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Uma travessia transatlântica: a primeira geração de mediadores e mediadoras da obra de Bourdieu no Brasil1 1 Pesquisa financiada pelo edital Capes/Print.

A transatlantic crossing: the first generation of mediators of Bourdieu’s work in Brazil

Resumo

O artigo apresenta os resultados de pesquisa sobre a participação brasileira na rede científica criada em torno de Pierre Bourdieu e seus(uas) colaboradores(as), especialmente Monique de Saint Martin, nos anos de 1970 e 1980, nos centros de pesquisa que ele dirigia. Pensando a circulação internacional das ideias a partir dos agentes, identificamos questões relativas aos três momentos decisivos da trajetória dos que introduziram a obra de Bourdieu no Brasil: 1) as suas formas de inserção na rede, considerando as suas relações anteriores, os vínculos institucionais, os capitais mobilizados; 2) os indícios do processo de socialização dos(as) brasileiros(as) no grupo de Bourdieu formado no CSE e CSEC nas décadas de 1970 e 1980; 3) o momento de dissolução da rede, que parece corresponder ao passo decisivo do envelhecimento social dos(as) brasileiros(as), quando adquiriram postos importantes no Brasil e desenvolveram seus próprios programas de pesquisa, ao tempo em que Bourdieu se tornava um “pensador global”. Utilizamos para tanto, a análise de trajetórias baseada nas cartas que ele trocou com esses agentes, catalogadas nos seus Arquivos, além de entrevistas com os/as participantes da rede, os currículos Lattes e depoimentos disponíveis em revistas e livros.

Palavras-chave:
Bourdieu; Brasil; Circulação internacional de ideias; Recepção; Trajetória

Abstract

The article presents the results of a research on Brazilian participation in the scientific network created around Pierre Bourdieu and his collaborators, especially Monique de Saint Martin, in the 1970s and 1980s, in the research centers he directed. Posing the problem of the international circulation of ideas from agents, we identified issues related to three decisive moments in the trajectory of those who introduced Bourdieu’s work in Brazil: 1) their forms of insertion in the network, considering their previous relationships, institutional bonds, the mobilized capitals; 2) evidence of the socialization process of Brazilians in Bourdieu’s group formed at the CSE and CSEC in the 1970s and 1980s; 3) the moment of dissolution of the network, which seems to correspond to the decisive step of the social aging of Brazilians, when they acquired important posts in Brazil and developed their own research programs, at the time when Bourdieu became a “global thinker”. For this, we used the analysis of trajectories based on the letters he exchanged with these agents cataloged in his Archives, as well as interviews with network participants, résumés and testimonies available in magazines and books.

Keywords:
Bourdieu; Brazil; International circulation of ideas; Reception; Trajectory

Apresentamos aqui os resultados de uma pesquisa sobre a participação brasileira em uma rede científica criada em torno de Pierre Bourdieu e seus colaboradores, especialmente Monique de Saint Martin, nos anos de 1970 e 1980. A primeira onda de difusão da sua obra no país se deu a partir de dois ramos principais: um em São Paulo, liderado por Sergio Miceli, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e outro no Rio de Janeiro, sob a batuta de Moacir Palmeira no Museu Nacional. De um lado, Miceli utilizou Bourdieu para consolidar a sociologia da cultura no Brasil e, através dele, José Carlos Durand, Maria Rita Loureiro, Maria Andrea Loyola, Arakcy e Leôncio Martins Rodrigues, Afranio Catani, Roberto Grun terminaram construindo laços com aquela rede científica. De outro lado, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, os trabalhos do sociólogo francês se tornaram referência fundamental para entender a reconversão das classes populares sobretudo no mundo rural. Naquele período, Moacir Palmeira e Lygia Sigaud orientaram uma série de pesquisas decisivas na formação de Afrânio Garcia Jr., Marie France Garcia-Parpet, José Sergio Leite Lopes, Maria Rosilene Alvim e Beatriz Heredia.

Partindo do problema da circulação internacional das ideias, destacaremos a maneira como os brasileiros e brasileiras se conectaram à rede formada em torno de Bourdieu no Centro de Sociologia Europeia (CSE) e no Centro de Sociologia da Educação e da Cultura (CSEC). Essa articulação foi alimentada pelo duplo interesse, o dele próprio, de tornar a sua sociologia “menos parisiense”, e o de jovens pesquisadores e pesquisadoras buscando respostas para problemas de seus campos de investigação no Brasil.

Buscando entender o que significou aquela circulação internacional do ponto de vista dos agentes, identificamos questões relativas aos três momentos decisivos da trajetória dos que introduziram a sua obra no país: 1) as suas formas de inserção na rede, considerando as suas relações anteriores, os vínculos institucionais, os capitais mobilizados; 2) os indícios do processo de socialização dos(as) brasileiros(as) no grupo de Bourdieu formado no CSE e CSEC nas décadas de 1970 e 1980, os custos e os meios de incorporação da “maneira bourdieusiana de colocar os problemas”; 3) o momento de dissolução da rede, que parece corresponder ao passo decisivo do envelhecimento social dos(as) brasileiros(as), quando adquiriram postos importantes no Brasil e desenvolveram seus próprios programas de pesquisa, ao tempo em que Bourdieu se tornava um “pensador global”.

Para responder a essas questões, analisamos as cartas que Bourdieu trocou com cientistas sociais brasileiros, disponíveis nos seus Arquivos, entrevistas realizadas com membros da rede, além de outras disponíveis em revistas, livros e sites, os currículos publicados na plataforma Lattes do CNPq, além das palestras do Colóquio “Bourdieu et les Amériques” ocorrido em junho de 2019.

A partir dos anos de 1970, Bourdieu liderou um programa de internacionalização de sua abordagem sociológica utilizando a revista Actes de la Recheche en Sciences Sociales e as estadias no CSE/CSEC como meios de construção de laços duráveis com profissionais que o procuravam em busca de uma formação. Ainda que não seja possível tratar aqui do lugar do Brasil nessa “Internacional Científica”, a importância desse intercâmbio é amplamente reconhecida (Sapiro et al., 2020SAPIRO, Gisèle; DENORD, François; DUVAL, Julien; HAUCHECORNE, Mathieu; HEILBRON, Johan & POUPEAU, Franck. (2020), Dictionnaire International Bourdieu. Paris, Editions CNRS.; Garcia Jr., 2020GARCIA JR., A. R. (2020), “Migrantes internacionais como caso limite de agentes sociais impelidos à reconversão: debates teóricos e lições de Abdelmalek Sayad no Brasil”. In: BÓGUS, Lúcia; BAPTISTA, Dulce; PEREIRA, José Carlos Alves & DIAS, Gustavo (orgs.). A contemporaneidade do pensamento de Abdelmalek Sayad. São Paulo, Educ – Editora da PUC-SP.). Ela pode ser atestada na precocidade da correspondência e no número de cartas trocadas com brasileiros e brasileiras registradas nos Arquivos. No período entre 1966 e 2001, de um total de 433 itens localizados concernentes à América Latina, 251 dizem respeito ao Brasil. Outro indício importante é a publicação de artigos de autores brasileiros em Actes, que demandava, desses autores, um ajuste à sua forma de colocar os problemas de investigação. São 16 artigos de autores brasileiros publicados entre 1975 e 2011, alguns em coautoria com pesquisadores e pesquisadoras franceses, como o de Francine Muel Dreyfus e Arakcy Rodrigues, e os de José Sergio Leite Lopes e Jean-Pierre Faguer ou Sylvain Maresca. Por fim, o ritmo e o volume de traduções das obras de Bourdieu também é um indicativo do lugar especial do Brasil nesse intercâmbio. Fazendo uma análise da publicação dos seus livros entre 1958 e 2008, Sapiro e Bustamante mostram a posição do Brasil entre os países centrais nesse processo, com 25 volumes traduzidos no período, enquanto Portugal, Argentina e México tiveram 9, 11 e 5 títulos respectivamente (2009, p. 12). A forte expansão do nosso sistema universitário dava sustentação a esses esforços de tradução, mas essa posição se explica menos pelo porte do nosso também frágil mercado editorial do que pela convergência de interesses que levou à formação da rede de colaboração que estamos analisando. Por isso, o que esses números refletem é também um conjunto de relações cuja história tentaremos esboçar brevemente, dividindo-a, para fins analíticos, em três momentos.

