à oposição entre pressão e consentimento como fundamentos da dominação. Argumenta que para pensar a dominação é preciso superar as alternativas da pressão (pela força) e do consentimento (às razões), da coerção mecânica e da submissão voluntária, livre, deliberada ou até mesmo calculada. Isso porque a dominação simbólica exerce seu efeito não pela lógica da consciência, mas dos esquemas de percepção, avaliação e ação que constituem o habitus.

Para além da discussão sobre os processos mais amplos de preservação e reprodução social, a discussão sobre a legitimidade da dominação social de Weber foi retomada por autores que, em diálogo com diferentes tradições da teoria política, buscam refletir normativamente sobre a legitimidade como mecanismo que limita internamente o exercício do poder. A noção weberiana de que a dominação legítima é aquela em que a obediência do dominado se motiva pelo sentimento de dever e pela crença na validade da dominação é vinculada por esses autores à discussão sobre as condições que tornam as diferenças de poder justificáveis e aceitáveis. De acordo com Jean-Marc Coicaud (2004Coicaud, Jean-Marc. (2004), Legitimacy and politics: a contribution to the study of political right and political responsibility. Cambridge, Cambridge University Press., p. 10), “legitimidade é o reconhecimento do direito de governar. Nesse sentido, a noção oferece uma solução para o problema político fundamental, que consiste em justificar simultaneamente o poder a e a obediência”. O autor defende que, para o direito de governar ser reconhecido, é fundamental que o comando político seja exercido dentro dos limites dados pelos elementos que justificam a distribuição desigual de poder.

Em direção semelhante, David Beetham (1991Beetham, David. (1991), The legitimation of power. Nova York, Macmillan.) também argumenta que o poder legítimo é aquele que é limitado pelos princípios e regras nos quais está fundamentado. Para o autor, o poder legítimo seria aquele adquirido e exercido de acordo com regras justificáveis por crenças compartilhadas. A manutenção da legitimidade dependeria, assim, de os poderosos respeitarem os limites intrínsecos estabelecidos pelos princípios nos quais o poder se sustenta. O autor busca definir os fatores que tornam um poder legítimo e fornecem o fundamento da obrigação de obedecer aos que detêm o poder: i) validade legal da aquisição e exercício do poder; ii) as regras podem ser justificadas com referência às crenças compartilhadas por dominantes e dominados; iii) evidência de consentimento dos subordinados àquela relação de poder específica. Esses fatores podem ser pensados como critérios de legitimidade, permitindo avaliar e definir o que configura relações de poder não legítimas e considerar formas de expressão de deslegitimação por parte dos subordinados.

Ainda no que diz respeito às reflexões sobre as relações entre legitimidade e relações de poder, Niklas Luhmann (1980Luhmann, Niklas. (1980), Legitimação pelo procedimento. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.; 1987) propõe que o processo de diferenciação funcional que caracteriza as sociedades modernas teria transformado profundamente o problema da legitimidade do poder político, relacionado com a questão de quem está autorizado a falar em nome da sociedade, de quem pode, como parte do todo, representar o todo. Quando ocorre a diferenciação funcional de um sistema, este continua operando como uma unidade em relação ao seu ambiente, mas os subsistemas em seu interior não podem representar a unidade do sistema como um todo. Assim, sob condições modernas, em sociedades funcionalmente diferenciadas, não existe legitimação “de cima”, “de fora” ou a partir de valores básicos ou consenso racional. Nesse contexto a legitimidade seria sempre autolegitimação.

Em outro texto, Luhmann (1980Luhmann, Niklas. (1980), Legitimação pelo procedimento. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.) propõe que, em contextos de grande diferenciação social, como o moderno, o procedimento seria a única fonte viável de legitimidade do poder político. Outras fontes, como a coerção e o consenso, não permitiriam explicar a legitimidade em tais contextos. Luhmann define legitimidade como “uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância” (Luhmann, 1980, p. 30), e o problema sociológico relevante para a sua análise é como é possível que a legitimidade seja generalizada a ponto de fazer com que decisões sejam aceitas mesmo na ausência de um motivo particular, que vá além do próprio procedimento. Luhmann argumenta que, em um sistema social complexo, a legitimação do poder político não pode derivar de uma moral particular; é preciso garantir que as decisões obrigatórias se tornem premissas do comportamento, sem que seja necessário especificar quais decisões serão efetivamente tomadas. Nesse contexto, isso só se torna viável graças à legitimação pelo procedimento, que independe do mérito das decisões particulares e de convicções baseadas em motivos individuais.