A conexão

Ao contrário de outros países da América Latina, o sistema de pós-graduação brasileiro se fortaleceu durante a Ditadura Militar instaurada em 1964, quando adquiriu condições institucionais e financeiras para o intercambio ampliado de pesquisadores com centros estrangeiros (Garcia Jr e Canedo, 2005GARCIA JR., Afrânio & CANEDO, Letícia. (2005), “Bolsistas brasileiros e doutorados internacionais”. In: MARTINS, Carlos Benedito. Diálogos entre o Brasil e a França - formação e cooperação acadêmica. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana.; Cury, 2004CURY, Carlos Roberto Jamil. (2004), “Qualificação Pós-Graduada no Exterior”. In ALMEIDA, Ana Maria; CANEDO, Letícia; GARCIA JR., Afrânio & BITTENCOURT, Agueda (orgs). Circulação Internacional e Formação Intelectual das Elites Brasileiras. Campinas, Ed. da Unicamp.; Souto Maior, 2005SOUTO MAIOR, Heraldo P. (2005), Para uma História da Sociologia em Pernambuco: A pós-graduação. Recife, Ed. Universitária da UFPE.). Além disso, a perseguição dos aparelhos de repressão aos estudantes estimulava a saída do país. Por fim, havia também um longo histórico de colaboração entre a França e o Brasil no domínio das ciências humanas. A rede franco-brasileira formada em torno de Bourdieu se inseria, portanto, em uma extensa trajetória de colaboração e tinha lugar em um contexto institucional favorável. O interesse e os meios disponíveis do lado brasileiro encontravam, da parte de Bourdieu, uma clara motivação em testar o escopo de sua sociologia e difundir sua obra além do contexto francês. Essa receptividade, porém, não deve elidir o fato de que a iniciativa partiu dos brasileiros, como testemunhou Monique de Saint Martin2 2. Palestra de Monique De Saint Martin no Colóquio Bourdieu et les Ameriques. IHEAL, 6 de junho de 2019. e como atestam os documentos.

De fato, Saint Martin foi um elo fundamental nessa conexão. Depois da primeira visita ao Brasil, em 1976, quando foi recebida por Miceli na FGV e por Palmeira no Museu Nacional, ela esteve mais dez vezes no país, trabalhando como uma emissária a sondar pesquisas que pudessem interessar a Bourdieu. Há indícios de sua participação na leitura dos textos em português enviados para Actes e na redação final das respostas de cartas que envolviam considerações sobre esses textos, já que nelas se vê marcado a lápis no canto superior “MSM”. Em alguns casos, seu trabalho de tradução e reescrita desses textos foi explicitado.

Até o final dos anos de 1960, o Brasil constava no universo de Bourdieu apenas através de um contato efêmero com a obra de Roger Bastide (Bourdieu, 1961BOURDIEU, Pierre. (1961), “Roger Bastide, Les religions africaines au Brésil”. Homme, 1(1): 114-116.) e da presença de Moacir Palmeira em seus seminários3 3. Confira a nota anterior. . O brasileiro teve a oportunidade de publicar o primeiro texto de Bourdieu no país, “Campo Intelectual e Projeto Criador”, que constava em um volume da revista Les Temps Modernes de 1966 organizado por Jean Pouillon, que ele havia conhecido durante sua estadia em Paris, quando fazia sua tese de doutorado. Em 1968, ele decidiu editar integralmente o volume como a coletânea Problemas do Estruturalismo, aproveitando seus contatos com a Editora Zahar do Rio de Janeiro.

Mas o momento decisivo da conexão de Bourdieu com o Brasil foi a carta que Sergio Miceli, aos 25 anos de idade, lhe escreveu em 12 de fevereiro 1970, propondo-se a traduzir e organizar os textos do primeiro livro inteiramente dedicado a seus artigos, publicado pela editora Perspectiva de São Paulo em 1974, intitulado A Economia das Trocas Simbólicas, que foi o pretexto inicial de uma relação duradoura que se tornaria a porta de entrada de outros membros na rede. Ali já se explicitava o interesse específico de Miceli na obra do futuro orientador de sua tese de doutorado, a sociologia da cultura:

Eu conheço a sua obra através dos meus cursos de sociologia da arte e da literatura muito antes de terminar a minha graduação na Faculdade. Eu a considero particularmente importante do ponto de vista da definição rigorosa de um objeto específico e relativamente autônomo para uma sociologia da cultura. Na minha opinião, o seu esforço para estabelecer um campo de investigação próprio e conveniente para os estudos culturais, melhor ainda, para definir e circunscrever os agentes sócio-históricos, as instituições, os modos de comportamento, as representações mentais, as produções, apresenta o maior interesse para as análises culturais no Brasil. Além disso, a sua obra me parece significativa porque ela tenta estabelecer o ritmo e o funcionamento do nível da produção cultural, seus elementos constitutivos e suas formas históricas de agenciamento. Minha formulação pessoal dessa problemática deve muito a suas obras e às de Francastel, Raymond Williams, Hoggart etc. (12/2/1970) (grifos e tradução meus).

Miceli estava engajado na reconstrução da sociologia da cultura em um contexto dominado pela crítica literária e pela filosofia estética, enquanto, nas ciências sociais, predominavam os temas do desenvolvimento, do trabalho e da educação. A aposentadoria compulsória dos principais expoentes da área pela Ditadura Militar acelerou a sucessão geracional e abriu alguma chance para novos objetos e perspectivas, mas a força do marxismo impunha muitas resistências.

Comparando as sugestões de textos dadas por Bourdieu para a coletânea, inspiradas em volume que estava sendo preparado para a editora Droz, de Genebra, (carta de 6/4/1970) e aqueles que foram de fato publicados, vemos a preocupação de Miceli em afirmar um autor até então muito pouco conhecido no Brasil, aproximando-o dos clássicos da sociologia, sobretudo Weber, demonstrando assim que “ele não era um desvalido” (entrevista à autora, 23/9/2019). A sociologia weberiana da religião tem amplo destaque, como a matriz do conceito de ‘campo’, o principal instrumento para a análise da cultura. Isso é feito pela publicação do artigo “Gênese e estrutura do campo religioso”, que não constava entre os sugeridos por Bourdieu e no qual ele retoma a relação entre o surgimento de um corpo de especialistas imbuídos da gestão dos bens da salvação e a delimitação de um espaço dotado de normatividade própria (Bourdieu, 1974BOURDIEU, Pierre. (1974), A economia das trocas simbólicas. MICELI, Sérgio (org.). São Paulo, Perspectiva., p. 36). Mas é sobretudo na introdução “A força do sentido” que esse enquadramento da obra e sua aproximação com os clássicos ganha mais ênfase. Nela, Miceli filia Bourdieu às tradições que pensam a cultura como consenso, notadamente Durkheim, mas também como poder, polo conceitual em que situa Marx e Weber. Porém, é este último quem fornece o modelo para a compreensão da dinâmica interna do campo cultural através da disputa entre os seus agentes prototípicos, os sacerdotes, os profetas e os leigos. O texto foi a primeira cartada que habilitou precocemente Miceli como um dos principais especialistas em Bourdieu no Brasil e que, segundo ele próprio, o fez ganhar a confiança do seu futuro orientador (entrevista à autora, 23/9/2019).