Cabe mencionar também as reflexões desenvolvidas por Jürgen Habermas (1996Habermas, Jürgen. (1996), Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge, The mit Press.) sobre direito e democracia e seus desdobramentos para o conceito de legitimidade. Assim como Luhmann, Habermas discute a impossibilidade de basear a legitimidade da lei em consensos morais anteriores ao discurso público em sociedades complexas e pluralistas. A lei em contextos modernos sempre seria constituída por uma tensão entre facticidade e validade, entre a sua administração e aplicação concreta e a reivindicação do seu reconhecimento. Diferente da validade de facto, a legitimidade remeteria à validade normativa da lei, ao processo legislativo racional que lhe deu origem. Habermas propõe ancorar a legitimidade da lei no princípio do discurso. Para o autor, a única fonte possível de legitimidade seria o procedimento democrático de produção das leis que assegura a autonomia, pública e privada, dos sujeitos legais. Os procedimentos democráticos seriam dotados de força legitimadora, uma vez que “tornam possível que questões e contribuições, informações e razões flutuem livremente; garantem o caráter discursivo da formação da vontade política e, assim, sustentam a premissa falibilista de que os resultados de procedimentos adequados são mais ou menos razoáveis” (Habermas, 1996, p. 448, tradução nossa).

As discussões desenvolvidas por Luhmann e por Habermas levantam uma questão fundamental na compreensão da legitimidade como atributo ou processo constitutivo das diferentes formas de organização social. Se, por um lado, podemos dizer que a legitimidade opera como fator de estabilização e permanência das formas de ordenação social, em contextos marcados pela convivência entre diferentes ordens valorativas e pela racionalização e especialização das esferas de valor (Cf. Weber, 1982Weber, Max. ([1970] 1982), Ciência e política: duas vocações. Tradução de Leonidas Hegenber e Octany Silveira Mota. São Paulo, Cultrix.), torna-se necessário considerar as dinâmicas de legitimação internas e externas às diferentes esferas e as possíveis disputas entre ordens valorativas. Esse é o tema do primeiro bloco de artigos que compõe este dossiê. Sob diferentes pontos de vista, os autores analisam a questão da legitimidade do conhecimento científico e acadêmico no contexto contemporâneo.

O segundo grande tema abordado pelos artigos do dossiê é a dinâmica entre consentimento e coerção nas relações de dominação legítima. Conforme demonstrado no panorama das construções sociológicas do problema da legitimidade, a obediência consentida é um dos elementos centrais dos debates sobre o conceito. Em especial no caso dos autores que analisam a legitimidade como fator que limita o exercício do poder, estabelece-se uma oposição entre as relações de poder pautadas na força e na coerção e aquelas pautadas no consentimento e na obediência motivada. De diferentes maneiras, os três artigos do segundo bloco do dossiê problematizam e complexificam essa oposição.

A entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro sobre a atualidade do conceito de “autoritarismo socialmente implantado” também contribui para o debate sobre coerção e legitimidade. Esse conceito, construído durante o processo de transição democrática e em diálogo com o debate acadêmico da Ciência Política da época, foi central para introduzir nas Ciências Sociais brasileiras a discussão sobre violência e democracia. Na entrevista, Paulo Sérgio Pinheiro discute como a democracia brasileira é, até hoje, marcada por uma continuidade autoritária sustentada socialmente.

Com essa breve revisão e com o dossiê, não pretendemos dar conta de todas as questões implicadas no tema da legitimidade e de todos os desenvolvimentos teóricos do conceito. Como não se pode falar de uma legitimidade geral, mas de legitimidades (que possuem ciclos, temporalidades e crises singulares dependendo dos subsistemas sociais, por exemplo), optamos por focalizar duas “ordens” de legitimidades com suas questões próprias: a legitimidade da ciência contemporânea e os problemas de legitimidade do sistema de justiça criminal.

Legitimidade e conhecimento científico

No artigo “Três lugares para a crise de legitimidade da ciência”, Renan Springer de Freitas analisa a questão da crise de legitimidade da ciência ao longo da história e propõe parâmetros que poderiam ser utilizados para a identificação de tal fenômeno. De acordo com o autor, haveria três versões dessa crise, mas somente no caso da situação identificada durante a República de Weimar seria possível afirmar que existiu concretamente um cenário em que a legitimidade da ciência entrou em crise. Na construção desse argumento, há a proposta de que um conjunto de condições particulares precisam estar presentes para que o diagnóstico a respeito da crise de legitimidade faça sentido. Seria preciso existir um ambiente de hostilidade aberta e generalizada à ciência e que mobilize a comunidade científica a reformular e rever seus fundamentos.