Mais tarde, já na troca de cartas referente à organização da coletânea Educação e Hegemonia de Classes (1979DURAND, José Carlos & ZANOTTA, Lia Machado. (1979), Educação e hegemonia de classe. Rio de Janeiro, Zahar.) organizada por Lia Zanotta e José Carlos Durand, um colega de Miceli da FGV que ele havia apresentado a Bourdieu, o francês reagiria a essa associação estrita a Max Weber. Enumerando as ressalvas à introdução escrita por Durand em carta de 15 de março de 1978, ele disse:
  • p. 12 e ss: me parece que você subestima (um pouco) o peso do capital econômico entre os diferentes fatores explicativos.

  • p. 16 e ss: é talvez o que me incomoda mais, não me parece exato dizer que minha concepção de estrutura de classe é ‘weberiana’, mas isso seria muito longo para explicar… eu envio em anexo um texto talvez mais claro.

  • p. 17: no campo da classe dominante, nem todas as frações têm o mesmo peso, os grandes patrões da indústria ou do comércio ocupam as posições dominantes, enquanto os professores ocupam as posições dominadas; os quadros dirigentes ocupam, de sua parte, as posições intermediárias (tradução e grifos meus).

Esses pontos de discordância podem ser decorrentes de uma diferença do recorte analítico, por um lado, e do viés interpretativo posto pelo campo intelectual brasileiro, por outro. A necessidade de aproximar a obra de Bourdieu da sociologia clássica levou ao realce dos traços weberianos de sua teoria, através do conceito de “capital cultural”, o que nuançava o fundamento econômico das classes sociais. A hegemonia do marxismo tornava a aproximação a Weber, visto como um “teórico do conflito”, menos indigesta do que ao funcionalismo, visto como uma “teoria da ordem”, para usar um jargão do período (Ortiz, 2013ORTIZ, Renato. (2013), “Nota sobre a recepção de Pierre Bourdieu no Brasil”. Sociologia & antropologia. Rio de Janeiro, 3(5): 81–90, junho.). Mas há também uma questão concernente ao recorte analítico. O interesse de Miceli sempre esteve mais circunscrito às análises do campo cultural, ainda que na sua interface com o campo do poder. Ao contrário, o último ponto que Bourdieu destacava bem poderia ser um trecho de A Distinção, livro que estava finalizando naquele momento e no qual a lente se abre para pensar os intelectuais como fração dominada, não porque o campo cultural careça de autonomia, mas porque o escopo da análise é o espaço social como um todo, em que o capital econômico é a forma dominante de capital e todas as classes precisam entrar na equação.

A recepção da obra de Bourdieu que Miceli favoreceu no Brasil enfatizou a dinâmica interna do campo cultural. O atraso na publicação de A Distinção no país é sintomático, uma vez que o livro só saiu em 2007. É certo que Miceli fez reiterados esforços para editá-lo, mas encontrou enormes dificuldades devidas aos custos de um livro extenso, cheio de tabelas e gráficos (cartas de 21/5 e 2/12 de 1980). Ainda assim, também no Brasil já era o livro mais citado antes mesmo de ser traduzido (Campos e Szwako, 2020CAMPOS, Luiz Augusto & SZWAKO, José. (2020), “Biblioteca Bourdieusiana ou como as ciências sociais brasileiras vêm se apropriando de Pierre Bourdieu (1999-2018)”. BIB, São Paulo, 91.).

Mas a sociologia da cultura posta em marcha por Miceli reforçaria a dimensão do campo do poder, em um contexto de fraca autonomização do campo cultural, em que o Estado e as organizações políticas tinham um papel desmedido no financiamento das atividades intelectuais diante da fragilidade do mercado. Tal leitura da obra de Bourdieu se manifesta na tese de doutorado que ele orientou entre 1974 e 1978, sobre a relação entre os intelectuais e as classes dirigentes no período de 1920 a 1945, de intensa modernização da sociedade brasileira, com a racionalização do Estado, a expansão do mercado cultural e do sistema de ensino. Na mesma linha seguem os textos de seus colegas da FGV publicados em Actes, que trataram da especialização do trabalho de dominação simbólica em diferentes nichos da produção cultural, como a arquitetura e o pensamento econômico (Durand, 1991DURAND, José Carlos. (1991), “Négociation politique et rénovation de l’architecture - Le Corbusier au Brésil”. Actes de la recherche en sciences socials, 88: 61-77, jun.; Loureiro, 1995LOUREIRO, Maria Rita. (1995), “L’ascension des économistes au Brésil”. Actes de la recherche en sciences socials, 108: 70-78, jun.).

Coube a Miceli traduzir ou fazer traduzir e publicar vários textos de Bourdieu, a partir da experiência bem-sucedida da coletânea pioneira. Mas para entender o sucesso da via aberta por ele, é preciso se deslocar para o espaço de recepção. A sua sociologia da cultura se beneficiou do diálogo com uma problemática cara à tradição do “pensamento social brasileiro”: o papel dos intelectuais na construção da “identidade nacional”, uma obsessão em um país de origem colonial e independência tardia (Arruda, 2004ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (2004), “Pensamento brasileiro e sociologia da cultura: questões de interpretação”. Tempo Social. São Paulo, 16 (1), junho.). Esse problema havia sido tratado pela crítica literária de Antônio Candido e seus seguidores desde a Formação da Literatura Brasileira. Candido havia sido aluno de Roger Bastide, que havia feito esforços para afirmar a sociologia da arte no Brasil nos anos de 1940. Depois, com o retorno de Bastide para a França e a proeminência do tema do desenvolvimento em uma área liderada por Florestan Fernandes, Candido migrou para a crítica literária. Mas, mesmo institucionalmente deslocado da sociologia, permaneceu sendo uma referência incontornável nos estudos sobre a cultura no Brasil. Não por acaso, foi ele que fez o prefácio da edição brasileira de 1979 do livro decisivo na trajetória de Miceli, sua tese de doutorado também editada na França em 1981 na Coleção Brasilia da Maison des Sciences de L’Homme. O trabalho de Miceli contribuiu para a consolidação da sociologia da cultura no Brasil traçando os seus limites em relação à crítica literária inspirada em Candido. Ele o fez oferecendo o instrumental bourdieusiano para recolocar o velho problema do papel dos intelectuais na construção da nação em bases empíricas mais amplas, focadas não nas obras, mas no espaço social em que transitam seus produtores.

A tarefa de Miceli foi facilitada pelo acesso a recursos materiais, culturais e institucionais muito importantes. Desde o começo da carreira, manteve laços com o mercado editorial. Através de sua primeira esposa, Sonia Novinsky, ele se aproximou de Jacó Guinzburg, responsável pela Editora Perspectiva que publicou a coletânea com os textos de Bourdieu em 1974 (Muniz e Rodrigues, 2018MUNIZJR., José de Souza & RODRIGUES, Lidiane Soares. (2018), “Entrevista com Sergio Miceli”. Prismas, Buenos Aires, 22(2).). Havia também a sua experiência anterior como editor de uma revista científica na FGV, um tipo de capital cultural importante para os mediadores. Em outros momentos mais avançados de sua trajetória, Miceli manteve relações estreitas com outras editoras que lhe permitiram contribuir de forma decisiva para a publicação dos livros de Bourdieu (Muniz e Rodrigues, 2018MUNIZJR., José de Souza & RODRIGUES, Lidiane Soares. (2018), “Entrevista com Sergio Miceli”. Prismas, Buenos Aires, 22(2).), particularmente seu trabalho na direção da Edusp e sua colaboração com a Companhia das Letras.

É possível identificar algum tipo de participação sua na publicação dos seguintes livros:
  • A Economia das Trocas Simbólicas, Perspectiva, 1974 (organização e tradução);

  • O desencantamento do mundo, Perspectiva, 1979 (organização);

  • A Economia das Trocas Linguísticas, Edusp,1996 (organização e tradução);

  • As Regras da Arte, Companhia das Letras,1996 (indicação);

  • Liber I, Edusp, 1997 (organização);

  • Meditações Pascalianas, Bertrand Brasil, 2001 (tradução);

  • Esboço de Auto-Análise, Companhia das Letras, 2005 (organização e tradução);

  • Sobre o Estado, Companhia das Letras, 2012 (indicação, introdução).

Miceli também desempenhou um papel importante na construção de laços entre Bourdieu e a sociologia da educação no Brasil. Depois da tradução ruim de La Reproduction em 1975 pela Editora Francisco Alves, José Carlos Durand organizou a coletânea de textos sobre o tema em 1979 junto com Lia Zanotta que mencionamos e, mais tarde, Afranio Catani e Maria Alice Nogueira publicaram Escritos de Educação (1998), que foi reeditado dezesseis vezes. Durand havia sido seu colega na FGV e Catani havia trabalhado como assistente na pesquisa que resultou na sua tese de doutorado.

Já no Museu Nacional do Rio de Janeiro, a antropologia ampliava seus problemas de pesquisa para além das comunidades indígenas e os trabalhos de Bourdieu e Sayad sobre a Argélia forneciam instrumentos para entender a reconversão das classes sociais provocada pelo declínio da dominação tradicional no mundo rural (Sigaud, 1980SIGAUD, Lygia. (1980), Greve nos engenhos. Rio de Janeiro, Paz e Terra.; Garcia Jr., [1976] 1983GARCIA JR., A. R. (1983), Terra de Trabalho. Trabalho de Pequenos Produtores. Rio de Janeiro, Paz e Terra.; Garcia Jr., [1983] 1989GARCIA JR., A. R. (1989), O Sul: Caminho do Roçado. Estratégias de Reprodução Camponesa e Transformação Social. 1. São Paulo/Brasília, Marco Zero/CNPq, UNB.; Leite Lopes, 1976LEITELOPES, José Sérgio Leite. (1976), O Vapor do Diabo. O Trabalho dos Operários do Açúcar. Rio de Janeiro, Paz e Terra.). Essa chave de interpretação da obra de Bourdieu teve efeitos muito importantes no domínio da antropologia. Mas, do ponto de vista da divulgação da sua obra, seu impacto no conjunto das ciências sociais foi reduzido pela ausência de esforços editoriais comparáveis aos de Miceli. Palmeira participou da direção de uma coleção de textos importantes de ciências sociais na editora Zahar, mas não publicou outros trabalhos de Bourdieu porque o contato mais direto com o proprietário a partir de meados dos anos de 1970 era Gilberto Velho, que tinha outras prioridades mais consoantes à sua formação estadunidense (entrevista à autora, 4/10/2019). Mais tarde, no começo dos anos 1980, Afrânio Garcia Jr. indicou o livro Questões de Sociologia para a publicação pela editora Marco Zero e Marie France Garcia-Parpet fez a revisão da tradução (carta de 29/6/1982). Há indícios na correspondência de um esforço de ambos para a publicação de O Senso Prático e A Nobreza de Estado pela editora Hucitec, que não obteve êxito (carta de 2/1/1990).

O trabalho de tradução e de publicação é muito importante para a aquisição do posto de mediador. O caso de Renato Ortiz o demonstra. Ele teve contatos muito menos regulares com Bourdieu, mas publicou em 1983 uma coletânea de seus textos na prestigiosa coleção “Grandes Cientistas Sociais”, dirigida por Florestan Fernandes na editora Ática de São Paulo. O volume deveria ser sobre Franz Fanon ou Georges Balandier, mas depois de alguma resistência de Fernandes, Ortiz conseguiu convencê-lo da importância daquele autor ainda pouco conhecido no Brasil (entrevista à autora, 28/9/2019). Ortiz também escreveu uma introdução célebre, mais centrada na sua teoria da ação e na maneira como ela tenta superar a polarização entre objetivismo e subjetivismo na sociologia, privilegiando o debate com Sartre. Esse enquadramento da obra de Bourdieu lhe permitiu se tornar uma referência importante sobre o autor francês. Entretanto, o texto não foi bem-recebido no círculo bourdieusiano (entrevista à autora, 28/9/2019).

Um outro trabalho de difusão importante é a entrevista que Maria Andrea Loyola fez com Bourdieu e que resultou em uma publicação no Brasil em 2002 e que foi utilizada em um documentário difundido também na França (Carles, 2001CARLES, Pierre. (2001), La sociologie est um sport de combat. Documentário.). Ela concluiu sua tese de doutorado na Universidade de Nanterre, sob orientação de Alain Touraine em 1973. Em 23 de junho de 1978, recebeu uma carta convite de Bourdieu para uma estadia no CSE na qual ele mencionava a proximidade de suas pesquisas com as de seu grupo. Em 1982, ela publicou um artigo em Actes sobre as diferentes formas de tratar a saúde do corpo e da alma mobilizadas em um bairro pobre do Rio de Janeiro. Bourdieu fez um enorme esforço para prolongar sua permanência em Paris, considerando o risco que a Ditadura representava para ela no Brasil.

Já o pioneirismo de Moacir Palmeira na difusão da obra de Bourdieu se deu, curiosamente, através de sua tese de doutorado apresentada em 1971 na Universidade René Descartes orientada por François Bourricaud. Apesar de nunca ter sido publicada ou mesmo traduzida para o português, a tese teve uma grande influência sobre toda uma geração de pesquisadores e pesquisadoras, sobretudo no Museu Nacional, onde Palmeira traçou um programa de pesquisa sobre populações camponesas para estudantes do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS) que estava sendo criado. O debate sobre o mundo rural brasileiro estava preso à polarização entre as categorias de feudalismo e capitalismo. A tese de Palmeira apontava para a necessidade de investigar aquela realidade através do método etnográfico, de maneira a superar uma categorização genérica construída com base no contexto europeu. Ele recorria ao conceito de “campo intelectual” no intuito de problematizar a adesão ingênua àquelas categorias para descrever a situação dos camponeses no Brasil e ao de “posição de classe” como uma alternativa não substancialista para a compreensão dessa situação (Palmeira, 1971PALMEIRA, Moacir. (1971), Latifundium et capitalisme au Brésil: lecture critique d’un débat. Paris. Tese de doutorado em Ciências Humanas. Université René Descartes.).

Como professor e orientador, Moacir Palmeira introduziu o pensamento de Bourdieu no Museu Nacional e seu trabalho, junto com o de sua esposa Lygia Sigaud, guiou muitas pesquisas nos anos de 1970 sobre o declínio do modo de dominação tradicional, especialmente no Nordeste. Mas, apesar daquele contato inicial com o sociólogo francês, foi também Miceli quem pediu uma carta convite para ele visando uma estadia no Centro, em 17 de novembro de 1975. A esposa de Palmeira, Lygia Sigaud, era muito amiga de Miceli desde a graduação que cursaram juntos na PUC do Rio de Janeiro. Sigaud é um elo muito importante na rede, como relatou Monique de Saint Martin (entrevista à autora, 17/4/2019) e demais entrevistados, ainda que conste pouco na correspondência.

O trecho da carta que Miceli enviou a Bourdieu em 17 de novembro de 1975 evidencia que, já naquele momento, as articulações para trazê-lo ao Brasil contavam com a ajuda de professores da USP, provavelmente Leôncio Martins Rodrigues. O documento também mostra a proximidade entre os grupos do Rio e de São Paulo. Por fim, a referência ao texto sobre Heidegger ilustra o quanto as publicações constituíam um interesse comum que fortalecia a posição de intermediário privilegiado de Miceli.

No que concerne o projeto de sua visita ao Brasil, eu pensei que a melhor estratégia seria conectar ao grupo um sociólogo da Universidade de São Paulo (o mesmo que patrocinou a visita de Touraine) e o grupo de sociólogos do Museu Nacional do Rio do qual faz parte nosso amigo Palmeyra. Se o cara da Universidade não conseguir aprovação do que nós combinamos junto ao grupo do qual ele faz parte, não faltarão outros. Além disso, outras pessoas poderão integrar o circuito, como por exemplo a psicóloga que já lhe enviou um convite. Se você concorda com tudo isso, me diga.