As três versões analisadas no artigo envolveriam dois “lugares imaginários” criados por filósofos que formulam críticas e insatisfações com o funcionamento da ciência a partir de seus sistemas filosóficos. A terceira versão, o caso da situação histórica vivenciada pelos cientistas durante a República de Weimar, seria o único caso real em que é possível dizer que houve uma crise de legitimidade, pois a comunidade científica da época teria se sentido obrigada a rever e reformular os fundamentos do conhecimento diante de um clima de hostilidade amplo e generalizado na sociedade.

É interessante observar que, na discussão desenvolvida por Renan Springer, as possíveis tensões entre os parâmetros internos e externos de validação e reconhecimento do conhecimento científico ficam evidentes. Conforme o autor elabora no início do artigo, o desenvolvimento da ciência contemporânea torna os seus achados cada vez mais complexos e “difíceis”, impossibilitando a sua aproximação do conhecimento comum. Não é possível que o conhecimento especializado da ciência seja reconhecido pelo público externo pelo acesso direto aos seus parâmetros internos de validação. Ainda que, como o artigo busca argumentar, só seja possível falar em crise de legitimidade da ciência quando os próprios cientistas passam a rever e questionar as bases e os fundamentos da produção de conhecimento, o modo como a ciência é recebida externamente ou ao menos o modo como se relaciona com o ambiente externo (no caso da República de Weimar, a “crise” generalizada) é decisivo para a sustentação de seu funcionamento interno. Um clima social de hostilidade generalizada faz a ciência perder o crédito e o reconhecimento de sua autoridade, ou ao menos, para falar nos termos de Luhmann, a disposição geral em aceitar decisões baseadas no conhecimento científico. Essa falta de reconhecimento impede que a ciência continue se desenvolvendo a partir de seus parâmetros internos, especializados.

O artigo de Teresa Caldeira, “Desigualdade e legitimidade: Problematizando a produção de conhecimento social”, a respeito das condiçoes de produção do conhecimento nas Ciências Sociais e, mais especificamente, na Antropologia, desenha um cenário que, observado do ponto de vista proposto no artigo de Renan Springer, poderia ser entendido como uma crise de legitimidade. O artigo analisa dilemas e conflitos contemporâneos envolvidos na produção de pesquisas em ciências sociais em contextos de extrema desigualdade. Partindo de uma discussão sobre o papel das relações de poder na produção de conhecimento, a autora analisa os processos recentes de transformação da reflexão antropológica.

O artigo recupera o debate desenvolvido na antropologia de maneira mais acentuada a partir dos anos 1980 sobre a questão da autoria e da construção da autoridade etnográfica e, com base em relatos de suas experiências de pesquisa ao longo de mais de quarenta anos, demonstra os impactos das mudanças atuais nas dinâmicas de poder que informam a circulação de discursos para a construção e sustentação da legitimidade do saber antropológico. A autora demonstra que, apesar dos debates teórico-metodológicos sobre o trabalho de campo e sobre as estratégias capazes de tornar mais igualitária a produção de conhecimento, os desafios permanecem. Especialmente na reflexão final sobre um caso recente vivenciado pela autora com um conjunto de pesquisadores em que os conflitos sobre a autoria se tornaram proeminentes na dinâmica de trabalho, Teresa Caldeira propõe que as questões de poder e autoria, os limites e possibilidades da pesquisa, não podem ser resolvidas de antemão e precisam ser negociadas e acordadas entre os participantes da pesquisa.

Caldeira descreve um cenário em que a Antropologia tem buscado reinventar seus modos de fazer em resposta a uma possível crise de legitimidade ou ao menos à intensificação dos questionamentos da legitimidade do conhecimento antropológico. Esse processo, no entanto, não é resultado de um clima externo de hostilidade generalizada e aberta à antropologia, mas também (e talvez principalmente) de debates e críticas internas ao campo que, por sua vez, ajudam a formar as críticas externas. Os debates a respeito do lugar de poder como fundamento da autoridade do antropólogo se combinam com os processos crescentes de reivindicação do direto de fala e de recusa à fala por grupos subalternizados que ocuparam historicamente o lugar de objetos de conhecimento, tornando mais frequentes e significativos os questionamentos da legitimidade do saber antropológico. Como sustenta Caldeira, o antropólogo ainda desfruta em grande medida da posição privilegiada de fala, mas a problematização interna e externa da existência de critérios que legitimam a separação entre o saber especializado, antropológico e as formas locais do saber prático coloca problemas e desafios.