De outro lado, seria necessário enviar a Moacyr Palmeira (cujo endereço é Rua Araucária, 159/apto 304 - Jardim Botânico - Rio de Janeiro/RJ - Brasil) a carta convite de que lhe falei. Esta carta permitirá que uma instituição qualquer pague sua viagem no fim deste ano (basta fazer menção a uma estadia de dois meses).

Eu aguardo com impaciência o seu texto sobre Heidegger, bem como o próximo número de Actes

Esperando notícias suas, eu o saúdo muito afetuosamente.

Sergio M. (grifos e tradução meus).

A carta convite que Bourdieu enviou a Moacir Palmeira em 2 de dezembro de 1975 mencionava a interlocução anterior entre ambos, sobretudo nos dois meses que o brasileiro passou no Centro por ocasião da defesa da tese. A visita que se seguiu em 1976 também incluiu Sigaud e Leite Lopes. Deu-se, então, a conexão efetiva com a rede, sobretudo através de Saint Martin, que fez no mesmo ano sua primeira visita ao Brasil, sendo recebida no Rio e em São Paulo. A partir dali, vieram os convites para as estadias no CSE e para a publicação em Actes. Mas só no começo dos anos de 1980 é que de fato essa relação se aprofundou, principalmente com Afrânio Garcia Jr., Marie-France Garcia-Parpet, José Sergio Leite Lopes e Rosilene Alvim.

Uma coisa que salta aos olhos é a frequência de casamentos entre os participantes da rede, como nos casos de Afrânio Garcia Jr. e Marie-France Garcia-Parpet, Moacir Palmeira e Lygia Sigaud, José Sérgio Leite Lopes e Rosilene Alvim, José Carlos Durand e Maria Rita Loureiro, Leôncio Martins Rodrigues e Arakcy Martins Rodrigues. O vínculo matrimonial aparece como uma forma de capital social muito importante para a construção do grupo. Nas correspondências, muitas interações entre Bourdieu e as brasileiras aparecem mediadas pelos maridos. Naquele ambiente universitário dos anos de 1970 e 1980, fortemente hierarquizado em termos de gênero, o habitus do líder, que manifestava “certa propensão para o orgulho e a ostentação masculinos” (Bourdieu, 2004BOURDIEU, Pierre. (2004), Esboço para uma auto-análise. Lisboa, Edições 1970., p. 96), não devia despertar muito incômodo, até porque seu controle estrito se exercia sobre os homens também. A distância respeitosa que a condição de mulheres casadas impunha à maioria das brasileiras da rede talvez fosse a razão maior dessa mediação pelos maridos, mas o fato é que elas raramente estabeleceram uma interlocução mais independente com ele, a julgar pelas cartas.

A principal exceção é Maria Andrea Loyola, cujo marido manteve-se distante por não ser da área das ciências sociais. Algumas cartas deixam entrever uma relação de muita confiança e gratidão pelo esforço que ele fez para prolongar sua estadia na França no começo dos anos de 1980. Loyola era responsável por uma das três linhas de pesquisa que ele listava quando concebia os projetos de cooperação com o Brasil4 4. Cópias de dois relatórios de pesquisa apresentados ao CNRS disponíveis nos Arquivos Pierre Bourdieu. , a sociologia da saúde e do corpo, mas que foi praticamente subsumida aos outros dois eixos conduzidos por Miceli e Palmeira na reconstrução dessa memória. Isso se explica, em parte, porque ela esteve em intensa colaboração com os ramos paulista e carioca, mas também porque ela se deslocou para a saúde coletiva.

Tomando o final dos anos de 1980 como parâmetro e dando ênfase aos membros brasileiros da rede, podemos concluir a descrição de sua formação com uma apresentação gráfica de suas principais relações (Gráfico 1).

Gráfico 1

O difícil aprendizado

Conectar-se aos Centros era apenas o primeiro passo de um processo muito exigente. Não surpreende que muitas tentativas de vínculos não tenham frutificado. As estadias em Paris eram um momento de aquisição direta da “maneira bourdieusiana de colocar os problemas”, através dos seminários, das discussões dos textos, das conversas informais, nos quais as sanções positivas e negativas exerciam seus efeitos. Se o processo era tenso para qualquer participante, no caso dos brasileiros e brasileiras uma carga a mais se colocava em função da assimetria estrutural que marcava a sua inserção na rede, pela condição de pesquisadores de um país periférico. Nesse sentido, aproveitamos uma rara ocasião em que um conflito emergiu para tentar objetivar as diferentes posições, definidas em grande medida pela forma de lidar com essa assimetria que colocava Bourdieu em um alto patamar de superioridade, tão mais naturalizada quanto mais próximo ao centro da rede se estivesse. Além disso, a ocasião permite ver também como se desenhavam as disputas por essa proximidade.

O caso de Moacir Palmeira é interessante porque deixa ver os custos envolvidos na participação na rede em uma condição tão desigual e uma trajetória de alguém que, a certa altura, desinvestiu dessa relação. Depois do rápido encontro em 1976, Bourdieu lhe escreveu comentando dois artigos dele que havia avaliado para a publicação em Actes, afirmando o desejo de publicar um deles, mas demandando reformulações substanciais. Para a sociabilidade brasileira, a forma pode ter soado um pouco dura, mas o francês deixou claro que estava interessado no texto e em estabelecer uma colaboração regular com seu grupo (carta de 8/12/1976).

Apesar disso, não houve resposta. Moacir Palmeira já estava estabelecido o suficiente no Museu para empreender os esforços necessários às adequações exigidas tanto pela revista quanto para a adaptação aos Centros. Por outro lado, em meados dos anos de 1970, Bourdieu ainda não era o vulto que se tornaria nos anos de 1980 em âmbito internacional, e a relação custo-benefício no cálculo desse investimento deveria se colocar de maneira muito diferente. O silêncio de Palmeira pode então ser interpretado como desistência.

Dois anos depois, em 19 de julho de 1978, foi Bourdieu quem escreveu a Palmeira lamentando não ter publicado o artigo em número temático sobre os camponeses e sugerindo um pequeno seminário no qual os pesquisadores e pesquisadoras dos dois países apresentariam seus trabalhos visando uma colaboração duradoura. Ele mencionava o desejo de convidar Lygia Sigaud e Leite Lopes e perguntava, com o uso efetivo do sinal de interrogação, o que nem sempre acontecia nas cartas, uma sugestão de data e de outros nomes. Essa reunião estava sendo organizada por ele, Saint Martin e Miceli, e o título do encontro, “Cultura e classes sociais”, já era indicativo da centralidade do seu orientando nos rumos das discussões que se pretendia estabelecer.

A resposta de Palmeira em 28 de agosto de 1978 foi uma tentativa de alargar a participação do seu grupo, sugerindo incluir Afrânio Garcia Jr. e Beatriz Heredia, e especificar os seus próprios temas, disputando a proeminência dada à cultura pela proposta de Bourdieu. O episódio evidencia o quanto Miceli já estava ajustado à forma de trabalhar do Centro e à liderança inconteste de Bourdieu, devido a sua participação precoce para a preparação da tese que havia lhe rendido até aquele momento duas estadias prolongadas, além do intenso contato que se seguiu tendo em vista também as publicações de seu orientador no Brasil.

Isso ficou mais evidente quando Bourdieu lhe delegou a tarefa de organizar e conduzir uma reunião preparatória em São Paulo. Naquela ocasião, o conflito veio à tona. Bourdieu havia solicitado que cada participante brasileiro enviasse um resumo do trabalho a ser apresentado em Paris, para elaborar a justificativa de novo pedido de apoio financeiro na França (carta de 31/5/1979). O grupo do Museu recusou-se a remeter antecipadamente o material porque essa solicitação foi entendida como a explicitação de uma posição subalterna diante dos franceses, já que tal exigência não se colocava para eles. A carta que Miceli enviou a Bourdieu em 2 de julho de 1979 narrando as tensões na reunião realizada em São Paulo evidencia sua visão dos motivos da disputa.