O terceiro artigo que compõe esse bloco do dossiê é “A busca por legitimação na cultura homeopática”, de Lenin Bicudo Bárbara. Diferente dos artigos de Freitas e Caldeira, esse texto não trata propriamente da legitimidade da ciência ou do saber acadêmico, mas sim do processo de legitimação de um saber como ciência. A partir de uma pesquisa documental em periódicos de homeopatia brasileiros, o autor discute diferentes estratégias de legitimação adotadas por representantes da homeopatia para proteger a doutrina das críticas da comunidade científica, deflagradas, por exemplo, no artigo da The Lancet. De acordo com o autor, as estratégias analisadas - a cientificista e a culturalista - refletem disputas internas à comunidade da homeopatia. Esse conflito entre estratégias antagônicas de adeptos das abordagens cientificista e culturalista seria, na verdade, um efeito secundário da luta pelo reconhecimento acadêmico da doutrina homeopática. Ao diversificar os argumentos e linguagens conceituais, esse processo teria permitido a criação de alianças da homeopatia com diferentes círculos sociais e, com isso, a preservação da legitimidade pública da doutrina apesar da falta de reconhecimento interno à comunidade científica.

Retomando a questão da dinâmica entre “dentro” e “fora” na legitimação de campos especializados de saber, o caso analisado por Lenin Bárbara traz questões interessantes para a reflexão. Novamente fica evidente a relação entre o reconhecimento público e o reconhecimento especializado. Neste caso, as estratégias adotadas pelos representantes das diferentes abordagens da homeopatia buscam o reconhecimento pelo público externo de seu status científico ou, ao menos, como especialidade médica válida como meio de resistir contra a ausência de reconhecimento a partir de critérios internos ao campo. De alguma maneira, a ciência é colocada como fator de legitimação, como critério de validade da homeopatia enquanto especialidade médica, e, com isso, a homeopatia reafirma a legitimidade da ciência como tipo de saber que possui crédito.

Legitimidade, dominação e obediência

O segundo bloco de artigos que compõem o dossiê aborda, de diferentes maneiras, a questão da dinâmica entre coerção e consentimento em relações de dominação legítima. Na análise das relações e da distribuição desigual de poder na sociedade, a legitimidade é mobilizada para compreender a situação em que a obediência não é resultado do medo da coerção, mas motivada por um sentimento de dever. Em sua tipologia das formas de dominação social, Weber (1999Weber, Max. (1999), Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; revisão técnica de Gabriel Cohn. Brasília, Editora Universidade de Brasília, vol. ii., 2015) descreve os tipos de “razões internas que justificam a dominação”, ou “princípios últimos” em que se apoia a validade de uma dominação.

Essa especificidade das relações de dominação mediadas pela legitimidade é o que autores como Beetham e Coicaud utilizam para sustentar a oposição entre relações de poder que se exercem pelo uso da violência e da coerção e o poder que é exercido a partir de um conjunto de valores compartilhados que o justificam. Essa oposição será também formulada por Tom Tyler (1990Tyler Tom R. (1990), Why people obey the law: Procedural justice, legitimacy, and compliance. New Haven, ct, Yale University., 2004), autor que influenciou fortemente a formação do campo de estudos sobre legitimidade na criminologia, discutido em dois dos artigos do dossiê. Em oposição à perspectiva instrumental de controle social - que afirma que o comportamento de respeito às leis das pessoas é determinado principalmente pela certeza e severidade da punição -, o autor argumenta que o respeito às leis pode ser influenciado pelo compromisso normativo das pessoas com a obediência. Independente do risco de punição, se obedecer à lei é visto como o comportamento que as pessoas devem ter, o respeito às leis seria voluntário. De acordo com Tyler, uma forma de atingir esse compromisso normativo seria através da legitimidade, definida por ele como o sentimento de que a autoridade aplicando a lei tem o direito de ditar o comportamento.

Os três artigos que compõem esse bloco discutem e complexificam essa associação entre obediência voluntária e legitimidade. Em “Garantias externas e fundamentos internos: dimensões da legitimidade em Max Weber”, Carlos Eduardo Sell reconstrói o conceito weberiano de legitimidade. A partir das diferentes dimensões analíticas do conceito de legitimidade na obra de Weber, o autor demonstra de que maneira esse conceito permite estabelecer ligações entre o aspecto estrutural e o aspecto simbólico da dominação.