Caro Professor, Eu lhe escrevo para falar da reunião que a gente fez na minha casa no sábado 30 de junho para acertar os detalhes de nosso encontro em Paris. Mas muitas coisas que eu não esperava e que me surpreenderam aconteceram naquele dia. De modo que eu posso dizer que o grupo se dividiu radicalmente no momento da reunião, de um lado, havia aqueles (Andrea, Arakcy, Durand e eu) que tinham entendido muito bem o espírito e a proposta da reunião de trabalho em Paris, e de outro, havia Moacyr e seus dois amigos do Museu Nacional (José Sergio e Afranio, […] que todo o tempo demandaram e exigiram uma melhor definição do espírito, dos objetivos, do estilo, dos procedimentos da reunião, fazendo de conta que eles podiam mudar alguma coisa. […]” (tradução e grifos meus).

O trecho assinala um senso de realismo adquirido na passagem pelo Centro e no contato com Bourdieu, que conduzia de maneira muito estrita os trabalhos naquele espaço (Delsaut, 2005DELSAUT, Yvette. (2005), “Sobre o espírito da pesquisa – Entrevista com Pierre Bourdieu”. Tempo Social, São Paulo, 17 (1), junho. Tradução de Paulo Neves.). Ao mesmo tempo, indica uma certa hesitação por parte do grupo do Museu em se submeter às regras do jogo, que seria vencida no caso de alguns de seus membros, mas não totalmente por parte de seus líderes Moacir Palmeira e Lygia Sigaud. Miceli atribuiu as cobranças ao fato de que Palmeira e seu grupo priorizavam a atividade política em detrimento do trabalho acadêmico. Mas a disputa pelo lugar de mediador principal junto a Bourdieu também é mencionada:

Além do mais, era tão evidente que eles haviam escolhido antes cada palavra que eles disseram na reunião que eu penso que Moacyr se sente muito desconfortável de se unir a um projeto do qual ele não é o principal intermediário. Em suma, eles me encheram o saco ao máximo e me pediram para lhe dizer que as pessoas aqui se sentiriam melhor se os pesquisadores franceses que participarão da reunião apresentassem também os textos como nós. Você vê, é bem o tipo de demanda que eles me fizeram o tempo todo dizendo que acabou o “terceiro mundismo” intelectual etc, que não deveríamos nos prestar ao papel de pesquisador de terras distantes etc, etc, […] (tradução e grifos meus).

Por fim, Miceli narra o desfecho: “Bom, finalmente todo mundo concordou que a única demanda de ‘nossa’ parte seria lhe solicitar um esforço para a ‘diminuição’ das ‘assimetrias’, de modo que os participantes franceses devessem também apresentar os textos para que nós também pudéssemos fazer comentários”.

O uso das aspas marca a sua distância em relação à posição do grupo do Museu, o que significava a consciência dos ganhos que aquela relação, ainda que muito assimétrica, podia proporcionar. Todo o processo evidenciava os ajustes necessários, como uma espécie de pagamento antecipado, para a participação naquele círculo, tanto mais profundos quanto maior o grau de envelhecimento social do agente no campo acadêmico brasileiro. Por isso, o incômodo que ele provocou dependeu do momento em que cada pesquisador se encontrava em sua carreira e da clareza quanto aos lucros que poderiam advir da renúncia ao prestígio já alcançado no Brasil, para que se colocassem na posição de ‘aprendizes’. Apesar da resistência, o grupo do Museu insistiu na realização do seminário, em condições de uma “assimetria controlada”, mesmo quando Miceli sugeriu que talvez o melhor fosse desistir, como relatou a Bourdieu, antes de perguntar o que ele achava daquela situação.

Em 20 de julho de 1979, Bourdieu respondeu agradecendo e dizendo que, considerando as enormes dificuldades que encontrava para o financiamento da viagem, era melhor adiar o projeto e custear a ida dele, de sua esposa, de Maria Andrea Loyola ou de alguém do grupo do Rio que desejasse ir, (“Por exemplo, J. S. Leite Lopes”). Quanto ao teor do conflito narrado por Miceli, ele tentava contemporizar:

Eu entendo bem o seu desânimo; sua análise da situação me parece muito justa e infelizmente não há muito o que possamos fazer. As demandas do grupo do Rio são compreensíveis; no estado atual, não é fácil de dar uma resposta e, para lhe falar francamente, eu não tenho vontade de entrar nesse jogo (ainda mais que, como você sabe, nossa situação administrativa está muito difícil e nós temos toda a dificuldade do mundo para sobreviver pelo nosso próprio esforço) […].

No topo da página da carta enviada a Miceli, anotado a lápis, lemos: “nessas condições, adiar a reunião”. Foi de fato o que aconteceu, mas sem outros registros nas correspondências. Sabemos, através de entrevistas, que um seminário ocorreu em 1981, no qual Moacir Palmeira, Lygia Sigaud, Afrânio Garcia Jr., Marie France Garcia-Parpet e Maria Andrea Loyola tiveram a oportunidade de discutir seus trabalhos com os membros do Centro e submetê-los para a publicação em Actes. A partir daquele momento, no desenho da rede, os dois ramos se separaram e passaram a ter uma conexão mais independente.

Nas cartas, as sanções decorrentes da participação nesse espaço aparecem sobretudo através do trabalho de editoria de Bourdieu, pelo grau de intervenção nos textos avaliados. O nível de exigência da revista é um sintoma do tipo de investimento necessário para a participação na rede, o que afastava aqueles que estavam absortos em outros projetos. O preço implicado nessa conexão tampouco atraiu profissionais já bem postados em suas carreiras no Brasil5 5. Aqui seria interessante, se houvesse espaço, discutir a hipótese da recepção pelas margens, sustentada por Bortoluci et al. (2015). De fato, os mediadores e mediadoras de Bourdieu estavam longe de qualquer consagração no campo acadêmico brasileiro quando empreenderam o trabalho de difusão de sua obra e encontraram resistências. Mas é preciso enfatizar a dimensão temporal na análise. Nossa pesquisa mostra que tal obra foi um recurso importante para jovens pesquisadores e pesquisadoras diretamente envolvidos na crescente especialização do trabalho das ciências sociais no Brasil, em um contexto de sucessão geracional acelerada, entre outros fatores, pela Ditadura Militar, o que permitiu a esses e essas profissionais avançarem muito rápido em suas carreiras. Também porque, para além das resistências explícitas, havia uma convergência de fundo entre os recursos teórico-metodológicos disponibilizados por aquela perspectiva e o estado do campo das ciências sociais no Brasil que apontava para aquela especialização. e que tiveram contato com Bourdieu ou Saint Martin naquele período, como é o caso de Roberto Cardoso de Oliveira, Leôncio Martins Rodrigues ou Fernando Henrique Cardoso, que já iniciava sua transição para a carreira política e tinha uma ligação estreita com o concorrente direto de Bourdieu na França, Alain Touraine. FHC travou relações com Bourdieu a pretexto da solicitação que este lhe fazia, quando era presidente do Cebrap, para a prorrogação da estadia de Maria Andrea Loyola em Paris, mas se ateve a responder as solicitações que lhe foram feitas de maneira econômica (carta de 30/7/1980). Em alguma medida, é como se Moacir Palmeira e Lygia Sigaud também tivessem desinvestido dessa relação e, no caso de Sigaud, construído outros vínculos profissionais na França.

Os custos emocionais dessa socialização não parecem pequenos, a julgar pelo relato de Afrânio Garcia Jr, referente ao duplo esforço envolvido na adaptação ao Centro quando de seu primeiro pós-doutorado em 1983: por um lado, a compreensão das relações naquele espaço, já tensionadas entre o grupo de Bourdieu e de Boltanski; por outro, a imersão na obra de Bourdieu, de Sayad, nos textos publicados em Actes, para entender “a construção dos instrumentos sociológicos, compreender, por exemplo, que nos primeiros trabalhos sobre a Argélia, tratava-se de ‘ethos’, e que depois é que a palavra ‘habitus’ entrava, e compreender as polêmicas suscitadas”. (Gheorghiu, 2018GHEORGHIU, Mihai. (2018), “Entretien avec Afrânio Raul Garcia Jr: Les frontières internationals des sciences sociales. Itinéraires d’un intellectuel collectif.” Psihologia Socialã, Bucareste, 42, II., p. 36, tradução minha). Ele lembra que o suporte dos colegas dos Centros foi fundamental para sustentar o processo de readequação. Nesse sentido, os artigos publicados em Actes são indícios importantes do investimento e do reconhecimento obtido no grupo de Bourdieu. Afrânio Garcia Jr. é o brasileiro que mais publicou, e de forma contínua, totalizando quatro artigos.