Em diálogo com outras interpretações da sociologia política weberiana, Carlos Sell sustenta que as dimensões simbólicas e estrutural sempre foram tratadas como aspectos codeterminantes da legitimidade, ou seja, possuem o mesmo peso analítico na definição das formas de dominação. Já para a análise da relação entre essas duas dimensões, o autor recorre à sociologia geral de Weber, mais especificamente, à diferença entre garantias externas e fundamentos internos da legitimidade. Primeiramente, Sell demonstra que a ordem legítima se distinguiria de outras ordens sociais vigentes pelo componente normativo e, em seguida, analisa as justificativas internas em que se apoiam ordens legítimas e os tipos de garantias externas desenvolvidas por Weber (a convenção e o direito). A vigência empírica é, assim, diferenciada da validade normativa. Sell sustenta que o nexo entre a dimensão estrutural e a dimensão simbólica das formas de dominação pode ser compreendido pela distinção entre reprodução e constituição das ordens sociais. Os tipos de fundamentos da legitimidade desenvolvidos por Weber estariam relacionados com a constituição das ordens sociais, enquanto que as garantias externas seriam aquilo que permite a reprodução dessas mesmas ordens.

Além da importância destacada das estruturas organizacionais na definição da dominação legítima, a discussão do artigo de Carlos Sell possibilita também observar que a relação entre coerção e consentimento é mais complexa na formulação teórica weberiana. Em Weber, não há oposição entre coerção e legitimidade. A legitimidade de uma ordem pode estar garantida tanto internamente por motivações subjetivas, quanto externamente pela expectativa de consequências externas como a reprovação social ou a coação.

No artigo “Legitimidade e obediência: diálogos da criminologia com a teoria sociológica”, Ariadne Natal, Frederico Castelo Branco Teixeira e Marcos César Alvarez discutem diretamente a relação entre obediência voluntária e legitimidade. O artigo traz uma revisão crítica da abordagem teórico-metodológica adotada nos estudos empíricos sobre legitimidade desenvolvidos recentemente no campo da criminologia a partir da reconstrução dos desenvolvimentos do conceito de legitimidade na teoria social. Mais especificamente, os autores recuperam as formulações teóricas clássicas de Weber e os desenvolvimentos críticos formulados por autores como Coicaud, Beetham, Tyler e Bottoms e Tankebe e problematizam o modo como o conceito de legitimidade tem sido operacionalizado nas pesquisas empíricas sobre a legitimidade de instituições do sistema de justiça criminal.

A problematização proposta no artigo dos modos de mensuração empírica da legitimidade de autoridades policiais e judiciais parte justamente da discussão sobre a oposição entre obediência voluntária e obediência por coerção. A discussão é feita pela recuperação da formulação weberiana. Para Weber, nos casos particulares, a obediência pode ser motivada por oportunidade, interesse próprio ou somente aceita como inevitável pelo indivíduo. A legitimidade de uma dominação se refere somente à probabilidade de que a obediência seja motivada também (entre outros motivos possíveis) pela crença em sua legitimidade. O decisivo é que a pretensão à legitimidade seja considerada válida.

O artigo de Thiago Oliveira e Jonathan Jackson, “Legitimacy, trust and legal cynicism: A review of concepts”, também desenvolvido em diálogo com a literatura criminológica recente sobre legitimidade das instituições do sistema de justiça criminal, traz elementos que permitem complexificar a mensuração da legitimidade. O texto desenvolve uma discussão teórica sobre os conceitos de legitimidade, confiança e cinismo legal. O ponto de partida é a chamada procedural justice theory (teoria da justiça procedimental), de acordo com a qual a qualidade do tratamento e da tomada de decisões nas interações entre cidadãos e os agentes públicos responsáveis pela aplicação da lei é relevante para as avaliações de legitimidade pela população. Essa teoria é relacionada pelos autores com as discussões desenvolvidas na sociologia e criminologia sobre cinismo legal que tratam das atitudes negativas de indivíduos diante das leis e instituições de controle associadas aos atributos dos bairros e às interações com a polícia. O artigo conecta essas propostas com as noções de confiança e confiabilidade (trustworthiness) que traduziriam as expectativas (positivas ou negativas) que pessoas têm sobre a conduta da polícia. Os autores propõem que a confiabilidade pode ser associada ao processo de legitimação e a justiça procedimental pode ser considerada uma das dimensões da confiabilidade. Com essa abordagem, seria possível avaliar outros aspectos da conduta policial que podem estar vinculados às atitudes da população em relação à polícia e à lei, como os limites da autoridade policial e a justiça distributiva do policiamento. Esse desdobramento teórico permite considerar a formação de atitudes da população diante da polícia em contextos de desigualdade.