A rede permitiu a construção de outras relações franco-brasileiras. Um caso emblemático foi a interlocução com Abdelmalek Sayad, reforçada nas suas duas estadias no Brasil, em 1990 e 1994. Ele foi acolhido pelo Museu, onde deu cursos sobre a migração como “um caso limite de reconversão social” (Garcia Jr., 2020GARCIA JR., A. R. (2020), “Migrantes internacionais como caso limite de agentes sociais impelidos à reconversão: debates teóricos e lições de Abdelmalek Sayad no Brasil”. In: BÓGUS, Lúcia; BAPTISTA, Dulce; PEREIRA, José Carlos Alves & DIAS, Gustavo (orgs.). A contemporaneidade do pensamento de Abdelmalek Sayad. São Paulo, Educ – Editora da PUC-SP.), conceito que permitia reler em chave mais ampla toda a produção daquele grupo. Do ponto de vista das trocas estabelecidas naquelas duas ocasiões, fica evidente a força dos campos intelectuais nacionais sobre a forma como cada repertório é assimilado, bem como o esforço de deslocamento em direção a um certo internacionalismo. Nesse sentido, a Internacional Científica era, ela própria, uma estratégia de um grupo até então marginal no cenário da sociologia mundial, tentando testar e demonstrar a validade transnacional de seus instrumentos teóricos e metodológicos, com bastante sucesso, se pensarmos na consagração da cifra Bourdieu nos dias de hoje. Mas isso se fez pela inculcação de um habitus científico voltado à perspectiva comparativa, que se manifestou naquela ocasião pelo interesse imediato de Sayad em discutir as pesquisas em curso no Brasil (Garcia Jr., 2020GARCIA JR., A. R. (2020), “Migrantes internacionais como caso limite de agentes sociais impelidos à reconversão: debates teóricos e lições de Abdelmalek Sayad no Brasil”. In: BÓGUS, Lúcia; BAPTISTA, Dulce; PEREIRA, José Carlos Alves & DIAS, Gustavo (orgs.). A contemporaneidade do pensamento de Abdelmalek Sayad. São Paulo, Educ – Editora da PUC-SP.).

Essa experiência mostra que as relações profissionais entre os(as) brasileiros(as) e os demais membros da rede se prolongaram muito depois da imersão nos Centros, mas é importante entender como a partir do final dos anos de 1980, a natureza dessa colaboração mudou à medida que Bourdieu se tornava cada vez mais ausente.

O fim de uma época

A consagração internacional de Bourdieu e dos primeiros mediadores e mediadoras no campo intelectual brasileiro marca uma nova fase nessas relações. As cartas posteriores a 1980 mostram a dispersão dos intercâmbios, com a aparição de novos colaboradores provenientes de outras universidades brasileiras e também de outros países da América Latina. No Brasil, outros centros de pesquisa surgiram no mapa, como o Ceará, o Rio Grande do Sul e Minas Gerais, através de Daniel Lins, Tomaz Tadeu Silva, Juremir Machado e Maria Alice Nogueira, alguns engajados em trabalhos de tradução. Moacir Palmeira e Afrânio Garcia Jr. apresentaram Bourdieu a Irlys Barreira e César Barreira, da Universidade Federal do Ceará, e eles fizeram pós-doutorado na EHESS entre 1989 e 1990, estabelecendo uma relação mais duradoura. Mas tanto aqui quanto em outros países, sobretudo a partir de meados da década de 1990, muitas cartas são apenas convites para visitas e entrevistas, da parte de pessoas sem contatos anteriores ou posteriores com Bourdieu. Ele havia se tornado uma “abstração” (Delsaut, 2005DELSAUT, Yvette. (2005), “Sobre o espírito da pesquisa – Entrevista com Pierre Bourdieu”. Tempo Social, São Paulo, 17 (1), junho. Tradução de Paulo Neves., p. 177). Nesses casos, a obra parece chegar antes do autor e permanecer sem sua intervenção direta. Sua condição de “intelectual público” havia aberto uma outra frente de trabalho na mídia e a demanda por textos, entrevistas e mesmo visitas havia adquirido um caráter mais político. Ao mesmo tempo, sua saúde impunha limites cada vez mais palpáveis, o que se manifesta nas cartas já a partir de 1994.

No final dos anos de 1980, a relação com os antigos colaboradores brasileiros também parece mudar, por um lado, devido ao fim das condições de possibilidade de um grupo de trabalho como o que havia existido até então, por outro, porque os investimentos dos mediadores e mediadoras se deslocavam cada vez mais para o campo nacional, onde adquiriam uma posição importante em seus domínios de pesquisa. Desde o começo, Miceli parecia muito mais interessado nos rendimentos acadêmicos que ele poderia obter no seu país natal quando, por exemplo, disse a Bourdieu que ele devia saber o que significava a publicação de seu primeiro texto em Actes do ponto de vista de sua “posição interna” (carta de 14/12/1975). O sentido desses esforços também parecia evidente para Bourdieu que, em carta escrita para Monique de Saint Martin em 1976, afirmava sua aposta na revista como meio de apoiar Moacir Palmeira e os “dois Sergios” (Miceli e Leite Lopes) em suas carreiras no Brasil.

Da mesma forma como o momento da conexão não é o mesmo para os (as) profissionais do Rio e de São Paulo, o do afastamento também não é. Embora Miceli tenha continuado a trabalhar para publicar os livros de Bourdieu, a partir do começo dos anos de 1980 a força de seu próprio programa de pesquisa se impôs com o estudo sobre a História das Ciências Sociais no Brasil, (1989). Isso ajuda a entender porque ele recusou tantas vezes os convites de Bourdieu para publicar em Actes textos sobre o futebol, quando o francês se interessava pela sociologia do esporte, e também artigos baseados nas investigações que desenvolvia sobre o clero e os retratos da elite paulista no século XIX (cartas de 18/12/1980, 5/6/1981, 11/12/1987). Ainda assim, apesar do afastamento das duas trajetórias, os dois mantiveram laços estreitos até o final.

Já os pesquisadores e pesquisadoras do Museu fizeram o movimento contrário. Enquanto estiveram ocupados pelos projetos que sustentaram a consolidação do PPGAS do Museu Nacional, nos anos de 1970, não participaram intensamente da rede. Leite Lopes explica porque não aceitou o convite de Bourdieu para publicar um texto sobre sua dissertação em 1976, já que exigia a sistematização do trabalho sob a forma de um artigo, recusando-se a publicar um capítulo (carta de 8/12/1976), enquanto ele estava absorto na pesquisa sobre o Nordeste (entrevista à autora, 4/10/2019). Nos anos de 1980, depois de estadias na França, Leite Lopes, Alvim, Garcia Jr. e Garcia-Parpet encontraram pontos de convergência com as pesquisas que Bourdieu desenvolvia, o que se reflete nos textos que publicaram em Actes.

Mas ao contrário da sociologia dos intelectuais capitaneada por Miceli, os temas dos pesquisadores do Museu Nacional, ligados às transformações no mundo rural, depois do grande interesse despertado pelas greves rurais nos anos de 1980 (Leite Lopes In Perruso e Araújo, 2015PERRUSO, Marco Antonio & ARAÚJO, Mônica da Silva (orgs.). (2015), Ciência e Política - memórias de intelectuais. Rio, Mauad, Faperj.), momento da redemocratização do país, terminaram se tornando um assunto de especialistas sem tanta repercussão em outras áreas. Esse fato é ligado a outra tendência reforçada pela Ditadura: a profissionalização dos cientistas sociais e o declínio de sua relação direta com a vida política. O tema das classes populares era importante para aqueles pesquisadores e para uma parte de seus leitores sobretudo por suas vinculações militantes, e eles viveram dilemas pessoais no momento da profissionalização, por exemplo, ao decidir deixar o país para fazer doutorado enquanto seus amigos eram ameaçados pelos aparelhos de repressão (Gheorghiu, 2018GHEORGHIU, Mihai. (2018), “Entretien avec Afrânio Raul Garcia Jr: Les frontières internationals des sciences sociales. Itinéraires d’un intellectuel collectif.” Psihologia Socialã, Bucareste, 42, II.). Para pesquisadores de São Paulo, parece que essa decisão já havia sido tomada de antemão. Miceli e Durand contam que testemunharam muito cedo a violência policial na faculdade, no momento em que começavam a se aproximar de militantes de esquerda. O pouco engajamento político que eles podiam ter até então foi redirecionado ao trabalho acadêmico (entrevistas com Miceli e Durand, 30/9 e 27/9/2019). Maria Andrea Loyola sofreu perseguição política e sua ida para a França estava ligada a esse fato.

Comparativamente às escolhas de Miceli, focadas no campo intelectual brasileiro, a trajetória de Afrânio Garcia Jr. mostra a tomada de uma outra posição no campo dos possíveis, aquela que o converteria em mediador fundamental dos intercâmbios entre a França e o Brasil nas ciências sociais desde então. Nos anos de 1990, como sua esposa Marie-France Garcia-Parpet, ele decidiu retornar para a França e, com o apoio de Bourdieu e dos pesquisadores ligados ao CSEC, ele obteve por concurso um posto de “maître de conférences” na EHESS, fazendo a ponte entre os pesquisadores brasileiros e a sociologia francesa, em condições muito assimétricas que ele se esforça para contestar.

Sobre o campo intelectual francês, a rede franco-brasileira teve efeitos menos importantes, mesmo que ela faça parte da disputa pela autoridade acadêmica sobre esse “laboratório” (Martinière, 1982MARTINIÈRE, Guy. (1982), Aspects de la coopération franco-brésilienne: transplantation culturelle et stratégie de la modernité. Grenoble/Paris, Presses universitaires de Grenoble/Ed. de la Maison des sciences de l’homme.) que é o Brasil. A metáfora do “laboratório” revela a assimetria desses intercâmbios científicos. Ela traz a marca dos primeiros momentos dessa relação, por exemplo, a missão francesa que participou da criação da USP com jovens pesquisadores como Lévi-Strauss, Fernand Braudel e Roger Bastide. De retorno à França, os seus trabalhos suscitaram interesse da parte de estudantes franceses, mas, a partir dos anos de 1960, aumentou o número de doutorandos brasileiros que foram ao país estudar temas ligados ao Brasil (Martinière, 1982MARTINIÈRE, Guy. (1982), Aspects de la coopération franco-brésilienne: transplantation culturelle et stratégie de la modernité. Grenoble/Paris, Presses universitaires de Grenoble/Ed. de la Maison des sciences de l’homme.). No caso que analisamos, esses pesquisadores não estavam apenas interessados em aportar material de pesquisas empíricas, mas sobretudo em se apropriar dos instrumentos bourdieusianos para a sua interpretação e, assim, recolocar em novas bases problemas da sociologia nacional. E mesmo que essa relação possa ter começado com o interesse de Bourdieu em testar aqueles instrumentos no “laboratório” brasileiro, alguns pesquisadores conseguiram afirmar a sua capacidade interpretativa e estabelecer laços mais horizontais com os outros jovens do grupo, inclusive os franceses e as francesas. Os testemunhos de Francine Muel Dreyfus e de Monique de Saint Martin durante o Colóquio de junho de 2019 sustentam essa interpretação.

A partir dos anos de 1980, as trajetórias de Bourdieu e de seus primeiros colaboradores começaram a se afastar e a divisão do trabalho que havia predominado dentro do grupo se tornou cada vez mais problemática (Delsaut, 2005DELSAUT, Yvette. (2005), “Sobre o espírito da pesquisa – Entrevista com Pierre Bourdieu”. Tempo Social, São Paulo, 17 (1), junho. Tradução de Paulo Neves.). Quando ele se consagrou internacionalmente, essa divisão pesou sobretudo para os que não obtiveram o reconhecimento prometido inicialmente por aquela colaboração. A autoria individual tende a obliterar todo o esforço de construção coletiva envolvido na elaboração do conhecimento. Se, nos primeiros tempos, a formação e a promessa de reconhecimento futuro pareciam compensar o que cada um aportava ao coletivo, conforme o nome próprio de Bourdieu foi se consagrando internacionalmente e alguns de seus discípulos e discípulas não obtiveram muita visibilidade na esteira dessa consagração, as trajetórias se afastaram e alguns laços até se romperam. Suspensos os efeitos do carisma do líder sobre o grupo, o rígido controle que ele exercia sobre a distribuição dos créditos do trabalho coletivo e individual pode, então, parecer problemático. Mais ou menos reconciliados com a nova situação, os participantes da antiga rede parecem ter uma certa nostalgia que pode expressar a consciência do caráter singular daquela experiência. Em carta de 4 de setembro de 1995, Miceli fala em “recuperar o tempo perdido”, enquanto Garcia Jr. compara o ambiente mais competitivo da EHESS com o sentimento de pertencimento que os Centros lhe inspiravam (Gheorghiu, 2018GHEORGHIU, Mihai. (2018), “Entretien avec Afrânio Raul Garcia Jr: Les frontières internationals des sciences sociales. Itinéraires d’un intellectuel collectif.” Psihologia Socialã, Bucareste, 42, II.). A distância se deve também ao fato de que o projeto de internacionalização havia se realizado e que Bourdieu estava cada vez mais “afogado”6 6. “Submergé” é uma expressão que ele utiliza cada vez mais nas cartas a partir dos anos de 1990. pelas demandas dispersas, muitas de interlocutores que ele nem conhecia pessoalmente.

  • 2.
    Palestra de Monique De Saint Martin no Colóquio Bourdieu et les Ameriques. IHEAL, 6 de junho de 2019.
  • 3.
    Confira a nota anterior.
  • 4.
    Cópias de dois relatórios de pesquisa apresentados ao CNRS disponíveis nos Arquivos Pierre Bourdieu.
  • 5.
    Aqui seria interessante, se houvesse espaço, discutir a hipótese da recepção pelas margens, sustentada por Bortoluci et al. (2015)BORTOLUCI, José H.; JACKSON, Luiz. C. & PINHEIRO FILHO, Fernando. A. (2015), “Contemporâneo clássico: a recepção de Pierre Bourdieu no Brasil”. Lua Nova, São Paulo, 94: 217-254.. De fato, os mediadores e mediadoras de Bourdieu estavam longe de qualquer consagração no campo acadêmico brasileiro quando empreenderam o trabalho de difusão de sua obra e encontraram resistências. Mas é preciso enfatizar a dimensão temporal na análise. Nossa pesquisa mostra que tal obra foi um recurso importante para jovens pesquisadores e pesquisadoras diretamente envolvidos na crescente especialização do trabalho das ciências sociais no Brasil, em um contexto de sucessão geracional acelerada, entre outros fatores, pela Ditadura Militar, o que permitiu a esses e essas profissionais avançarem muito rápido em suas carreiras. Também porque, para além das resistências explícitas, havia uma convergência de fundo entre os recursos teórico-metodológicos disponibilizados por aquela perspectiva e o estado do campo das ciências sociais no Brasil que apontava para aquela especialização.
  • 6.
    “Submergé” é uma expressão que ele utiliza cada vez mais nas cartas a partir dos anos de 1990.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2021
  • Aceito
    12 Nov 2021
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