A proposta desenvolvida no artigo complexifica, assim, a operacionalização empírica do fenômeno da legitimidade ao incluir no esquema teórico os diversos tipos de fatores de legitimação que traduzem diferentes expectativas normativas sobre a polícia. O que a perspectiva da teoria da justiça procedimental ajuda a formular é um dos mecanismos fundamentais da formação dessas expectativas: a forma de tratamento concedido pelas autoridades públicas veicula mensagens a respeito da identidade, status e valor dos indivíduos na sociedade. A experiência contínua da desigualdade, o pertencimento a grupos que são excessivamente policiados e, ao mesmo tempo, insuficientemente protegidos pela polícia, forma de maneira importante as expectativas com relação ao comportamento da polícia.

Além dos seis artigos, o dossiê conta também com uma entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro, realizada por Marcos Alvarez, Pedro Benetti, Gustavo Higa e Roberta Novelo, sobre a atualidade do conceito de autoritarismo socialmente implantado, desenvolvido pelo autor há trinta anos, em um artigo de 1991. O artigo “Autoritarismo e transição” foi publicado no número 9 da Revista usp. O conceito “autoritarismo socialmente implantado” é uma das contribuições pioneiras de Paulo Sérgio Pinheiro para as reflexões sobre violência e democracia. Além de sua longa e importante atuação na defesa dos direitos humanos no Brasil e internacionalmente, o autor foi um dos principais responsáveis por introduzir a discussão sobre a violência e sobre as agências de controle do crime nas Ciências Sociais brasileiras. Na entrevista, Paulo Sérgio Pinheiro retoma os acontecimentos que marcaram a sua trajetória acadêmica no Brasil e na França e sua atuação na defesa dos Direitos Humanos ao longo dos anos. Comenta o processo de fundação do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (nev-usp), da Comissão Teotônio Vilella (ctv) e seu longo trabalho na Comissão de Direitos Humanos e no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.

A entrevista inclui também a história de construção do conceito de autoritarismo socialmente implantado e o debate acadêmico sobre a transição democrática no Brasil. Paulo Sérgio Pinheiro comenta como a discussão sobre a violência de maneira geral e sobre os aparelhos repressivos do estado, em particular, não era considerada nos debates acadêmicos sobre a transição. O conceito, construído em diálogo com Guilhermo O’Donell, propunha considerar uma continuidade autoritária do ponto de vista da sociedade. A proposta de Paulo Sergio Pinheiro envolvia direcionar o olhar não só para as instituições políticas, mas também para o social, e levar em conta a sustentação do autoritarismo fora dos períodos dos regimes autoritários. O autor destaca que, durante os períodos de governança democrática, permanece havendo um regime de exceção para as classes populares. Para Paulo Sérgio Pinheiro, o autoritarismo socialmente implantado continua sendo atualizado na realidade brasileira contemporânea, sustentado pelo racismo, pela desigualdade de renda e pela violência de Estado, e perdurando no machismo e na homofobia.

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    . Trata-se de um projeto amplo e interdisciplinar que tem produzido uma grande quantidade de dados obtidos por meio de surveys, entrevistas qualitativas e análises de discurso com resultados que apontam a relevância do modo de exercício da autoridade para o funcionamento das instituições democráticas. O projeto investiga o tema da legitimidade a partir das relações que os cidadãos estabelecem com as autoridades policiais e judiciárias e contempla diferentes perspectivas: o processo de formação de jovens no que tange às figuras de autoridade e ao respeito às leis e regras; a percepção dos cidadãos sobre as leis e autoridades às quais estão submetidos; e a percepção daqueles que atuam na aplicação da lei (como policiais e juízes), a respeito de seu papel e autoridade. Nessas pesquisas, tem-se argumentado a respeito da importância que a confiança nas autoridades e o reconhecimento de sua legitimidade desempenham no sentido de obter e garantir a adesão voluntária dos cidadãos e promover o sentimento de dever de obedecer a despeito de possíveis ganhos pessoais. As pesquisas contemplam ainda o processo de formação da legitimidade das instituições a partir de análises da construção da opinião pública e dos discursos sobre punição e direitos humanos. Processo Fapesp n. 2013/07923-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
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